RESUMO: A eutanásia é um tema muito atual. No Brasil, a eutanásia é tipificada como homicídio privilegiado, impelido por piedade. De forma genérica, para caracterizar devidamente a eutanásia, é necessário relacionar a expressão com o fato do paciente ser incurável, geralmente em estado terminal, em sofrimento que não pode ser evitado e a decisão da antecipação da morte deve ser movida por compaixão para com ele e a pedido dele. No presente trabalho, serão abordados os aspectos conceituais relacionados com a eutanásia, objetivando avaliar se tal prática acarreta responsabilidades civis para o médico.
Palavras-chave: Bioética – Biodireito - Eutanásia – Espécies de Eutanásia - Distanásia – Mistanásia – Ortotanásia – Responsabilidade Civil – Responsabilidade Civil do Médico – Princípios Básicos da Bioética – Suicídio Assistido.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. JUSTIFICATIVA. OBJETIVO GERAL. OBJETIVOS ESPECÍFICOS. METODOLOGIA. CAPÍTULO I - HISTÓRICO E CONCEITOS. 1.1. HISTÓRICO. 1.2. CONCEITOS. 1.2.1. Espécies. 1.2.1.1. Quanto ao Modo de Atuação do Agente. 1.2.1.2. Quanto à Intenção do Agente. 1.2.1.3. Quanto à Vontade do Doente. 1.2.1.4. Quanto à Finalidade do Agente. 1.3. O SUICÍDIO ASSISTIDO. CAPÍTULO II - CONSIDERAÇÕES NORMATIVAS MÉDICAS E JURÍDICAS RELACIONADAS À EUTANÁSIA 2.1. CONSIDERAÇÕES GERAIS. 2.2. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO E EUTANÁSIA. 2.2.1. Responsabilidade Civil. 2.2.2. Responsabilidade Civil do Médico. 2.2.3. Responsabilidade Civil do Médico e Eutanásia. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
Uma vasta literatura na atualidade abrange os estudos referentes ao fenômeno da morte e às atitudes do homem diante dela.
Por se tratar de um tema multidisciplinar, tais estudos alcançam as mais variadas áreas do conhecimento, como a Psicologia, a Antropologia, a História, a Sociologia, o Direito, a Medicina, dentre outras.
Recentes teorizações, de base interdisciplinar, tendem a criar interfaces e convergências entre estas áreas, em função de fenômenos emergentes nas sociedades contemporâneas, envolvendo relevantes aspectos éticos. Tal é o caso da Bioética e do Biodireito, ciências relativamente novas que tomam como objeto de reflexão ética polêmicas questões como células-tronco, transplantes e doação de órgãos, reprodução assistida, eutanásia e outras.
Todos estes temas são atravessados pelo fenômeno da vida e da morte, por si só complexo para ser reduzido a uma abordagem exclusiva, exigindo, portanto, a contribuição dessas diversas áreas.
Ariès (1990), historiador francês, famoso por seus estudos sobre as atitudes do homem diante da morte, traça um panorama da evolução da morte ao longo dos tempos, mostrando que a morte não é mais o que ela era. Se considerarmos, apenas como exemplo, como a morte era concebida no primeiro quarto do século XX, veremos profundas mudanças entre aquele tempo e nossos dias, caracterizados, sobretudo, por grandes avanços no campo da medicina. De fato, a tecnologia médica mudou radicalmente o processo do morrer.
Um pequeno exemplo pode ilustrar isto. Antigamente, quando o médico entendia não ter mais nada a fazer pelo doente, ele o entregava à família, pois esta deveria assumir a situação. O médico se retirava para que a família pudesse então fazer o seu papel de acolher e prover cuidados, ainda que paliativos. Atualmente, há uma clara inversão da situação. Quando a família não se sente mais em condições de ajudar o enfermo, ela o entrega aos cuidados médicos para que a equipe assuma o caso, e deste modo a família se retira para que o pessoal médico realize o seu trabalho.
As revisões sobre as relações do médico com o doente e com a morte permitem concluir que
“até o século XX o médico era um simples figurante no ‘teatro da morte’. No início do atual século (o livro é de 1990), os dois já aparecem em luta e, atualmente, é impossível falarmos de morte sem falarmos no médico, que se tornou o principal personagem nesta peça” (Zaidhaft, 1990, p. 61).
A sociedade começa a mudar o seu modo de lidar com a morte. Se antes era comum a pessoa morrer em casa, cercada pelos familiares e amigos, agora ela morrerá no leito de hospital, muitas vezes sem familiares por perto. Zaidhaft (1990) mostra que esta medicalização da morte colocará o médico em posição de destaque dentro desta situação de vida e morte. O médico é quem preside a morte do enfermo. Portanto, está sob seu poder, podendo decretá-la.
De acordo com Ziegler (1977), antes das definições médicas (critérios objetivos) sobre o instante da morte, “o médico ‘constatava’ a morte, diagnosticava uma ocorrência indiscutível da natureza. Era testemunha, não ator. Agora o médico já não constata a morte – provoca-a. É senhor da morte. Não mais registra a hora final de uma vida, fixando-a segundo sua escolha” (p. 185). Segundo o autor, esta realidade configura uma verdadeira tanatocracia, com base na qual
“não é preciso escutar nem parentes, nem amigos, nem conhecidos do doente, pois eles não sabem o que dizem. Deixam-se orientar por concepções afetivas, sentimentais, enquanto o médico, investido de uma missão sagrada, deve fazer um julgamento de vida ou morte, levando em conta: a) os interesses bem compreendidos da sociedade; b) a questão de saber se a vida do doente, caso prolongada, seria uma vida útil e portanto digna de ser salva, ou se esta não é digna de ser vivida e deve ser encerrada sem demora” (pp. 186-187).
Como se vê, o desenvolvimento técnico da Medicina ensejou ao médico muitos recursos para prolongar a morte (ou a vida) a pontos extremos, o que permite concluir que o médico pode, por outro lado, decidir o momento em que ela deve ocorrer. Esta situação faz surgir o tema da eutanásia, “reivindicada contra a obstinação terapêutica” (Doucet, 1993, p. 18). Sobre esta conduta obstinada, Felberg (s.d.) comenta que
“Jean Robert Debray foi o responsável pela introdução na linguagem médica francesa da expressão ‘obstinação terapêutica’ que tinha o significado de ‘comportamento médico que consiste em utilizar processos terapêuticos, cujo efeito é mais nocivo do que os efeitos do mal a curar, ou inútil, porque a cura é impossível e o benefício esperado é menor que os inconvenientes previsíveis’”.
A obstinação terapêutica, a qual podemos chamar de distanásia, opõe-se ao conceito de eutanásia e refere-se à “morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento” (Aurélio, edição eletrônica). O prefixo “dis” quer dizer afastamento e a palavra também engloba a ideia de tratamento inútil. Como diz Felberg (s.d.),
“trata-se da atitude médica que, visando salvar a vida do paciente terminal, submete-o a grande sofrimento. Nesta conduta não se prolonga a vida propriamente dita, mas sim, o processo da morte. No mundo europeu fala-se em ‘obstinação terapêutica’, nos Estados Unidos de ‘futilidade médica’ (‘medical futility’)”.
Curiosamente, como considera Doucet (1993), quando dispunham de poucos meios, os médicos afirmavam como imperativo ético: “Se posso fazer, devo fazê-lo”. Atualmente, possuindo variados e complexos recursos para ajudar o enfermo, o médico indaga: “Eu posso fazer, mas devo fazê-lo?” (p. 18).
Neste particular, impõe-se a questão sobre a responsabilidade do médico diante da eutanásia e da própria distanásia.
Palavra de origem grega (eu-bom + Thanatos-morte), a eutanásia significa, segundo Koogan & Houaiss (1994), “a morte provocada sem sofrimento, tranqüila. Teoria segundo a qual seria lícito abreviar a vida de um doente incurável para por fim a seus sofrimentos”.
Pode um profissional da medicina abreviar a vida de um paciente sob a justificativa piedosa de abrandamento da dor dentro de um quadro de doença incurável? Quais as implicações ético-profissionais, penais e civis do ato de interrupção dos cuidados médicos oferecidos a um paciente?
O assunto, portanto, deve ser analisado em pelo menos três níveis, considerando que, juridicamente falando, há aspectos penais e civis envolvidos, bem como, do ponto de vista do exercício profissional do médico, aspectos éticos da sua conduta.
A morte neste caso passa a ser um fato jurídico. Savigny (apud Resende, 2007) define como fatos jurídicos “acontecimentos em virtude dos quais as relações de direito nascem, bem como se modificam e se extinguem” (p. 60). Portanto, estão envolvidos direitos, deveres, obrigações e responsabilidades que devem ser atendidas.
Quem tem o direito de dispor da Vida? A quem pode ser atribuída tal tarefa? No título II da Constituição da República Federativa do Brasil, referente aos direitos e garantias fundamentais, no caput do artigo 5º, declara o direito à vida como o primeiro direito fundamental, a saber: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade(...)”.
O art. 6 do Código Civil declara que a morte termina a existência da pessoa natural, que deixa de ser sujeito de direitos e deveres. O paciente terminal, em agonia, em grande sofrimento, ainda tem vida, portanto, mantém a personalidade jurídica.
O Conselho Federal de Medicina, através de sua resolução 1.805/2006, dispõe sobre a conduta dos médicos diante dos pacientes em fase terminal, e legitima a prática, não da eutanásia, mas da ortotanásia (também chamada por alguns de eutanásia passiva, em oposição à eutanásia ativa), tema que será abordado neste trabalho. O artigo 66 do Código de Ética veda ao médico "utilizar meios destinados a abreviar a vida do paciente ainda que a pedido deste, ou de seu responsável legal", ou seja, veda a prática da eutanásia.
Na esfera penal, a eutanásia está enquadrada dentro do direito brasileiro como homicídio privilegiado segundo o art. 121, parágrafo 1º, do Código Penal Brasileiro.
Dentro da perspectiva do Direito Civil, cabe investigar, em relação à conduta do médico que praticou a eutanásia, se os pressupostos gerais da responsabilidade civil foram atendidos, a saber: 1) o dolo, 2) a ação ou omissão dos métodos terapêuticos e 3) o nexo causal.
O presente artigo tem a sua origem no interesse pessoal da autor por questões relacionadas com a atitude médica diante do fenômeno da vida e da morte. Serão abordados os aspectos conceituais relacionados com a eutanásia, objetivando avaliar se tal prática acarreta responsabilidades civis para o médico.
Assim sendo, quais os requisitos que devem ser atendidos para que se estabeleça a responsabilidade civil do médico que praticou a eutanásia? O que dizem os teóricos do Direito sobre o tema? Existem divergências doutrinárias entre esses autores?
Será dada especial atenção às distinções entre eutanásia, distanásia e ortotanásia, verificando a posição da legislação brasileira sobre o assunto e do Conselho Federal de Medicina.
Diante de tantas questões emergentes envolvendo o complexo fenômeno da vida e da morte, surgem novas indagações de natureza ética, exigindo uma legislação específica ou pelo menos um amplo processo de discussão sobre as conseqüências dessa nova realidade. Provam isto os variados estudos no campo da Bioética e do Biodireito. Neste sentido, justifica-se o presente estudo, o qual ressaltará as responsabilidades civis do médico diante da eutanásia. Acreditamos que os conceitos de eutanásia, ortotanásia e distanásia devam ser esclarecidos para uma correta avaliação do ponto de vista civil.
Portanto, este estudo poderá contribuir no sentido de esclarecer conceitos da atualidade que se relacionam com o Direito Civil, os quais têm gerado significativas discussões em diversas áreas do conhecimento. Tal contribuição teórica e técnica representará subsídios necessários para o posicionamento de advogados e professores de Direito sobre as implicações civis, para o médico, da eutanásia.
Serão considerados os conceitos da Bioética e do Biodireito como base teórica em nosso trabalho, abordando as várias correntes e concepções em torno do tema.
JUSTIFICATIVA
O nascimento é um fato esperado. Em circunstâncias normais, a chegada do bebê deixa a família em uma saudável expectativa.
Lidar com a morte não é uma questão muito fácil. É a linha de chegada de toda uma trajetória humana. As incertezas que a cercam, por mais diversificados que sejam os estudos a seu respeito, sempre traz ao ser humano a dúvida sobre o bom proceder, tanto no aspecto pessoal (eu sempre agi corretamente?) quanto no seu relacionamento com o próximo (eu estou agindo corretamente em relação a ele?). Estas incertezas prosseguem quando lidamos com um paciente ou ente querido à beira da morte. Como proceder? Até onde agir (ou deixar de fazê-lo)?
Situação presente no dia-a-dia de todos nós, a existência de pacientes em leitos hospitalares sem perspectiva de recuperação, em situação terminal, por si só justifica o presente estudo.
A cada dia, os recursos biotecnológicos avançam, evoluem, revelando um universo de poder e oportunidades. São fronteiras, que no passado pareciam inatingíveis, que atualmente são superadas e apresentam uma nova dimensão para a sociedade e, em especial, para o profissional da área médica. Tais situações ampliaram a possibilidade de recuperação de pacientes, bem como a manutenção e prolongamento das condições vitais onde nem sempre o diagnóstico era tão favorável. Estes avanços suscitaram a discussão do tema proposto. Até onde o prolongamento das condições vitais representa uma chance real de recuperação?
Qual a linha limite de atuação do médico? É uma linha tão tênue que muitas vezes a família não pode dar sua opinião, seja pela falta de conhecimento, seja pelo medo de assumir responsabilidades. Dada a sua formação, o médico é o senhor detentor de toda a autoridade, colocando a família numa posição “inferior” a este.
Daí a necessidade da existência de normas que regulem a atuação de cada profissional que atue com questões tão limítrofes. A sociedade tem o dever de se posicionar sobre tais comportamentos da forma mais adequada, norteada pelo bom senso.
A presente pesquisa procura disponibilizar informações sobre os direitos e deveres da sociedade em relação à atuação médica frente à eutanásia, esclarecendo conceitos que se relacionam com o Direito Civil, contribuindo teórica e tecnicamente com todos aqueles que um dia, porventura, venham a enfrentar tal situação (profissionais, estudantes, estudiosos, familiares, etc).
OBJETIVO GERAL
- Investigar, à luz do Direito Civil, a responsabilidade civil dos médicos em relação à prática da eutanásia.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
- Apresentar e discutir alguns conceitos do campo da Bioética e do Biodireito relacionados com a prática da eutanásia.
- Discutir as diversas posições teóricas, no campo do Direito, sobre a prática da eutanásia no Brasil.
- Analisar a responsabilidade civil do médico diante da questão da eutanásia.
METODOLOGIA
Para a realização do presente trabalho será conduzida uma pesquisa de revisão bibliográfica tomando por base textos clássicos sobre a questão e, sobretudo, livros e artigos recentes no campo da Bioética e do Biodireito.
I - HISTÓRICO E CONCEITOS
1.1. HISTÓRICO
Encontramos referências à eutanásia desde a idade antiga. Na Grécia, os espartanos jogavam do alto de um monte os bebês recém-nascidos defeituosos. Na ilha grega de Cós, os idosos recebiam veneno durante uma festa. Já em Atenas, era o Senado que tinha o poder absoluto de decidir sobre a eliminação dos idosos e dos incuráveis.
Platão, 400 anos a. C., pregava o sacrifício de velhos, fracos e inválidos, visando o fortalecimento do bem-estar e da economia coletiva. Licurgo, lendário legislador de Esparta cuja vida deve ter decorrido no séc. VII a.C., fazia matar as crianças aleijadas ou débeis como objetivo de produzir uma sociedade de homens fortes e prontos para a guerra.
Em Roma, os césares autorizavam o término da agonia de gladiadores mortalmente feridos com um movimento dos dedos.
Os germanos matavam os enfermos incuráveis; na Birmânia, os enterravam vivos juntamente com os velhos. Na Índia, vedavam a boca e as narinas dos doentes incuráveis com lama sagrada e os jogavam no Ganges. Os celtas permitiam que os filhos providenciassem a morte dos pais velhos e doentes. Idosos e doentes graves e incuráveis eram enterrados vivos pelos birmaneses. Também poderiam ser enforcados vivos, a pedido daqueles.
A Lei das Doze Tábuas permitia que a morte de filhos nascidos disformes fosse providenciada pelos pais, após a avaliação de cinco vizinhos.
Os esquimós trancavam os idosos e os doentes incuráveis em iglus. Para que os anciãos e enfermos não sofressem ataque de animais selvagens, os nômades sul-americanos os sacrificavam.
A morte do Rei Saul, como aparece na Bíblia Sagrada (II Samuel, I), é citada como o primeiro relato de eutanásia de que se tem notícia:
“9 Então ele me disse: Peço-te, arremessa-te sobre mim, e mata- me, porque angústias me têm cercado, pois toda a minha vida está ainda em mim.
10 Arremessei-me, pois, sobre ele, e o matei, porque bem sabia eu que não viveria depois da sua queda, e tomei a coroa que tinha na cabeça, e o bracelete que trazia no braço, e os trouxe aqui a meu senhor”.
Na época de Cristo, aos crucificados agonizantes era oferecida uma esponja umedecida com uma mistura de vinagre e fel, que os entorpecia até o final da vida.
Na era medieval, era comum o uso de um Punhal de Misericórdia, instrumento entregue a soldados gravemente feridos ou que viessem a ser preso por inimigos para que aqueles pudessem suicidar-se, evitando, assim, um sofrimento prolongado.
Napoleão chegou a solicitar ao cirurgião Désgenèttes que ministrasse ópio aos soldados atacados pela peste, mas o médico não atendeu ao pedido, alegando que o dever do médico é curar e não matar. Napoleão tinha por objetivo não deixar que os soldados, enfermos ou sem chances de cura, ficassem vivos em poder dos inimigos.
Villas-Bôas (2005) relata, ainda, a ocorrência da eutanásia em terras brasileiras. Entre outras narrações, a de José de Anchieta conta que crianças com deformidades físicas ou crianças com dúvidas acerca de sua paternidade eram enterradas vivas. Entre os Tupis-Guaranis havia casos em que a própria comunidade decidia sobre o destino do doente. Na tribo Bororo, havia a figura do Bari, espécie de feiticeiro que predizia a cura ou a morte de um doente grave. Em caso de morte, o doente não recebia mais nenhum alimento.
Os escravos africanos quando consideravam o chefe da tribo (soba) irremediavelmente doente, enforcavam-no do alto da habitação, o que era uma grande honra, pois evitava a decadência física do líder.
A eutanásia associada à eugenia busca eliminar deficientes, pacientes terminais e portadores de doenças consideradas indesejáveis, cuja finalidade é buscar a perfeição ou o aprimoramento de uma “raça”. Não há relação ao sentido original de se ter o poder de terminar com a própria vida, compaixão ou piedade.
A eutanásia é permitida na Holanda, desde 2002, e na Bélgica a partir de 2002. No território norte da Austrália, vigorou uma legislação permitindo a eutanásia voluntária ativa de 1995 até 1997. Mais recentemente, o Estado de Washington, nos Estados Unidos, passou a permitir a eutanásia com a entrada em vigor da lei sobre a “morte com dignidade”. Anteriormente, o Estado de Oregon já a autorizava. Além destes locais, algumas formas de eutanásia são legais em Luxemburgo, Suíça, Andalusia (Espanha) e na Tailândia. No Brasil, tanto a eutanásia quanto o suicídio assistido são consideradas práticas ilegais e, consequentemente, passíveis de exame pelo Poder Judiciário.
A partir dos fatos relatados anteriormente, observamos a existência de prática com finalidade eugênica, também denominada “falsa eutanásia”. Atualmente, para caracterizar devidamente a eutanásia, é necessário relacionar a expressão com o fato do paciente ser incurável, geralmente em estado terminal, em sofrimento que não pode ser evitado e a decisão da antecipação da morte deve ser movida por compaixão para com ele e a pedido dele.
1.2. CONCEITOS
Há vários conceitos relativos à intervenção humana no momento da morte. A eutanásia é a morte antes de seu tempo, a distanásia é a morte depois do tempo e a ortotanásia é a morte no tempo certo.
O ortotanásia (orthos = reto, correto; thanatos = morte) refere-se a morte na hora certa, sem interferência do médico nem para antecipá-la, nem para adiá-la, mantendo-se os cuidados básicos. Neste contexto, o importante é prover conforto ao paciente, até que a morte chegue na hora certa, por estar o organismo cansado demais para continuar lutando.
A ortotanásia não pode ser confundida com a eutanásia passiva, pois esta última é a eutanásia praticada sob a forma de omissão, consistindo na suspensão ou omissão de procedimentos ainda indicados no caso do paciente. Na ortotanásia há suspensão ou omissão de medidas que não são mais benéficas ao paciente, no estado em que se encontra.
A distanásia é a morte lenta e sofrida, decorrente de um abuso na utilização de recursos médicos, sem o consentimento do paciente. São recursos infrutíferos para o paciente que, na maioria das vezes, causam-lhe maior sofrimento, lentificando o seu processo de morrer. Pode ser feito como forma de obter-se vantagens econômicas pela utilização das dependências do hospital ou por vaidade do profissional que não admite o fracasso das tentativas terapêuticas e a inevitável presença da morte.
A distanásia é a obstinação terapêutica. Suspender tratamentos fúteis não é interromper o direito à vida que não inclui o dever de adiar indefinidamente a morte natural pelo uso de recursos médicos protelatórios. Quando o organismo já se encontra em falência global e irreversível, o tratamento, por vezes contra a vontade do indivíduo, não pode ser visto como um benefício ou um dever médico.
A mistanásia, para uns provém do grego mis (que significa “infeliz”), para outros, do radical também grego mys (“rato”). O sentido vai além do contexto médico-hospitalar, diigindo-se à uma morte miserável, por falta de condições, aos que morrem de fome, aos mortos nas torturas de regimes políticos etc.
A mistanásia pode ser entendida como uma eutanásia social e abrangeria as vítimas do erro médico, os condenados a pena de morte e as vítimas da eutanásia nazista.
1.2.1. Espécies
1.2.1.1. Quanto ao Modo de Atuação do Agente
Quanto à forma de atuação do agente, a eutanásia pode ser ativa ou passiva. Dá-se a eutanásia ativa, quando o ato é decorrente de uma conduta positiva, comissiva.
Dá-se a eutanásia passiva, quando a morte é decorrente de uma conduta omissiva, omitem-se ou suspendem-se arbitrariamente condutas ainda indicadas para o benefício do paciente.
Em ambos os casos, o objetivo é o de promover a morte a fim de pôr termo ao sofrimento do paciente.
Faz-se necessário diferenciar a eutanásia passiva das condutas médicas restritivas que caracterizam a ortotanásia. Nesta última, não há o desejo de matar, mas sim o desejo de não prolongar indevidamente a vida daquele que se encontra em esgotamento físico. As condutas médicas restritivas são baseadas em critérios médico-científicos, optando-se conscientemente pela sua não utilização quando a medida não mais trouxer benefícios ao paciente. Há um objetivo médico quando não se pode mais obter a cura.
Esta diferença é necessária para que os casos tenham tratamento jurídico adequado: a licitude da ortotanásia e a ilicitude da eutanásia passiva.
1.2.1.2. Quanto à Intenção do Agente
Quanto à intenção do agente, a eutanásia pode ser indireta ou direta. Ocorre a eutanásia indireta ou de duplo efeito, quando a dose da medicação ministrada com o objetivo de minorar a dor do paciente, sem a intenção da ocorrência da morte, acaba por apressar a morte do paciente. Neste caso, faz-se necessário o consentimento do paciente ou da família, que deverão ser orientados sobre os riscos da medicação adotada. É opção do paciente receber ou não o analgésico que poderá vir a encurtar o seu tempo de vida ou de ser ver privado de consciência.
Na eutanásia de duplo efeito, a morte é efeito indireto da conduta. A eutanásia direta é a utilização de drogas em doses letais, a intenção do agente é acabar com a dor de forma definitiva.
1.2.1.3. Quanto à Vontade do Doente
Quanto à vontade do agente, a eutanásia pode ser voluntária ou involuntária. A eutanásia voluntária é solicitada pelo paciente, em pleno gozo de sua capacidade.
A eutanásia involuntária é aquela realizada por decisão de outra pessoa que não o paciente que provavelmente não está em condições de decidir, seu representante legal.
O ato realizado contra a vontade do paciente não pode ser caracterizado como eutanásia. Neste caso, o motivo piedoso não está presente, uma vez que o paciente pode não considerar seu sofrimento insuportável, preferindo manter-se vivo.
Esta classificação em eutanásia voluntária e involuntária apresenta divergências. Há entendimentos que classificam a eutanásia voluntária como aquela solicitada pelo paciente ou seu representante. A involuntária seria decidida por outras pessoas, como médicos e enfermeiros.
1.2.1.4. Quanto à Finalidade do Agente
Uma das classificações mais conhecidas quanto á finalidade do agente é a adotada por Luis Jimenez de Asúa em Liberdad de Amar y Derecho a Morrir. Nessa obra, o autor a classifica em três formas: libertadora, eliminadora e econômica:
A libertadora ou terapêutica tem o objetivo de livrar o doente de um sofrimento insuportável que de outro modo não pode ser contido.
A eliminadora, também chamada por autores de eugênica ou selecionadora, tem por objetivo acabar com os portadores de anomalias genéticas, com vítimas de doenças contagiosas e mesmo de “criminosos”, com vistas ao melhoramento da espécie.
A econômica visa acabar com aqueles que representam uma carga social, com o objetivo de liberar os recursos materiais e humanos que eles vinha utilizando. É o caso de idosos, inválidos de indivíduos em coma ou estado vegetativo.
Observa-se que nas eutanásias eliminadora e econômica não há a manifestação de vontade do paciente, descaracterizando, assim, o caráter misericordioso da eutanásia.
Quando há antecipação da morte de indivíduos desprestigiados por suas características físicas ou mentais, quando é realizada sem o conhecimento do doente, a morte pode ser caracterizada como eugênica ou caso o objetivo seja o de desocupar leitos hospitalares, liberando a família dos encargos financeiros, a morte pode ser caracterizada como eutanásia econômica.
A eutanásia eugênica e a econômica vão contra os direitos básicos do ser humano, entre eles, a vida, a liberdade e a igualdade.
1.3. O SUICÍDIO ASSISTIDO
O suicídio medicamente assistido é comumente citado em estudos sobre a eutanásia, pela situação em comum da existência de um paciente em grande sofrimento, por conta de uma doença incurável. A diferença está no fato de no suicídio assistido a morte ser provocada pelo próprio indivíduo enfermo, e o terceiro, geralmente o médico, irá ajudá-lo materialmente para o fato, comovido com o desespero do doente.
O termo assistido vem da ideia de ajudar ao doente a realizar o seu intento, seja de forma material ou na orientação através dos conhecimentos.
Villas-Bôas (2005), relata um caso de suicídio assistido ocorrido na Espanha, em 1998, que veio a renovar a discussão sobre o tema: Ramon Sampedro tornara-se tetraplégico aos vinte e cinco anos, após um mergulho em águas rasas, e durante vinte e nove anos sobreviveu nessa condição, tendo sempre manifestado, com determinação e serenidade, o desejo de pôr termo à vida. Não se tratava de paciente deprimido, lia bastante e vivia cercado de amigos chegava a escrever cartas, sustentando a caneta com a boca. Ele solicitara em juízo a obtenção de auxílio para morrer, já que sua condição física o impedia de realizar o feito sozinho.
O andamento processual já durava cinco anos e Ramon não conseguia a autorização desejada. Ramon conseguiu, então, organizar todo o procedimento necessário entre seus amigos, ficando cada um encarregado de uma etapa, desde a compra do veneno até o posicionamento do canudo em sua boca, de modo que se diluísse a ação delitiva. Ramon redigiu uma carta, explicando sua decisão e providenciou que uma câmera de vídeo instalada no quarto fosse ligada a tempo de filmar o momento em que ele, sozinho, sorvia o veneno, até sua morte. Uma amiga de Ramon chegou a ser indiciada, mas, como nada se pôde comprovar, o processo foi arquivado. Uma pesquisa realizada na época demonstrou que 75% dos espanhóis se opunham à abertura de processo no caso e que 67% dos entrevistados se mostravam favoráveis à impunibilidade na eutanásia voluntária e no suicídio assistido.
II - CONSIDERAÇÕES NORMATIVAS MÉDICAS E JURÍDICAS RELACIONADAS À EUTANÁSIA
2.1. CONSIDERAÇÕES GERAIS
No título II da Constituição da República Federativa do Brasil, referente aos direitos e garantias fundamentais, no caput do artigo 5º, declara o direito à vida como o primeiro direito fundamental, a saber: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade(...)”.
O direito à vida é um bem indisponível e inviolável, vedado, portanto, ao ser humano, o direito de dispor da própria vida, uma vez que tem-se a proteção do Estado desde a concepção até a morte. Zelar pela vida de todos os cidadãos é dever fundamental do Estado.
Direito à vida ou direito à liberdade? Qualquer decisão deve ser tomada com base na dignidade da pessoa.
A indisponibilidade do bem vida deve ser entendida como a impossibilidade de abdicar definitivamente e irrestritivamente de seu direito. O art. 6 do Código Civil declara que a existência da pessoa natural termina com a morte.O paciente terminal, em agonia, em grande sofrimento, ainda tem vida, portanto, mantém a personalidade jurídica.
Não se pode reduzir a definição do fenômeno da vida e da morte a uma abordagem exclusiva, dada a sua complexidade, exigindo, portanto, a contribuição de diversas áreas. Assim, a Bioética surge para “trazer critérios éticos e morais à investigadores e profissionais, propondo limites ao técnico e científico no sentido de que a dignidade e a vida humana seja um prius sobre qualquer outro valor” (Santos, 1999, p. 265-266). E para regular as relações à luz dos princípios da Bioética, surge o Biodireito, “(...) a Ciência que tem por objeto a fundamentação e pertinência das normas jurídico-positivas de ‘lege ferenda’ e de ‘lege lata’ para lograr e verificar sua adequação aos princípios e valores da Ética em relação à vida humana, isto é, sua adequação aos valores da Bioética” (Vila-coro, apud Santos, 1999, p. 256).
A rapidez das descobertas científicas exige posicionamentos jurídicos precisos que, muitas das vezes, ainda não estão devidamente normatizados pelo Direito. Assim, caberia à Bioética “pensar” os fatos, estimulando e dinamizando o sentimento social que os envolve; e ao Biodireito caberia normatizar o resultado do pensar: manipulação de genes, embriões e fetos humanos, reprodução assistida, clonagem, transplante de órgãos, eutanásia.
Há quatro princípios básicos, clássicos da bioética, a serem seguidos para nortear decisões a serem tomadas perante um paciente: a beneficência, a não- maleficência, a autonomia e a justiça.
A beneficência visa a promover o bem do outro, o bem identificado com a cura, a melhora, a promoção da vida e da saúde.
A não-maleficência afirma que é dever do médico usar seus conhecimentos para não prejudicar, não causar o mal. Aqui, o médico deverá nortear suas decisões para evitar intervenções que não poderão reverter o quadro do paciente, priorizando cuidados de alívio e conforto.
A autonomia relaciona-se com a capacidade de autodeterminação do indivíduo. Por esse princípio, o paciente é tido como uma pessoa apta a decidir acerca do seu destino, da conveniência de se submeter ou não a tratamentos específicos, conforme seus valores pessoais e dentro dos limites legais , após o devido esclarecimento feito pelo seu médico.
Para que haja autonomia, é necessária a existência do consentimento informado, que deve ser livre, expresso e esclarecido. É preciso que o paciente saiba com o que está concordando ou discordando, após todos os esclarecimentos do médico, de forma clara e em linguagem acessível. O consentimento deve ser feito por pessoa legalmente capaz, deve ser livre, voluntário. Também deve ser renovável a cada novo procedimento e revogável a qualquer tempo.
Não se pode decidir em proceder à eutanásia baseando-se simplesmente no princípio da autonomia. Mas a aplicabilidade do princípio é válida quando da recusa pelo paciente de determinado procedimento médico. Se o paciente insiste em prolongar a vida, é porque isto representa benefício para ele.
Quando a família interfere, solicitando o prolongamento da existência, mesmo que os procedimentos não acrescentem benefícios efetivos para o paciente, deve-se basear a decisão pelo princípio da não-maleficência, visando aos melhores interesses do doente.
O princípio da autonomia envolve questões valorativas e vontades do paciente. A atuação do médico procurará garantir não somente o benefício físico, mas o bem-estar geral da pessoa.
O artigo 15 do Código Civil de 2002 dispõe, remetendo implicitamente à noção de autonomia, que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.
Observa-se também, a relevância dada ao consentimento, principalmente tratando-se de paciente capaz, enfatizando-se a beneficência, exceto em caso iminente de perigo de vida (Código Penal, artigo 146, parágrafo 3º, I), quando é permitida a intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida.
A Constituição Federal, em seu art. 5º, II, declara que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lê”.
Pode-se inferir que não pode haver lei que obrigando às pessoas a se submeter a todos os tratamentos possíveis, ainda que expressamente contra sua vontade e sem confirmação da melhora terapêutica. A dignidade humana não estaria sendo violada quando a recusa do paciente se baseia na ausência de expectativas reais de melhora?
O princípio da justiça relaciona-se com a distribuição eqüitativa dos benefícios, riscos e encargos proporcionados pelo serviço de saúde, de forma que todos possam ser beneficiados por ele, encontrando guarida nas normas que asseguram a todos o acesso à saúde.
Dada a limitação dos recursos disponibilizados pelo serviço de saúde, é necessário organizar a sua distribuição da forma mais equilibrada e eficiente possível. Esta iniciativa cabe ao tanto ao Governo, através da implantação de políticas públicas de saúde e destinação de recursos como também cabe à unidades de saúde, através das equipes médicas, assistenciais na distribuição de vagas, medicações, atenção médica etc.
Todos os princípios têm aspectos subjetivos, devem ser bem avaliados para que sua aplicação tenha por objetivo um tratamento digno ao ser humano enfermo. O bom–senso deve basear as decisões referentes ao paciente terminal, sua autonomia, e a beneficência e a não–maleficência da conduta médica. O princípio da justiça aplicar-se-ia ao saber que o doente terminal tem tanto direito ao leito hospitalar quanto qualquer outro paciente, estando-se ciente de que os recursos utilizados lhe são benéficos.
Segundo estudiosos da matéria, o Código de Ética Médica de 1988 consiste em um modelo benigno-humanitário, enfatizando os princípios bioéticos da beneficência e da não-maleficência, com vistas ao bem-estar do paciente. O princípio da autonomia está presente em diversos artigos, mesmo para procedimentos simples, sendo dispensado no risco iminente de vida.
Assim dispõe o art. 6º, no Capítulo I:
Art. 6: O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.
E assim dispõe o art. 66, no Capítulo V:
É vedado ao médico:
Art. 66: Utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal.
Assim o Código de Ética Médica brasileiro proíbe terminantemente a eutanásia. Mas há a preocupação com o sofrimento do paciente terminal, disposto em seu art. 61, parágrafo 2º:
É vedado ao médico:
Art. 61: Abandonar paciente sob seus cuidados.
2º Salvo por justa causa, comunicada ao paciente ou a seus familiares, o médico não pode abandonar o paciente por ser este portador de moléstia crônica o incurável, mas deve continuar a assisti-lo ainda que apenas para mitigar o sofrimento físico ou psíquico.
Indiretamente podemos concluir que o Código de Ética Médica é contra a distanásia e ao tratamento fútil, quando em seu art. 60, é vedado ao médico complicar a terapêutica desnecessariamente:
É vedado ao médico:
Art. 60: Exagerar a gravidade do diagnóstico ou prognóstico, complicar a terapêutica, ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos.
Duplo entendimento pode ser obtido a partir do art. 57:
É vedado ao médico:
Art. 57: Deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnósticos e tratamento a seu alcance em favor do paciente.
Para aqueles que se opõem à limitação terapêutica, o texto obrigaria o uso de todos os procedimentos médicos disponíveis para prolongar o maior tempo possível a vida do paciente.
Para aqueles que adotam a perspectiva humanitária, agir a favor do paciente não é desrespeitar sua vontade e sua dignidade de ser humano, mas sim utilizar os procedimentos médicos existentes para o seu efetivo benefício.
2.2. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO E EUTANÁSIA
2.2.1. Responsabilidade Civil
Segundo Cavalieri (2005) “Responsabilidade Civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário” (p. 24).
O dever jurídico deve ser entendido como a conduta externa de uma pessoa imposta pelas normas, por exigência do convívio em sociedade. A violação de um dever jurídico (originário) configura o ilícito, que, poderá acarretar um dano, gerando um novo dever jurídico (sucessivo), o de reparar o dano. O responsável será a pessoa que deverá ressarcir o prejuízo que foi causado pela violação de um dever jurídico originário.
A responsabilidade civil pode ser contratual ou extracontratual. Haverá responsabilidade contratual quando o dever jurídico violado estiver previsto em contrato, e responsabilidade extracontratual quando o dever jurídico violado estiver previsto na lei ou na ordem jurídica e não em um contrato.
Quando contratual, pode ser de obrigação de meio ou de resultado. A obrigação de meio é caracterizada quando a parte contratada procede com todos os cuidados necessários para que a obrigação seja cumprida, mesmo que o resultado não seja alcançado. Já a obrigação de resultado é aquela cujo objetivo é alcançar o resultado que foi contratado.
Na responsabilidade objetiva, todo dano deve ser reparado, desde que haja um nexo causal com a conduta do agente, independentemente de culpa, observando-se os casos de exclusão do nexo de causalidade (caso fortuito ou força maior, fato exclusivo da vítima ou fato de terceiro).
O principal pressuposto exigido na responsabilidade civil subjetiva é a culpa, abrangendo não só a culpa stricto sensu, como também o dolo. Neste caso, a vítima só obterá a reparação do dano se provar a culpa do agente.
2.2.2. Responsabilidade Civil do Médico
O Código do Consumidor (Lei n. 8.078/1990), em seu art. 14, § 4º, estabeleceu a responsabilidade subjetiva para os profissionais liberais prestadores de serviços.
A relação entre médico e paciente é contratual, não cabendo, no momento, discussões acerca da natureza jurídica do contrato.
A cura ou salvação de um doente não pode ser prometida por um médico. O profissional de saúde não pode assumir a obrigação de curar o doente ou de salvá- lo, principalmente quando em estado grave ou terminal. A obrigação do médico será a de proporcionar todos os cuidados e conselhos ao paciente, de acordo com as regras e os métodos da profissão. Assim sendo, a obrigação assumida é de meio, não se caracterizando o inadimplemento contratual, se o tratamento não produziu o efeito esperado (a cura) .
A responsabilidade médica, embora contratual, é subjetiva e com culpa provada, cabendo ao paciente, ou aos seus herdeiros, demonstrar que o resultado não esperado do tratamento teve por causa a negligência, a imprudência ou a imperícia do médico, apesar dos recursos médicos e científicos disponíveis.
Segundo Cavalieri (2005, p. 394):
Culpa e erro profissional são coisas distintas. Há erro profissional quando a conduta médica é correta, mas a técnica empregada é incorreta; há imperícia quando a técnica é correta, mas a conduta médica é incorreta. A culpa médica supõe uma falta de diligência ou de prudência em relação ao que era esperável de um bom profissional escolhido como padrão; o erro é a falha do homem normal, conseqüência inelutável da falibilidade humana.
Assim, o médico que agir sem cautela necessária, será imprudente, seu ato será caracterizado pela intempestividade, precipitação, insensatez ou desconsideração. É um ato comissivo.
A negligência é um ato omissivo, caracterizado pela inércia, passividade, inação ou indolência do médico.
E a imperícia é a falta de observação das normas, por despreparo prático ou por insuficiência de conhecimentos técnicos.
A prova de culpa não é fácil de ser produzida, um, por ser a matéria essencialmente técnica e dois, porque os Tribunais são severos na exigência de prova.
A responsabilização do médico só tem sido admitida quando é demonstrado o erro grosseiro no diagnóstico, na medicação ministrada, no tratamento que foi utilizado ou por omissão nos cuidados que deveriam ter sido dispensados ao paciente.
Decidiu a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça não conhecer do Recurso Especial assim ementado (REsp 914329 / RJ- RECURSO ESPECIAL - 2007/0001491-8):
Médico que deixa de prestar assistência pós-cirúrgica a paciente que tem seu estado de saúde agravado, alegando que a piora não decorre do ato cirúrgico que realizou, mas de outras causas, encaminhando-a a profissionais diversos, deve responder pelo dano ocasionado à paciente, pois deixou de agir com a cautela necessária, sendo negligente.
Conforme a complexidade do caso, poderá o juiz inverter o ônus da prova em favor do consumidor, conforme expresso no art. 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor. Cumpre destacar que a inversão do ônus da prova não é automática, tornando-se, entretanto, possível num contexto da facilitação da defesa dos direitos do consumidor, ficando subordinada ao critério do juiz, quando for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências.
A atividade médica tem o chamado risco inerente, que é o risco decorrente da própria natureza do serviço e ao seu modo de prestação. Para não responder pelos riscos inerentes, deve o médico prestar ao paciente todas as informações necessárias sobre a terapia ou cirurgia indicada para o caso, seus riscos e os resultados possíveis, dele obtendo o chamado consentimento informado, conforme já relatado anteriormente. A título de exemplo assim fundamentou seu voto o Exmo. Sr. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, (REsp 436827 / SP -RECURSO ESPECIAL -2002/0025859-5):
A despreocupação do facultativo em obter do paciente seu consentimento informado pode significar - nos casos mais graves - negligência no exercício profissional. As exigências do princípio do consentimento informado devem ser atendidas com maior zelo na medida em que aumenta o risco, ou o dano, ou diminui a possibilidade de êxito. Nas circunstâncias dos autos, assim como admitido pelo Tribunal e acima parcialmente descrito, o dever de informação antes e depois da cirurgia não foi cumprido.
Enfim, quando através de suas práticas, o médico vir a causar dano ao paciente, ele poderá ser responsabilizado, tanto nas esferas ética, civil e penal. Eticamente, será julgado pelo Conselho Regional de Medicina, civilmente, poderá ser punido com penas pecuniárias, e penalmente quando sua atividade estiver inserida em algum delito tipificado em nosso Código Penal.
2.2.3. Responsabilidade Civil do Médico e Eutanásia
O art. 935. do Código Civil dispõe que “a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”. Pode o profissional médico vir a ser absolvido no crime, mas se for condenado, não mais se discute a responsabilidade civil, conforme disposto no citado artigo.
Penalmente, a eutanásia é considerada homicídio privilegiado. Para aferir a responsabilidade do médico, deve-se considerar o ato ilícito homicídio privilegiado, os danos causados e, logicamente, o nexo causal entre esses dois elementos.
Conforme o Código Civil, sendo a eutanásia considerada homicídio, na esfera civil gerará os seguintes efeitos:
Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações:
I - no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família;
II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.
E é complementado:
Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.
O médico que pratica a eutanásia deverá reparar financeiramente os seus atos, uma vez que as sanções, no Direito Civil, são de natureza pecuniária. A comprovação do dano é uma tarefa árdua, dada a dificuldade em mensurar a extensão dos danos causados a terceiros. Mas, se o dano para a vítima se constituir de morte, o direito de exigir a reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança, ou seja, a prestação de alimentos será devida, em caso de morte, a quem a vítima os devia, ou aos que dela eram economicamente dependentes.
Na prática, observa-se que o caso só é discutido juridicamente quando a questão é levantada pela imprensa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A possibilidade de manipulação cada vez mais intensa do final da vida humana, antecipando-a ou prolongando-a, nem sempre em condições favoráveis de sobrevida, traz à tona uma série de questionamentos, levando-nos a refletir sobre o papel de todos os envolvidos em tal processo: o paciente, os familiares, os médicos.
A tecnologia médica mudou radicalmente o processo do morrer. A morte, antes um evento familiar, em que todos compartilhavam do momento final do paciente, tornou-se institucionalizada, solitária. Esta medicalização da morte colocará o médico em posição de destaque dentro desta situação de vida e morte. O médico é quem preside a morte do enfermo. Portanto, está sob seu poder, decretá- la.
A eutanásia ameaça o maior bem do homem, a vida, e envolve questões não apenas sobre os direitos e interesses de pessoas em particular, mas sobre a importância intrínseca da vida humana.
Não há um conceito unânime sobre a eutanásia, uma vez que diversos autores a definem de acordo com suas concepções religiosas, morais, éticas e jurídicas. De forma genérica, para caracterizar devidamente a eutanásia, é necessário relacionar a expressão com o fato do paciente ser incurável, geralmente em estado terminal, em sofrimento que não pode ser evitado e a decisão da antecipação da morte deve ser movida por compaixão para com ele e a pedido dele.
Resumidamente, pode-se afirmar que a eutanásia é a morte antes de seu tempo, a distanásia é a morte depois do tempo e a ortotanásia é a morte no tempo certo.
É de fundamental importância que o médico mantenha o paciente e sua família devidamente informados sobre o processo terapêutico que será ministrado, evitando que ocorra abalos na relação médico-paciente-família. Eticamente e moralmente, deve-se rejeitar a situação em que não se ministra remédios ao paciente, deixando-o morrer. Esta atitude também deve ser tomada frente à situação de prolongar-se o sofrimento humano, sob a expectativa de se testar medicamentos. O ortotanásia refere-se a morte na hora certa, sem interferência do médico nem para antecipá-la, nem para adiá-la, mantendo-se os cuidados básicos. Neste contexto, o importante é prover conforto ao paciente, até que a morte chegue na hora certa, por estar o organismo cansado demais para continuar lutando.
O Código Penal brasileiro não admite a morte provocada por piedade.O presente estudo concluiu que, na esfera civil, o médico que praticou a eutanásia, comprovado o dano, deverá reparar financeiramente os seus atos.
O presente tema justifica seu estudo pela sua atualidade. Legalizar ou não a eutanásia é um assunto que deve interessar à sociedade como um todo, monopolizando os cidadãos a se posicionarem adequadamente, consequência de uma discussão envolvendo os aspectos sociais, religiosos e culturais de acordo com os respectivos valores de seu povo. A discussão a respeito do tema visa a proposição de critérios que deverão ser seguidos, enfatizando-se a necessidade de interação dos respectivos conhecimentos médicos e jurídicos.
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Advogado, Administrador de Empresas e Teólogo. Graduado em Direito pela Faculdade Estácio do Recife, em Administração pela Universidade de Pernambuco e em Teologia Eclesiástica pela Faculdade Internacional de Teologia Gospel/Faculdade Gospel. Pós-graduado em Direito Administrativo e em Direito Civil, ambas as especializações pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá. Mestrando em Gestão do Desenvolvimento Local Sustentável pela Universidade de Pernambuco. Mestrando em Teologia com ênfase em Bibliologia pela Faculdade Internacional de Teologia Gospel/Faculdade Gospel. Servidor da Prefeitura do Recife e Conciliador do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI). Sócio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Associado à Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Articulista de sites jurídicos. Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/0065877568376352
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELO, José Mário Delaiti de. Eutanásia e responsabilidade civil do médico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 out 2013, 07:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/36850/eutanasia-e-responsabilidade-civil-do-medico. Acesso em: 08 nov 2024.
Por: EMILY PANISSE MENEGASSO
Por: Valdeir Britto Bispo
Por: Paula Caroline Serafim Maria
Por: ALESSANDRO BERNARDO DOS SANTOS
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