1 Introdução
O aniversário de vinte e cinco anos da nossa Carta da República certamente representa um bom momento que possibilita enxergar os caminhos que ela tem percorrido, as dificuldades pelas quais tem passado, as barreiras que precisam ser superadas e, sobretudo, o descompasso entre algumas de suas promessas e a real consecução dos planos e metas traçados, dada a distância entre as Constituições legal e real, esta última assente na força vida da sociedade.
É preciso reconhecer que, se, por um lado, os anos do regime militar provocaram a obstrução dos canais institucionais de participação política, principalmente os partidos políticos, por outro, ensejaram a multiplicação de entidades setoriais inclinadas a interesses gerais ou a reivindicações específicas, com lastro nos movimentos de negros, de mulheres, de associações religiosas, de preservação do meio ambiente etc, cujo fortalecimento e organização, inelutavelmente, contribuíram para a inserção de um imenso rol de direitos sociais no texto constitucional de 88, os quais nem mesmo as vicissitudes que atingiram a Assembléia Nacional Constituinte lograram desprestigiar.
Neste ponto, impende registrar que os trabalhos da Constituinte foram longos, encerrando-se formalmente a 5 de outubro de 1988, data da promulgação do novo texto constitucional. A ausência de um anteprojeto prévio, dada a rejeição pelo presidente Sarney do trabalho elaborado pela comissão de notáveis constituída para desenvolvê-lo, ajudou a alongar os trabalhos. A isso se somam os obstáculos naturais oriundos da heterogeneidade das visões políticas e a própria metodologia do trabalho, que optou pela fórmula insatisfatória de delegação dos poderes constituintes ao Congresso Nacional (ANDRADE; BONAVIDES, 1991).
O avanço que a Constituição Federal de 1988 representou, no que se refere aos direitos sociais, não foi fortuito e simboliza os desejos latentes do seio social, infelizmente ainda incapaz de vislumbrar de maneira idônea os frutos que o Estado Providência, desde 34, pôs-se a distribuir.
A absorção dessa assertiva é relevante para que se compreenda, absolutamente, que o discurso dos direitos sociais, mormente um país profundamente injusto e desigual, vítima da impotência de sete Constituições que irradiaram nos quatro polos do território nacional várias promessas inalcançáveis, não pode ser relegado a mera ficção ou simbologia, como insistem em proclamar aqueles que não admitem tais direitos como fundamentais, imediatos e exigíveis, negando-lhes, por conseguinte, juridicidade normativa plena.
Nessa linha, há de se indagar acerca do nível de desenvolvimento de nossa sociedade, requisito indispensável para a concretização da justiça social que se pretende alcançar, pois é sabido que a proteção da maioria dos direitos sociais depende de um determinado progresso social cuja solução “desafia até mesmo a Constituição mais evoluída e põe em crise até mesmo o mais perfeito mecanismo de garantia jurídica”, como já ensinava Bobbio (1992, p. 45).
O imenso desafio a superar é agravado pelos limites que se impõem à efetividade dos preceitos sociais, especialmente num Brasil pobre economicamente, carente de políticas estruturais e de planejamento, tradicionalmente comandado por grupos políticos despreparados e não, no todo, preocupados com os interesses nacionais.
Surge, nessa direção, a certeza de que, após a proclamação dos direitos sociais pela positivação constitucional e infraconstitucional, e em face do não cumprimento suficiente de tais mandamentos, a sociedade busca, agora, a efetivação desses direitos, recorrendo ao Poder Judiciário e exigindo-lhe respostas aos problemas esquecidos.
As possibilidades de promover a progressão social, como se vê, circundam-nos. É preciso, todavia, percorrer um árduo e extenso caminho. O presente artigo pretende suscitar reflexões concernentes a alguns pontos pelos quais deve passar a efetivação do constitucionalismo social brasileiro, afastando o singelo discurso obstinado em se guiar nos falaciosos argumentos de que o Estado social está em crise, caduco, impotente, extemporâneo, o que é tão propagado pelo modelo político-jurídico dominante no Brasil, qual seja o liberal-individualista.
2 As limitações impostas à concretização dos direitos sociais e a necessidade de mudança do discurso.
A principal discussão a respeito dos direitos sociais refere-se à aplicabilidade e à efetividade de suas normas, problemática longe de pacificação na doutrina e na jurisprudência brasileira, o que tem impedido a materialização efetiva desses preceitos e, por conseguinte, a consolidação da cidadania social.
Nossa história constitucional mostra que fomos obtendo, gradativamente, êxito em plasmar em nossos textos as reivindicações dos mais diversos segmentos da sociedade no que tange à proclamação dos direitos sociais, e, de fato, consagramos esse itinerário positivo com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que ampliou, a um nível sem precedentes, garantias e princípios inerentes aos ditames sociais.
O enorme abismo a separar texto da realidade social e a persistência do Estado em tornar letras mortas tais dispositivos promissores, contudo, revelam a inocuidade de uma mera declaração de direitos, por mais extensa e explícita que seja, quando inexistem meios políticos, culturais e operacionais para materializá-la. Daí a relevância de compreender a grande diferença entre o que realmente está para a sociedade no plano fático daquilo destituído de efetivação, de inteiro corpo, mas sem alma, despontando a necessidade de abordar a discussão da concretização dos direitos sociais sob a perspectiva da óptica cidadã, ainda tão distante da maioria dos brasileiros.
Interessa-nos, aqui, combater o posicionamento que enquadra os direitos individuais e sociais em categorias distintas de direitos, negando aos últimos a operatividade de que necessitam para sua implementação, retirando-lhes conteúdo e amoldando-os a uma concepção de Estado liberal vinculada à “discursiva jurídica teórico-dogmática, no âmbito jurídico-formalista, que retira dos direitos sociais a sua condição de direitos fundamentais e defende a sua possibilidade de supressão por meio de emenda constitucional” (ESTEVES, p. 28).
É possível dizer que os direitos sociais, intitulados direitos de segunda dimensão ou geração, geralmente exigindo para sua realização uma atuação positiva do Estado, são os que mais se inserem no âmbito da discussão da efetividade, porquanto, em quase sua totalidade, geram maiores dificuldades para sua afirmação do que os direitos ditos de primeira dimensão ou geração, quais sejam os direitos civis e os direitos políticos. Assim, enquanto os direitos de defesa não costumam ter sua plena eficácia questionada, é nos direitos sociais que a discussão atinge os mais diversos posicionamentos, o que permitiu a boa parte da doutrina do século XX negar a “possibilidade de tutela judicial dos direitos sociais e econômicos consagrados nas Constituições, rotulando as normas que os positivavam como de caráter meramente programático” (SARMENTO, p. 391).
Convém lembrar que existe imensa resistência ideológica, já que a inclinação dos direitos sociais para uma transformação do status quo mobiliza contestações dos segmentos privilegiados da sociedade, certamente não desejosos de mudanças. Há também graves barreiras operacionais, devido à natureza eminentemente prestacional desses direitos, que abre espaço para a lógica da eficiência e para o discurso dos custos materiais, chocando-se a almejada efetivação com os obstáculos fáticos inescondíveis. Diante disso, afirma-se que os direitos sociais estão sujeitos à reserva do possível. Com base nesse entendimento, diz Gustavo Guerra que
“os direitos sociais estariam, portanto, "reféns" de opções de política econômica do aparato estatal, eis que a reserva do possível traduz-se em uma chancela orçamentária; trata-se de um princípio (implícito) decorrente da atividade financeira do Estado alusivo à impossibilidade de um magistrado, no exercício da função jurisdicional, ou, até mesmo, o próprio Poder Público, de efetivar ou desenvolver direitos, sem que existam meios materiais para tanto, o que conseqüentemente resultaria despesa orçamentária oficial. “A aferição desta disponibilidade é feita em função do orçamento. Justifica-se que a concessão de determinadas prestações, ou seja, a realização de determinados direitos, pode implicar a inviabilização da consecução de outros".
É falacioso, entretanto, o argumento de que os direitos sociais, por se traduzirem em direitos de cunho naturalmente positivo, a exigirem do poder público comportamento ativo para a materialização de seus preceitos, não ensejam imposição e exigibilidade de prestações por parte do Estado, como se fossem meros enunciados destituídos de eficácia jurídica e fundamentalidade e subordinados à conveniência das políticas estatais.
Tais direitos, na verdade, abrangem tanto direitos prestacionais (positivos) quanto defensivos (negativos), uma vez que sua efetivação pode reclamar tanto uma atuação ofensiva como um agir negativo por parte do Estado. Sem necessidade de maior delineamento, vale lembrar que, no caso da garantia do direito à livre organização sindical e à greve, insculpidos nos arts. 8º e 9º da Constituição, o ideal é a inércia do Estado, e não sua atuação.
Também se constata que não é apenas a implementação de direitos sociais que gera despesas, mas, também, a dos direitos individuais: “assim quando o Estado assegura a liberdade de circulação deve financiar a construção de vias públicas e calçadas, assegurar a iluminação pública, garantir a segurança para que ninguém perturbe o transeunte” (COUTINHO, p. 383). Nessa linha, é grande a quantidade de recursos necessários à manutenção do direito de propriedade,
“segundo o qual o Estado deve intervir para sua garantia por meio de manutenção de um aparato que tem por objetivo impedir a turbação ou o esbulho de terceiros, o qual se efetiva na organização de diversos serviços públicos, pois a esse direito é destinada grande parte da atividade policial, da justiça civil e penal, e também de registro, controle e uso da propriedade móvel e imóvel” (ABRAMOVICJ, 2002, p. 24).
Todos os direitos pressupõem, embora de maneira distinta, intervenção estatal, atuação positiva e negativa, seja exigindo do Estado regulamentação, cumprimento de obrigações e realização de serviços, seja impondo restrições à faculdade de determinadas pessoas e à própria atuação do poder público. Consagrando esse entendimento, intocável a lição de João Martins Esteves (2007, p. 55), para quem:
“[...] apresenta-se superada aquela tradicional tipologia baseada na dicotomia ‘positivos/negativos’ dos direitos fundamentais, e um dos motivos é o fato de quaisquer dos direitos fundamentais podem ensejar uma ação de inércia ou de agir do Estado para sua efetividade, e portanto é inadequada aquela teoria dogmática para o estudo do exercício dos direitos fundamentais. Da mesma forma, mostra-se deslocada da realidade fática a argumentação de que os direitos individuais se diferenciam de direitos sociais por aqueles não ensejarem uma prestação positiva que demande custos e estes, ao contrário, dependerem de gastos do Estado para sua consecução”.
Ingo Sarlet (2002, p. 51), a cujo entendimento aderimos, não admite distinção jurídica entre direitos sociais e individuais no que atine à Constituição brasileira, compreendendo que ambos integram o sistema unitário e aberto dos direitos fundamentais constitucionais, posicionamento que se coaduna com o tipo ideológico de Estado consubstanciado em 88, cuja pretensão não aceita diferenciações entre os direitos que proclama, posto que irrigado por dispositivos de extrema significação que denotam os valores a serem perseguidos: os objetivos e fundamentos da República Federativa do Brasil, sobretudo o princípio da dignidade da pessoa humana, regra da qual derivam todos os direitos, em especial, os direitos sociais.
Não se pode desprezar a existência de limites financeiros para o exercício dos direitos fundamentais – reitere-se que geram gastos a implementação de todos eles. É fato que os Estados atuam consoante as receitas orçamentárias, realizando, excluindo ou restringindo gastos de acordo com as prioridades definidas pelos poderes Executivo e Legislativo, cujas opções políticas devem ser obedecidas.
Sem embargo, a efetivação dos direitos fundamentais sociais não pode ter por barreiras a justificativa de que inexiste previsão orçamentária, ou que ela não foi suficiente para contemplá-los. A elaboração do orçamento deve atender aos mandamentos constitucionais, sem discriminar alguns direitos em detrimento de outros. E o administrador público deve ter “sua discricionariedade limitada á vista dos direitos consagrados na Constituição”, de sorte que o estabelecimento das prioridades orçamentárias deve ser extraído das diretrizes traçadas pelo texto constitucional, sob o risco de eivar-se de inconstitucionalidade. O mesmo se diga do gerenciamento dos recursos orçamentários, que “deve ter por motivação e limite o mesmo comando constitucional, sem o qual também estaria exorbitando a competência delegada constitucionalmente” (ESTEVES, 2007, p. 57).
Importa afastar, desse modo, a principal objeção em relação ao cumprimento dos direitos sociais: o argumento enganoso de que sua satisfação, e somente a deles, vincula-se à disponibilidade de recursos, como se essa condicionante fosse capaz de extrair-lhes a fundamentalidade exigida para sua afirmação. Como adverte Flávia Piovesan,
“Os impedimentos para a implementação dos direitos econômicos e sociais, entretanto, são mais políticos que físicos. Por exemplo, há mais que suficiente alimento no mundo para alimentar todas as pessoas; a fome e a má nutrição generalizada existem não em razão de uma insuficiência física de alimentos, mas em virtude de decisões políticas sobre sua distribuição” (2002, p. 185).
Tenham sido expressa ou implicitamente positivados, todos os direitos sociais são fundamentais, e às suas normas “se deve outorgar a máxima eficácia e efetividade possível, no âmbito de um processo de otimização pautado pelo conjunto de princípios fundamentais e á luz das circunstâncias do caso concreto” (SARLET, 2007, p. 329), sendo possível, no caso de conflitos entre os direitos fundamentais, prevalecer os direitos sociais sobre os individuais, porquanto se encontram todos no mesmo plano hierárquico, emergindo, vê-se, o caminho da ponderação como o melhor modo de satisfazer uma hipótese determinada.
3 O papel do poder Judiciário na realização do Estado social.
É consagrada a função precípua do Poder Executivo de realizador das políticas públicas, sobretudo no que diz com a efetivação dos comandos gerais consignados no ordenamento jurídico e com a implementação dos programas necessários à prestação de serviços para a coletividade.
Além dos pontos por que passa a concretização constitucional do Estado brasileiro, que avaliaremos no tópico seguinte, convém, para que o Executivo possa garantir, ao máximo, os dispositivos do texto constitucional, buscando a completude da promoção social, na linha do que nos interessa nos limites deste artigo, uma atuação contundente dos demais poderes envoltos no jogo democrático.
A atividade fiscalizadora do Poder Legislativo espraia-se de extrema relevância com seu controle sobre a atuação do Executivo na realização dos fins previstos na Constituição, especialmente no que diz respeito aos direitos fundamentais cujo gozo depende tanto ou diretamente da materialização dos comandos do segundo. Na mesma direção, a concepção do Legislativo como o programador dos meios para o desenvolvimento do Estado, a par de sua ligação com os fenômenos da formação do direito positivo, denota sua imprescindibilidade para a formação de uma sociedade democrática.
A indispensabilidade desse Poder para a sustentabilidade do Estado Democrático, todavia, não consegue ocultar sua insuficiência como instrumento de legitimação política. As mazelas que afligem o Congresso Nacional, seja na ausência de vontade política, seja no descaso com o interesse coletivo, seja nas denúncias de corrupção, desnudam o desgaste sofrido hoje por nossos representantes, incapazes de oferecer à população a credibilidade e a confiança de que o jogo ordinário do sistema político democrático necessita. Como afirma Luis Roberto Barroso,
“Não cabe aqui perquirir as razões para esse fato. Mas não se deve omitir uma referência á circunstância de que, dentre todos, o Legislativo é o Poder mais exposto, mais visível, cuja atuação não se desenrola no recesso dos gabinetes, mas em sessões franqueadas e usualmente submetidas ao crivo severo da imprensa. É antes produto de preconceito a avaliação de que o Legislativo é inferior, em sua composição, aos órgãos dos demais Poderes, muito embora, no caso específico do Brasil, disfunções ligadas à patologia do autoritarismo mais recente tenham afastado da saudável militância partidária vocações que aí encontrariam sua melhor expressão” (2006, p. 130-131).
Diante de um Executivo atrelado a acordos políticos e econômicos circunstanciais e de um Legislativo desprestigiado, ganha destaque a figura do poder Judiciário, chamado a materializar as conquistas constitucionalizadas e a promover a cidadania social preconizada pelo texto constitucional. Poder esse tão esquecido nos debates político-jurídicos, fruto talvez da “ignorância sobre o relevante papel que desempenha na defesa dos direitos fundamentais e na construção da democracia, assim como indica o descaso da maioria da população brasileira pela justiça e pela lei (PINHO, 2004, p. 28).
Antoine Garapon identifica a existência de nova concepção de Estado, sugerindo que, “se no século XIX, da ordem liberal, houvera preponderância do Legislativo, e no século XX, sob a égide da Providência, foi a vez do Executivo, o século XXI caminha para ser a supremacia do Judiciário” (1999, p. 227).
Setores conservadores e mantenedores do status quo, contudo, continuam não admitindo a tarefa do Judiciário na resolução dos reclamos sociais, impondo uma resistência claramente intencionada a extirpar desse Poder a função estatal de efetivação dos direitos sociais, como se ele somente se vinculasse a seu papel de legislador negativo, “esperando que lhe seja submetida à análise uma norma positivada a fim de decidir sobre sua constitucionalidade, ou seja, traduz um modelo centrado na lei e não na defesa de direitos” (ESTEVES, 2007, p.69).
Tal entendimento afasta esse poder das novas exigências sociais, cujos proclamos, não encontrando nos demais órgãos estatais a solução desejada para os anseios que as afligem, batem às portas dos magistrados exigindo-lhes a concretização de seus direitos, tão reiteradamente proclamados, mas bastante esquecidos. Essa concepção, tão infiltrada na cultura jurídica brasileira, limita a atuação do Judiciário sob orientações que proíbem o juiz de julgar contra a lei e prestigiam o modelo meramente subsuntivo de aplicação da norma.
É preciso reconhecer as potencialidades do poder Judiciário para a realização do Estado social, afastando-se a concepção liberal-individualista obstinada em compreendê-lo tão somente como instrumento de controle social, de pacificação de conflitos, de obediência aos ditames da lei e de mera garantia dos direitos adquiridos, o que contribui para a manutenção da ordem jurídico-social estabelecida, mas que não atende aos clamores de uma sociedade que se encontra sob a égide de um Estado democrático de direito, cuja função prospectiva, antes de se limitar a estabilizar as relações sociais e políticas vigentes, almeja transformações e progresso, tudo isso consubstanciado na dignidade da pessoa humana, fim e fundamento da Carta da República.
Outro norte deve ser buscado, a conceber nossa justiça mais como meio de direção e promoção social, de correção de desigualdades e consecução de equilíbrio nas relações socioeconômicas que como instrumento tecnicista de garantia de certeza e segurança de direitos já tão historicamente assegurados em nossos ordenamentos. Buscar-se-á, nesse sentido:
“[...] a transformação do juiz um legislador ativo e criativo, consciente de que a justiça não pode ser reduzida a uma dimensão exclusivamente técnica, devendo ser concebida como instrumento para a construção de uma sociedade verdadeiramente justa. [...] capaz de identificar e esclarecer o significado político das profissões jurídicas, possibilitando-lhes assim um distanciamento crítico e uma clara consciência das inúmeras implicações de suas funções em sociedades fortemente marcadas pelo crescente descompasso entre a igualdade jurídico-formal e as desigualdades socioeconômicas” (FARIA, 1989, p. 96-97).
Convém combater, igualmente, as objeções ao papel do Judiciário como controlador das políticas de governo, como se a discricionariedade administrativa pudesse, num Estado democrático de Direito guinado a princípios da magnitude dos da dignidade da pessoa humana, da supremacia do interesse público e da justiça social, fazer a oportunidade e a conveniência das políticas públicas sobrepujar o controle efetivo de que elas não devem prescindir.
Nessa direção, podem e devem sofrer controle jurídico a fixação de metas e prioridades por parte do poder público em matéria de direitos fundamentais; o resultado final das políticas públicas; a quantidade de recursos a ser investida em políticas públicas destinadas à realização de direitos fundamentais, em termos absolutos ou relativos; o atingimento ou não das metas fixadas pelo próprio poder público e a eficiência mínima (entendida como economicidade) na aplicação dos recursos públicos destinados a determinada finalidade (BARCELLOS, 2007, p. 635).
No que se refere ao dogma da separação de poderes, sempre invocado com o condão de impedir a possibilidade do papel construtor e ativo do Judiciário, é importante absorver que o esquema da distribuição de funções estatais, tal como concebida por Montesquieu, na prática, jamais subsistiu. Com efeito, sempre houve penetração entre as funções das três esferas de poder, as quais, como se sabe, exercem, cada uma, tarefas preponderantes, mas não exclusivas, cometendo, todas, funções legislativas, administrativas e judiciárias. Compartilhando essa posição, obtempera Rodolfo de Camargo Mancuso (2014, p. 328):
“Ao contemporâneo Estado Social de Direito não mais contenta uma singela divisão em Poderes (palavra que denota um ranço autoritário, ligado a uma concepção arcaica e estática da Autoridade Pública), mas, antes e superiormente, cabe falar numa divisão em Funções, visão mais afinada com a ideia de um Estado retributivo e prestador, engajado socialmente – o ideário do Welfare State – e comprometido com a consecução de metas e programas adrede estabelecidos, no ambiente de uma desejável telocracia”.
Isso demonstra que todos os órgãos estatais exercem função política, não se podendo admitir os argumentos de que ao Judiciário compete uma função meramente jurisdicional. Inexiste, portanto, separação de poderes estanque que possa suscitar o discurso defensor da manutenção de um modelo organizacional de Estado que não se compatibiliza com as necessidades enfrentadas hoje pelos magistrados, que, vertiginosamente, têm recebido apelos a substancializar, no plano fático, os direitos fundamentais constitucionais. Com a mesma compreensão, Paulo Bonavides (2007, p. 587), para quem a separação de poderes move-se, hoje, no campo dos direitos fundamentais.
De igual modo, é preciso concluir que, em colisão com o princípio da separação de poderes, deve exsurgir a superioridade da preservação(e da consolidação) da dignidade da pessoa humana. Como ensina João Luiz Martins:
“A defesa dessa concepção deve ser buscada no entendimento de que o princípio da separação de poderes não pode ser invocado para inibir a atuação do Judiciário na tarefa que lhe incumbe, de garantidor da Constituição, pelo menos quando o que está buscando garantir, mediante procedimento judicial, é a dignidade da pessoa humana no seu aspecto máximo. A regra contida no art. 2º da CF – que define os poderes da República e proclama a independência harmônica entre eles – é meio e não fim do Estado. Deve ela, pois, ser utilizada para dar concretização á Constituição, mormente para atingir os objetivos contidos no art. 3º, com fundamento nos princípios contidos no art. 1º. E, sendo a mesma regra meio, nunca se poderá dar á separação de poderes caráter absoluto, mas deve aquela constantemente subsumir-se aos objetivos e fundamentos da República Federativa do Brasil, em especial ao princípio da dignidade da pessoa humana (ESTEVES, 2007, p. 69)”.
Nossa sociedade consagrou na Constituição de 1988 a confiança num Poder, até então, raramente mencionado nas discussões do jogo democrático. Surgiu uma nova realidade a compelir o Judiciário a um rompimento com a ordem anterior, o que é explicitamente manifestado nos novos dispositivos que a Carta preceitua, os quais exigem que os magistrados tenham uma formação técnica segura, aliada a uma formação social a fazê-los conscientes politicamente da ética humanista que lhes cobra a função. Luiz Flávio Gomes (1997, p. 68) disserta acerca da necessidade de conscientização de nossa magistratura no que atine à sua função na sociedade:
“É de suma importância que o juiz tenha consciência crítica da própria função que desempenha, é dizer, na medida em que aplica cega e automaticamente a legislação elaborada pelo Poder Público, sem nenhuma consideração com as normas, princípios constitucionais ou tratados internacionais, no âmbito dos direitos humanos, especialmente, corre o risco de cumprir o simples papel de mero instrumento de reprodução das relações de dominação. [...] A concretização da vontade declarada na Constituição seria, nesse sentido, uma obra aberta confiada ás futuras gerações, ás quais competiria garantir a efetividade do sistema de direitos constitucionalmente assegurados por meio dos recursos procedimentais dispostos em seu próprio texto. A política se judicializa a fim de viabilizar o encontro da comunidade com seus próprios propósitos, declarados formalmente na Constituição.”
É importante lembrar que nosso texto constitucional vigente, entendendo que a proteção aos direitos fundamentais deve vir também pela atuação do Judiciário, ampliou a jurisdição constitucional, estendendo o controle concentrado de competência do Supremo Tribunal Federal. Tangente à garantia constitucional das liberdades, ampliou os remédios constitucionais, criando o mandado de segurança coletivo, o habeas data e o mandado de injunção. Deu maior relevância à ação popular, legitimando-a para a proteção do patrimônio histórico-cultural e para a moralidade administrativa.
Isso tudo desnuda a importância que deve adquirir tal Poder para ser verdadeiramente percebido como figura ativa e confiável na proteção das expectativas por igualdade, norteando sua função mais para a transformação social, no sentido de viabilizar o cumprimento das metas enunciadas e perseguidas pela Lei Maior, porquanto, em uma sociedade de interesses cada vez mais complexos e conflitantes, onde a essência das diferentes reivindicações já não se esgota, de todo, nos textos da lei, qualifica-se como imprescindível a figura de um rearranjador a proferir a decisão final, que deve ser justa o suficiente a promover o equilíbrio que a desigualdade das relações socioeconômicas do país exige.
4 Análise da efetivação dos direitos sociais nos 20 anos da Carta da República.
A sumária discussão que tecemos, no primeiro tópico, a respeito da problemática da concretização dos direitos sociais buscou combater a principal contestação em relação à exigibilidade e ao cumprimento desses direitos, afastando o argumento corriqueiro que defende sua subordinação, e unicamente a deles, às disponibilidades materiais e econômicas e, nessa linha, à discricionariedade dos poderes públicos, no sentido de que sua natureza prestacional vinculada à atividade mediadora do Estado insere-se na esteira da reserva do possível, não conferindo ao titular do direito, sempre, a possibilidade de demandar-lhes a pretensão, subtraindo-lhes, por conseguinte, o imediatismo e a exigibilidade que sua condição de direitos fundamentais requer.
Não há como ocultar, no entanto, a certeza de que, se, por um lado, existem direitos sociais geradores de uma fruição imediata, a exigir do Estado essencialmente uma abstenção, como é o caso do direito de liberdade sindical, por outro, sua quase absoluta maioria enseja a exigibilidade de prestações positivas, de sorte que se deve observar sua natureza para não se deixar levar pela fantasia de enxergar, sempre, a possibilidade de gozar de sua garantia imediata, vez que sua quase totalidade, repita-se, depende de inegáveis condicionantes.
Nessa linha, temos, de todo modo, apesar do entendimento aqui adotado, na esteira do pensamento de Sarlet, de que não se admitem, na atual ordem constitucional brasileira, discriminações jurídicas entre direitos sociais e individuais, que compreender tais direitos de modo diverso, ao menos no que tange às controvérsias que sua abordagem sempre provoca, como já dito por Alexy (2002, p. 430):
“los derechos a acciones positivas comparten problemas que no pesan em absoluto o no pesan com la misma intensidad sobre los derechos a acciones negativas. Los derechos a acciones negativas impoen límites al Estado em la persecución de sus fines. No dicen nada acerca de los fines que tiene que perseguir. Em cierto modo, los derechos a acciones positivas imponen el estado la persecución de determinados objetivos. Por ello, em todos los derechos a acciones positivas del Estado se plantea el problema de saber si y em qué medida se puede y se debe imponer la persecución de fines del Estado a través de derechos subjetivos constitucionaes de los ciudadanos.”
Essa digressão é relevante para que procedamos ao ponto de maior discussão do presente tópico: uma análise da concretização dos direitos sociais no Brasil nestes vinte e cinco anos de Constituição, na qual nos utilizaremos de alguns elementos-chave para justificar a opção de estudo, semelhante ao pensamento de Flávio Pansieri, de que, nesses anos, “os direitos sociais foram efetivados nos limites da concretização constitucional brasileira”.
Neste particular, diga-se que este tópico terá, basicamente, como fonte o trabalho de Flávio Pansieri – Direitos Sociais, Efetividade e Garantia nos 15 anos de Constituição-, contido na obra “Constitucionalizando direitos: 15 anos da Constituição Brasileira de 1988”, em que o autor sistematiza sua Teoria Pragmática da Concretização Constitucional. Prosseguiremos, no entanto, a uma análise levemente diferençada, em que nos utilizaremos de divisões tópicas e de nomenclaturas a nosso ver mais adequadas à persecução dos objetivos, os quais, de todo, assemelham-se aos do autor, de cuja idéia essencial não nos desvirtuamos. Ademais, não deixa de ser curioso que a principal fonte por nós utilizada para o desenvolvimento deste tópico é um trabalho de 2003, no completar dos 15 anos da Constituição Federal de 1988, o qual, como se perceberá, subsiste contemporâneo e adequado para as reflexões que pretendemos provocar.
Prosseguiremos, nessa direção, a avaliar os pontos relevantes para a concretização constitucional do Estado Brasileiro, cuja completude por eles há de se alcançar, quais sejam: o conhecimento, o planejamento e a maturidade.
Em primeiro lugar, o acesso do cidadão ao conhecimento de suas necessidades, possibilidades e limites é fundamental para sua inserção como sujeito participante e transformador do meio social, vez que o alcance desse saber certamente o levará a melhor compreender seus direitos, pressuposto intangível para que possa efetivamente pleiteá-los. Tal conhecimento é algo a se buscar e a ser considerado quando pensamos o limite da concretização dos direitos sociais nesses anos de Constituição.
Com efeito, afirma Pansieri que “a passagem para se notar quais são os direitos, as possibilidades e as necessidades de cada cidadão é lenta, observando-se, ainda, que faz muito pouco tempo que se saiu de um Estado onde o pensar e o tomar conta de si era algo proibido por aqueles que controlavam o poder (2003, p. 397).
No ponto do planejamento, discute-se a harmonização da vontade política com a capacidade de gerenciamento econômico e financeiro do Estado, já que, sem uma economia estável e solidamente planejada, não há como se falar de completude dos direitos sociais, pela necessidade cada vez maior de o poder público dispor de recursos para a implementação de metas e objetivos.
Em nosso país, a idéia de estruturação econômica como pressuposto para o desenvolvimento social ainda é recente, e, como ensina Gilberto Bercovici:
“A falta de consenso em torno da própria Constituição é patente: nenhum governo pós-1988 assumiu com o discurso da implementação e da concretização da Constituição, mas todos, sem exceção, praticaram e praticam o discurso das reformas constitucionais.[...] não conseguimos obter um consenso mínimo para estabelecer, a partir das bases constitucionais, um projeto nacional de desenvolvimento.[...] A crise do planejamento no Brasil, apesar da Constituição de 1988, só será superada com a reestruturação(para não dizer restauração) do Estado brasileiro, no contexto do tão necessário e adiado projeto nacional de desenvolvimento (2003, p. 327-328). ”
A busca pela efetividade dos direitos sociais, nesse diapasão, passa necessariamente pelo amadurecimento das políticas econômicas do Estado e essencialmente pelo planejamento nacional em longo prazo.
Por último, o ponto da maturidade concerne à concepção do amadurecimento do político, realizador da gestão da coisa pública, e do povo, destinatário dos direitos sociais, possível e necessário participante transformador da realidade circundante.
Quanto ao primeiro, para que se possa falar sobre a máxima efetivação dos direitos sociais, há de se perquirir acerca da formação e da informação pertinentes aos nossos políticos, efetivos realizadores das políticas públicas. Programas de capacitação e gerenciamento devem ser disponibilizados pelo governo e pela sociedade aos municípios, para que se possa melhorar a qualidade desses que são os substanciais incumbidos dos programas estatais. Nessa linha, “para que se possa falar sobre a máxima efetividade dos direitos sociais, teremos antes que ter uma sociedade capacitada para cuidar de si mesma, pronta para gerenciar suas potencialidades” (PANSIERI, 2003, p. 399).
Quanto ao povo, seu amadurecimento liga-se à ideia de sua conscientização como sujeito de direitos, idôneo a influir no seu meio com o condão de modificar a sociedade. A organização da sociedade civil é imprescindível para a exigência do cumprimento dos deveres do Poder Público. Essa fiscalização popular constitui poderoso instrumento de controle da concretização do próprio Direito, porquanto inexiste possibilidade de concretizar a Constituição sem uma cidadania participativa. Aduz Pansieri (2003, p. 405-406):
“Em todos os pontos da teoria temos a figura do povo como destinatário e catalisador dos Direitos Sociais, como no Ponto da Conscientização, no qual este que é o destinatário deve tomar a consciência da sua possibilidade de participação; para que possa chegar a ponto do amadurecimento do popular, onde este participando da sociedade transformará seu meio, promovendo com que os que participam do poder político tenham claros seus deveres como efetivadores dos direitos sociais alcançando o ponto de amadurecimento do político, até chegar ao ponto estrutural onde teremos operadores da coisa pública preparados para pensar um país a longo prazo com um verdadeiro plano de desenvolvimento social. Sem observarmos estes preceitos em momento algum poder-se-á avaliar a real efetividade dos direitos sociais em nosso país”.
Infere-se que, se hoje não coexistimos com a igualdade material almejada pelo texto constitucional, vez que não há tutela efetiva do Estado em propiciar a seus cidadãos as condições mínimas para o desenvolvimento e para o usufruto dos direitos fundamentais, a fim de realizar a inserção do povo na sociedade, revela-se injusto desconsiderar os limites fáticos que ainda impedem a eclosão da transformação que o país, de fato, precisa.
O itinerário dos direitos sociais, nesses vinte e cinco anos de Constituição, tem alcançado progressos inegáveis, em que pesem os gravíssimos problemas ainda incrustados no cenário socioeconômico do país e que atropelam o postulado constitucional da dignidade da pessoa humana. Se é evidente que não logramos maior êxito, não por isso deixaremos de felicitar-nos com o caminho que já traçamos e com a certeza de que é possível crer albergar os pontos que, conjugados, hão de gerar completude aos ditames constitucionais e à concretização mais satisfatória dos direitos sociais.
5 Considerações finais: o povo como núcleo concretizador dos direitos fundamentais sociais.
A Carta da República de 88, mais do que qualquer uma das que a antecederam, erigiu os direitos sociais a um nível de elevada amplitude. A inédita separação dos títulos da ordem econômica e da ordem social, o acolhimento dos direitos fundamentais sociais expressamente no título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), o grande alargamento do rol desses direitos inseridos no texto constitucional e o engajamento em um compromisso de realização social, consubstanciado seja nos fundamentos da República (cidadania e dignidade da pessoa humana), seja nos objetivos fundamentais desta (“construir uma sociedade justa, livre e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”), denotam, de antemão, a preocupação do constituinte em materializar o postulado da justiça social, a depender de mudanças substantivas que vinham sendo pleiteadas desde a década de 70, às quais os congressistas de 87/88 não se mostraram, de todo, alheios.
Todos esses aspectos positivos, porém, não conseguem empanar a certeza de que ainda não fomos exitosos na implementação da democracia social que nosso texto constitucional enfaticamente preconiza. As determinações da Lei Maior, com efeito, ainda não foram e estão longe de ser plenamente satisfeitas, não adquirindo, nesse passo, existência real para enorme parte dos brasileiros, o que permite assinalar, em absoluto, que a previsão e a positivação de direitos são incapazes, por si sós, de fornecer o maquinário suficiente para sua efetivação.
Nessa linha, diante de um quadro de alargamento das tarefas do Estado, resultado da evolução vertiginosa das cadeias econômicas, sociais e tecnológicas que desenham a contemporaneidade, exigindo, em contraposto, a necessidade de regulamento de condutas e de circunstâncias inéditas e em constante transformação e de impor uma agenda prospectiva inclinada a converter em realidade os enunciados do texto constitucional, emerge a importância de um poder destinado a manter o equilíbrio do jogo democrático, a engendrar programas positivos no seio social, a concretizar promessas aparentemente inalcançáveis e a servir de contrapeso às injunções eventualmente violentadoras do Estado de Direito.
Tal constatação, diga-se, ganha relevo em um país cuja história política e constitucional revela a instabilidade de nossas instituições, o desprestígio e a inocuidade funcional dos poderes majoritariamente políticos, o lamentável desapreço com que sempre foi tratado nosso aparato jurídico-legal e, por conseguinte, os imensos obstáculos à concretização dos direitos fundamentais.
Em cena o Poder Judiciário, ganha consistência a necessidade de conformar o clássico modelo da separação dos poderes à realidade vigente, pois já não se trata, primordialmente, de limitar poderes ou frear abusos, mas, sim, de realizar as tarefas almejadas pela Constituição Federal, que impõe a força vinculante de seus preceitos e a superioridade de seus princípios.
Inadmissível, portanto, o argumento da falta de legitimação democrática quando, com efeito, a própria Lei Maior, conhecedora das vicissitudes dos demais poderes da República, deposita no Poder Judiciário as esperanças de sua própria efetivação, buscando vislumbrá-lo como o arquiteto social da força viva brasileira e o guardião da fundamentalidade dos enunciados constitucionalmente plasmados.
Por outro lado, convém considerar que uma Constituição de um Estado Social de Direito que pretenda garantir, no plano fático ou material, sua força normativa, não pode negligenciar o nível de desenvolvimento social, econômico e cultural da comunidade. Essa assertiva desponta principalmente no âmbito dos direitos sociais, em que a problemática da capacidade prestacional do Estado atrela-se à disponibilidade de recursos, contribuindo para nutrir os cômodos argumentos dos que defendem a supressão dos direitos sociais consagrados na Constituição, enxergando-os como responsáveis pela “ingovernabilidade” do Brasil e de muitos outros países.
Permanece, nessa linha, o desafio de reconhecer que somos todos responsáveis pela efetividade dos direitos sociais, pois crer na existência de um Estado onipotente que resguarda, a todo tempo, bens e interesses jurídicos de toda a comunidade corresponde a acreditar que o único inimigo da Constituição Federal é o poder público “incompetente e amoral”. Seria pensar que os direitos todos caem do céu, esquecendo a ignorância, o descaso e a falta de cidadania que, muitas vezes, habitam em cada um de nós, constituindo verdadeiros obstáculos à realização satisfatória de tais direitos. Nesse sentido:
“os direitos, todos os direitos, porque não são dádiva divina nem frutos da natureza, porque não são auto-realizáveis nem podem ser realisticamente protegidos num estado falido ou incapacitado, implicam a cooperação social e a responsabilidade individual (NABAIS)”.
Em outro passo, não se pode aceitar a alegação da inviabilidade dos direitos subjetivos a prestações materiais, valendo-se dos limites fáticos da reserva do possível, sob pena de esvaziamento absoluto da eficácia dos direitos sociais. Se se verificam as dificuldades atuantes diretamente sobre a problemática desses direitos, emerge, outrossim, o grau de responsabilidade e de sensibilidade daqueles que foram incumbidos da tarefa de garantir o cumprimento da Constituição, de modo que, em se tratando do reconhecimento de um direito subjetivo a certa prestação social, assume lugar de destaque o princípio da proporcionalidade, que servirá de parâmetro no indispensável processo de ponderação de bens que se impõe em um conflito específico de valores.
Por derradeiro, é alentador reconhecer que a sociedade brasileira está mudando, alimentando, progressivamente, o processo de aquisição de consciência a respeito de seus direitos, sobretudo aqueles mais intimamente vinculados ao postulado da dignidade da pessoa humana, cuja irradiação nitidamente a faz perceber que é preciso avançar no sentido de organizar-se para reivindicar tudo que pareça razoavelmente aceitável para a construção do mínimo de que necessita. Isso tem cedido lugar a “uma nova sociedade de indivíduos associados, que começam a descobrir a importância da solidariedade” (DALLARI, 2001, p. 66).
A relevância da participação democrática no debate constitucional urge necessária, comprometendo sociedade e governo a promoverem a efetividade dos ditames constitucionais e, por conseguinte, a democratização dos direitos sociais, o que é capaz de propiciar o gozo satisfatório dos direitos e das garantias individuais, permitindo-nos vislumbrar o devaneio que o desfecho ideal da construção da cidadania sugere.
Finalizando, transcrevemos trecho do jurista Dallari (2001, p. 66), que de maneira otimista, afirma:
“A utopia de um país de pessoas realmente livres, iguais em direitos e dignidades, começou a despontar. As barreiras do egoísmo, da arrogância, da hipocrisia, da insensibilidade moral e da injustiça institucional, que até hoje protegeram os privilegiados, apresentam visíveis rachaduras. Já começou a nascer o Brasil de amanhã, que por vias pacíficas deverá transformar em realidade o sonho, que muitos já ousam sonhar”.
Trecho esse que, a despeito de ter sido escrito há relativa parcela de anos, mostra-se tão condizente com a realidade contemporânea que sequer enxergamos necessidade de digressão a seu respeito. Acreditemos, pois, na realização do sonho a que alude Dallari...
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Juiz de Direito Substituto do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Ex-Advogado da União. Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (CE). Pós-Graduado em Processo Civil pela Faculdade Christus (CE). Pós-Graduado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF). Autor do livro: Constitucionalismo, direitos sociais e atuação do Poder Judiciário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Lucas Sales da. Uma análise dos direitos sociais nos 25 anos da Constituição Federal de 1988: desafios, limites e possibilidades Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 abr 2014, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/38980/uma-analise-dos-direitos-sociais-nos-25-anos-da-constituicao-federal-de-1988-desafios-limites-e-possibilidades. Acesso em: 02 nov 2024.
Por: Elisa Maria Ferreira da Silva
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