Resumo: O presente artigo visa discorrer, de maneira sintética, a respeito do princípio da legalidade no âmbito da Administração Pública. Para tanto, após uma breve noção introdutória a respeito dos princípios gerais que regem o direito administrativo, traz a definição de legalidade administrativa, diferenciando-a do princípio da legalidade enquanto direito individual do cidadão, bem como tece considerações acerca de sua aplicabilidade no âmbito administrativo atual, no qual é visto como princípio da juridicidade. Por derradeiro, são realizados breves comentários concernentes às exceções ao mencionado princípio previstas constitucionalmente.
Palavras-Chave: Princípio. Legalidade. Administração. Pública.
1. Introdução
Os princípios fundamentais que norteiam a atuação da administração pública encontram-se, explícita ou implicitamente, na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Muito embora se observe em atos normativos infraconstitucionais a referência ou enumeração dos mais diversos princípios administrativos, todos são decorrência lógica do texto constitucional.
Dentre os princípios orientadores da atuação da administração pública, avultam importância os expressos no art. 37, caput da Carta Magna, o qual, após a Emenda Constitucional nº 19/1998, estabeleceu que a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Da leitura do aludido dispositivo constitucional, infere-se que os princípios ali enumerados são de observância cogente para todos os Poderes, quando do exercício de suas funções administrativas, e para todos os entes públicos federativos, alcançando, inclusive, a administração direta e a indireta.
No âmbito infraconstitucional, os princípios que regem a administração pública podem ser encontrados na Lei nº 9.784/99, a qual preconiza, no caput de seu art. 2º, que essa deve atenderá atender aos postulados da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Dentre os referidos princípios administrativos, merece destaque o da legalidade, um dos corolários do Estado Democrático de Direito. Maria Sylvia di Pietro, majestosamente, leciona que o princípio da legalidade nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Para a ilustre autora, a lei, ao mesmo tempo em que os define, estabelece também os limites da atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da coletividade.[1]
2. As acepções do princípio da legalidade no direito público e no direito privado
Muito embora o texto constitucional não traga a definição do princípio da legalidade no âmbito administrativo, a doutrina se encarrega desse mister com muita propriedade. Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo assim conceituam o aludido postulado (ALEXANDRINO; PAULO, 2008, p. 194):
“A legalidade traduz a ideia de que a administração pública somente tem possibilidade de atuar quando exista lei que o determine (atuação vinculada) ou autorize (atuação discricionária), devendo obedecer estritamente ao estipulado na lei, ou, sendo discricionária a atuação, observar os termos, condições e limites autorizados na lei.”
José dos Santos Carvalho Filho, por sua vez, afirma que “o princípio da legalidade é a diretriz básica da conduta dos agentes da Administração. Significa que toda e qualquer atividade administrativa deve ser autorizada por lei. Não o sendo, a atividade é ilícita.” [2]
Verifica-se que, sob o manto do direito público, a legalidade traduz o critério de subordinação ou vinculação positiva à lei, uma vez que a atuação dos agentes públicos, direta ou indiretamente, depende de previsão legal. Consoante as lições de Alexandre Mazza:
“A característica fundamental da função administrativa é a sua absoluta submissão à lei. O principio da legalidade consagra a subordinação da atividade administrativa aos ditames legais. Trata-se de urna importante garantia do Estado de Direito: a Administração Pública só pode fazer o que o povo autoriza, por meio de leis promulgadas por seus representantes eleitos. É o caráter infralegal da função administrativa.”
No direito privado, por seu turno, o referido princípio traz consigo a ideia de não contradição ou vinculação negativa à lei, haja vista ser permitido, ao administrado, pautar suas ações da maneira que melhor lhe aprouver, desde que não contrariem o texto legal.
O princípio da legalidade, sob esse enfoque, encontra-se no rol dos direitos individuais e está presente no art. 5º, inciso II da CFRB/88, o qual dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”
Frise-se que a previsão constitucional do princípio da legalidade no âmbito privado obteve inspiração do artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, o qual preconiza, ipsis litteris:
"A liberdade consiste em fazer tudo aquilo que não prejudica a outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites que os que asseguram aos membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Esses limites somente podem ser estabelecidos em lei".
Ora, ante as considerações acima referidas, infere-se que o princípio da legalidade apresenta, para a administração pública, um conteúdo mais restritivo em relação ao direito privado, o qual é regido pela autonomia da vontade. Nesse último, o referido postulado constitucional funciona como uma garantia para os cidadãos contra possíveis arbitrariedades dos agentes públicos.
Em síntese, pode-se afirmar que enquanto que os particulares podem fazer tudo que a lei não proíbe, os agentes públicos apenas podem fazer o que a lei determine ou autorize. Em não havendo previsão legal, não subsiste a possibilidade de atuação administrativa.
3. Abrangência do princípio da legalidade administrativa
Muito se discute a respeito da abrangência do princípio da legalidade administrativa e para que se entenda a amplitude do termo para a doutrina moderna, é necessária a realização de uma breve digressão histórica.
O princípio da legalidade floresceu juntamente com os ideais do Estado Liberal, modelo de organização político cuja principal preocupação consistia na imposição de limites à atuação estatal – Estado Absolutista -, funcionando a legalidade como uma verdadeira ferramenta limitadora de poder. De acordo com o principio da legalidade, na época entendida de maneira estrita, o Poder Público poderia tão somente agir dentro dos limites estabelecidos pelas normas aprovadas pelos representantes do povo.
Ocorre que, com a ascensão do Estado Social, a ampliação do rol das atividades administrativas, a necessidade de prestações positivas por parte do Estado e a utilização da vinculação estrita como justificativa, muitas vezes, para realização de arbitrariedades, passou a se falar não mais em legalidade, mas em princípio da juridicidade administrativa, segundo o qual a atuação administrativa deve se dar em conformidade não apenas com a lei, mas com todo o ordenamento jurídico vigente.
A partir da noção de juridicidade administrativa, passa a se admitir a prática de atos administrativos praeter legem. Caso emblemático que obteve enorme repercussão na sociedade foi a declaração de constitucionalidade da Resolução nº 7, editada pelo Conselho Nacional de Justiça, a qual vedava a prática do nepostismo.
Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal, através da ADC 12, de Relatoria do Ministro Ayres Britto, decidiu que mesmo sendo um ato administrativo, o CNJ tem competência dar densidade normativa ao texto constitucional sem a necessidade de intermediação de uma lei em sentido estrito:
AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE, AJUIZADA EM PROL DA RESOLUÇÃO Nº 07, de 18.10.05, DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. ATO NORMATIVO QUE "DISCIPLINA O EXERCÍCIO DE CARGOS, EMPREGOS E FUNÇÕES POR PARENTES, CÔNJUGES E COMPANHEIROS DE MAGISTRADOS E DE SERVIDORES INVESTIDOS EM CARGOS DE DIREÇÃO E
ASSESSORAMENTO, NO ÂMBITO DOS ÓRGÃOS DO PODER JUDICIÁRIO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS". PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. Os condicionamentos impostos pela Resolução nº 07/05, do CNJ, não atentam contra a liberdade de prover e desprover cargos em comissão e funções de confiança. As restrições constantes do ato resolutivo são, no rigor dos termos, as mesmas já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade. 2. Improcedência das alegações de desrespeito ao princípio da separação dos Poderes e ao princípio federativo. O CNJ não é órgão estranho ao Poder Judiciário (art. 92, CF) e não está a submeter esse Poder à autoridade de nenhum dos outros dois. O Poder Judiciário tem uma singular compostura de âmbito nacional, perfeitamente compatibilizada com o caráter estadualizado de uma parte dele. Ademais, o art. 125 da Lei Magna defere aos Estados a competência de organizar a sua própria Justiça, mas não é menos certo que esse mesmo art. 125, caput, junge essa organização aos princípios "estabelecidos" por ela, Carta Maior, neles incluídos os constantes do art. 37, cabeça. 3. Ação julgada procedente para: a) emprestar interpretação conforme à Constituição para deduzir a função de chefia do substantivo "direção" nos incisos II, III, IV, V do artigo 2° do ato normativo em foco; b) declarar a constitucionalidade da Resolução nº 07/2005, do Conselho Nacional de Justiça.
Ampliada a noção tradicional de legalidade para juridicidade, a doutrina criou o chamado “Bloco de Legalidade”, devendo os agentes públicos observância às leis ordinárias, às leis complementares, às leis delegadas, à Constituição, às medidas provisórias, aos tratados e convenções internacionais, atos administrativos normativos, dentre outros.
Alexandre Mazza, com maestria, discorre a respeito da questão:
“O princípio da legalidade não se reduz ao simples cumprimento da lei em sentido estrito. A Lei federal n. 9.784/99 (Lei do Processo Administrativo), no art. 2°, paragrafo único, I, define a legalidade como o dever de atuação conforme a lei e o Direito. A redação do dispositivo permite contemplar o que a doutrina estrangeira tem chamado de princípio da juridicidade, isto é, a obrigação de os agentes públicos respeitarem a lei e outros instrumentos normativos existentes na ordem jurídica. A juridicidade é uma ampliação do conteúdo tradicional da legalidade. Além de cumprir leis ordinárias e leis complementares (lei em sentido estrito), a Administração está obrigada a respeitar o denominado bloco da legalidade. Significa dizer que as regras vinculantes da atividade administrativa emanam de outros veículos normativos, a saber: a) Constituição Federal, incluindo emendas constitucionais; b) Constituições Estaduais e Leis Orgânicas; c) medidas provisórias; d) tratados e convenções internacionais; e) costumes; f) atos administrativos normativos, como decretos e regimentos internos; g) decretos legislativos e resoluções (art. 59 da CF); h) princípios gerais do direito.” [3]
4. Restrições ao princípio da legalidade
Consoante as lições de Celso Antônio Bandeira de Melo, o princípio da legalidade pode sofrer constrições diante de situações excepcionais mencionadas expressamente na Constituição da República Federativa do Brasil, as quais preveem que é facultado ao Presidente da República a adoção de providencias incomuns para enfrentar situações anômalas as quais exijam uma atuação sumária ou eventos gravíssimos que requeiram uma ação particularmente energética. É o caso das medidas provisórias, do estado de defesa e do estado de sítio.[4]
5. Conclusão
À guisa de conclusão, percebe-se a importância do postulado da legalidade – ou juridicidade – no âmbito da Administração Pública. Ao limitar as condutas dos agentes públicos apenas àquilo que é permitido em lei, assim entendida latu sensu, nos termos e limites por ela estabelecidos e segundo o interesse público, o princípio da legalidade constitui uma verdadeira ferramenta de limitação de poder e um instrumento de garantia aos administrados, consagrando a segurança jurídica no Estado Democrático de Direito.
MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009, página 105/106.
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Vicente. Direito Constitucional Descomplicado. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2008, página 194.
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de direito administrativo. São Paulo: atlas, 2015, página 20.
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2015, página 101.
MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009, página 105/106.
NOTAS:
[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2013. Página 64/65
[2] FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de direito administrativo. São Paulo: atlas, 2015, página 20.
[3] MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2015, página 101.
[4] MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009, página 105/106.
Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AGUIAR, Gustavo Bedê. O princípio da legalidade no âmbito administrativo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/46200/o-principio-da-legalidade-no-ambito-administrativo. Acesso em: 13 nov 2024.
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