1. Dois institutos com um só fim – 2. A inutilidade da separação – 3. A separação – 4. Separação por mútuo consentimento – 5. Separação judicial – 6. Separação-remédio – 7. A separação chamada litigiosa – 8. Ainda a culpa – 9. O uso do nome – 10. O direito aos alimentos – 11. O divórcio – 12. O que está regulado – 13. Divórcio direto ou por conversão – 14. A partilha de bens – 15. Quando o cônjuge é incapaz – 16. O fim da Lei do Divórcio – 17. Os procedimentos processuais.
1. Dois institutos com um só fim
Ainda que se trate de institutos distintos, por se encontrarem inseridos no mesmo capítulo do Código que acaba de entrar em vigor, a separação e o divórcio merecem apreciação conjunta, até porque os dois têm o mesmo fim: buscam o fim de um relacionamento. Ambos são elencados como modalidades que põem termo ao casamento (inc. III e IV do art. 1.571), mas a identidade entre eles termina aí. O próprio § 1.º deste mesmo artigo já se encarrega de estabelecer – ou, ao menos, tenta – a distinção entre os dois institutos, ao especificar que somente a morte e o divórcio dissolvem o casamento. Paradoxalmente, diz a lei que a separação põe termo à sociedade conjugal, mas não a dissolve, flagrando-se uma certa incongruência entre tais afirmativas. Afirmar que a sociedade conjugal “termina” pela morte, pelo divórcio e pela separação, mas que o casamento só se “dissolve” pela morte ou pelo divórcio causa, no mínimo, certa perplexidade.
Ao se atentar estritamente à literalidade de tal dispositivo, se poderia afirmar que a mera nulidade do casamento já ensejaria o término do casamento a tornar despicienda a desconstituição judicial do vínculo. Igualmente seria possível concluir que a anulação do casamento leva ao término e não à dissolução da sociedade conjugal, eis referida tão-só no inc. II do art. 1571, sem constar do parágrafo primeiro do art. 1571 - juntamente com a morte e o divórcio – como modalidade igualmente apta a dissolver o casamento. Porém, nenhuma dessas proposições legais, guarda correspondência com a natureza da demanda referente ao estado das pessoas, que tem carga eficacial desconstitutiva e só produz efeito depois de chancelada judicialmente. Assim, a mera nulidade, enquanto não proclamada, não afeta a higidez do casamento. De outro lado, anulado o casamento, não mais existe qualquer liame entre as partes, que voltam ao estado de solteiros. Portanto, ao contrário do que está posto, a nulidade do casamento não termina com a sociedade conjugal e a anulação do casamento dissolve o vínculo matrimonial, apesar da omissão da lei.
2. A inutilidade da separação
A tentativa não muito feliz do legislador de estabelecer a distinção entre separação e divórcio, por si só, seria suficiente para evidenciar a total inutilidade da mantença de uma dupla via para pôr termo ao casamento. Duplicidade que se poderia chamar de verdadeiro “pleonasmo jurídico”.
Sob a égide de uma sociedade fortemente conservadora e influenciada pela Igreja, justificava-se a concepção do casamento como instituição indissolúvel, tal como o considerou o Código Civil de 1916. A evolução dos costumes levou a uma revolução do próprio conceito de família, mas, ainda assim, forte foi a resistência de alguns segmentos quando da instituição do divórcio no Brasil, por meio da Emenda Constitucional n. 9, de 28 de junho de 1977.
Para viabilizar a aprovação da lei regulamentadora do divórcio (Lei n. 6.515, de 26.12.1977), algumas concessões se fizeram necessárias, abrandamentos e restrições acabaram sendo impostas. Assim, o que o Código Civil denominava de “desquite” (ou seja, não quite, alguém em débito para com a sociedade) passou a se chamar, na Lei do Divórcio, de “separação judicial”. Foi a forma encontrada para dispensar os cônjuges dos deveres do casamento sem romper nem dissolver os sagrados laços do matrimônio.
A Lei do Divórcio, em sua versão primeira, autorizava o divórcio uma única vez (art. 38), o que agora soa como um verdadeiro absurdo. O chamado “divórcio direto” era possível somente em caráter emergencial, tanto que previsto nas disposições finais e transitórias da Lei. O art. 40 possuía a seguinte redação: “No caso de separação de fato com início anterior a 28 de junho de 1977, e, desde que completados 5 (cinco) anos, poderá ser promovida ação de divórcio, na qual se deverão provar o decurso do prazo da separação e sua causa”. Sua concessão, portanto, estava condicionada ao atendimento cumulativo de três pressupostos: (a) estarem as partes separadas de fato há cinco anos; (b) que esse prazo estivesse implementado antes da alteração constitucional, ou seja, antes de 28 de junho de 1977; e (c) à comprovação da causa da separação.
Nítida a intenção do legislador de autorizar o divórcio somente para atender à especial circunstância de quem já se encontrava separado de fato há mais de cinco anos quando da constitucionalização do instituto. Hipoteticamente, quando todos os que, tendo preenchido os três requisitos, houvessem se divorciado, desapareceria o divórcio direto. Exauridas tais ações, só após prévia separação judicial é que seria possível obter o divórcio, isto é, exclusivamente por meio do procedimento de conversão da separação em divórcio.
A jurisprudência emprestou interpretação mais extensiva ao indigitado dispositivo legal. Passou a reconhecer como possível a decretação do divórcio quando a separação de fato houvesse ocorrido antes de 28.06.1977, mesmo que o prazo qüinqüenal se implementasse posteriormente. Bastava que o par tivesse se separado antes da data de vigência da Emenda Constitucional, para ser autorizado o divórcio, tão-logo transcorrido o prazo de cinco anos. Não é preciso grande esforço para se imaginar a elasticidade que se emprestou à prova tanto do termo inicial da separação, quanto do prazo de sua duração. Para a concessão do divórcio consensual passou a ser suficiente a juntada da declaração de duas pessoas para se ter por adimplido o requisito temporal.
Quando a sociedade se convenceu de que o divórcio não destruiu a instituição da família nem acabou com o casamento, mais uma vez o vanguardismo de algumas decisões judiciais acabou impondo a reformulação da lei. Profunda foi a transformação operada pela Lei n. 7.841/89, ao dar nova redação ao artigo 40 da Lei do Divórcio. Além de subtrair o caráter de transitoriedade do divórcio direto, afastou a necessidade de identificação da causa para a sua concessão, ao revogar o parágrafo primeiro do indigitado artigo, que fazia expressa remissão aos dispositivos legais regradores da separação: acordo de vontades ou imputação ao réu de culpa ou doença mental (arts. 4.º e 5.º e seus parágrafos).
No momento em que se tornou possível a obtenção do divórcio mediante a mera comprovação da ruptura da vida em comum por dois anos consecutivos, institucionalizou-se o divórcio direto. Deixou de ser modalidade temporária de dissolução da sociedade conjugal tornando despicienda a dupla via procedimental. Superado o obstáculo que condicionava a concessão do divórcio a um termo inicial em data determinada, consolidou-se o divórcio como instituto autônomo, afastando a necessidade de prévia separação judicial como condição para ser deferido somente por meio do procedimento de conversão.
Como a separação põe termo aos deveres de coabitação, de fidelidade recíproca e ao regime matrimonial dos bens (art. 1.576 do CC), a condição de separado só dispõe de um efeito: impede um novo casamento. Nada obsta, no entanto, a constituição de uma união estável, pois o impedimento para casar não veda o seu reconhecimento, se atendidos os requisitos do art. 1723 do Código Civil: convivência pública, contínua, duradoura e com o intuito de constituição de família.
A única “vantagem” que se visualiza é, a possibilidade de se reverter a separação. No caso de os separados se reconciliarem podem, a todo tempo, restabelecer a sociedade conjugal “por ato regular do juiz” (art. 1.577 do CC). Já os divorciados que se arrependerem precisam casar novamente. Ou seja, a separação, ao contrário do divórcio, dispõe do que se poderia chamar de “cláusula de arrependimento”. Esse único benefício se mostra deveras insignificante, até porque raros são os pedidos de reversão da separação de que se tem notícia. Há a necessidade de contratar advogado e, além da delonga para o desarquivamento do processo, indispensável é a intervenção judicial. Por certo, mais prático e mais barato – além de mais romântico – é celebrar um novo casamento. Portanto, imperioso reconhecer que é de todo inútil, desgastante e oneroso, não só para o casal, mas também para o Poder Judiciário, impor uma duplicidade de procedimentos para simplesmente manter, durante o breve período de um ano, uma união que não mais existe, uma sociedade conjugal “finda”, mas não “extinta”.
Se, em um primeiro momento, para facilitar a aprovação da Lei do Divórcio, foi útil e quiçá necessária a transformação do desquite na separação judicial, como uma figura intercalar, hoje não há mais razão para sua mantença. Sua dispensabilidade é evidente. De há muito está superado o temor de que o divórcio iria levar à degeneração da sociedade, nada justificando dupla forma para por fim à vida em comum. Vivendo a sociedade um novo momento histórico, tão bem apreendido pela Constituição Federal, que trouxe um sem-número de garantias ao cidadão e assegurou-lhe o direito à liberdade e o respeito à dignidade, imperioso questionar se o Estado dispõe de legitimidade para impor aos cônjuges restrições à vontade de romper o casamento.
O certo é que, com a separação, o casamento não mais persiste, e, como os separados não podem casar, dita limitação afronta o pleno exercício do direito à liberdade. Como a família é a base da sociedade, merecedora da especial proteção do Estado (art. 226, CF), a imposição de restrições infirma os objetivos fundamentais do estado democrático de direito, que a própria Constituição consagra. De outro lado, nada impede que os separados estabeleçam novo relacionamento que venha a configurar união estável. No entanto, não há como dita entidade familiar se converter em casamento, transformação aliás, incentivada pelo legislador constituinte. Se o aparato estatal assumiu o encargo de facilitar aos unidos de fato a formalização de sua união, nada justifica que se mantenha um instituto que impede a formação de nova relação formal. Deixa o Estado de cumprir o compromisso – diga-se, o mais inútil de todas as inutilidades[1] – de facilitar a conversão da união estável casamento.
De outro lado, a menção constante do § 6.º do artigo 226 da Constituição Federal, sobre a possibilidade de prévia separação, não torna impositivo que tal instituto seja regulado pela legislação infraconstitucional de maneira tão exauriente, estipulando prazos, identificação de causas e imputação de culpas.
3. A separação
Além de dispensável, a separação, como modalidade de terminar o casamento, traz em suas entranhas a marca de um conservadorismo que não mais se justifica no atual estágio de desenvolvimento da sociedade. O alargamento conceitual dos vínculos afetivos, iniciado pela jurisprudência e chancelado pela nova ordem jurídica instituída constitucionalmente, redimensionou as relações interpessoais. Agora não é mais exclusivamente ao casamento que o Estado empresta juridicidade. Relacionamentos outros se encontram enlaçados no conceito de família e passaram a merecer a especial proteção do Estado.
O novo Código, tal como já assegurava a Lei do Divórcio, mantém a dupla possibilidade de se obter a separação: ou por vontade de ambos os cônjuges ou por iniciativa de somente um deles. Sendo mútua a intenção de romper o casamento, não há necessidade de apontar qualquer motivação para se obter a separação,mas o casal só pode buscar a separação após o decurso do prazo de um ano da celebração das núpcias. Mesmo que antes desse prazo acabe o vínculo afetivo, embora não mais conviva o par sob o mesmo teto, o Estado, de forma aleatória e arbitrária, impinge a mantença do status de casado. Não se consegue identificar o motivo dessa negativa de referendar o desejo dos cônjuges, o que configura severa afronta ao direito fundamental da liberdade.
Se somente um dos cônjuges não quiser a mantença do casamento, para buscar a separação, mister que comprove a ruptura da vida em comum há mais de um ano ou atribua ao outro a “culpa” pelo fim do vínculo afetivo. Antes do decurso do interstício temporal ou na ausência de uma motivação que possa ser imputada ao outro, resiste o Estado em chancelar a vontade de um dos cônjuges. Na ausência de melhor justificativa, parece se tratar de imposição de um “estágio probatório”. Quem sabe melhor identificar esse interregno como um verdadeiro purgatório ao “culpado” que fica impedido durante esse período se livrar do casamento.
Mesmo diante de tantas obviedades o legislador normatizou exaustivamente a separação em onze embaralhados artigos concedendo ao divórcio somente três dispositivos legais.
A separação, que impõe ser chamada de litigiosa, está regulamenta nos artigos 1.572 a 1.578 do Código Civil. Inserindo entre essas regras um único dispositivo rege a separação consensual (art. 1.574 do CC). Nesse passo, afastou-se a codificação da sistemática da Lei do Divórcio, que primeiro indicava as seqüelas da separação (art. 3.º): põe termo aos deveres de coabitação e de fidelidade recíproca e ao regime matrimonial de bens, como se o casamento fosse dissolvido. No artigo 4.º, previa a separação consensual e, no artigo seguinte (art. 5.º), elencava as possibilidades de se requerer a separação litigiosa.
4. Separação por mútuo consentimento
Perdido entre as regras que regulamentam a separação litigiosa, o artigo 1.574 do Código Civil prevê a possibilidade da separação judicial consensual. Mas somente após o decurso do prazo de um ano de vigência do casamento é que o casal pode manifestar a vontade de se separar, para que a convenção seja homologada pelo juiz.[2]
Limitou-se o novo dispositivo a reduzir o prazo para a obtenção da separação por mútuo acordo, uma vez que o artigo 4.º da Lei do Divórcio estabelecia requisito temporal de dois anos. Nesse passo, o legislador foi sensível à posição da doutrina e da jurisprudência que, a partir do momento em que a lei autorizou a concessão da separação após o transcurso de um ano de ruptura da vida em comum (§ 1.º, art. 5.º da Lei do Divórcio com a redação da Lei 8.408/92), não mais se justificava exigir, para a obtenção da separação consensual, decurso de prazo duplicado. O fundamento é dos mais lógicos: se a lei viabilizou a separação judicial litigiosa mediante a comprovação da separação por tempo superior a um ano, “idêntico requisito deve bastar para que se defira a separação na modalidade consensual, sob pena de consagrar-se interpretação atentatória aos princípios maiores do direito”.[3]
Nítido o caráter punitivo de tal restrição. Será para propiciar um período de reflexão? Ou não se admite que o amor possa ter acabado antes desse prazo? De qualquer sorte, cabe indagar: qual a legitimidade do Estado em se opor ao desejo de pessoas maiores, capazes e no pleno exercício de seus direitos? Será para preservar os sagrados laços do matrimônio? Mas o casamento não mais existe! Se livremente casaram, por que não dispõem da mesma liberdade para pôr fim ao casamento? Portanto, o que a lei chama de separação consensual, de “consenso” pouco tem. Não é respeitada e nem é tão livre assim a vontade das partes.
Para contornar essa injustificável vedação legal e abreviar o decreto de separação, antes do decurso do prazo, acabam os cônjuges protagonizando uma verdadeira farsa e simulam uma separação litigiosa. Um, se dizendo inocente, intenta a ação de separação imputando ao outro a responsabilidade pela ruptura do vínculo matrimonial. Ao pedido não se opõe o réu, que acaba se confessando culpado, o que dispensa a produção de provas. Ainda que não haja a dispensa da instrução, por óbvio que não é difícil trazer testemunhas que roborem o afirmado na inicial.
Outra modalidade indevida de burlar os limites temporais, de largo uso, é a busca consensual da separação de corpos, pedido que não dispõe de referendo na lei. Como inexiste pretensão resistida, trata-se de procedimento de jurisdição voluntária, não guardando qualquer identidade com a medida provisional de afastamento de um dos cônjuges da morada do casal, prevista no inciso VI do art. 888 do CPC. Esse subterfúgio igualmente não corresponde aos pressupostos à concessão da separação de corpos prevista no art. 1562 do Código Civil. Acaba o Poder Judiciário servindo somente para fins certificatórios do término da vida em comum, o que não se coaduna com a atividade jurisdicional. Mesmo assim, mantém a nova lei injustificadamente o requisito temporal para a concessão da separação por mútuo consentimento.
Talvez um dos mais incompreensíveis interditos é a previsão constante do parágrafo único do art. 1.574 do Código Civil, repetindo estranhamente a norma do § 2.º do artigo 34 da Lei do Divórcio. Os indigitados dispositivos autorizam o juiz recusar a homologação da separação se comprovar ele que a convenção não preserva suficientemente os interesses dos filhos ou de um dos cônjuges. Surpreendente esse poder discricionário – chamado pela doutrina de “cláusula de dureza” – conferido ao magistrado de afrontar a vontade das partes, que vêm a juízo desvencilharem-se do casamento. Não dá para imaginar que motivo seria invocável ex oficio para negar a separação e impor a mantença do vínculo. Tal hipótese, ao que parece, representa verdadeiro retorno à indissolubilidade do casamento, princípio abandonado com o advento da Lei do Divórcio.
Difícil identificar que interesses mereceriam ser preservados a ponto de obrigar que casamentos desfeitos não tenham o seu término chancelado pelo Estado. Se forem interesses de ordem patrimonial, com relação a um dos cônjuges, a solução seria decretar a separação, deixando-se somente de homologar a partilha. Igualmente não se vislumbra vantagem aos filhos de viverem em um lar onde os laços de afeto não mais existem e a permanência do vínculo legal entre seus pais é imposta judicialmente. Havendo a obrigação de ambos os genitores, mesmo que separados, de prover o sustento da prole, e sendo assegurado o convívio de quem não detém a guarda, por meio da regulamentação das visitas, descabe falar em desatendimento dos interesses dos filhos a ponto de impedir que os pais concretizem o desejo de se separar.
5. Separação Judicial
O desfazimento do vínculo do casamento depende de chancela do Poder Judiciário, obtida por meio de ação judicial que dispõe de eficácia constitutiva negativa. No entanto, convencionou-se reservar o uso da expressão “separação judicial” à ação intentada por um dos cônjuges, na qual necessariamente o autor terá que justificar o pedido, imputando ao réu a “culpa” pela separação, se esta ocorreu há menos de um ano. Quando mútua é a vontade das partes e o pedido é formulado de forma conjunta, chama-se de “separação amigável” ou “consensual”, mas ainda assim a pretensão necessita ser judicializada. Portanto, quando se fala em “separação judicial” se está a referir à ação proposta por um cônjuge contra o outro. Se o réu anuir ao pedido, ocorre a conversão da separação judicial em separação consensual, o que, no entanto, não subtraia a demanda do âmbito judicial.
Sensível o retrocesso em que incorreu a nova legislação ao declinar as causas que autorizam o pedido de separação. O caput do artigo 1.572 do CC autoriza o pedido de separação por grave violação dos deveres do casamento e insuportabilidade da vida em comum. O seu § 1.º regula o que a doutrina chama de “separação-falência”: fim da vida em comum há mais de um ano. O § 2.º desse mesmo dispositivo regra a chamada “separação-remédio”, isto é, quando um dos cônjuges é acometido de doença mental. O artigo seguinte (1.573 do CC) volta a regulamentar a separação dita litigiosa, elencando as causas que podem caracterizar a impossibilidade de comunhão de vidas.
Cabe referir também o absoluto equívoco do artigo 1.575 do Código Civil ao estabelecer os efeitos da sentença da separação: “A sentença de separação judicial importa a separação de corpos e a partilha de bens”.[4] Choca-se este enunciado com o artigo seguinte: “A separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens”. Primeiro, não é a sentença que importa na separação de corpos, pondo termo aos deveres de coabitação, à fidelidade e ao regime de bens, pois tais seqüelas independem do ato sentencial e geralmente antecedem à ação. Ao depois, a partilha de bens pode ser feita até após o divórcio (art. 1.581 do CC). Talvez quisesse dizer o legislador – no que seria mais feliz – que a “separação de fato” põe fim ao estado de mancomunhão dos bens, conforme já assentado pela jurisprudência. Se quis dizer, não disse, mas deveria ter dito.[5]
6. Separação-remédio
O Código Civil praticamente ressuscitou a chamada “separação-remédio” ao autorizar um dos cônjuges a pedir a separação quando o outro, após o casamento, estiver acometido, no mínimo há 2 anos, de doença mental grave, reconhecida como de cura improvável (§ 2.º, art. 1.572 do CC). Essa mesma motivação já constava do § 2.º do artigo 5.º da Lei do Divórcio, mas a previsão do prazo era de 5 anos. Vinha a doutrina considerando superada dita hipótese legal em face da redução para dois anos do prazo de separação de fato para ensejar o pedido do divórcio direto (art. 40 da Lei do Divórcio com a redação da Lei 7.841/89). Não sendo necessária a indicação de qualquer motivo para o divórcio, nenhuma razão haveria para que se esperasse o decurso do prazo de 5 anos para buscar a separação sob a alegação - que necessita de comprovação - de enfermidade de cura improvável. Igual raciocínio cabe ser feito diante do novo texto legal. Mesmo que tenha havido a redução do prazo, coincidindo o novo lapso temporal com o prazo do divórcio (§ 2º do art. 1.580 do CC), despicienda a motivação calcada em doença do cônjuge para a busca da separação, quando, em igual prazo, pode ser requerido diretamente o divórcio, bastando a separação de fato.[6]
O § 3.º desse mesmo artigo repete o § 3.º do artigo 5.º da lei divorcista, dispositivo sempre recebido com muitas reservas, por gerar anômala possibilidade de alteração do regime de bens, que sob a égide do Código Civil de 1916 era imutável.[7] Nitidamente punitiva a apenação pela aparente crueldade de quem pede a separação estando o cônjuge acometido de grave e incurável mal. O autor da ação fica sujeito a perder a meação dos bens remanescentes que o enfermo levou para o casamento. Essa transferência patrimonial ocorrerá exclusivamente se o casamento foi celebrado pelo regime da comunhão universal de bens, o que diminui sensivelmente o alcance da norma, como alerta Sílvio Venosa[8]. A comunicabilidade do patrimônio adquirido na constância da sociedade conjugal é seqüela que já decorre dos regimes da comunhão parcial e da comunhão final de aqüestos. De outro lado, o regime da separação total de bens não autoriza a meação dos bens adquiridos, não podendo ser aplicado dito confisco.
De qualquer forma, havendo a possibilidade de ser buscada a separação ou o divórcio, sem necessidade de motivar o pedido e sem repercussões patrimoniais, pelo só transcurso do prazo de um ou dois anos da separação de fato, dificilmente alguém pediria a separação sob o fundamento de doença mental, que perdura pelo prazo de dois anos.
7. A separação chamada litigiosa
Para um dos cônjuges buscar a separação, sem que esteja o casal separado de fato há mais de um ano, necessita o autor imputar, a quem ocupará a posição de réu no processo, não só conduta desonrosa ou a prática de ato que importe grave violação dos deveres do casamento. Deve demonstrar também que tais posturas tornam insuportável a vida em comum. Esta é a chamada “separação-sanção”, prevista no art. 1.572 do Código Civil, que em parte reproduz o texto do caput do art. 5.º da Lei do Divórcio. Na nova lei são cumulativos os pressupostos para a concessão da separação: além da (1) descrição da conduta desonrosa do réu, é necessária a (2) identificação de qual dever do casamento foi gravemente violado. Mister ainda é (3) comprovar que tal conduta torna insuportável a vida em comum, dentro do taxativo elenco do artigo 1.573 do Código Civil. A nova normatização merece ser chamada, no mínimo, de retrógroda. Acabam sendo tarifadas as causas da insuportabilidade da vida em comum, sem atentar o legislador que essa rejeição é de ordem subjetiva, não havendo como delegar ao magistrado o encargo de avaliar se determinada atitude gera insuportabilidade de convívio. Ao depois, não é a prática dos atos elencados na lei que torna insuportável a vida em comum, é o reflexo que o agir de um dos cônjuges causa no outro que inviabiliza o convívio de ambos.
8. Ainda a culpa
Injustificável a mantença, na nova lei, tanto da necessidade de identificação de um culpado, como a outorga de legitimidade apenas a quem não deu causa à desavença para intentar a ação de separação. Com isso, a lei criou o que se poderia chamar de verdadeira “reserva de mercado” em favor do inocente, habilitando-o com exclusividade para propor a ação de separação na qual além de obter benesses em proveito próprio verá o outro cônjuge ser declarado culpado e devidamente punido.[9]
Não atentou o legislador em que a perquirição da causa da separação vem perdendo prestígio, na maioria dos países desenvolvidos, que autorizam o fim do casamento independentemente da indicação de um responsável pela insuportabilidade da vida em comum. Seja porque é difícil atribuir a um só dos cônjuges a responsabilidade pelo fim do vínculo afetivo, seja porque é absolutamente indevida a intromissão do Estado na intimidade da vida das pessoas.
Reconhecendo como despicienda a necessidade de motivar o pedido de separação vem a jurisprudência pátria, desprezando a indicação de conduta culposa, bem como a comprovação da motivação apresentada. Sob o fundamento de que a própria demanda já evidencia o fim do vínculo afetivo, é decretada a separação sem identificar a culpa de qualquer dos cônjuges.[10]
O decreto de separação sem imputação de culpa em nada afronta a lei, pois, a justificativa finalística da culpa no ordenamento jurídico em vigor perdeu inteiramente seu significado em face das normas constitucionais, como destaca Gustavo Tepedino, acrescentando: “Todos estes preceitos hão de ser interpretados à luz dos princípios fundamentais enumerados nos arts. 1º e 4º da Constituição Federal, sendo certo que a República, nos termos dos incisos II e III do art. 1º, tem como fundamento a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Pois bem: se a unidade da família, à luz da Constituição, não mais se identifica com a unidade do casamento, não há como associar a aplicação de sanções atinentes a efeitos jurídicos existenciais – alimentos, guarda de filhos, sobrenome da mulher – e mesmo patrimoniais – divisão dos bens – à culpa pela ruptura do vínculo matrimonial.”[11]
A violação ao direito à privacidade e à intimidade, constitui afronta ao princípio de respeito à dignidade da pessoa humana, cânone maior das garantias individuais. Desse modo, a ingerência do Estado na vida dos cônjuges, obrigando um a revelar a intimidade do outro, para que imponha o juiz a pecha de culpado ao réu, é de ser qualificada como inconstitucional. Razão assiste a Luiz Edson Fachin, quando afirma que “não tem sentido averiguar a culpa com motivação de ordem íntima, psíquica”, concluindo que a conduta pode ser apenas “sintoma do fim”.[12]
A ausência de prova da tal “culpa”, em princípio, poderia dar ensejo à improcedência da ação, criando uma situação insustentável: a Justiça mantém casados quem se digladiou em uma ação trocando acusações, expondo mágoas e revelando ressentimentos, o que, ao certo, só pode gerar mais desavenças. Bem adverte Rodrigo da Cunha Pereira: “É preciso demarcar o limite de intervenção do Direito na organização familiar para que as normas estabelecidas por ele não interfiram em prejuízo da liberdade do ‘ser’ sujeito”.[13]
O novo Código Civil, além de impor a identificação de um culpado, em seu artigo 1.573, especifica em numerus clausus os motivos que podem dar ensejo ao pedido de separação. Olvidou que tais especificidades já haviam sido derrogadas pela Lei do Divórcio, cujo artigo 5.º autorizava conceder a separação com base na só imputação de “conduta desonrosa ou ato violador dos deveres do casamento, que tornassem insuportável a vida em comum”. Repristina o novel diploma o elenco que constava da redação original do artigo 317 do Código Civil de 1916: (I) adultério,[14] (II) tentativa de morte, (III) sevícia ou injúria grave e (IV) abandono voluntário do lar conjugal durante um ano contínuo[15]. Acresce o Código atual motivos outros que autorizam o pedido de separação: (V) condenação por crime infamante e (VI) conduta desonrosa. Tal elenco, no entanto, perde totalmente o significado, quando o § 1.º do referido artigo 1.573 outorga ao juiz a faculdade de considerar “outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida conjugal”. Ora, esta possibilidade de ampliação torna de todo desnecessária, inútil e despicienda a enumeração levada a efeito. Talvez se deva atentar que todo esse extenso rol não identifica “causas” para a separação. São elas, a final, meras conseqüências do único fato gerador de tais atitudes: o término da afetividade. Só é infiel, só abandona, só agride quem não ama. Tudo isso acontece porque o vínculo afetivo acabou. Portanto, a única causa que leva à separação é o fim do amor. Quem ainda ama quer a punição de quem não mais lhe quer, buscando no Judiciário a apenação do outro com a pecha de culpado.
Mais um fundamento merece ser invocado para evidenciar a total inutilidade de ser identificada a culpa para a concessão da separação. Como é e sempre foi vedada a referência à causa da separação na sentença de conversão da separação em divórcio (art. 1.580 do Código Civil e art. 25 da Lei do Divórcio), de nada serve o desgaste das partes, a dilação probatória e a oneração da Justiça. A pecha de culpado dura pouco tempo. No máximo, um ano. Desaparece quando a separação se transforma em divórcio.
9. O uso do nome
Ainda que de forma mais branda do que a legislação revogada, em mais um ponto é punitiva a atitude do legislador para com o culpado pela separação. O cônjuge que adotou o nome do outro, sendo vencido na separação judicial, não perde o direito de continuar sendo identificado pelo nome que escolheu ao casar (art. 1.578 do CC). Cabe lembrar que o novo Código Civil facultou a qualquer dos cônjuges acrescer ao seu o sobrenome do outro (parágrafo único do art. 1.565).
Na legislação revogada a perda do nome era impositiva, praticamente uma “condenação”, verdadeiro efeito anexo da sentença. Ao decretar a separação o magistrado, ao apontar a mulher como culpada, determinava o retorno ao uso do nome de solteira (art. 17 da Lei do Divórcio), sem haver a possibilidade qualquer questionamento sobre a necessidade ou conveniência da mantença do patronímico. Tal perda, com caráter de pena, não mais subsiste. Agora a exclusão do nome está condicionada à vontade do vencedor da ação. Aquele que deu causa à separação, mesmo sendo declarado culpado, pode continuar usando o nome que adotou quando do casamento, se não houver expressa discordância do cônjuge inocente. Mesmo havendo oposição, é possível a mantença do sobrenome nas hipóteses excepcionadas no mesmo dispositivo legal, ou seja, quando houver: (I) evidente prejuízo para a sua identificação, (II) manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida ou (III) dano grave reconhecido na decisão judicial. Essas exceções à perda do nome são cópia do elenco constante do parágrafo único do artigo 25 da Lei do Divórcio, dispositivo que determinava a ablação do nome quando da conversão da separação em divórcio.
Ainda que mantida de forma injustificada a possibilidade de haver a alteração coacta do nome, o novo estatuto foi sensível às críticas judiciais. Houve um certo abrandamento. A Lei do Divórcio determinava a perda do nome sem qualquer ressalva, quando vencida a mulher na ação de separação. Na conversão da separação em divórcio, a exclusão era feita ex oficio, havendo a possibilidade de mantença somente quando comprovada alguma das exceções que justificassem a necessidade de sua permanência. No novo sistema a perda só ocorre se assim quiser o cônjuge inocente que emprestou seu nome ao outro. Mas, reconhecido o direito à imodificabilidade, o nome do culpado se mantém inalterado.
O novo estatuto civil derroga – aliás, em muito boa hora – a draconiana punição, até aqui imposta à mulher, de perda do nome quando da conversão da separação em divórcio.[16] Essa verdadeira pena era prevista tão-só na hipótese de conversão da separação em divórcio, não existindo igual determinação quando se tratava de divórcio direto. Tão draconiano era o imperativo legal revogado que, mesmo quando os cônjuges, de forma expressa, concordavam com a inalterabilidade do nome, a perda era decretada ainda que afrontando a vontade das partes. Cuidava-se de indevida interferência na identidade da pessoa, impondo penalidade sem que houvesse qualquer motivo que a justificasse, a revelar clara afronta ao princípio do respeito à dignidade humana, que tem assento constitucional.
A regra era tão descabida, que sua inconstitucionalidade vinha sendo proclamada por alguns julgados.[17] É que dita diferenciação de tratamento, feria o princípio da isonomia, mais um motivo a impedir que se reconhecesse sua higidez. Por isso, se passou a atender simplesmente ao desejo da mulher sobre o uso do nome, sem que precisasse ela alegar ou comprovar os motivos elencados nos incisos do parágrafo único do artigo 25 da Lei do Divórcio.[18] Essa, aliás, é que deveria ter sido a orientação da nova lei. Só se espera que continue a jurisprudência a seguir entendendo que o nome é um “bem jurídico que tutela a intimidade, atributo ínsito da personalidade humana”[19], não podendo ser utilizado como forma de punir quem deixou de amar.
10. O direito aos alimentos
Há outro apenamento ligado à identificação da culpa que restou abrandado no novo Código Civil: é no que diz respeito aos alimentos.
O artigo 19 da Lei do Divórcio simplesmente impunha ao responsável pela separação a obrigação de pagar alimentos ao cônjuge que deles necessitasse. Tal dispositivo nunca deu margem a outra interpretação: o culpado pela separação não tinha o direito de pleitear alimentos, pretensão que só era assegurada a quem não havia dado causa ao desenlace do matrimônio. Essa, com certeza, podia ser considerada a pena mais exacerbada do nosso ordenamento jurídico. Ainda que o inciso XLVII do art. 5ª da Constituição Federal declare não haver “pena de morte, ou de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento”, vedando quaisquer “penas cruéis”, ditas garantias não eram asseguradas quando a condenação decorria da prática do “crime” de dar causa à separação. Dita penalidade, além de afrontar cânone constitucional, também se afastava do parâmetro de quantificação dos alimentos. O artigo 400 do Código Civil de 1916 e o § 1.º do art. 1.694 do atual Código Civil impõem a obrigação a quem pode pagar e assegura o direito de receber àquele que necessita dos alimentos. Outra restrição a lei não estabelece. Mas, em se tratando de vínculo obrigacional decorrente do casamento, ainda que houvesse a necessidade de um e a possibilidade do outro, a responsabilidade pela separação impedia a percepção de alimentos. Assim, mesmo flagrante a necessidade, quer por exclusão do mercado de trabalho, quer por doença que impedisse o desempenho de atividade laborativa, o culpado não tinha direito a receber alimentos. Era condenado a morrer de fome. A pena era perpétua. Quiçá impunha a realização de trabalhos forçados, se não dispusesse de condições físicas para o labor. A depender das condições do apenado, era uma pena cruel. Talvez a pena imposta era a de banimento, nem que fosse para a outra vida.
Um pouco mais generoso é o novo Código Civil. O § 2.º do artigo 1.694 reconhece o direito a alimentos, “mas apenas os indispensáveis à subsistência”, quando a situação de necessidade resultar de “culpa” de quem os pleiteia. De forma mais explícita, o parágrafo único do artigo 1.704 do Código Civil impõe ao cônjuge a obrigação de prestar alimentos, “em valor indispensável à sobrevivência”, ao responsável pela separação, se ele não tiver aptidão para o trabalho e não existirem parentes em condições de prestá-los. Mesmo que difícil seja quantificar o montante que garanta exclusivamente a sobrevivência, é mister reconhecer que ao culpado não mais está proscrito o direito à vida.
Outra postura mais benevolente da nova lei foi conceder tanto aos parentes como aos cônjuges e aos conviventes o direito de pedir alimentos para viver de modo compatível com a sua condição social (art. 1.694 do CC)[20]. Esse é o parâmetro que serve de base também para a fixação dos alimentos em favor do cônjuge inocente desprovido de recursos (art. 1.702 do CC).
Não se pode olvidar que o Código atual regula de forma conjunta os alimentos decorrentes do vínculo de consangüinidade, por força do poder familiar e os devidos em razão do casamento e da união estável, como bem discorre Francisco José Cahali nesta mesma obra. A uniformidade de tratamento afasta a distinção que vinha se consolidando na jurisprudência de quantificar os alimentos segundo a natureza do vínculo obrigacional. Aos descendentes, os alimentos devem ser fixados de forma proporcional aos rendimentos do alimentante, utilizando-se como parâmetro mais a possibilidade do pai do que a necessidade do filho. Chega-se a definir o filho como “sócio do pai”, pois tem ele direito de manter o padrão de vida ostentado pelo seu genitor. Portanto, em se tratando de alimentos devidos por vínculo de consangüinidade (obrigação dos pais para com a prole), o balizador para a fixação, mais do que a necessidade do filho, é a possibilidade do pai: quanto mais ganha este mais paga àquele. Já com referência ao cônjuge inocente (única hipótese em que fazia jus a alimentos), a verba alimentar destinava-se exclusivamente ao atendimento das necessidades de sobrevivência, isto é, não se beneficiava o cônjuge credor da ascensão econômico-financeira do devedor.
Na nova sistemática legal inexiste distinção de critérios para a fixação do valor dos alimentos em decorrência da natureza do vínculo obrigacional. A diferenciação se limita à eventual responsabilidade pelo surgimento da obrigação alimentar. Tenham os alimentos origem na consangüinidade, poder familiar ou união estável os alimentos devem permitir que o alimentando viva de “modo compatível com a sua condição social” (art. 1694 do CC). Somente se a situação de necessidade resultar de culpa do alimentando é que o valor dos alimentos deve atender apenas ao indispensável à subsistência (§ 2º do art. 1694 do CC). No que diz com a obrigação decorrente do casamento o cônjuge inocente faz jus à mantença da mesma condição social, mas o culpado somente receberá o suficiente para sobreviver.
Cabe trazer a posição que vem se consolidando na jurisprudência gaúcha, no que diz com os encargos probatórios nas demandas alimentárias.[21] Impositivo afastar-se a divisão tarifada levada a efeito pelo art. 333 do CPC. Não há como impor ao autor a prova dos ganhos do réu, pessoa com quem não vive sob o mesmo teto, a tornar quase impossível o acesso a informações sobre seus rendimentos. Assim, há que se inverter os ônus probatórios. O autor, se menor, sequer necessita provar suas necessidades que são presumidas, a não quer que precise de cuidados especiais. É o que diz o art. 2ª da Lei de Alimentos: o credor exporá suas necessidades, provando, apenas, o parentesco ou a obrigação de alimentar do devedor. Transfere-se ao réu o encargo de demonstrar seus rendimentos, eis não dispor o alimentando de acesso a tais dados que gozam de sigilo, integrando o direito constitucional à privacidade, ou seja, à inviolabilidade da vida privada consagrada no inc. X do art. 5º da Constituição Federal.
A transmissibilidade da obrigação alimentar ora consagrada no art. 1.700 do Código Civil reproduz o art. 23 da Lei do Divórcio: “A obrigação de prestar alimentos transmite-se aos hereiros do devevor”. Afasta-se o novo Código Civil do que afirmava o art. 402 do Código de 1916: “A obrigação de prestar alimentos não se transmite aos herdeiros do devedor”. Também no que diz com a renunciabilidade dos alimentos, o Código Civil repete, no art. 1.707, a vedação do art. 404 do Código Civil pretérito. Como o Código regulava somente os alimentos decorrentes do vínculo de consangüinidade e a Lei do Divórcio o encargo derivado do dever de mútua assistência, cada diploma legal regrava de modo diferenciado a obrigação alimentar. Em face da homogeneidade de tratamento levada a efeito pelo novo estatuto civil, imperioso questionar se a irrenunciabilidade do direito (art. 1.707 do CC) e a transmissibilidade do encargo (art. 1.700 do CC) se aplicam também aos alimentos devidos ao cônjuge e ao companheiro. Igualmente cabe perquirir se nessas duas espécies de obrigação está incluída a necessidade de educação (art. 1.694 do CC) e se o pensionamento pode se dar por meio de hospedagem e sustento (art. 1.701 do CC).[22]
11. O divórcio
Não se pode olvidar que o Código Civil recém em vigor foi gestado por muitos anos, desde os idos de 1975, antes, portanto, da Lei do Divórcio, que data de 1977. Daí que as raras referências a essa modalidade de dissolução do casamento decorrem de posteriores inserções no texto original e se limitam a três escassos dispositivos legais.
O divórcio direto sequer dispõe de um artigo próprio, estando previsto no segundo parágrafo do artigo que regulamenta o conversão da separação em divórcio (§ 2.º do art. 1.580 do CC). O artigo seguinte (art 1.581 do CC) dispensa a partilha para sua decretação e o art. 1.582 do Código Civil identifica os legitimados para propor a demanda.
12. O que está regulado
Limita-se o capítulo que trata “da dissolução da sociedade e do vínculo conjugal” a afirmar que o divórcio é uma das causas que ensejam o término da sociedade conjugal (inc. IV do art. 1.571 do CC), além de ter o condão de dissolver o casamento (§ 1.º do mesmo artigo), previsões essas que não se distanciam do que dizia a lex specialis (inc. V do art. 2º e seu parágrafo único da Lei 6515/77).
O artigo 1.597 do Código Civil repete o texto do artigo 27 da Lei do Divórcio, proclamando a inalterabilidade dos direitos e deveres dos pais com relação aos filhos, em decorrência do divórcio ou do novo casamento de qualquer um deles, previsão de todo dispensável em face da obviedade do seu conteúdo. A obrigação alimentar decorrente tanto dos laços de parentesco como em decorrência do poder familiar não sofre qualquer modificação com a mudança do estado civil do alimentante. No entanto, está se consolidando corrente jurisprudencial que permite a revisão do valor dos alimentos quando estabelece o alimentante novo vínculo afetivo, ocorre o nascimento de outros filhos.
Fora essas referências, só o caput e § 1.º do art. 1.580 do Código Civil, regula a conversão da separação em divórcio.
13. Divórcio direto ou por conversão
Contempla o novel estatuto a possibilidade de o divórcio ser requerido por um ou ambos os cônjuges, após o decurso do prazo de dois anos de separação de fato (§ 2.º, art. 1.580 do CC). Esse dispositivo em nada se afasta da redação do artigo 40 da Lei nº 6.515/77 e reproduz o § 6.º do artigo 226 da Constituição Federal. Cabe, com relação ao divórcio, remeter à argumentação já sustentada com referência à separação, sobre a exigência do adimplemento de prazos para a concessão do divórcio. Nada justifica esperar dois anos para se dar por dissolvido vínculo afetivo já rompido.
Não trouxe a nova lei qualquer alteração também no que diz com a conversão da separação em divórcio: pode ser requerida após o decurso de um ano do trânsito em julgado da sentença de separação ou da decisão concessiva da medida cautelar da separação de corpos. Igualmente persiste a vedação à referência da causa da separação na sentença que opera sua conversão em divórcio (art. 25 da Lei do Divórcio, e art. 1.580 do Código Civil).
14. A partilha de bens
A mais significativa alteração trazida pelo novo Código Civil é permitir a concessão do divórcio sem prévia partilha dos bens (art. 1.581 do CC).[23] Tal explicitação, ao certo, veio referendar a já consolidada posição da jurisprudência. Desde o advento da Constituição Federal, que não impôs qualquer restrição para a concessão do divórcio além do decurso do prazo de dois anos da separação de fato, passaram os juízes a considerar derrogada a condição suspensiva prevista no artigo 31 da Lei do Divórcio, não admitindo a decretação do divórcio sem que estivesse decidida a partilha de bens.
Igualmente, apesar da expressa referência do inciso II do artigo 36 da Lei nº 6.515/77, o descumprimento das obrigações assumidas na separação deixou de ser impedimento para a conversão da separação em divórcio. Assim, nada mais fez a nova lei do que cristalizar a orientação placitada pela Justiça que, escudando-se na norma constitucional, deixou de impor empecilhos para a conversão da separação em divórcio. Permanece somente a exigência do implemento do prazo de um ano da separação judicial ou de dois anos de separação de fato.[24]
A interpretação dada pela jurisprudência - e que acabou influindo na redação do novo Código - tem um viés nitidamente discriminatório. A postura do legislador revela-se prejudicial principalmente às mulheres e aos filhos. Por uma contingência histórica e cultural, o patrimônio normalmente ainda está na posse e administração do varão, enquanto a esposa se dedica prioritariamente aos afazeres domésticas, se encarregando da criação e educação dos filhos. Assim, ao se permitir a conversão da separação em divórcio sem que esteja formalizada a partilha nem comprovado o cumprimento das obrigações assumidas (por exemplo: pagamento dos alimentos à prole) abandona-se um eficaz instrumento para compelir o adimplemento de tais encargos. Às claras que o simples fato de a norma constitucional não ter estabelecido tais condicionamentos não derrogou a lei ordinária. Segundo expressão de Silvio Venosa,[25] “atropelou-se” a exigência legal.
15. Quando o cônjuge é incapaz
A lei sempre exigiu a presença dos cônjuges nos processos de desquite, separação e divórcio. A incapacidade necessita ser reconhecida judicialmente por meio do processo de interdição. Nomeado um curador, a ele cabe a representação do curatelado para todos os atos da vida civil.
No entanto, para propor ou defender cônjuge descapacitado, é concedida legitimidade representativa a outros além dos identificados no art. 8º do CPC: “Os incapazes serão representados ou assistidos por seus pais, tutores ou curadores...”. Este alargamento, assegurando legitimidade não só ao curador, mas também ao ascendente e ao irmão, vem sendo repetido desde a redação original do Código Civil de 1916 (parágrafo único do art. 316) estando também na Lei do Divórcio (parágrafo único do art. 24).
O novo Código Civil (parágrafo único do artigo 1.576 e parágrafo único do artigo 1.582) igualmente confere ao curador, ao ascendente ou ao irmão a representação do cônjuge sem plena capacidade. Como o casamento faz cessar a incapacidade dos menores (inc. II, art. 5º do CC), não se poderia falar em representatividade dos ascendentes.
A razão de o legislador legitimar outras pessoas para representarem quem não goza da plena capacidade, para as ações desconstitutivas do vínculo do casamento, se justifica por o art. 1775 do Código Civil assegurar ao cônjuge a condição de curador: “O cônjuge ou companheiro, não separado judicialmente ou de fato, é, de direito, curador do outro, quando interdito”.
Em demanda decorrente dos vínculos de afetividade, inquestionável o conflito de interesses entre curador e curatelado. Assim, o fim do casamento pode ser buscado por um legitimado extraordinário que deve trazer subsídios probatórios da limitação do filho ou do irmão a justificar sua presença em juízo em nome do incapaz. Dispensável a prévia interdição ou pedido de substituição do curador para que os parentes eleitos pela lei possam vir a juízo.
Cabe reconhecer que, mesmo sem o decreto de interdição e independente de previsão legal, o Ministério Público igualmente tem possibilidade de desempenhar tal múnus, ainda que não tenha sido lembrado pelo legislador.[26]
16. O fim da lei do divórcio
Necessário questionar sobre a sobrevivência da Lei do Divórcio ou de alguns de seus dispositivos, uma vez que se trata de diploma híbrido que contempla regras de direito material e processual.
Com a entrada em vigor do novo estatuto civil, não há motivo para manter-se no panorama legal a Lei do Divórcio, ainda que contenha em seu bojo disposições de caráter processual e o art. 2043 do novel estatuto expressamente ressalve a vigência de tais normas.
Também o novo Código não se limita a albergar exclusivamente regras do direito substancial, pois dita alguns procedimentos que estariam melhor alocados na lei de ritos. Assim age ao outorgar ao juiz a faculdade de não decretar a separação (parágrafo único do art. 1.574 do CC), quando regula o procedimento para o restabelecimento da sociedade conjugal (art. 1.577 do CC) e quando identifica os legitimados para as ações de separação e divórcio (parágrafo único dos arts. 1.576 e 1.582 do CC).
Diante dessa concorrência normativa e tendo o Código Civil se olvidado de enumerar as leis ou dispositivos legais que revoga,[27] é possível dizer que o novel estatuto derrogou a Lei do Divórcio passando à sua égide a regulamentação da separação e do divórcio passando ditos institutos a ser regulados exclusivamente no Código Civil.
Basta proceder à leitura dos artigos da lex specialis e compará-los com as regras atuais, para evidenciar que os dispositivos que não foram reproduzidos foram simplesmente excluído do sistema normativo. As determinações constantes dos §§ 2.º e 3.º do artigo 3.º da Lei do Divórcio são normas de processo, mas já integram o Código de Processo Civil (art. 1.122). De outro lado, de modo expresso, o parágrafo único do artigo 447 do estatuto processual determina a audiência prévia, além de ser encargo do juiz tentar a qualquer tempo conciliar as partes (inc. V do art. 125, CPC).
No que diz respeito à proteção da pessoa dos filhos, os artigos 9.º a 16 da Lei de Divórcio estão totalmente reformulados, e para melhor, nos artigos 1.583 a 1.590 do Código Civil. Igualmente, quanto ao nome e alimentos, a normatização nova é exauriente.
Assim, se algo sobrou da Lei do Divórcio foi muito pouco.
17. Os procedimentos processuais
O atual Código Civil passou a regular inteiramente a separação e o divórcio, no que diz com os preceitos de natureza civil. A Lei do Divórcio, em escassos seis artigos traz regras processuais, tão só para as ações de divórcio e de conversão da separação em divórcio.
Não há justificativa para a permanência em vigor da fragmentos da Lei 6515/77 exclusivamente no que diz com o procedimento da ação de divórcio direto e ao pedido de conversão da separação em divórcio. Basta adequar os ritos que estão inseridos no local adequado, isto é, no Código de Processo Civil que em seus artigos 1.120 a 1.124, traz o processo de separação consensual. Nada impede, porém, que se reconheça que o mesmo procedimento deve ser adotado na ação de divórcio consensual. No entanto, para não se afirmar a existência de uma omissão legal, necessário seria tão-só assim nominar o capítulo: “Da separação e do divórcio consensual”, para que albergue os procedimentos referentes às demandas de divórcio. Com tal singela providência restará derrogada a Lei do Divórcio, podendo ser aposentada, sem que alguém vá sentir sua falta.
Advogada especializada em Direito Homoafetivo; Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS; Vice-Presidente Nacional do IBDFAM; Autora de vários livros jurídicos. Sítos: www.mbdias.com.br; www.mariaberenice.com.br; www.direitohomoafetivo.com.br<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Maria Berenice. Da separação e do divórcio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 dez 2009, 07:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/18909/da-separacao-e-do-divorcio. Acesso em: 23 dez 2024.
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