RESUMO: Este artigo tem por objetivo tratar do direito estadunidense, analisando e detalhando sua estrutura. Assim, o trabalho se destina, de modo geral, à explanação daquele ordenamento jurídico, com todas as suas nuances; para tanto, serão observados os seguintes objetivos específicos: examinar sua progressiva evolução, apresentando a trajetória desde o século XVII, passando pela independência americana até chegar aos dias atuais; discorrer sobre a estrutura do direito aplicado nos Estados Unidos, incluindo a distinção entre o direito federal e o dos Estados, além da unidade fundamental da ordem jurídica americana, e suas fontes – jurisprudência e legislação. A pesquisa empreendida tem caráter sócio-jurídico, é essencialmente bibliográfica e jurisprudencial e utiliza o método de abordagem dedutivo, bem como os métodos de procedimento histórico, comparativo e hermenêutico. Inicialmente, realiza-se a análise do ordenamento juríd; ico norte-americano, a partir de sua evolução histórica e configuração atual; em seguida, é feito um estudo acerca de sua organização estrutural. O estudo deve contribuir para esclarecer os juristas acerca de um direito tão diferente do brasileiro, dando-lhes uma noção de direito comparado, a fim de aumentar-lhes os horizontes do conhecimento.
Palavras-chave: Direito Estadunidense. Common Law. Estrutura.
1. INTRODUÇÃO
No artigo que ora se apresenta, cuidar-se-á do direito aplicado nos Estados Unidos, tendo em vista a enorme diferença com o direito brasileiro, uma vez que o primeiro decorre do sistema anglo-saxônico ao passo que o segundo se originou do romano-germânico.
A relevância desta investigação se desdobra em duas vertentes, pois que tanto permite um maior conhecimento acerca daquele ordenamento jurídico alienígena, quanto permite uma avaliação individual do leitor acerca dos acertos e erros do supracitado direito e de que modo este pode influenciar positivamente o sistema adotado no Brasil.
Nesse diapasão, pretender-se-á, de um modo geral, analisar o direito americano, com base em sua evolução histórica, nos corpos legais que os tutelam e no entendimento dos tribunais, além de trazer a exposição doutrinária existente sobre a temática.
Com relação à natureza da pesquisa, realmente é de cunho sócio-jurídico, uma vez que o aspecto social emerge da importância de se ter uma noção sobre direito comparado, especialmente no mundo globalizado dos dias atuais.
No que tange ao método de abordagem, será utilizado essencialmente o indutivo, porque através dele serão analisadas decisões jurisprudenciais tomadas em casos concretos, bem como proceder-se-á ao estudo das teorias existentes, com o fito de estabelecer as regras gerais que tutelam o mencionado direito.
Os métodos de procedimento utilizados serão: o histórico, mediante o qual será feita a análise pormenorizada da evolução do ordenamento jurídico estadunidense e das consequências decorrentes de tal progresso; o comparativo, que permitirá verificar as diferenças em relação ao sistema romano-germânico e o hermenêutico, considerado essencial em todo desenvolvimento de pesquisas jurídicas.
A técnica de coleta de dados será, em suma, a pesquisa bibliográfica, através da qual serão selecionadas informações sobre o tema, aglutinadas em livros e artigos jurídicos.
2. HISTÓRIA
2.1. Século XVII
Nos primeiros núcleos de população inglesa no território estadunidense, aplicava-se a common law quando os súditos ingleses se estabelecessem em territórios que não estivessem submetidos a nações civilizadas, conforme previsto no caso Calvin[1].
No entanto, havia uma restrição: a common law só seria utilizada na medida em que suas regras fossem apropriadas às condições de vida reinantes nas colônias, o que não ocorria na América do século XVII.
Praticamente, não havia juristas nem a preocupação de mandá-los vir ou instruir; as regras desse sistema foram elaboradas por e para uma sociedade feudal, de cujo tipo as instituições americanas estavam muita afastadas; os problemas apresentados aos colonos eram novos, aos quais a common law não dava respostas satisfatórias.
O direito aplicado na prática na ex-colônia inglesa era bastante primitivo, inclusive, em certas regiões, era baseado na Bíblia, reduzindo-se, geralmente, ao poder arbitrário dos magistrados, ao qual se reagiu com a codificação do direito, cujo principal interesse residia mais no conteúdo que na própria ideia que inspirava tais códigos: os colonos consideravam favoravelmente a lei escrita.
2.2. Século XVIII
Com a melhoria das condições de vida dos colonos e a transformação da sua economia e das suas concepções, sentiu-se, nas colônias, a necessidade de um direito mais evoluído.
A common law começou a ser utilizada como proteção das liberdades públicas contra o absolutismo real. Além disso, passou a ser considerada um elo entre tudo o que era inglês na América, face às ameaças vindas da Louisiana e do Canadá franceses.
Assim, surgiu um movimento a favor da aplicação mais geral da common law e os tribunais americanos manifestaram a intenção de utilizar diversas leis inglesas.
2.3. Independência americana
A independência americana criou para as ex-colônias inglesas condições inteiramente novas. A ameaça francesa desapareceu completamente com a aquisição da Louisiana pelos Estados Unidos, em 1803.
A França tornou-se para os Estados Unidos uma amiga e uma aliada: os sentimentos hostis ficaram reservados para a Inglaterra. Com a independência política recentemente adquirida, surgiu um sentimento de harmonia e era necessário tornar popular a ideia de autonomia do direito americano.
O ideal republicano e o sentimento do direito natural deviam fazer ver com bons olhos a codificação; as Declarações dos Direitos e a Constituição dos Estados Unidos eram completadas pelos códigos.
Até meados do século XIX, travou-se uma luta na América entre os que preferiam o direito inglês e os defensores da codificação. Numerosos territórios foram anexados à União, sendo que neles era aplicado, pelo menos em teoria, o direito francês ou espanhol, de tradição romano-germânica.
2.4. Triunfo da common law
Os Estados Unidos acabaram se mantendo com a common law, à exceção do território de Nova Orleans, que se tornou, em 1812, o Estado da Louisiana.
Os outros territórios anexados, teoricamente, eram submetidos às leis francesas, espanholas ou mexicanas, mas, na realidade, estas normas eram aí desconhecidas. Por toda parte, impôs-se a preponderância das concepções admitidas nas antigas colônias e estas continuavam ligadas ao sistema da Inglaterra.
A língua e o povoamento originariamente inglês dos Estados Unidos mantiveram-no na família da common law e as obras magistrais de certos juristas asseguraram a adesão daquele país a esse sistema.
Houve também a influência das Escolas de Direito, que apenas conheceram uma verdadeira expansão depois da Guerra de Secessão, mas que, desde o início da independência, contribuíram para a formação de especialistas, mediante um ensino fundado sobre a common law.
Entretanto, muitas de suas regras nunca chegaram a ser introduzidas nos Estados Unidos, pois não se adaptavam às condições prevalecentes na América. Outras regras de direito inglês não foram admitidas porque a sua origem não era judiciária.
O direito inglês aplicado na América era o que vigorava na Inglaterra na época em que a primeira estava sob a dominação da segunda. O desenvolvimento dos dois direitos, inglês e americano, tornou-se independente desde o advento da soberania americana em 1776: as leis posteriores a esta data eram seguidas sem questionamentos.
Durante muito tempo, a Inglaterra foi, para os juristas americanos, um modelo. O avanço que esse país tinha nos planos econômico-culturais e o atraso das universidades e da doutrina americanas levaram os juízes e juristas dos Estados Unidos a seguir muito de perto esse modelo e a harmonizar a evolução do direito americano com a do direito inglês, mesmo quando essa conduta deixou de ser obrigatória para eles.
As reformas de estrutura realizadas no direito inglês, no decurso do século XIX, tiveram, de modo geral, o seu equivalente nos Estados Unidos: a atenção dos juristas passou a se voltar para a substância do direito e não mais para a administração da justiça; houve a abolição da dualidade de jurisdições de common law e equity[2].
Ademais, manifestou-se nos diversos Estados uma tendência a favor de certa racionalização; procurou-se libertar o direito de soluções arcaicas, revogando leis antiquadas e buscou-se simplificar o conhecimento do direito, apresentando regras sob uma forma sistemática, por meio de uma obra de consolidação.
O século XX foi também marcado, nos Estados Unidos e na Inglaterra, por uma nova tendência para organizar e reformar a sociedade por intermédio do direito, que aparece como um instrumento adequado para criar uma sociedade de tipo novo. Um “poder administrativo” se desenvolveu, tanto a nível federal, quanto em cada Estado, ao lado dos três poderes tradicionais.
A princípio, o afastamento entre os direitos inglês e americano era devido essencialmente à impossibilidade de aplicar na América o direito da Inglaterra. Atualmente, a diferença é devida a um conjunto de fatores: a Inglaterra é uma ilha, enquanto os Estados Unidos são massa continental, menos dependente dos vizinhos imediatos; a Inglaterra é um país de tradição, ao passo que os Estados Unidos repudiam o jugo colonial, voltando as costas às tradições muito antigas.
Ademais, a Inglaterra é uma monarquia sob o regime político parlamentar; já os Estados Unidos são uma república e possuem regime presidencial; a Inglaterra adota a forma de Estado unitária; por outro lado, os Estados Unidos são um Estado Federal.
Vale lembrar ainda que sua população difere nos seguintes aspectos: número, composição étnica, filiação religiosa, nível de vida, aspirações e sentimentos. Os próprios conceitos e a teoria das fontes do direito, bem como na prática, divergem, nos dois países.
3. ESTRUTURA DO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS
3.1. Distinção entre direito federal e direito dos Estados
Os Estados Unidos, por serem uma federação, apresentam a pendência das atribuições respectivas das autoridades federais e dos Estados. Em primeiro lugar, trata-se de saber, para cada caso, se as leis ou regulamentos devem ser elaborados pelas autoridades federais ou pelas dos Estados.
A questão dos respectivos domínios do direito federal e do direito estatal apresenta um segundo aspecto. Ao dizer-se sobre que matérias o Congresso pode legislar, ou a administração federal fazer regulamentos, não se resolveu, com efeito, o problema, em um país onde o direito não é considerado legislativo.
Em 1792, a décima emenda à Constituição dos Estados Unidos especificou que a competência legislativa dos Estados é a regra e a das autoridades federais, a exceção, sempre fundada sobre um texto constitucional.
Isso porque as 13 colônias, até a Guerra da Independência, viveram de modo quase independente umas das outras e tinham pouco em comum, não havendo entre ela nenhum elo político.
A competência dos Estados não está excluída, mesmo nas matérias em que o Congresso pode legislar. O que não lhes é permitido é a elaboração de disposições contrárias às do direito federal.
Contudo, o princípio da competência residual dos Estados comporta alguns limites. Mesmo na ausência de leis federais, não se permite aos Estados legislarem contra o espírito da Constituição, nem provocarem entraves ao comércio interestadual.
Em algumas ocasiões, julgou-se que uma lei do Estado podia ser inconstitucional, ainda que não fosse incompatível com as disposições do direito federal, porque o domínio no qual ela interviera devia ser considerado como totalmente coberto pelo direito federal em vigor.
Como já foi dito, existe, nos Estados Unidos, uma dupla hierarquia de jurisdições: as federais e a dos Estados. Aquelas podem julgar litígios referentes a questões de direito federal e estas, que envolvam matérias sobre as quais o Congresso não pode legislar: basta para isto que as partes sejam naturais de Estados diferentes e que o contencioso tenha certa importância.
Apesar do exposto acima, o sentimento dominante entre os estadunidenses de hoje é sua participação no Estado federal constituído pelos Estados Unidos, mais que sua ligação com determinado Estado.
Em 1789, foi promulgada uma lei federal com o escopo de dissipar toda dúvida quanto à solução a ser adotada. Essa disposição determinou que, exceto quando existisse lei federal, dever-se-ia aplicar o direito de um Estado.
A tese de que, na ausência de lei, as jurisdições federais reencontravam sua liberdade, constituindo uma ordem autônoma de jurisdições e, consequentemente, não estando obrigada pelas jurisdições dos Estados, foi defendida pelo juiz Story e obteve adesão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos em um acórdão célebre: Swift v. Tyson (1842).
Tal solução nunca obteve alcance geral e, mesmo com abrangência restrita, ela encontrou sempre poderosas resistências. Isso porque, na prática, originava uma dualidade injustificável de soluções jurídicas, um litígio arriscava-se a ser resolvido por dois modos diferentes, consoante fosse atribuído a uma jurisdição de Estado ou federal.
Constitucionalmente, parecia certo que, ao prever-se a competência das jurisdições federais para o caso de diversidade de cidadania, apenas se pretendera assegurar um justiça igual aos pleiteantes oriundos de dois Estados; não se pretendera autorizar a criação de um direito federal nas matérias em que o Congresso não podia legislar.
Nesse sentido, uma sentença proferida em 1938, no caso Erie Railroad Corporation v. Tompkins, insurgiu-se contra a noção de common law federal. À falta de uma lei escrita, argumentou-se que o juiz federal devia aplicar a lei geral dos Estados Unidos e não, a jurisprudência especial do Estado da Pensilvânia, onde se iniciou a questão.
Porém, o Supremo Tribunal discordou daquele argumento, anulou a decisão proferida e enviou o assunto a um Tribunal de Apelos, para que este estatuísse segundo a common law da Pensilvânia.
Assim, determinou-se que, salvo nas matérias regidas pela Constituição federal ou pelas leis do Congresso, o direito de um Estado particular deve ser aplicado em todas as espécies. Daí surgiu o princípio de que não existe common law federal geral, o qual está firmemente estabelecido no direito americano hoje.
Há, entretanto, exceção para certas temáticas que são de competência legislativa das autoridades federais. A questão é mais delicada quando se trata de matéria para qual o poder federal não estabeleceu regras. Admitiu-se, nesse caso, que os juízes possam decidir em nome de uma common law federal.
Do ponto de vista jurídico, há diferenças entre os direitos dos diversos Estados, as quais resultam de suas leis e da maneira como interpretam a common law. Divergem, assim, de Estado para Estado, a organização judiciária e administrativa, o processo civil e o criminal, o regime matrimonial, direito das sociedades e o direito fiscal.
3.2. Unidade fundamental do direito dos Estados Unidos
Existe, apesar de todas as divergências, uma unidade no direito estadunidense, a qual deriva de certo número de fatores institucionais, mas, sobretudo de um estado de espírito que reina no povo e nos juristas americanos.
Os fatores institucionais impedem o surgimento de divergências fundamentais entre os direitos dos diferentes Estados e impõem a estes o respeito aos princípios gerais, quer se considere o direito jurisprudencial ou o legislativo desses Estados.
Quanto ao estado de espírito, os juristas dos Estados Unidos aceitam que as leis possam ser diferentes entre os diversos Estados da União, desde que certos princípios sejam respeitados, mas não admitem que uma interpretação diversa possa ser dada à common law.
As jurisdições federais não estão autorizadas a criar um sistema de direito próprio: elas devem sempre julgar, quando não existe direito federal, aplicando o direito de um Estado.
Porém, isso não significa que os direitos dos diversos Estados sejam inteiramente estranhos uns aos outros, pois, na solução de conflitos, parte-se do postulado de uma unidade fundamental do direito americano, a qual somente os legisladores dos diversos Estados podem questionar.
Daí se tira que a unificação do direito americano deve ser realizada pela aproximação dos direitos dos cinquenta Estados: as jurisdições federais não devem procurar realizá-la, elaborando, ao lado do direito dos Estados, um direito federal.
Os conflitos de leis, por outro lado, são regulados por cada Estado. Hodiernamente, um movimento doutrinário, consagrado pela jurisprudência de diversos Estados, repudiou o método tradicional das regras de conflito em benefício da pesquisa, em cada caso, da lei que tenha uma relação mais significativa com a questão litigiosa, considerando as ligações da situação e das políticas seguidas pelas leis em conflito.
Não obstante, o Supremo Tribunal nunca interveio no domínio do conflito das leis para promover regras uniformes, apesar das possibilidades que lhe atribuem certas disposições da Constituição.
4. FONTES DO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS
4.1. Jurisprudência
Os juristas estadunidenses consideram como forma ordinária de explicação do seu direito a regra jurisprudencial, todavia, os Supremos Tribunais não se encontram vinculados pelos seus próprios precedentes.
Frise-se que a organização judiciária norte-americana adotou um sistema em que os pleiteantes podem submeter às jurisdições federais a apreciação dos litígios em primeira instância, criando uma dupla hierarquia.
As jurisdições federais são múltiplas, podendo ser divididas em dois grupos: as tradicionais, classificadas como de direito comum, e as especiais. As primeiras comportam em sua base tribunais de distrito, cujas decisões podem ser revistas mediante recurso para os Tribunais de Apelos que, por sua vez, têm suas sentenças revisadas pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos.
Via de regra, os juízes de distrito estatuem na qualidade de juízes únicos, são itinerantes e realizam pelo menos uma audiência por ano em cada uma das subdivisões do distrito.
Nos distritos mais povoados, tais magistrados são assistidos por comissários – que podem julgar em seu lugar nas causas menos importantes – e um clerk (normalmente um jovem jurista recém formado da universidade), que prepara o trabalho do juiz.
Nada obstante, diferentes medidas são tomadas para evitar o acúmulo de causas, dentre elas, a obtenção de um writ of certiorari, fazendo valer razões especiais e importantes para que o tribunal conheça uma questão e dê a seu respeito uma decisão adequada.
Por sua vez, as jurisdições especiais possuem tribunais criados por leis federais diversas e podem desempenhar as seguintes funções: substituir as jurisdições do Estado nos distritos ou territórios federais, julgar os casos em que a responsabilidade do Estado está comprometida, ou decidir sobre matéria fiscal, alfandegária, de licenças e patentes.
Esses tribunais têm, às vezes, competência exclusiva; em outros casos, o autor pode escolher entre o tribunal especial e o de distrito. Há ainda a competência atribuída pelas leis especiais a numerosos organismos administrativos e em particular às grandes comissões federais ligadas ao Congresso dos Estados Unidos.
Tanto num quanto noutro caso, é sempre possível uma apelação a um dos tribunais federais tradicionais: ou aos distritais ou diretamente aos de apelação ou mesmo ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos.
Cada Estado tem uma organização judiciária que lhe é própria. A hierarquia normal comporta três graus: um supremo tribunal, um tribunal de recurso e uma jurisdição de primeira instância. Entretanto, em pouco mais de um terço dos Estados não existe tribunal de recurso intermediário, havendo, portanto, apenas dois graus de jurisdição.
No que toca ao júri, este é garantido, nas jurisdições federais, pela própria Constituição americana (emenda VII): “um cidadão pode exigir que a questão seja julgada por um júri, desde que o interesse me litígio seja superior a 20 dólares, com a condição de que não se trate de um processo de equity”.
As jurisdições federais podem ser consultadas apenas nos casos em que a Carta Magna dos Estados Unidos, ou uma norma do Congresso, apoiando-se nessa Lei Maior, as reconheçam competentes.
Tal competência ocorre em virtude da natureza do litígio – questões que ponham em jogo a Constituição federal ou uma lei federal – ou dos pleiteantes – questões nas quais são interessados os Estados Unidos, ou um diplomata estrangeiro, ou um litígio entre cidadãos pertencentes a dois Estados diferentes da União. Nesses dois últimos casos, a questão deve apresentar um interesse de pelo menos dez mil dólares.
Só excepcionalmente as jurisdições federais gozam de uma competência exclusiva, pois, na maioria das vezes, as partes podem consultar as jurisdições dos Estados (cerca de 95% das questões são julgadas pelas jurisdições dos Estados). Quando se trata de questões que são da exclusiva alçada estatal, a decisão da jurisdição estadual é definitiva e não pode ser objeto de recurso.
Apesar da preponderância da jurisdição estadual, as questões que estão no primeiro plano da atualidade política – as que interessam às liberdades públicas, à integração racial, à aplicação das leis anti-trust, aos direitos de defesa e à conformidade das leis à Constituição federal – são, geralmente, julgadas pelas jurisdições federais e dependem da competência, em última instância, do Supremo Tribunal dos Estados Unidos.
Na base da jurisprudência americana se encontra a regra do stare decisis[3], que busca garantir a segurança das relações jurídicas, mas evitando que se estabeleçam diferenças irredutíveis entre o direito aplicado nos diversos Estados. Os juristas estadunidenses porão em destaque o rigor ou flexibilidade necessários do direito jurisprudencial, conforme os casos.
Contudo, a norma do stare decisis comporta uma limitação: os Supremos Tribunais dos Estados Unidos e dos diferentes Estados não estão vinculados as suas próprias decisões e podem desviar-se da sua jurisprudência.
As mudanças de jurisprudência não são raras e explicam-se principalmente pela maneira flexível como o Supremo Tribunal dos Estados Unidos concebe a interpretação da Constituição daquele país.
Da parte dos Supremos Tribunais dos Estados, as mudanças jurisprudência são devidas à pressão de opinião dos juristas e ao desejo de alinhar o direito de um Estado com a corrente dominante que prevaleceu nos outros, restabelecendo assim a unidade da common law.
Salvo as duas exceções indicadas, os Supremos Tribunais dos Estados, preocupados em não comprometer a segurança das relações jurídicas, apenas admitem com extrema dificuldade desvios na sua jurisprudência. Na prática, estabeleceu-se um equilíbrio entre as necessidades contraditórias de segurança e de evolução, que são os dados constantes da vida do direito.
Atuando como um tipo de digesto, está o Restatement of the Law, que consiste em uma publicação privada que visa expor as regras da common law americana sobre direito dos contratos, da representação, dos conflitos de lei, dos delitos civis, dos direitos reais, dos seguros, dos quase-contratos, dos trusts e dos julgamentos.
O Restatement procura, nas matérias em que as intervenções do legislador não foram muito numerosas, expor, de modo tão exato quanto possível, as soluções que estão em maior harmonia com o sistema da common law americana e que, por conseguinte, merecem ser consagradas pelos tribunais americanos.
Todavia, o Restatement não é utilizado como um código. Mesmo que seja frequentemente citado nos acórdãos, não é a partir dele que juristas e juízes americanos chegam à solução que lhes parece conforme o direito.
4.2. A legislação
O desenvolvimento das tendências dirigistas aumentou a importância da lei nos Estados Unidos, fazendo com que a evolução do direito, em múltiplos setores, passasse a ser comandada pela legislação.
Esse fenômeno se enquadrou em uma série de fatos que contribuíram, depois da independência americana, para dar relevo à escrita, sendo o mais importante deles a existência de uma Constituição Federal, dotada de uma Declaração dos Direitos, que serve de base para as instituições americanas e de fundamento das liberdades públicas americanas.
A Constituição dos Estados Unidos, promulgada em 1787, é o próprio ato de fundação do seu país, não se limitando a organizar suas instituições políticas, mas também fixando os limites dos poderes reconhecidos às autoridades federais nas suas relações com os Estados e com os cidadãos. Além disso, garantiu que alguns dos direitos naturais dos cidadãos não fossem violados ou postos em cheque pelas autoridades dos Estados.
Aquela Carta Magna visa diretamente resolver litígios, estabelecendo as regras gerais de organização e de conduta dos governantes e dos administradores. Por isso, não se poderia tratá-la como as outras leis, que procuram retificar um direito de essência jurisprudencial, formulando regras detalhistas.
Ela foi interpretada, por princípio, com grande flexibilidade e todo o desenvolvimento do direito americano foram comandados pela interpretação dada pelo Supremo Tribunal a certas fórmulas da Constituição americana.
Nada obstante, a simples leitura dos textos não permite dizer se uma lei ou uma determinada ação das autoridades federais está ou não conforme a Constituição estadunidense e onde se encontram os limites entre direito federal e direito dos Estados.
Não se hesitou, nos Estados Unidos, no que concerne à Constituição federal, em rejeitar os axiomas clássicos, vendo nas leis os corretivos e as adjunções da common law e preconizando uma interpretação restritiva dos textos legislativos.
A lei fundamental norte-americana é formada por várias fórmulas gerais, referentes ao comércio, a observância das formas impostas nas leis, igual proteção das leis, penas cruéis e inusitadas, dentre outras.
O comércio, na época da Constituição, era essencialmente local, ao passo que hoje ignora as fronteiras dos Estados. Por isso, tornou-se mais desejável submetê-lo internamente a uma regulamentação uniforme.
A interpretação da cláusula do comércio mostra como as relações entre direito federal e direito dos Estados foram modificadas. Em primeiro lugar, extraiu-se dela o princípio de que uma lei estadual seria inconstitucional e não deveria ser aplicada se causasse entraves ao comércio internacional ou interestadual.
Atualmente, a adoção por todos os Estados, exceto pela Louisiana, do Código Comercial Uniforme, permitiu harmonizar o direito destes em áreas importantes do direito comercial. Apesar disso, continuam regidas pelo direito dos Estados: o direito dos contratos comerciais, cambiário, das sociedades.
Outra importante fórmula geral está prevista nas quinta e décima quarta emendas à Constituição, segundo a qual ninguém pode ser privado da vida, da liberdade ou de seus bens sem que as formas que se impõe legalmente tenham sido observadas.
Isso significa simplesmente que a privação da liberdade ou a expropriação deve ser regular, conforme o direito. As restrições feitas à liberdade ou à propriedade dos cidadãos apenas seriam reconhecidas como legítimas por ele se fossem, de acordo com a sua apreciação, razoáveis. A autonomia dos Estados foi consideravelmente reduzida, em muitos setores, por essa interpretação à fórmula do due process of law.
Ademais, a Constituição estadunidense garante a todos os cidadãos que eles serão, em cada Estado, tratados de igual modo pelas leis. Por exemplo, no que se refere à cor, inicialmente o Supremo Tribunal americano admitiu o princípio “separados, mas iguais”, que hoje é repudiada.
Por sua vez, a oitava emenda proscreve as penas cruéis e inusitadas. Nesse sentido, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, em 1972, declarou inconstitucional a lei da Califórnia que reconhecia a pena de morte, porque essa norma não estabelecia critérios claros que permitissem determinar, sem risco de decisão discricionária, em que caso o acusado poderia ser condenado à morte o à prisão.
Considerando as críticas a essa decisão, aquela Corte reviu a questão e, em um acórdão de 1976, reconheceu a constitucionalidade das leis que em vários Estados previam a pena de morte, porque essas leis precisavam com clareza os critérios para sua aplicação.
Nem em 1972, nem em 1976 o Supremo Tribunal decidiu que a pena de morte era constitucional ou não, por se tratar de uma pena cruel e inusitada em si mesma.
Sob outro prisma, o princípio do controle judiciário da constitucionalidade das leis foi estabelecido, a partir de 1803, pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos, ainda que nenhum texto lhe tenha dado expressamente esse poder.
Ele se consolidou na América, sem qualquer oposição, a propósito da famosa questão Marbury v. Madison[4], em que, longe de pretender afirmar a sua supremacia, o Supremo Tribunal julgava inconstitucional uma lei que lhe outorgava certos direitos.
Ressalte-se que o Supremo Tribunal controla, além das normas jurídicas, a constitucionalidade e a maneira como as diversas jurisdições concebem a common law. Assim, qualquer decisão judiciária pode ser anulada se for julgada contrária a uma regra prescrita pelas Constituição dos Estados Unidos.
Esse controle é o instrumento pelo qual se impõe às jurisdições e ao legislador o respeito de certos princípios fundamentais, assegurando, assim, a uniformidade do direito nos Estados Unidos.
Quanto aos métodos flexíveis usados para interpretar a lei fundamental americana, eles não foram estendidos às constituições dos Estados, até porque estas não têm a mesma importância política daquela. As normas escritas, diferentes da Carta Magna estadunidense, são plenamente integradas no direito apenas quando seu alcance for determinado por decisões judiciárias.
Tais processos interpretativos levaram, nos Estados Unidos, ao desenvolvimento, especialmente no plano federal, de grande variedade de repartições públicas, comissões, tribunais administrativos. Através deles, aliviaram-se os tribunais estabelecidos e assegurou-se o funcionamento das novas leis, especialmente nos domínios econômico e social.
A doutrina moderna considera que se desenvolveu um quarto poder, o administrativo, confiado ao Presidente dos Estados Unidos, distinto dos três tradicionais. Ele é exercido em colaboração e sob o controle de certo número de grandes comissões instituídas pelo Congresso.
Esses organismos federais permanentes estão habilitados a estabelecer regulamentos e resolver litígios. O novo corpo de direito, lei administrativa, é de caráter meio administrativo, meio jurisdicional, como a antiga equity, mas é elaborado e administrado por organismos que funcionam sob o controle dos tribunais de justiça tradicionais.
Atualmente, a proliferação das leis é considerável nos Estados Unidos, fato que tornou necessárias certas medidas, visando pôr em ordem o direito legislado, de modo a facilitar aos cidadãos e aos juristas o seu conhecimento. Compilações, oficiais ou privadas, foram elaboradas para esse fim.
Uma codificação de tipo napoleônica[5] foi outrora considerada na América, existindo, assim, códigos civis, penais, e de processo civil e penal em certo número nos Estados americanos.
Porém, como não se consideram como plenamente normais regras que não sejam jurisprudenciais; vê-se nos códigos uma simples obra de consolidação e não, como nos países de família romano-germânica, um ponto de partida para a elaboração e o desenvolvimento de um novo direito. A lei não tem sentido enquanto não for interpretada pelos tribunais, exceto na Louisiana, onde continuam as ligações com a tradição romano-germânica.
A expansão de normas jurídicas apresenta um problema particular nos Estados Unidos, visto que as leis daquele país são, por um lado, federais, por outro, estaduais. Teme-se que a uniformidade da common law seja posta em perigo pelo fato de leis diferentes poderem intervir nos diversos Estados para modificar as suas regras ou introduzir-lhes complementos.
Dois meios foram postos a funcionar concomitantemente para que tal fato fosse evitado. O primeiro consistiu em propor aos Estados a adoção de leis-modelo uniformes em certas matérias em que a prática reconhecia a necessidade de uma intervenção legislativa, como o comércio, o crédito ao consumidor, o direito penal, o processo criminal e o direito das provas.
Porém, os progressos são difíceis e lentos quanto à questão em debate. Além de ser difícil fazer votar uma lei uniforme, nada garante que ela seja interpretada de mesmo modo em todos os Estados. Enfim, hesitar-se-á em modificar um texto sujeito à crítica, temendo destruir uma dificuldade dificilmente obtida.
Um segundo meio consiste em fazer intervir o Congresso dos Estados Unidos ou a administração federal. Uma considerável modificação foi efetuada no que diz respeito às respectivas competências do direto federal e do estadual, independentemente de qualquer mudança formal na Constituição.
É por esse meio – estendendo os poderes das autoridades federais – que se dá, principalmente, satisfação à necessidade de uniformidade do direito.
5. CONCLUSÃO
Nos primeiros núcleos de população inglesa no território estadunidense, aplicava-se a common law quando os súditos ingleses se estabelecessem em territórios que não estivessem submetidos a nações civilizadas, conforme previsto no caso Calvin.
No decorrer do tempo, a common law começou a ser utilizada como proteção das liberdades públicas contra o absolutismo real. Com a independência americana, surgiu uma corrente favorável à codificação do direito.
Até meados do século XIX, travou-se uma luta na América entre a common law e o direito positivo, mas o primeiro prevaleceu.
Entretanto, muitas regras do direito inglês nunca chegaram a ser introduzidas nos Estados Unidos: o desenvolvimento dos dois direitos, inglês e americano, tornou-se independente desde o advento da soberania americana em 1776.
Quanto à estrutura, o direito estadunidense é divido em duas competências legislativas: a federal e dos Estados, sendo a segunda a regra e a primeira, a exceção, sempre fundada sobre um texto constitucional.
A unificação do direito americano deve ser realizada pela aproximação dos direitos dos cinquenta Estados: as jurisdições federais não devem procurar realizá-la, elaborando, ao lado do direito dos Estados, uma common law federal. Os conflitos de leis, por outro lado, são regulados por cada Estado.
Em relação às fontes, a jurisprudência se destaca como personagem central, todavia, os Supremos Tribunais não se encontram vinculados pelos seus próprios precedentes.
Já a lei ganhou importância com o desenvolvimento das tendências dirigistas, fazendo com que a evolução do direito, em múltiplos setores, passasse a ser comandada pela legislação. Ressalta-se, ainda, a Constituição federal de 1787, vigente até os dias atuais.
Assim, procurou-se expor de forma detalhada e fundamentada, através desta pesquisa, a relevância do direito aplicado nos Estados Unidos para o mundo atual, especialmente pelo destaque assumido por esse país na História.
Nesse sentido, o direito americano influenciou o ordenamento jurídico de diversos Estados, inclusive o brasileiro, em especial no que se refere ao controle difuso de constitucionalidade e ao stare decisis, que cada vez mais ganha força no Brasil.
6. REFERÊNCIAS
CHURCHILL, Winston. A History of The English-speaking Peoples. Vol. único. Henry Steele Commager, 1994.
DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. 3. ed. São Paulo: Martis Fones, 1998.
WADY, Ariane Fucci. Qual o significado do “stare decisis”? 26 de fevereiro de 2009. Disponível em: <http://ww3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20080620130914 881&mode=print>. Acesso em: 24 de julho de 2014.
[1] O caso Calvin — também conhecido como o Caso dos Pós-nascidos — foi uma decisão legal inglesa de 1608, a qual estabelecia que a criança nascida na Escócia, após a União das Coroas em 1603, seria considerada pela common law como um súdito inglês e faria jus aos benefícios da lei inglesa. Os princípios criados no mencionado julgado foram eventualmente adotados pelas cortes nos Estados Unidos e o caso desempenhou um papel importante na moldagem da regra americana sobre direitos de cidadania pelo nascimento via jus soli. No entanto, o caso também é citado por justificar legalmente a restrição dos direitos dos nativo-americanos após sua colonização pelos ingleses.
[2] Nas jurisdições que seguem a common law, equidade é o conjunto de máximas que estão acima da lei e de onde flui toda a legislação civil.
[3] Consiste no comando mediante o qual as Cortes devem dar o devido peso e valor ao precedente, de forma que uma questão de direito já estabelecida deveria ser seguida sem reconsideração, desde que a decisão anterior fosse impositiva. Tal regra assegura que o direito não se altere de forma errática e permite que a sociedade presuma que os princípios fundamentais estão fundados no direito, ao invés das inclinações ou voluntariedades pessoais dos indivíduos.
[4] O caso Marbury v. Madison é considerado a principal referência para o controle de constitucionalidade difuso exercido pelo Poder Judiciário. Nesse julgado, criou-se o precedente para a judicial review, isto é, a possibilidade de o Judiciário rever os atos do Congresso praticados em ofensa à Constituição.
Na eleição presidencial estadunidense de 1800, Thomas Jefferson derrotou John Adams. Após a derrota, este resolveu nomear vários juízes em cargos relevantes, para manter certo controle sobre o Estado, dentre eles, William Marbury, nomeado Juiz de Paz. O secretário de justiça de John Adams, devido ao curto espaço de tempo, não entregou o diploma de nomeação a Marbury.
Já com Jefferson presidente, seu secretário de justiça, James Madison, negou-se a intitular Marbury, que apresentou um writ of mandamus perante a Suprema Corte exigindo a entrega do diploma. O juiz relator, John Marshall, concluiu que a lei federal que dava competência à Suprema Corte para emitir mandamus contrariava a Constituição Federal e, como a lei que dava competência a Suprema Corte era inconstitucional, não cabia à Suprema Corte decidir o pedido do mandamus.
[5] Expondo segundo um plano sistemático as regras do direito em geral, e não apenas as regras legislativas em vigor.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: QUEIROGA, Ana Beatriz Ximenes de. Direito dos Estados Unidos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 jul 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/40319/direito-dos-estados-unidos. Acesso em: 23 dez 2024.
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