Resumo: O presente estudo pretende analisar a questão da liberdade do indivíduo inserido na coletividade e a questão da vontade geral segundo o filósofo Jean-Jacques Rousseau, bem como a heteronomia da lei como forma de controle social.
Palavras-Chave: Liberdade, Estado Democrático, Poder, Rousseau.
Você já parou para pensar (e constatar) que tudo que está à sua volta foi, de certa forma, imposto a você? Ao nascer, ninguém lhe perguntou se você concordava ou não com o modo com que a sociedade dirige seus negócios, suas relações políticas ou mesmo elabora suas leis. Ao nascer, você foi bombardeado com obrigações, com um mundo já previamente pronto e seu nascimento de nada influenciaria o ritmo dessa sociedade. Você teve que aceitar o fato de que mesmo tendo alguns poucos dias de vida e não concordando com o regime político vigente (levando-se em consideração que, enquanto bebê, você já pudesse ter essa consciência), ele não mudaria só porque era sua vontade. Mesmo que chorasse com toda a força de seus pulmões as coisas continuariam como estavam.
Isso também acontece com a tecnologia. Não sabemos como funciona nosso celular ou tablet. Na verdade, para a maioria das pessoas não importa como um mecanismo pode se comunicar a uma rede mundial de informações sem nem mesmo precisar de fios. Não queremos saber dos detalhes, mas nos achamos verdadeiros homens das cavernas quando não encontramos sinal para o celular ou quando a internet está lenta devido a algum problema técnico ou mesmo por causa do mal tempo, já que a umidade e as descargas elétricas presentes na atmosfera podem distorcer o sinal, que é transmitido por ondas.
Já nascemos em um mundo pronto e até você ganhar certo grau de determinação e consciência pouca coisa poderá ser mudada através de suas atitudes, ainda que em um espaço limitado de abrangência, restrito ao seu convívio social. As mudanças ocorrem sim, mas o que a história da humanidade nos mostra é que os movimentos revolucionários são frutos de anos de lutas e revoluções, galgadas por pessoas que possuíam o mesmo ideal, que não desistiram devido ao fato do mundo já estar pronto quando nasceram. Esses homens queriam mudar as coisas, alterar o que, até então, parecia ser o certo a ser feito (e não poderia ser alterado), mas que, muitas vezes, favorecia o interesse de uma pequena parcela de pessoas, em detrimento da condição de vida de uma grande parcela de indivíduos, que viviam na miserabilidade.
Sobre o fato das leis já existirem quando nascemos e que elas são colocadas a nós de forma obrigatória, a isso dá-se o nome de “heteronomia”. É uma característica da lei, que impõe ao destinatário o seu cumprimento, independentemente da vontade do indivíduo. Pouco importa se você concorda ou não com o fato de uma prática ser considerada crime ou se acha injusto pagar tributo para o governo. Se não obedecer a lei (no primeiro caso, o deixar de fazer, e, no segundo, o dever de efetuar o pagamento) você sofrerá as penalidades cabíveis.
A heteronomia funciona como um processo de interiorização do dever da lei. Inicialmente, os indivíduos obedecem à lei por medo do castigo, por não quererem sofrer as penalidades. Depois de certo tempo, esses indivíduos passam a perceber que o cumprimento da lei trará benefícios para a coletividade. Nesse sentido, a vontade individual dá lugar ao que é bom para todos. Passa-se de um estado egoísta para uma consciência baseada nos princípios e valores morais que justificam a aplicação da lei e sua devida aceitação pelas pessoas.
Assim, mesmo que, inicialmente, o cumprimento da lei cause estranheza, o segundo patamar, o da aceitação, reflete que, ainda que um indivíduo ache injusto pagar imposto ao governo, este passa a refletir que se ninguém pagasse imposto não seria possível o Estado por em prática as políticas públicas necessárias para a melhoria da qualidade de vida da coletividade.
Agora, a reflexão e o questionamento se esses impostos são abusivos e/ou não estão tento a destinação correta é uma correta linha de pensamento, que passa a assimilar o teor da lei, que não é o de beneficiar um seleto grupo de pessoas (como políticos e empresários corruptos ou a elite da sociedade), mas que o fim último da lei é a segurança jurídica, que inclui o conceito de qualidade de vida para todos os cidadãos.
Será que podemos relacionar a heteronomia a um tipo de prisão ou cerceamento de vontade?
Para Jean-Jacques Rousseau, importante filósofo, escritor, teórico político e compositor suíço, notável influenciador dos ideais iluministas, o homem se encontra preso. É dele a frase: “o homem nasce livre, e, em toda parte, encontra-se acorrentado”.
Mas a qual homem Rousseau estava se referindo? Ele se referia ao homem do século XVIII. A questão da heteronomia pode ser abordada aqui em função de a sociedade daquela época ter aceitado um fato que causa horror e repúdio em nossos dias: homens que nasceram livres sendo escravizados por outros homens. Não somente uma escravidão pela etnia (como ainda ocorria na época), mas pelo trabalho e pelas regras impostas pela própria sociedade.
Rousseau teve vários de seus livros banidos pela Igreja Católica por apresentarem conceitos religiosos pouco convencionais para a época, como a ideia de que a verdadeira religião vinha do coração e que as cerimônias e liturgias não eram importantes. Mas foram as ideias políticas que lhe trouxeram maiores problemas e perseguições.
A ideia de que o homem é livre ao nascer, mas se encontra preso na sociedade, presente na sua obra “O contrato social”, publicado em 1762, questiona a causa dos indivíduos viverem sob o julgo da sociedade ao abandonarem o “estado de natureza”, onde se encontravam livres e iguais.
Não é difícil entender o porquê das ideias de Rousseau terem tido grande reverberação nos movimentos revolucionários. Rousseau se tornou um grande inspirador do movimento iluminista francês, que desejava quebrar as correntes que a classe rica havia imposto à população pobre. Pessoas morriam de fome enquanto a classe rica gozava de uma vida de luxo as custas do trabalho dos pobres.
É pouco provável que Rousseau, que faleceu quase uma década antes da Revolução Francesa vir à tona, concordasse com as atrocidades que foram praticadas pelos líderes do movimento. Na verdade, para o filósofo suíço, o homem é naturalmente bom e, provavelmente, viveríamos em um certo grau de reciprocidade amigável se vivêssemos em uma floresta à base de nossos próprios recursos. É o que ele chama de “estado de natureza”, bastando sermos realocamos para um ambiente como as cidades para que tudo comece a dar errado.
Fora do estado de natureza, o homem busca, a todo custo, dominar os outros e ser o centro da atenção dos demais indivíduos. Por viver em sociedade, sentimentos como ganância e inveja e o desejo de manipular os outros invadem o ser humano. Na natureza, os homens seriam fortes, saudáveis e livres, mas a civilização corrompe o homem.
Em sua obra, Rousseau desejou encontrar uma solução para que as pessoas vivessem juntas e fossem livres da mesma forma que seriam na natureza, ao passo que também obedeceriam às leis impostas pelo Estado. Impossível ou não e ainda que a ideia de liberdade não comungue com as regras da sociedade, que são como verdadeiras correntes que impedem os homens de fazerem o que bem intenderem, Rousseau apontou uma saída: a vontade geral.
Assim como a heteronomia parte de um pensamento e um querer egoísta e evolui para a assimilação do bem maior (para o que seja melhor para a coletividade), a vontade geral propõe que os indivíduos devem abrir mão de muitas liberdades individuais em prol da comunidade. Nesse sentido, deve haver leis que restrinjam o comportamento das pessoas.
Para Rousseau, as ideias de liberdade e obediência às leis estatais se complementavam. Quando os indivíduos agrupam-se em sociedade, acabam por formar um tipo de pessoa, em que cada cidadão faz parte de um todo bem maior em relação à individualidade de cada um. Para o filósofo, as pessoas seriam livres na sociedade quando estivessem sob o julgo de leis que, verdadeiramente, refletissem a vontade geral, a vontade deste corpo formado pelos cidadãos, e não a leis que beneficiassem somente a uma parcela da coletividade.
Nesse contexto, o legislador teria a função de criar um sistema que permitisse que os indivíduos se mantivessem livres de acordo com a vontade geral, ao invés de buscarem suas próprias realizações as custas da perda da liberdade de outros. A verdadeira liberdade, para Rousseau, seria viver em um grupo de cidadãos que procuram agir de acordo com o interesse da coletividade, em que os desejos pessoais convergissem para o que fosse melhor para todos e que as leis evitassem que pessoas agissem de forma egoísta.
E para os que não desejassem seguir o “contrato”? Eles seriam forçados a isso! Seriam forçados a serem livres! Parece contraditório, mas para Rousseau não era. O indivíduo é forçado a ser livre quando é livre de sua própria vontade mesquinha e egoísta, quando é levado a pensar no que é melhor para todos, pois, já que vivemos em sociedade, se cada um pensar somente em si o resultado será o extermínio das relações e instituições sociais tal como as conhecemos.
Assim, semelhante à ideia de heteronomia, a ideia de vontade geral pressupõe a assimilação de que os homens, para viverem em sociedade, devem aceitar as regras que lhe são impostas. Em contrapartida, essas leis devem refletir o anseio do Estado em praticar o que é melhor para todos. Quando as leis representam ou favorecem a um grupo restrito de pessoas, é aceitável que a própria sociedade, como um único corpo, admita movimentos revolucionários que objetivam resgatar o ideal de bem comum e segurança jurídica para todos, tal qual anticorpos combatem um corpo estranho presente no organismo que deseja alterar o estado normal de funcionamento do corpo humano.
Referências
BOBBIO, Noberto. Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo : Malheiros, 2007.
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 13a. ed. São Paulo: Ática, 2008.
CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia. 3a. ed. São Paulo: Ática, 2007.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo, Martins Fontes, 1989.
Mestre em Direito Constitucional, graduado em Direito e Ciências Sociais. Especialista em Ciência Política, Direito Público e Gestão Ambiental. Professor nas áreas de Direito (com ênfase em Direito do Estado, Tributário e Empresarial), Ética e Sociologia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COLLYER, Francisco Renato Silva. Liberdade em Rousseau: Nascemos livres, mas vivemos presos na sociedade? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 ago 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/45011/liberdade-em-rousseau-nascemos-livres-mas-vivemos-presos-na-sociedade. Acesso em: 01 nov 2024.
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