O jornal Folha de S.Paulo, no seu Caderno Cotidiano, de 03 de janeiro de 2010, estampou a seguinte manchete: “Novo tipo de ecstasy cresce no país”.
O cunho da reportagem dava conta, em essência, de que, para tentar escapar da legislação vigente, traficantes passaram a produzir nova droga com elementos que causam sensações parecidas com os do ecstasy, cujos riscos são pouco conhecidos, dada a diversidade desse mais recente princípio ativo.
A mudança na fórmula da droga tem como objetivo burlar a lista de substâncias proibidas pelas vigilâncias sanitárias de todo o mundo.
Todavia, desde novembro de 2008, após serem detectadas por peritos do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal, três substâncias passaram a fazer parte da listagem da Anvisa: mCPP, BZP e TFMPP.
Com a inclusão dessas novas substâncias na Portaria nº 344/98, da Anvisa (mCPP, pela Resolução RDC nº 79, de 04 de novembro de 2008; BZP e TFMPP, ambas pela Resolução RDC nº 7, de 26 de fevereiro de 2009), abriu-se a possibilidade, a partir da publicação de cada resolução, para a configuração do crime de tráfico de drogas e da prisão em flagrante do traficante.
Tal procedimento é oriundo do interesse geral de impor, com segurança, rapidez para dar cabo em situações para as quais a sociedade clama pronta resolução.
É a norma penal em branco atuando como fonte integradora do mundo real com o direito positivado.
Norma penal, lato sensu, é a categoria que complementa o sistema penal mediante princípios gerais e disposições sobre os limites e a ampliação de normas incriminadoras.
Norma penal, stricto sensu, é a descrição das condutas ilícitas e das respectivas sanções.
Como qualquer norma jurídica, a penal compreende preceito e sanção; aquele contém o imperativo de proibição; esta comina punição à violação do comando primário. No preceito exprime-se a concepção de quais bens jurídicos serão alcançados pela tutela penal, proibindo-se ou estabelecendo-se atos em conformidade com essa proteção. Na sanção manifesta-se a coercibilidade estatal, a caracterizar a norma jurídica.
As normas penais caracterizam-se pela abstração, exclusividade, imperatividade, generalidade e impessoalidade.
A norma penal, como finalidade, visa a defesa da sociedade, tutelando, para tanto, bens fundamentais, que, em razão desse amparo, passam à categoria dos bens jurídicos. Como função, traça limites entre as regiões do lícito e do ilícito. É por meio de seu conhecimento que se saberá o que se deve fazer para não incorrer na punição. Esse conhecimento, bom se diga, não exige qualquer cultura jurídica, pois a norma penal deve (ou deveria) ser escrita em linguagem clara, acessível e objetiva, daí ninguém poder eximir-se de suas sanções, por mera alegação de desconhecimento da lei.
As normas penais classificam-se em incriminadoras, permissivas, finais – complementares ou explicativas –, gerais, locais, comuns, especiais e em branco (lato sensu e stricto sensu).
As normas penais em branco são disposições com sanção certa, mas com conteúdo primário indefinido. São normas de tipo momentaneamente vago, em que a descrição das circunstâncias elementares do fato deve ser completada por outra disposição legal, já existente ou futura. Nessas normas, a enunciação do tipo mantém deliberadamente uma lacuna, que outro dispositivo legal virá integralizar.
A doutrina ordena as normas penais em branco em extensivas, restritivas e intermediárias. As extensivas são aquelas que por si só não conseguiriam expressar de maneira completa o sentido do tipo penal, necessitando sempre serem complementadas; restritivas, as que na sua complementação remetem o aplicador à legislação inferior; e intermediárias seriam as que o complemento se encontra fora do tipo.
Foi Karl Binding (blankettstrafgesetze) quem pela primeira vez usou a expressão “lei em branco” para batizar leis que continham a sanctio juris determinada, com tipo genérico formulado como proibição, a ser completado por outra lei (em sentido amplo). Também é dele, Binding, a frase “a lei penal em branco é um corpo errante em busca de alma”, citada tanto por E. Magalhães Noronha[1], quanto por Paulo José da Costa Júnior[2].
A norma integradora estabelece as condições ou circunstâncias que completam o enunciado do tipo da norma penal em branco.
A norma complementar resulta numa fonte subsidiária do direito penal, mas não por isso menos importante, porque as condições que ela estabelece irão constituir elementos integrantes do tipo da norma penal em branco e determinar a aplicação ou não da sanção.
A quantidade do preceito ausente pode variar desde o máximo, nos casos em que a lei em branco contém a proibição de infringir determinado dispositivo de outra lei ou regulamento – e nestes é que se encontra todo o conteúdo da infração proibida –, até um mínimo, em que o dispositivo complementar dá apenas sentido a um dos elementos do tipo.
O dispositivo que completa a norma penal em branco pode estar contido na mesma lei penal, provir do mesmo órgão legislativo ou de ato de autoridade diferente. Pode ser outra lei da mesma fonte donde emanou a lei penal, ou, ainda, leis e regulamentos originários de outros poderes.
As normas penais em branco não são normas imperfeitas: falta-lhes apenas concreção e atualidade. Não se trata de uma sanção cominada à inobservância de um preceito vindouro, mas de um preceito genérico, a concretizar-se com um elemento futuro, devendo, contudo, preceder o fato que constitui crime.
Em outras palavras, as normas penais em branco não se confundem com as incompletas ou imperfeitas, muito menos com as de tipo aberto. As primeiras precisam ser simplesmente completadas (tráfico de entorpecentes); as incompletas ou imperfeitas, regulamentadas (Lei do Genocídio), e as últimas estão sujeitas à atividade valorativa do julgador (crimes culposos).
De acordo com Edmund Mezger, devem-se distinguir as normas em branco lato sensu das stricto sensu, conforme a categoria legislativa das normas que devem ser conjugadas para sua aplicação.
Assim, normas penais em branco em sentido amplo, também chamadas de impróprias, homovitelíneas ou homogêneas, são aquelas em que o complemento é determinado pela mesma fonte formal da norma incriminadora. O órgão encarregado de formular o complemento é o mesmo órgão elaborador da norma penal em branco.
Há, pois, homogeneidade de fontes, não obstante a norma depender de lei extrapenal para se completar. Como exemplo, pode-se citar o artigo 237, do Código Penal, que define como crime o fato de “contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe causa a nulidade absoluta”. Quais são esses impedimentos? A referida norma penal não informa. Será o Código Civil que determinará os impedimentos dirimentes, absolutos ou públicos.
Verifica-se que a lei extrapenal serve de complemento ao tipo penal previsto no citado artigo 237, valendo ressaltar que, nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, compete à União legislar sobre Direito Civil e Penal. Logo, embora o complemento esteja contido em outra lei, emana da mesma fonte legislativa.
Já as normas penais em branco em sentido restrito, igualmente denominadas de próprias, heterovitelíneas ou heterogêneas, são aquelas cujo complemento está contido em norma procedente de outra instância legislativa ou administrativa, sendo irrelevante a hierarquia superior ou inferior de uma e de outra.
Nesse caso, as fontes formais são heterogêneas, havendo diversificação quanto ao órgão de elaboração legislativa. Para exemplificar, pode-se invocar o artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/06 (tráfico de entorpecentes). Os preceitos primário e secundário são originários do Poder Legislativo da União, mas a adequação típica do referido delito depende de complemento, vez que somente é considerada substância entorpecente ou produto capaz de causar dependência, os que estiverem especificados em lei ou relacionados em listas expedidas pela União, mas por outro Poder (Executivo).
Nélson Hungria Hoffbauer, um dos mais destacados penalistas brasileiros, afirmava que os regulamentos, portarias ou editais passam a fazer corpo ou unidade lógica com a lei penal, como se uma só se formasse.
Juan Jimenez de Asúa, com oportunidade, lembra que, diante dos princípios da reserva legal e da divisão de poderes: a) a fonte formal heterogênea tem por missão apenas “determinar especificamente as condutas puníveis dentro do círculo em branco”; b) “o poder de regulamentação se reduz à faculdade específica, compreensiva somente das modalidades de interesse secundário ou de pormenor, indispensável para melhor execução da vontade legislativa”.
O jurista argentino Sebastián Soler ainda observa que a norma penal em branco, que defere a outro a fixação de determinadas condições, não é nunca uma carta-branca outorgada a esse poder para que assuma funções repressivas, mas o reconhecimento da possibilidade de uma faculdade meramente regulamentadora.
De qualquer forma, tanto as normas penais em branco homogêneas, quanto as heterogêneas, não são destituídas de preceito e, por isso, uma vez exequível (complementadas), não ofendem a reserva legal, não padecendo, assim, de inconstitucionalidade, segundo, aliás, majoritário entendimento doutrinário e jurisprudencial.
Questão relevante que emerge, controvertidamente, diz respeito ao limite temporal das normas penais em branco.
A extra-atividade das leis dá-se na forma da retroatividade (regulando situações passadas, em casos de benignidade) e na da ultra-atividade (regrando situações mesmo após a cessação de sua vigência).
Quanto ao princípio da retroatividade benéfica (CF, art. 5º, XL), Damásio E. de Jesus[3], secundado por Julio Fabbrini Mirabete[4], preleciona que a alteração do complemento só produzirá o efeito retroativo se propiciar modificação substantiva do tipo penal, e não quando transformar circunstância que não comprometa a norma penal em branco.
Alberto Silva Franco[5], por seu turno, pergunta se ocorrerá retroatividade na hipótese de o complemento da norma vier a ser ab-rogado, ou se vier a ser substituído por outro mais benigno. Responde que a matéria não tem tido, na doutrina, um equacionamento pacífico. Entrementes, para solucioná-la, diz que o critério mais adequado é o sugerido por José Henrique Pierangelli e que se vincula à origem legislativa do complemento: se o complemento emana da mesma fonte legislativa, então a retroatividade penal benéfica se torna inafastável. Se o legislador exclui do rol dos impedimentos para o casamento um determinado fato, tal atitude reflete-se na figura típica do artigo 237, do Código Penal, beneficiando o agente (“A norma penal em branco e sua validade temporal” – RJTJSP 85/28).
No caso, porém, de o complemento ser proveniente de fonte legislativa diversa, a retroatividade pode ou não ocorrer: “Se a legislação complementar não se reveste de excepcionalidade e nem traz consigo a sua autorrevogação”, a retroatividade se mostra admissível, como, por exemplo, nos casos de ab-rogação ou de alteração de portarias sanitárias que elencam moléstias cuja notificação é obrigatória. No entanto, “a situação modifica-se quando a proibição aparece em legislação editada em situação de anormalidade econômica ou social que reclama uma pronta e segura intervenção do poder público, tendente a minimizar ou elidir seus efeitos danosos sobre a população. Nesse caso, a legislação complementar possui certo ‘parentesco’ com a norma excepcional ou temporária”.
A melhor solução, contudo, reside no entendimento de que se a legislação complementadora extrapenal integra o tipo, deve, como toda e qualquer lei penal, retroceder para beneficiar o réu, até porque sua alteração representa uma nova valoração jurídica.
Outro tema delicado, também quanto à eficácia da lei penal no tempo, está relacionado com a ultra-atividade das normas penais em branco.
A lei penal, em geral, não possui ultra-atividade, mas o artigo 3º, do Código Penal, a estabelece para as leis penais excepcionais (que vigoram enquanto perdurar a situação de anormalidade que determinou sua elaboração) e para as temporárias (elaboradas para terem vigor durante um período exato).
Dessa feita, visando impedir a frustração da aplicação das sanções por eventual expediente procrastinatório dos processos instaurados, a ultratividade aplica-se às normas penais em branco, até porque, do contrário, ficaria totalmente aniquilada a eficiência de tais leis.
Mas o Excelso Supremo Tribunal Federal já decidiu que essa aplicação não se faz quando a norma importa na real modificação da figura abstrata prevista no preceito penal em branco ou se assenta em motivo permanente, insuscetível de alterar-se por circunstâncias temporárias ou excepcionais, como sucede quando, do elenco de doenças contagiosas, retira-se uma moléstia por se haver demonstrado que não tem ela tal característica[6].
O ponto de maior indagação foca-se em saber se é válida a licença que autoriza a complementação futura, muitas vezes por intermédio de fonte legislativa diversa, das normas penais incriminadoras.
A resposta, a meu sentir, só pode ser positiva, notadamente porque se evidencia a peculiaridade vantajosa da norma penal em branco, tolerando complementação integrativa ulterior, sem os tormentos e a morosidade da burocracia legislativa.
Mostra-se imprescindível que, configurada situação de anormalidade econômica ou social, minimizem-se os efeitos contundentes de determinada conduta, por meio de uma ágil e segura intervenção do poder público.
Com a utilização das normas penais em branco o legislador abre campo para, em casos específicos e com celeridade, direcionar a atuação estatal, punindo ou não mais reprimindo essa ou aquela “circunstância”, nova ou rara.
É certo que todo tipo penal deve ser delineado – com contornos bem definidos –, possibilitando-se o prévio conhecimento da conduta ilícita e da respectiva punição cominada, com vista a garantir o status libertatis em contraposição aos mecanismos de atuação estatal.
Não menos certo é, porém, que não se pode simplesmente desprezar a perenidade da transfiguração das condutas, a exigir coetânea intervenção do Estado.
As normas penais em branco atendem essa legítima expectativa social, sem qualquer afronta aos princípios constitucionais da legalidade e da taxatividade, tornando possível a mantença do preceito primário (aí entendido como o núcleo fundamental da conduta), com adaptação à nova concretude, mediante a atualização da norma complementadora, esta com processo de concepção menos complexo e mais efêmero.
O que se constata, por confluência disso tudo, é a utilidade prática das normas penais em branco como instrumentos importantes para aplicação da lei, com contemporaneidade, a casos concretos ainda não previstos ou não contemplados integralmente pela legislação ordinária.
[1] Direito Penal, Ed. Saraiva, 1981, vol. 1, pág. 57.
2 Curso de Direito Penal, Ed. Saraiva, 1992, vol. 1, pág. 22.
[3] Direito Penal, Ed. Saraiva, 1998, vol. 1, pág. 99.
[4] Manual de Direito Penal, Ed, Atlas, 2003.
[5] Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, Ed. RT, 5ª edição, 1995, págs. 62/63.
[6] STF, 1ª Turma, HC nº 73.168/SP, Rel. Min. Moreira Alves, DJU 15.03.1996.
Assistente Jurídico do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pós-graduado pela Escola Paulista da Magistratura, especialista em Direito Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RESTANI, Diogo Alexandre. Lei Antidrogas: norma penal em branco - utilidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 abr 2013, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/34468/lei-antidrogas-norma-penal-em-branco-utilidade. Acesso em: 06 nov 2024.
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