RESUMO: Em 2012, o Governo Federal brasileiro sancionou a Lei de Cotas garantindo a reserva de 50% (cinquenta por cento) das matrículas por curso e turno nas Universidades Federais a alunos oriundos integralmente do ensino médio público. As cotas têm por objetivo desenvolver a igualdade social, porém, os que criticam a essa política pública alegam que fere a autonomia universitária prevista na Carta Magna. A partir da regulamentação das cotas para o ensino superior, se recorre à justiça rawlsiana para compreender o sistema.
Palavras-chave: Cotas. Igualdade Social. Justiça. John Rawls.
Introdução
Através da Lei de Cotas busca-se promover a igualdade social. O sistema de cotas leva em conta não só o fato de se ter estudado em escola pública, mas também o percentual mínimo correspondente ou da soma de pretos, pardos e indígenas.
Numerosos são os estudos no Brasil sobre os desafios à constituição de uma sociedade justa e democrática calcadas na igualdade e na justiça racial. A teoria do autor contemporâneo John Rawls, filósofo norte americano, em seu livro clássico, A Theory of Justice (1971), se sobressai entre os que defendem os sistemas de cotas no Brasil. Isto porque na sua concepção de justiça como equidade, as desigualdades sociais e econômicas para serem aceitáveis, devem satisfazer duas condições: estar ligadas a posições abertas a todos, segundo condições de igualdade de oportunidades, e, beneficiar aos membros menos favorecidos da sociedade[1].
Sua teoria pode ser designada como liberalismo igualitário, pois incorpora tanto as contribuições do liberalismo clássico quanto dos ideais igualitários da esquerda, isto porque, pelo primeiro concilia à liberdade, o individualismo, a meritocracia entre outros e pelo segundo os desejos por igualdade social, inerentes aos movimentos de esquerda.
O Sistema de Cotas
O Sistema de Cotas no Brasil está regulamentado pela Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. A Lei garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência[2].
Art. 2o As instituições federais vinculadas ao Ministério da Educação que ofertam vagas de educação superior reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo cinquenta por cento de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, inclusive em cursos de educação profissional técnica, observadas as seguintes condições:
I - no mínimo cinquenta por cento das vagas de que trata o caput serão reservadas a estudantes com renda familiar bruta igual ou inferior a um inteiro e cinco décimos salário-mínimo per capita; e
II - proporção de vagas no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação do local de oferta de vagas da instituição, segundo o último Censo Demográfico divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, que será reservada, por curso e turno, aos autodeclarados pretos, pardos e indígenas[3].
A Teoria de Justiça de John Rawls e o sistema de cotas
O que distingue Raws dos seus teóricos antecessores é o debate que ele faz sobre a justiça. Para ele:
“La justicia es la primeira virtude de las instituciones sociales, como la verdade es de los sistemas de pensamento[5].”
Ou seja, se o sistema de pensamento não produz verdade deve ser rejeitado, assim como se as leis e as instituições de uma sociedade que tem como função básica produzir justiça não o fizerem, também deve ser rejeitada.
O filósofo formulou a teoria da justiça como equidade. Por esta teoria busca ter um entendimento comum sobre o que é justo. Para isso imaginou uma situação hipotética chamada de posição original onde as pessoas escolheriam princípios de justiça. Imbuídos sobre o que chama de um “véu de ignorância”, o que quer dizer que desconheciam qualquer situação que lhes trariam vantagens ou desvantagens na vida social, tais como: classe social, educação, sexo, inteligência, habilidades, religião, riqueza, status, dentre outras. Assim todos nesta posição são considerados livres e iguais. Ou seja, quando somos iguais somos imparciais.
Em se tratando do contratualismo, ele não objetiva fundamentar a obediência ao Estado como os clássicos Hobbes, Locke e Rousseau. A ideia do contrato social é adotada como recurso para justificar um processo de eleição de princípios de justiça.
São dois os princípios de justiça elencados por Raws: da liberdade e da igualdade. Princípio da liberdade. A máxima liberdade assegurada pela sociedade para cada pessoa é compatível com uma liberdade igual para todos os outros. Princípio da igualdade. Representa opções para que a sociedade possa garantir justiça distributiva. Deste se origina o princípios da diferença: onde uma sociedade justa deve promover uma distribuição igual da riqueza produzida socialmente, exceto quando a existência de desigualdades econômicas e sociais beneficiarem os menos favorecidos. Completa esse princípio o da oportunidade Justa, no qual as desigualdades socioeconômicas devem estar ligadas a postos e posições acessíveis a todos em condições de justa igualdade de oportunidades[6].
Utiliza estes princípios como critérios de julgamento sobre a justiça das instituições básicas da sociedade, pois são elas que regulam a distribuição de direitos, deveres e bens sociais. Os princípios podem ser aplicados em várias fases das leis, tribunais, estrutura econômica e política, dentre outros.
No caso do sistema de cotas recém-regulamentado no Brasil, os estudantes de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio, os pretos, pardos e indígenas, se beneficiam com as cotas por serem os menos favorecidos da sociedade de acordo com o princípio de igualdade da teoria de Raws.
Considerações Finais
O sistema de cotas no Brasil sempre foi alvo de críticas e debates pela sociedade e pelos poderes legislativo, executivo e judiciário, gerando diversas ações judiciais e decisões junto ao Supremo Tribunal Federal até o momento da sua regulamentação.
O conhecimento da justiça rawlsiana que pela sua importância na orientação de politicas econômicas e sociais não só estadunidenses como em países de todo o mundo nos permite refletir sobre se uma politica pública pode ser aceitável ou não.
A busca por uma sociedade justa e democrática no Brasil não pode esquecer o longo período de escravidão revelada pela história, período que gerou um atraso gigantesco para as comunidades afrodescendentes. Uma sociedade que foi escravizava, discriminada e excluída, o que causou consideráveis desigualdades sociais.
Ainda hoje se reflete sobre as pessoas que ao nascerem não têm as mesmas oportunidades, ou seja, nem sempre se tem a sorte na vida de nascer no seio de uma família com poderes aquisitivos suficientes para propiciar uma educação de qualidade. Assim não podemos deixar por conta de uma meritocracia a definição de todas as políticas públicas educacionais que buscam a igualdade social. Por isso se justifica a teoria rawlsiana, pois como bem pontua o educador brasileiro Paulo Freire, se a educação sozinha não pode transformar a sociedade, tampouco sem ela a sociedade muda[7]. Também porque o acesso à educação nos permite vivenciar a cidadania plena que nos leva à democracia, reforçando o princípio de igualdade de oportunidades.
Ainda ontem as universidades federais no Brasil que ressaltam em demasia a sua condição de serem públicas e gratuitas, formavam muito mais alunos remanescentes da classe média ou alta da sociedade do que os menos favorecidos oriundos do ensino fundamental e médio de escolas públicas. Pois sem poder aquisitivo para pagar um ensino particular de qualidade e sem poder frequentar as universidades públicas acabavam excluídos do sistema educacional. Neste sentido as Cotas vieram para regularizar tal distorção.
Por fim destaca-se que a Lei nº 12.711, em seu artigo 7º impõe ao Poder Executivo o dever de promover a revisão do programa no prazo de 10 anos. O que significa dizer que por uma década, a sociedade organizada terá a oportunidade de propiciar uma universidade pública aberta às diversidades na busca pela justiça rawlsiana.
[1] RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça/ John Rawls.Tradução. Almiro Pisetta e Lenita M.R Esteves. São Paulo. Martins Fontes, 1997
[2] BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012.Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponible en: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12711.htm > acceso en: 7 de marzo de 2013.
[3] BRASIL, Decreto nº 7.824, de 11 de outubro de 2012. Regulamenta a Lei no 12.711, de 29 de agosto de 2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. Disponible en: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Decreto/D7824.htm> acceso en 8 marzo de 2013
[4] PORTAL DO MEC .Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cotas/ acesso em 8 de março de 2013.
[5] RAWLS, Loc.Cit.
[6] CARVALHO, G.V. A ideia de justiça e a política de cotas raciais no Brasil: Dilemas e perspectivas segundo o pensamento de John Rawls
http://www.domtotal.com/direito/uploads/pdf/6ce6c5de6d2af40b289ed14818e7aeb6.pdf. acceso en 12 marzo de 2013.
[7] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.
Aluna regular do programa de doutorado em direito da Universidad de Buenos Aires (UBA). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Administração Universitária (PPGAU), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Gestão Universitária e Hospitalar, pela UFSC. Especialista em Processo Civil e Bacharel em Ciências Jurídicas pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Graduada em Ciências Econômicas pela UFSC. Técnica em Educação na UFSC. Experiência em Administração Pública, atuando principalmente nas seguintes áreas: gestão universitária, gestão hospitalar, direito administrativo público e direito do trabalho.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Mércia. Lei de Cotas para Universidades Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 nov 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/37089/lei-de-cotas-para-universidades. Acesso em: 31 out 2024.
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