Introdução
Quando se fala em justa causa cometida pelo empregado, logo se pensa em ato de improbidade, mau procedimento, desídia e ofensa física ou moral dentre outras, no entanto, apesar de estar esquecida e de ser pouco conhecida até mesmo entre os operadores do direito, os atos atentatórios à segurança nacional também são considerados como falta e autorizam a rescisão do contrato de trabalho por culpa do empregado.
O objetivo da presente pesquisa é analisar os aspectos mais relevantes referentes ao parágrafo único do art. 482 da CLT, mencionando o que se entende por atos atentatórios à segurança nacional, bem como se o dispositivo é constitucional frente à garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional, já que uma das garantias constitucionais elencadas no rol do art. 5º da Constituição Federal de 1988 é a garantia de acesso ao Poder Judiciário.
Antes de adentrar ao tema específico, faz-se mister algumas considerações sobre a justa causa, entendida como despedimento do empregado por motivo de cometer alguma falta referente ao rol taxativo do art. 482 da CLT. Existem também as chamadas justas causas específicas que se encontram em outros dispositivos da CLT, no entanto o cerne do presente estudo diz respeito apenas aos atos atentatórios contra a segurança nacional.
A justa causa tem relação direta com a falta grave, muito embora com esta não se confunda. Reza o art. 493 da CLT: “Constitui falta grave a prática de qualquer dos fatos a que se refere o art. 482, quando por sua repetição ou natureza representem séria violação dos deveres e obrigações do empregado”. Com esse dispositivo pode-se fazer a distinção entre justa causa e falta grave. O primeiro é o justo motivo para rescisão do contrato de trabalho de qualquer empregado não-estável, ao passo que falta grave é o justo motivo para aqueles empregados que têm estabilidade no emprego e que só podem ser despedidos com ação própria.[1]
A justa causa caracteriza-se por ser uma possibilidade de resolução do contrato de trabalho, caso uma das partes cometa ato doloso ou culposo de forma grave. Mas, para ocorrer a justa causa do empregado é imprescindível que estejam presentes certos requisitos. O primeiro é a previsão legal, o ato deve estar na lei para sua configuração. Deve também obedecer ao critério da atualidade ou imediatidade da falta, ou seja, assim que o empregador tiver ciência da falta cometida pelo empregado deve tomar as devidas providências sob pena de ocorrer o chamado perdão tácito.[2] Além disso, é necessária a gravidade da falta, que não é aquela gravidade excepcional exigida para rescisão do contrato com trabalhadores estáveis prevista no art. 493 da CLT, mas deve ter força para tornar incompatível a relação do trabalhador com o empregador. É, pois, diferente das faltas leves que merecem advertências ou suspensão por até 30 dias consecutivos.[3] Destarte, é proibido o bis in idem, em outras palavras, jamais poderá o empregador aplicar duas punições para o mesmo fato. Assim caso um empregado cometa uma falta não poderá ser punido com suspensão e despedida, caso isso ocorra o empregado deverá ser ressarcido.[4]
A definição de justa causa pode ser extraída do conceito de Amauri Mascaro Nascimento:
Justa causa é a ação ou omissão de um dos sujeitos da relação de emprego, ou de ambos, contrária aos deveres normais impostos pelas regras de conduta que disciplinam as suas obrigações resultantes do vínculo jurídico. (...) A rescisão do contrato de trabalho pode ser determinada por um motivo provocado pela outra parte, revestido de certas características que impedem o prosseguimento da relação de emprego. Torna-se, em consequência, impossível ou muito difícil a continuidade do vínculo contratual, diante das circunstâncias que envolvem essa situação. Se esse motivo é provocado pelo empregado, ao empregador é dado despedi-lo por justa causa. Se, no entanto, o próprio empregador o fizer, assegura-se ao empregado dar por rescindido o contrato de trabalho por despedimento indireto.[5]
Para o direito do trabalho é muito relevante a distinção de rescisão do contrato de trabalho por motivo de justa causa ou de maneira imotivada, visto que, as consequências jurídicas são diversas para um caso ou para outro. Como bem lembra Pedro Paulo Teixeira Manus, se houver justa causa torna-se indevido o pagamento de indenização do FGTS, bem como aviso prévio, férias e 13º salário proporcionais.[6]
Conforme está expresso na Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 482, §único: “Constitui igualmente justa causa para dispensa de empregado a prática, devidamente comprovada em inquérito administrativo, de atos atentatórios contra a segurança nacional.” O legislador ao introduzir o parágrafo único ao art. 482 da CLT deixou claro que o empregado que praticar atos atentatórios contra a segurança nacional estará incidindo em falta passível de rescisão do contrato de trabalho por justa causa. No entanto não mencionou quando que se caracterizariam estes “atos atentatórios” o que remete a pesquisa para a Lei 7170/83.
Dispõe o art. 1º da referida lei: “Esta lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão: I- a integridade territorial e a soberania nacional; II- o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; III- a pessoa dos chefes dos Poderes da União.” São estes os elementos que integram a segurança nacional. A partir do artigo 8º da lei, são elencados os crimes e as penas correspondentes, e pode-se destacar os seguintes: a) tentar submeter o território ou parte dele, ao domínio ou soberania de outro país; b) aliciar indivíduos de outro país para invasão do território nacional; c) tentar desmembrar parte do território nacional para construir país independente; d) importar ou introduzir, no território nacional, por qualquer forma, sem autorização da autoridade Federal competente, armamento ou material militar privativo das forças armadas; e) revelar segredo obtido em razão de cargo, emprego ou função pública, relativamente a planos, ações ou operações militares ou policiais contra rebeldes ou revolucionários.
A justa causa, objeto desta pesquisa, foi introduzida na CLT por causa de circunstâncias históricas que envolveram o seu surgimento. Nas palavras de Wagner D. Giglio:
Viviam-se os primeiros tempos do movimento de 1964, que se opôs à rápida guinada à esquerda dos últimos meses do governo de João Goulart. A reação das Forças Armadas, que empolgaram o poder, se preocupou, como era natural, com os riscos que a subversão à ordem social, decorrentes da arregimentação dos trabalhadores em manifestações coletivas, acarretava à segurança nacional. Um dos setores mais sensíveis, tanto pelo repetição de greves como pela sua importância para a segurança do País, era a atividade portuária.[7]
O parágrafo único do art. 482 da CLT foi acrescentado pelo Decreto-lei nº 3, de 27 de janeiro de 1966, editado em um período de exceção, no governo militar, nesse momento a preocupação era muito grande com a hipótese de atentados contra a segurança nacional. Pode-se dizer que “a falta não é dirigida contra o empregador, mas contra o Estado”.[8]
De fato, é verdade que os chamados atos atentatórios não têm relação direta com o trabalho do empregado, pois não são fatos em que o empregado deixa de prestar com suas obrigações, por tal motivo, parece que dita falta deve ser cometida fora do ambiente laboral, pois se for incidida no próprio ambiente de trabalho, não necessitaria ser acrescentado o parágrafo único, pois a falta poderia ser caracterizada como outra das hipóteses do art. 482 como, por exemplo, ato de indisciplina, mau procedimento ou improbidade.[8]
Ademais, o texto do dispositivo legal foi mal redigido, visto que, o caput do art. 482 já menciona que “constituem justa causa”, o que é repetido de forma inútil no parágrafo único quando o legislador expressa “constitui igualmente justa causa”. O correto seria acrescentar nova alínea, no caso alínea “m”, ao invés de colocar um parágrafo único. Fora isso, ainda cabe mencionar que pode ocorrer o fato de algum empregado atentar contra a segurança pública, e ao mesmo tempo ser um funcionário exemplar em seu trabalho, o que dificilmente fará com que seu empregador queira rescindir o contrato baseado nesta justa causa.[7]
O Poder Judiciário tem o monopólio da jurisdição, o que quer dizer que todos os conflitos devem ser apreciados pelo Estado-juiz respeitando o devido processo legal e todas as garantias constitucionais elencadas na CF/88. Está expresso no art. 5º, XXXV da CF: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Com isso fica claro que todo cidadão tem o direito de ter seu conflito apreciado pelo Estado-juiz como garantia do acesso à justiça.
Em decorrência desta garantia existe o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, que é dirigido ao legislador, para que este não crie obstáculo que impeça ou que dificulte a apreciação dos litígios pelo Poder Judiciário.
No entendimento de Alexandre Freitas Câmara:
Este inciso XXXV do art. 5º da Constituição da República, portanto, consagra aquilo que já se chamou de ‘direito de acesso aos tribunais’. É, pois, assegurado - como garantia fundamental – o direito de demandar perante os órgãos jurisdicionais do Estado, seja qual for a causa que se queira deduzir perante estes (ressalvadas, apenas, algumas hipóteses de legítima vedação, as impossibilidade jurídicas. Sob esta ótica, ressalte-se, o destinatário da norma contida no mencionado inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal é o legislador, o qual fica impedido de elaborar normas jurídicas que impeçam (ou restrinjam em demasia) o acesso aos órgãos do Judiciário. Embora não seja a única interpretação possível para o dispositivo, trata-se, sem dúvida, de importante exegese, com reflexos consideráveis na aplicação do princípio aqui estudado. Assim é que deve ser tida por inconstitucional qualquer norma jurídica que impeça aquele que se considera titular de uma posição jurídica de vantagem, e que sinta tal posição lesada ou ameaçada, de pleitear junto aos órgãos judiciais a proteção de que se sinta merecedor.[9]
Analisando o art. 482, § único da CLT, percebe-se que a redação menciona que a referida justa causa deve ser comprovada em inquérito administrativo, o que fere o princípio do amplo acesso ao Poder Judiciário.[1]
Nessa mesma esteira de raciocínio Mauricio Godinho Delgado argumenta que a redação do dispositivo, que é derivada da época do Regime Militar, se encontra revogado, pois afronta o devido processo legal, o acesso à justiça e o princípio do juiz natural. Sustenta o autor que o dispositivo não é recebido pela Constituição “uma vez que esta não autoriza prisões ou condenações de pessoas humanas pelo caminho meramente administrativo, ainda mais por razões político-ideológicas”.[10]
Por outro lado, Sergio Pinto Martins aduz que de acordo com o inciso XXXV do art. 5º da CF/88, se ocorrer a hipótese prevista pelo parágrafo único do art. 482 da CLT, caberá à Justiça do Trabalho apreciar as despedidas por motivos de atos atentatórios à segurança nacional.[8]
Apesar do parágrafo único do art. 482 da CLT ainda não ter sido revogado, pelo menos de maneira expressa, entende-se que se trata de dispositivo inconstitucional, por afrontar de maneira direta a garantia do acesso à justiça e o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.
No momento em que o legislador optou por colocar na letra da lei que a justa causa deve ser comprovada em inquérito administrativo, restou afastada a apreciação pelo Poder Judiciário configurando-se a inconstitucionalidade do referido parágrafo único.
Além disso, sabe-se que, na prática, o dispositivo caiu totalmente em desuso, não apenas por estar mal redigido, e sim porque dificilmente ocorrerá a falta prevista nesta regra, e mesmo que venha a ocorrer, poderá facilmente ser considerada como outro tipo de justa causa, não necessitando ser mencionado o disposto do parágrafo único do art. 482 da CLT.
1 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa (org.); ZAINAGHI, Sávio (coord.). CLT Interpretada: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. Barueri: Manole, 2007. pp.410; 394.
2 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Ltr, 2005. p.834-5.
3 SATO, Vilson Takemi. Manual de rescisão de contrato de trabalho. 2.ed. São Paulo: Ltr, 1997. p.104.
4 DONATO, Messias Pereira. Curso de direito do trabalho: direito individual. 5.ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 1982. p.360.
5 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. 20.ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p.772.
6 MANUS, Pedro Paulo Teixeira. Direito do trabalho. 5.ed. São Paulo: Atlas, 1999. p.170.
7 GIGLIO, Wagner D. Justa causa. 7.ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2000. pp.341-3;352.
8 MARTINS, Sergio Pinto. Manual da justa causa. São Paulo: Atlas, 2005. p.203-4.
9 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 19.ed. inteiramente revista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p.46-7. v.1.
10 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 4.ed. São Paulo: Ltr, 2005. p.1200.
Advogado militante (OAB/RS 73.357), trabalha nas áreas cível e trabalhista. Formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS no ano de 2007. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo IDC-RS no ano de 2010. Mestre em Direito Processual Civil pela PUCRS no ano de 2014. Professor de Direito da Graduação e Pós-Graduação da Universidade de Santa Cruz do Sul -UNISC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KRIEGER, Mauricio Antonacci. Justa causa: atos atentatórios à segurança nacional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jul 2012, 09:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/29925/justa-causa-atos-atentatorios-a-seguranca-nacional. Acesso em: 06 nov 2024.
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