INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo examinar a quem compete, em face da Constituição Federal e da legislação de regência, a prestação dos serviços de iluminação pública de trecho de rodovia federal que perpasse o perímetro urbano do Município: ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), na condição de administrador das rodovias federais e de entidade executiva rodoviária da União, ou ao próprio ente municipal.
DESENVOLVIMENTO
Para melhor compreensão do tema, convém trazer à baila o disposto no art. 30, inciso V, da Constituição Federal, in verbis:
Art. 30. Compete aos Municípios: (...)
V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
Do teor do dispositivo acima transcrito, infere-se que a competência do ente municipal para a prestação direta ou delegada de serviços públicos toma por base a existência, ou não, de interesse local na execução desses serviços.
Sobre o assunto, leciona José dos Santos Carvalho Filho[1]:
A Constituição não se limitou a garantir ao Município a competência para legislar sobre assuntos de interesse local (art. 39, I) e de suplementar a legislação federal e estadual (art. 30, II). Previu também algumas competências para a organização e prestação de serviços públicos de interesse local, reforçando a competência privativa contemplada no inciso I do art. 30.
A título de exemplo, lembre-se o inciso V do mesmo art. 30, que confere ao Município competência para “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”. Outro exemplo significativo é o do inciso VIII, que dispõe: “promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual”.
Não há dúvida de que, no cenário da partilha de competências, a Constituição não relegou o Município à condição de simples partícipe do regime federativo, nem tampouco ao status de entidade menor subordinada à União e ao Estado. No sistema adotado, é possível verificar, numa interpretação global, que certas competências municipais são intangíveis e até mesmo se sobrepõem às das outras pessoas políticas, quando se trata de exclusividade da competência. Assim, ao referir-se aos serviços locais, a Constituição, como observa ALEXANDRE DE MORAES, foi além da fórmula genérica do interesse local, prevista no art. 30, I.
A competência do Município para a organização dos serviços locais cabe exclusivamente a ele, tanto quanto lhe cabe, da mesma forma, fixar a estrutura, projetar as diretrizes e adequar a prestação dos referidos serviços. Na correta advertência de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “a liberdade na organização desses serviços está no cerne da autonomia municipal tal qual a garante a Constituição federal. Dessa forma, não parece lícito ao Estado federado reduzi-la”. 28 Tampouco à União, acrescentamos nós, porquanto a salvaguarda da autonomia não pode ser atingida por qualquer outra unidade federativa. (grifo nosso)
Acerca da expressão “interesse local”, leciona Alexandre de Moraes que “Apesar de difícil conceituação, interesse local refere-se àqueles interesses que disserem respeito mais diretamente às necessidades imediatas dos municípios, mesmo que acabem gerando reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União), pois, como afirmado por Fernanda Dias Menezes, ‘‘é inegável que mesmo atividade e serviços tradicionalmente desempenhados pelos municípios, como transporte coletivo, polícia das edificações, fiscalização das condições de higiene de restaurante e similares, coleta de lixo, ordenação do uso do solo urbano, etc., dizem secundariamente com o interesse estadual e nacional”[2]
No mesmo sentido, Hely Lopes Meirelles afirma que "o interesse local se caracteriza pela predominância e não pela exclusividade do interesse para o município, em relação ao do Estado e da União. Isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau, e não de substância."[3]
Nesse contexto, evidente se mostra que, no tocante ao serviço de iluminação das vias públicas municipais, a despeito dos reflexos interesses estadual e nacional, predominam as necessidades imediatas e o consequente interesse direto do Município, tratando-se, pois, de serviço público de interesse local para os fins do art. 30 da Constituição Federal. Portanto, compete aos Municípios organizar e prestar aludido serviço, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão.
Essa competência municipal restou reforçada, inclusive, pela Emenda Constitucional n.º 39, de 19 de dezembro de 2002, por meio da qual fora autorizada pela Constituição Federal a instituição, pelos Municípios e pelo Distrito Federal, da chamada Contribuição para o Custeio dos Serviços de Iluminação Pública – COSIP, na forma do seu art. 149-A, a seguir transcrito:
Art. 149-A Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 39, de 2002)
Parágrafo único. É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 39, de 2002)
Caberá, assim, a cada Município e ao Distrito Federal, por meio da respectiva legislação, definir os elementos indispensáveis à exigência do tributo, cujos recursos arrecadados estão atrelados, segundo a Constituição, ao custeio dos serviços de iluminação pública prestados pelo referidos entes da federação.
Dúvidas inexistem, pois, de que, em se tratando de serviço de interesse local, o serviço de iluminação das vias e logradouros públicos situados nos limites municipais compete à municipalidade. Justamente por isso, o simples fato de se situar, no perímetro municipal, um bem ou obra de infraestrutura de titularidade da União ou de um Estado não tem o condão de eximir o Município de sua obrigação constitucionalmente posta de prestar, também no que se refere a esses bens, os serviços públicos de iluminação.
Destarte, uma rodovia estadual ou federal que perpasse o município, ou, ainda, praias e terrenos de marinha situados no município, por exemplo, porque reputados espaços públicos, utilizados predominantemente pelos munícipes, devem ter sua iluminação provida pelo ente local.
Em outras palavras, ainda que o trecho de rodovia que se localiza no perímetro urbano do Município seja de titularidade da União, essa circunstância, por si só, não afasta a presença do interesse local e a respectiva competência do Município para a prestação dos respectivos serviços de iluminação pública. Não se pode olvidar, inclusive, que há casos em que rodovias federais perpassam a zona urbana do Município de tal modo que terminam por constituir verdadeiras vias de tráfego municipal. Admitir que o Município não tem competência para prover esse tipo de vias de iluminação pública, pelo simples fato de se tratar de uma rodovia federal, afronta, isso sim, a própria segurança do trânsito e da população municipal.
É possível crer até mesmo que, em trevos rodoviários de acesso à zona urbana municipal, onde, normalmente, o trânsito de moradores da região é mais intenso, deve ser reconhecida, em regra, a competência do Município para prestação dos respectivos serviços de iluminação pública.
Ademais, é de se ter em vista que o Código de Trânsito Brasileiro (Lei n.º 9.503, de 23 de setembro de 1997) atribui aos Municípios integrados ao Sistema Nacional de Trânsito a competência para o planejamento, o projeto, a operação e a fiscalização do trânsito no âmbito de suas atribuições, compreendida, por certo, a implantação e manutenção dos sistemas e serviços destinados à segurança no trânsito, como a iluminação pública nos cruzamentos, nas vias com intenso movimento de pedestres ou nas vias que, por qualquer motivo, exijam iluminação artificial para a segurança dos usuários.
É o que se extrai do art. 24 do aludido diploma legal, in verbis:
Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:
I - cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito de suas atribuições;
II - planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas;
III - implantar, manter e operar o sistema de sinalização, os dispositivos e os equipamentos de controle viário;
(...)
XIV - implantar as medidas da Política Nacional de Trânsito e do Programa Nacional de Trânsito;
(...)
§ 2º Para exercer as competências estabelecidas neste artigo, os Municípios deverão integrar-se ao Sistema Nacional de Trânsito, conforme previsto no art. 333 deste Código.
Outrossim, deve-se considerar a inexistência de previsão legal que atribua ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), na condição de entidade executiva rodoviária da União, o dever de providenciar, em qualquer caso, a iluminação das vias federais, tanto que a maior parte delas é destituída dessa utilidade.
Assim, é dos Municípios a competência constitucionalmente definida para organizar e prestar os serviços de iluminação pública dentro dos seus limites territoriais, ainda que a via a ser iluminada se trate de trecho de rodovia federal que perpasse o seu perímetro urbano, o que, por si só, não afasta o interesse local na prestação desse serviço público pela municipalidade.
Essa conclusão, entretanto, não implica dizer que o DNIT não pode ou não deve promover a iluminação de rodovias federais sob sua atribuição.
Nesse ponto, convém invocar as precisas lições de Fabio Marcelo de Rezende Duarte[4], ex Procurador-Chefe Nacional do DNIT, nos seguintes termos:
Com efeito, de acordo com o disposto na Lei n. 10.233, de 05/06/2001, o DNIT é a entidade responsável pela execução da política rodoviária federal, devendo atender os objetivos essenciais do Sistema Nacional de Viação, especialmente aqueles que visem garantir a operação racional e segura dos transportes de pessoas e bens (art. 80 c/c art. 4º, inciso II).
Por outro lado, o Código de Trânsito Brasileiro prescreve que o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotarem as medidas destinadas a assegurar esse direito, sob pena de responderem por danos causados aos cidadãos em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito ao trânsito seguro (art. 1º e §§ 2º e 3º).
Estabelece, ainda, o CTB que trânsito é a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga e descarga (§ 1º do art. 1º), devendo as ações e projetos públicos priorizar a defesa da vida (§ 5º do art. 1º).
É certo que o CTB proíbe a instalação de luzes nas vias públicas, mas somente quando possa gerar confusão, interferir na visibilidade da sinalização ou comprometer a segurança do trânsito (art. 81). Assim, quando a iluminação da via tiver por objetivo garantir maior segurança do trânsito, lícito é concluir, a contrário sensu, pela sua possibilidade.
Forte nessas diretrizes legais, tanto o extinto DNER como o próprio DNIT sempre se ocuparam de promover a iluminação de trechos rodoviários quando necessários à garantia da segurança do trânsito, especialmente em trechos urbanos, onde a concentração de pessoas e atividades das mais variadas impõe e exige maior cuidado, bem assim em túneis, pontes ou viadutos. Não é em vão que o Glossário de Termos Técnicos Rodoviários em vigor na Autarquia contenha o seguinte verbete:
“Iluminação de Rodovia. Iluminação aplicada a trechos rodoviários, quando necessária à segurança do trânsito.”
No referido verbete, constam, ainda, as expressões equivalentes no espanhol (iluminacion de carretera), no francês (éclairage de la route) e no inglês (road lighting), demonstrando que a pratica da iluminação de trechos rodoviários é internacional, desde que “necessária à segurança do trânsito”.
(...)
Assim, a segurança pública do trânsito no local se superpõe a qualquer outra consideração, não sendo admissível que o DNIT mantenha-se passivo quando possui o dever legal de garantir esse direito. Por que irá a Autarquia suplicar direitos se o que tem é o dever de garantir aos usuários do trecho urbano federal o exercício do direito ao trânsito seguro? (grifos nossos)
A esse respeito, é de se observar, ainda, que, a Lei n.º 10.233, de 05 de junho de 2001, ao criar o DNIT, reservou à autarquia, em seu art. 82, inciso IV, a responsabilidade pela administração, manutenção, conservação, restauração e reposição de rodovias federais, prevendo, ainda, em seu art. 82, § 3º, ser “atribuição do DNIT, em sua esfera de atuação, exercer, diretamente ou mediante convênio, as competências expressas no art. 21 da Lei no 9.503, de 1997”, a saber:
Art. 21. Compete aos órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:
I - cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito de suas atribuições;
II - planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas;
III - implantar, manter e operar o sistema de sinalização, os dispositivos e os equipamentos de controle viário;
X - implementar as medidas da Política Nacional de Trânsito e do Programa Nacional de Trânsito;
XI - promover e participar de projetos e programas de educação e segurança, de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo CONTRAN;
Parágrafo único. (VETADO) (grifo nosso)
Destarte, enquanto administrador das rodovias federais e entidade executiva rodoviária da União, compete legalmente ao DNIT zelar pelo direito ao trânsito seguro em sua esfera de atuação, de modo que é juridicamente possível à autarquia promover, no exercício do quanto previsto no art. 21 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), diretamente ou por meio de convênios, a iluminação das rodovias públicas, inclusive nos trechos que perpassem o perímetro urbano de Municípios, desde que isso se mostre necessário à garantia da segurança do trânsito no local.
Essa conclusão, registre-se, não afasta a competência constitucionalmente conferida aos Municípios para organizar e prestar, regra geral, os serviços de iluminação pública desses mesmos trechos de rodovias federais.
CONCLUSÃO
Ante o exposto, conclui-se que a prestação do serviço de iluminação pública das vias situadas dentro dos limites do Município, por se tratar de serviço público de interesse local, competem a este ente federativo, ainda que se trate de trecho de rodovia federal que cruze o seu perímetro urbano, com fulcro no art. 30, inciso V, da Constituição.
Todavia, nada impede que o DNIT, no exercício do quanto previsto no art. 21 do CTB, enquanto administrador das rodovias federais e entidade executiva rodoviária da União, promova, diretamente ou por meio da celebração de convênios, a iluminação das rodovias federais sob sua atribuição, inclusive nos trechos que perpassem área municipal, desde que essa medida se mostre relevante, em cada caso concreto, para o resguardo da segurança do trânsito no local.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. O Município e o enigma da competência comum constitucional. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina. Florianópolis/SC. v. 20. n. 26. 2013. www.revista.esmesc.org.br/re/article/download/70/64. Data de acesso: 08/12/2014.
DUARTE, Fabio Marcelo de Rezende. Orientações jurídicas sobre a infraestrutura de transportes: uma gestão de desafios. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1996.
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2007.
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. O Município e o enigma da competência comum constitucional. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina. Florianópolis/SC. v. 20. n. 26. 2013. www.revista.esmesc.org.br/re/article/download/70/64. Data de acesso: 08/12/2014. p. 24/25.
[2] MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2007, p. 299.
[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 121.
[4] DUARTE, Fabio Marcelo de Rezende. Orientações jurídicas sobre a infraestrutura de transportes: uma gestão de desafios. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 67/69.
Procuradora Federal. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito do Estado pela Faculdade Baiana de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Caroline Marinho Boaventura. Da competência para prestação do serviço de iluminação pública em trechos de rodovias federais situadas no perímetro urbano do município Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/42332/da-competencia-para-prestacao-do-servico-de-iluminacao-publica-em-trechos-de-rodovias-federais-situadas-no-perimetro-urbano-do-municipio. Acesso em: 23 dez 2024.
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