A guilhotina, como instrumento utilizado para aplicar a pena de morte por decapitação na idade média, por mais paradoxal que possa parecer, representou uma das contribuições humanatárias mais importantes no campo da execução da pena durante a fase do iluminismo.
Foi o médico francês Joseph-Ignace Guillotin (1738-1814) que sugeriu o uso deste aparelho na aplicação da pena de morte, embora não fosse ele o inventor desse método. Guillotin considerava esta forma de execução mais humana do que o enforcamento ou a decapitação com um machado. Na realidade, a agonia do enforcado podia ser longa: em certas decapitações, o machado não cumpria seu papel ao primeiro golpe, o que aumentava consideravelmente o sofrimento da vítima. Guillotin estimava que a instantaneidade da punição era a condição necessária e absoluta de uma morte decente.
Sem dúvida, o iluminismo abriu, pela primeira vez na história das ciências políticas e sociais, um grande e vigoroso debate sobre a pena de morte, largamente utilizado pelas legislações penais. A imortal obra de Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, “Dos Delitos e das Penas”, publicada em Milão no ano de 1764, constituiu a síntese do pensamento penal renovador. O “pequeno grande livro”, como disse Faustin Hélie, foi o primeiro grande brado de revolta contra as iniquidades da justiça criminal da época.
E o encarceramento, que papel tinha naquele sistema medieval de justiça penal? Na verdade, conforme autorizada doutrina, a privação da liberdade não existia nas práticas antigas como expressão autônoma de sanção, pois tinha apenas finalidade de assegurar a execução das penas corporais, especialmente a de morte, além de servir para a colheira de prova mediante tortura.
Nesse contexto, a idade média representou para a história um período em que a humanidade foi subjugada pela ignorância e flagelada pela peste, vivendo oprimida sob o terror das fogueiras da Inquisição. Com razão, essa fase crítica de nossa vida em sociedade mereceu o rótulo de “idade das trevas”.
Olhando para o nosso tempo - nesse exato momento em que vivenciamos uma comoção social por mudanças, especialmente na esfera penal -, o que uma honesta interpretação desse período representa para os valores que passamos a apoiar e muitas vezes militar? Será que os fenômenos criminais que estão ocorrendo são fatos que meramente planam na abstração, soltos no tempo e no espaço?
Numa sincera análise, deveras estamos vivendo tempos difíceis, de inflação não apenas econômica, mas legislativa, que revela um direito penal de terror, um Estado Policial e não de Direito, onde a massificação da responsabilidade penal demonstra uma ausência de política criminal governamental.
O modelo de processo penal proposto atualmente, e que ganha a simpatia popular, semelhante ao sistema de justiça penal medieval, que era canônica, tem se projetado na forma inquisitiva, oficiosa, adotando o cárcere como regra e como instrumento “espiritual” de castigo, posto que, pelo sofrimento e pela solidão, “a alma do homem depura e purga o pecado” (Ruiz Funes, A crise nas prisões, p. 63). Não esqueçamos que no calor da luta contra as manifestações de heresia, a prisão se aplicava como sanção frequente.
Michel Foucat prega que a função real (oculta) da pena, ao contrário do que revelam os juristas, não é propriamente combater a criminalidade, mas produzi-la. Não obstante a isso, apesar de ser uma instituição falida, nenhuma explicação se encontra para a sua longevidade e aplicação desenfreada. Por outro lado, a crescente e contagiante propaganda que anuncia como produto o rigor penal para determinados tipos de ocorrências sociais, mascara uma outra realidade social, oculta da grande massa.
As linhas gerais dessa propaganda são bem delineadas por Maria Lúcia karam, nos seguintes termos: “Anunciado como produto destinado a fornecer segurança e tranquilidade à população, através de punição dos autores de condutas, que a lei define como crimes, sua propaganda apresenta a idéia de que a violência é igual a crime, mediante a utilização de alguns fatos que comovem e assustam o conjunto da sociedade.” (De crimes, penas e fantasias, p. 196).
Deveras, o recurso da exploração do medo, cria um clima de pânico, de alarma social, de modo a gerar mais repressão policial e de penas mais rigorosas, num clima que desencadeia e é alimentado pelas chamadas campanhas de lei e ordem. Isso tudo propicia a ampla e irrestrita atuação de um Estado policialesco, autoritário, desproporcional, inquisitor, que faz ouvidos rasos aos direitos mais fundamentais dos cidadãos, fruto da conquista iluminista revolucionária prestigiada pela nossa atual Carta Magna.
Nesse tenso clima, realizam-se prisões provisórias populistas e midiáticas, julgamentos ao vivo, operações policiais com nomes de batismo, mandados de condução coercitiva para inquirição imediata, buscas domiciliares desnecessárias, entrevistas coletivas espetaculosas, entre outras medidas atentatórias a presunção de não culpabidade e a dignidade da pessoa humana. Tudo sob o aplauso acalorado dos fundamentalistas de plantão que apoiam esse modelo de justiça criminal.
Assim, à semelhança das penas cruéis do período medieval, que causavam interminável sofrimento, as cerimônias degradantes desse “novo” e fascista modelo penal, fazem do processo, simples instrumento da jurisdição, o pior e mais cruel dos castigos. A diferença é que não temos a guilhotina para interromper o sofrimento, que vem a conta gotas, até que haja um dia um pronunciamento definitivo que ponha fim a esse martírio, às vezes tarde demais (Luiz Gushiken que o diga).
É nesse sentido que Luiz Flávio Gomes, citando Umberto Eco, menciona que ainda não acertamos todas as nossas contas com a Idade Média. De fato, o discurso fácil da severidade penal como panaceia para todos os males sociais, é difícil de ser desconstituído, especialmente após a aprovação popular.
Entretanto, não é demais lembrar, socorrendo novamente ao autor de “O Nome da Rosa”, que Nem todas as verdades são para todos os ouvidos. Porém, não podemos permanecer em silêncio, emudecer a voz, fechar os olhos às injustiças, escondermos da violência, da má-fé e da falta de comprometimento daqueles a quem a Constituição da República confiou a sua guarda. Quem sabe encontraremos os ouvidos certos para escutarem essas verdades.
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