RESUMO: O presente artigo teve por objetivo analisar a prática da eutanásia, ortotanásia e distanásia. Inicialmente, serão apresentados os conceitos, distinções e ponderação entre o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana. Ao final do artigo, partindo-se dos dados e conceitos apresentados, conclui-se pela vedação da eutanásia ainda que requerido pelo paciente em sã consciência; a ortotanásia é possível quando diagnosticada a morte encefálica, visto que juridicamente não há vida. Por fim, a distanásia, entendida como tratamento penoso e inútil, somente poderá ser praticada com o aval do paciente, sob pena de solapar-se o direito à autonomia
Palavras-chave: Eutanásia. Ortotanásia. Distanásia. Bioética.
1 Introdução
O direito à vida compreende um direito fundamental e supremo a ser tutelado pelo ordenamento jurídico. Pensado em face das questões polêmicas atuais, o direito à vida é analisado sob o viés do princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse ínterim, destaca-se questão ora muito discutida, qual seja, a possibilidade de legalização da abreviação da vida por meio da eutanásia, além da necessidade em submeter o paciente a tratamento penoso, quando, na verdade, este tratamento não irá conduzi-lo à cura, resultando num sofrimento físico e psicológico ao paciente e seus familiares.
Discute-se a legitimidade da prática de eutanásia, distanásia e ortotanásia por meio da análise de questões polêmicas que permeiam essas formas de abreviação da vida, tratando-se de sua conceituação e das razões que motivam o paciente ou sua família a optar por antecipar sua morte, sob o enfoque doutrinário e os ensinamentos de grandes pensadores como Genival Veloso e Delton Croce.
Explicitam-se, ainda, os conceitos de morte propostos pelo nosso ordenamento jurídico e pela doutrina, enfatizando a dificuldade em estabelecer um conceito seguro e eficiente da morte, mormente por se tratar de um processo complexo. Destaca-se o conceito de morte encefálica como pressuposto para análise da ortotanásia, sendo imprescindível a precisão do momento da morte, nos termos legais, para que se possa aceitar sua prática.
Finalmente, passa-se à análise do direito à vida enquanto expressão da Bioética, ramo do conhecimento auxiliar às ciências biológicas e médicas, que enfrenta as novas questões postas pela sociedade e pelo direito, buscando soluções ou respostas, sob o enfoque da ética e moral.
2 EUTANÁSIA, ORTOTONÁSIA E DISTANÁSIA: DISTINÇÃO
Inicialmente, necessário que se estabeleça a diferenciação de conceitos entre eutanásia, ortotanásia e distanásia, pois, apesar da correlação entre si, as ciências da saúde vêm distinguindo-os.
Eutanásia é a conduta de abreviar a morte, em virtude de compaixão, ante um paciente incurável, vítima de intensa dor física ou psíquica e com a iminente certeza de morte. (VELOSO, 2007, p. 381)
Ortotanásia é a conduta de suspender o uso de medicamentos ou equipamentos que prolongam a vida de um paciente em coma irreversível e considerado em “morte encefálica”, vítima de grave comprometimento da coordenação da vida vegetativa e privado das relações sociais. (VELOSO, 2007, p. 381)
Por último, distanásia é suspensão do tratamento insistente, desnecessário e prolongado de um paciente em estado terminal, nos dizeres de Genival Veloso: “que não apenas é insalvável, mas também submetido a tratamento fútil.” (VELOSO, 2007, p. 381)
Observe-se que os elementos dor, paciente terminal e compaixão são comuns a todos os temas ora tratados, de sorte que a discussão de um deverá ocorrer conjuntamente com os demais.
2.1 Eutanásia
A eutanásia corresponde à abreviação da vida do paciente em estado terminal e que sofre de intensa dor física ou psicológica. Note-se que aquele que assiste a sua prática, fornecendo os meios para tanto, ou, ainda, induz ou instiga o paciente é considerado responsável, podendo ser considerado partícipe ou coautor do crime que vier a ser concretizado.
A eutanásia é repudiada pelo nosso ordenamento jurídico, por exemplo, a Resolução CFM nº 1.480, de 8 de agosto de 2007 e o Código de Ética Médica. Outrossim, a própria Constituição Federal e legislação infraconstitucional vedam a prática da eutanásia, elevando a proteção da vida ao patamar de direito fundamental.
Portanto, dúvidas não há quanto à ilegalidade de sua prática, de modo que, somente, resta a discussão do ponto de vista médico, ético e moral de sua viabilidade.
A eutanásia perpassa pela análise de três elementos, a saber: paciente terminal, dor e “compaixão”.
O paciente terminal é aquele que não tem perspectiva de cura, cuja moléstia o levará a óbito em um breve lapso de tempo. Ora, a medicina e demais ciências afetas à área tecnológica vêm demonstrando que, a cada dia, aquilo que era considerado incurável, quase uma barreira intransponível, tem solução.
Com o desenvolvimento da ciência, descobrem-se caminhos que, se não solucionam, pelo menos prolongam o tempo de vida do paciente, por exemplo, os coquetéis antirretrovirais, de modo que se torna insubsistente a fundamentação da prática da eutanásia na impossibilidade de perspectiva de cura.
O segundo elemento a ser analisado é a dor, pois esta implicará no terceiro elemento.
Receio da morte é natural a todo ser humano, entretanto, em certos casos, o intenso sofrimento, quer seja psíquico ou físico, faz com que o homem perca esse medo, enxergando na morte uma solução.
Inquestionável que a dor intensa deve ser combatida, todavia, ainda, assim não é justificativa hábil a permitir a prática da eutanásia, pois há outras soluções que não a morte.
Nesse contexto, há o programa governamental federal que visa a implantar unidades de cuidado paliativo. Esse programa é destinado a pacientes em estado terminal e vem sendo gradativamente implantado em diversos estados da federação.
O intuito do programa é amenizar a dor suportada por aqueles que têm de se submeter a tratamentos agressivos como o câncer, sem que isso signifique uma perspectiva de cura, apenas se almeja prolongar o tempo de sobrevida com maior qualidade.
Sem o intuito de adentrar às polêmicas do programa como desestímulo à busca da cura definitiva para a moléstia, deve-se ressaltar que é um caminho viável para amenizar o problema, na medida em que, com a ausência ou diminuição do sofrimento físico ou psicológico, não haveria mais razão que fundamentasse a prática da eutanásia, preservando-se o direito à vida, bem jurídico supremo em nosso ordenamento jurídico.
Nesse sentido, dignas de transcrição as palavras de Genival Veloso (VELOSO, 2007, P. 494):
O sofrimento, por mais que comova, não pode constituir um meio seguro ou num termômetro para medir-se a gravidade de um mal, nem tampouco autoriza a decidir sobre questões de vida ou morte: não pode servir como recurso definitivo para aferir tão delicada questão.
Por último, deve ser analisada a compaixão como combustível que alimenta a discussão quanto à legalização da prática da eutanásia.
Retornando à discussão anterior, combatendo-se a dor, não haverá mais que se falar em sofrimento e, por conseguinte, compaixão. Ademais, este sentimento não pode ser elevado a ponto de prevalecer em face do direito à vida.
Observe-se, ainda, que a opção por abreviar a vida não é possível nem ao próprio paciente, visto que a vida é bem inalienável e indisponível. Portanto, se nem ao paciente é dado consentir sobre a prática da eutanásia, quiçá à família deste.
Ressalte-se, ainda, que o ser humano é movido por sentimento e paixões, optando em situações de adversidades por caminhos que em sã consciência não trilharia. Aquele que angustiado com a morte iminente, prefere à morte rápida que viver com esse dilema.
Ora, vive-se numa sociedade de risco, em que a morte é o preço que se paga por estar vivo. A cada instante morrem pessoas por todo o mundo. Esse é um fenômeno natural da vida, o ciclo biológico.
A morte é certa para todos. A dúvida paira, apenas, no que concerne ao tempo. Em certos casos, aquele que sabe o tempo de vida que lhe resta, termina por aproveitar mais seu tempo, em detrimento daquele que se ocupa com seus afazeres do labor e “esquece da vida”.
A questão seria então de tratar o a questão psicológica do paciente, informando-lhe e conscientizando-o do parco tempo que lhe resta, e não incentivar a prática da eutanásia em razão do sofrimento.
2.2 Ortotanásia
2.2.1 Conceito de morte
Antes de adentrar ao tema propriamente dito, necessário que se façam breves comentários sobre o conceito de morte, pois a discussão perpetrada sobre a ortotanásia gira em torno do momento em que é possível afirmar que o sujeito está morto.
Vive-se na era de “crise dos conceitos”, o conceito de morte não foge à regra. Nos dizeres de Delton Croce: “Assim como não se pode definir a vida, é teoricamente impossível conceituar a morte. Por isso, deveria bastar-nos procurar compreender e aceitar essa única e insofismável verdade.” (CROCE, 1998, p. 347)
Afirma Veloso que a dificuldade em definir a morte é porque ela não é um fato instantâneo, na verdade seria uma sequência de fenômenos gradativamente processados nos vários órgãos e sistemas de manutenção da vida, seria, pois, um processo, caracterizando sofisma definir o momento em que se deu. (VELOSO, 2007, p. 522)
O doutrinador leciona ainda que:
A morte, como elemento definidor do fim da pessoa, não pode ser explicada pela parada de um determinado órgão, por mais hierarquizado e indispensável que seja. É na extinção do complexo pessoal, representado por um conjunto, que não era constituído só de estruturas e funções, mas de uma representação global. O que morre é o conjunto que se associava para a integração de uma personalidade. Daí a necessidade de não se admitir em um só sistema o plano definidor da morte. (VELOSO, 2007, p. 523)
Não obstante a complexidade do tema, a ciência é obrigada a trilhar caminhos em busca de respostas concretas, especialmente com o aumento dos números de transplantes, em que não é possível esperar por todos os sinais da morte como putrefação, maceração, dentre outros. Nesse contexto, há dois critérios utilizados para definir a morte, quais sejam, a circulatória e a cerebral.
No que concerne ao critério circulatório, o intuito é definir a morte quando se verifica parada irreversível da circulação e da respiração – morte cardiorrespiratória. Ressalte-se que esse critério não desconstitui o que foi dito acima, apenas representa uma tentativa, diga-se por passagem, frustrada de definir o momento da morte. (MARANHÃO, 2000, p. 248)
O conceito de morte cardiorrespiratória, por sua imprecisão, não é adotado. De fato, é forte o conceito de morte cerebral, sendo este o adotado no Brasil, a saber Resolução CFM nº 1.480, de 5 de agosto de 1997:
Art. 9º Constatada e documentada a morte encefálica, deverá o Diretor Clínico da instituição hospitalar, ou quem for delegado, comunicar tal fato aos responsáveis legais do paciente, se houver, e à central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos a que estiver vinculado a unidade hospitalar onde o mesmo se encontrava internado.
Observe-se que o a Resolução utiliza expressão morte encefálica. Genival Veloso afirma que “a tendência é aceitar a “morte encefálica”, traduzida como aquela que compromete seriamente a vida de relação e coordenação da vida vegetativa, diferente, pois, da “morte cerebral” ou “morte cortical”, que compromete apenas a vida de relação.” (VELOSO, 2007, p. 525)
O doutrinador propõe um padrão para definição baseado nos seguintes critérios (VELOSO, 2007, p. 525-6):
1. Ausência total de resposta cerebral, com perda absoluta da consciência. Nos casos de coma irreversível, presença de uma eletroencefalograma plano (tendo cada registro a duração mínima de 30 minutos), separados por um intervalo nunca inferior a 24 horas. Esse dado não deve prevalecer para recém-nascidos ou em situações de hipotermia induzida artificialmente, de administração de drogas depressivas do sistema nervoso central, de encefalites e de distúrbios metabólicos ou endócrinos.
2. Abolição dos reflexos cefálicos, como hipotonia muscular e pupilas fixas e indiferentes ao estímulo luminoso.
3. Ausência da respiração espontânea por 5 minutos, após hiperventilação com oxigênio 100%, seguida da introdução de um caráter na traqueia, com fluxo de 6 litros de O por minuto.
4. Causa do coma conhecida.
5. Estruturas vitais do encéfalo lesadas irreversivelmente.
Os critérios propostos são de grande valia para a discussão sobre ortotanásia, pois a questão do coma irreversível é o ponto nevrálgico da questão, na medida em que caracterizada morte encefálica para os conceitos atuais, não haveria que se falar em desumanidade ou ilegalidade de sua prática.
2.2.2 Aspectos éticos
A ortotanásia é conceituada como suspensão dos meios artificiais de manutenção da vida. Sua prática vem ganhando credibilidade perante a sociedade, pois com fundamento nos critérios acima expostos não haveria que se falar em abreviação da vida.
Inicialmente, necessário que se diferencie quatro situações críticas que conduzem a dilemas éticos: pacientes em estado vegetativo continuado, pacientes em morte encefálica, pacientes terminais e pacientes em estado vegetativo permanente. (VELOSO, 2007, p. 501)
Nos dizeres de Genival Veloso: “Paciente em estado vegetativo continuado ou persistente é aquele que apresenta lesões recentes do sistema nervoso central, com ou sem diagnóstico definido, mas que deve ter seus cuidados conduzidos nos moldes dos pacientes salváveis.” (VELOSO, 2007, p. 501)
O paciente terminal é aquele cuja evolução de sua doença não responde mais a nenhuma medida terapêutica conhecida e aplicada, sem expectativas de cura ou de prolongamento da vida. (VELOSO, 2007, p. 501)
Por sua vez, paciente em estado vegetativo permanente é aquele que não tem evidência de consciência, não se expressa e não entende os fatos em torno de si, sobrevivendo com respiração autônoma, por um longo tempo, necessitando de cuidados médicos. (VELOSO, 2007, p. 502)
Por último, o paciente em coma aperceptivo apresenta ausência de atividade motora supraespinhal e apneia, além de comprovadamente não possuir atividade elétrica cerebral, ou atividade metabólica cerebral, ou ausência de perfusão sanguínea cerebral, caracterizando, portanto, morte encefálica. (VELOSO, 2007, p. 501)
Na hipótese do paciente em coma aperceptivo, deve-se definir se o paciente se enquadra no conceito de morte encefálica, pois, em sendo o caso, não há que se falar em abreviação da vida, sendo plenamente válida a prática da ortotanásia por meio do desligamento dos aparelhos que artificialmente mantém as demais funções vitais como a circulatória.
Na situação fática supramencionada, o desligamento dos aparelhos é medida adequada. Não há que se falar em vida de acordo com os critérios legais. Ademais, a situação do paciente é irreversível.
Nos demais casos, o desligamento dos aparelhos deve ser combatido sob o enfoque humanista de valorização da vida. Inclusive, o próprio ordenamento jurídico pátrio não permite tal abreviação da vida, de sorte que aquele que praticar tal conduta incorrerá nos tipos penais previstos.
A propósito, o artigo 66 do Código de Ética Médica veda ao médico “utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal.” Rememore-se, ainda, o juramento de Hipócrates: “a ninguém darei, para agradar, remédio mortal, nem conselho para induzir à perdição”.
Não obstante a impossibilidade da legalização de sua prática nos casos em que não for diagnosticada a morte encefálica, há um certo clamor social que defende a sua prática indiscriminada, sob o argumento de economicidade e dignidade da pessoa humana.
No que concerne ao argumento de economicidade, é necessário que se esclareça que a vida humana é um bem extrapatrimonial e insuscetível de apreciação econômica, portanto, qualquer tentativa nesse sentido afronta o direito fundamental à vida, insculpido na Constituição Federal.
Noutra vertente, o princípio da dignidade da pessoa humana tem de ser analisado sob o enfoque do neoconstitucionalismo em que não há que se falar em direito absoluto. Nesse diapasão, esclarecedor o ensinamento de Alexy (ALEXY apud GILMAR, 2010, p. 215):
Por isso, em palavras do próprio Alexy, o princípio da dignidade da pessoa comporta graus de realização, e o fato de que, sob determinadas condições, com um alto grau de certeza, preceda a todos os outros princípios, isso não lhe confere caráter absoluto, significando apenas que quase não existem razões jurídico-constitucionais que não se deixem comover para uma relação de preferência em favor da dignidade da pessoa humana sob determinadas condições.
Dessa forma, não há que se falar em direito absoluto, devendo, portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana ser contraposto ao direito à vida.
Observe-se que a vida é pressuposto para a dignidade, sem vida não há que se falar em dignidade. Uadi nos ensina que “sem a proteção incondicional do direito à vida, os fundamentos da república federativa do Brasil não se realizam. Daí a Constituição Federal proteger todas as formas de vida, inclusive a intrauterina.” (UADI, 2008, p. 414)
Em razão disso, pode-se afirmar que o direito à vida é o mais importante de todos os direitos. De igual modo, não há fundamento razoável que permita a legalização da ortotanásia em pessoas que comprovadamente apresentem quadro reversível.
No entanto, não se desconhece a mínima possibilidade de sobrevivência do paciente. Nesse sentido, esclarecedora o preâmbulo da Declaração de Hong Kong – adotada pela 41ª Assembleia Geral da AMM, Hong Kong, setembro de 1989 - sobre estado vegetativo persistente:
Por outro lado, as chances de recuperar a consciência depois de ser vegetativo durante três meses são muito pequenas. São reivindicadas exceções raras, mas alguns destes casos podem estar representados por pacientes que não entraram logo em coma logo após o dano causado. Em última instância, todos estão severamente inválidos.
Ante o exposto, a ortotanásia quando praticada em pacientes com morte encefálica, deve ser incentivada, pois sem vida para fins legais, nem possibilidade médica de reversão do quadro do paciente, não há que se falar juridicamente em abreviação da vida.
2.3 Distanásia
A distanásia é o tratamento insistente, desnecessário e prolongado de um paciente terminal, que não é apenas insalvável, como também submetido a tratamento fútil.
É o caso dos pacientes terminais portadores do vírus da AIDS ou que sofrem de câncer sem perspectiva de cura, nos casos em que o quadro clínico do paciente é avançado, situação na qual as opções de tratamento disponíveis já não surtem mais efeitos, nem prolongariam em tempo razoável a vida do indivíduo.
A análise da distanásia versa sobre a suspensão desse tratamento ineficaz, a qual deve ser feita sob o enfoque interno e externo, ou seja, quando a manifestação de vontade em não se submeter a tratamento se origina, respectivamente, do próprio paciente ou de familiares, amigos e até mesmo do Estado. Ressalte-se que ninguém é abrigado a se submeter a tratamento penoso ou que coloque em risco sua vida,nos termos do art. 15 do Código Civil.
Dessa forma, o médico não pode ser responsabilizado caso suspenda o tratamento em atendimento ao pedido do paciente que possua livre capacidade para consentir. Diferentemente, seria a hipótese em que o médico se recusasse a tratar o indivíduo por se encontrar em estado terminal, configurando, inclusive, conduta delituosa, podendo se enquadrar, a depender das circunstâncias do caso concreto, em omissão de socorro.
Em retorno ao ponto anterior, na maioria dos casos, o paciente escolhe suspender o tratamento em virtude da forte depressão que abala sua razão e vontade de viver. É comum o ser humano não saber lhe dar com a morte iminente, pois tem receio do que lhe espera “do outro lado”, se é que podemos falar nisso.
Portanto, dever-se-ia trabalhar a questão emocional do paciente para que aceite sua condição. Genival Veloso levanta a discussão sobre o direito à verdade ao paciente em estado terminal. Leciona que a verdade deve ser dita ao paciente, pois é do seu interesse saber sobre sua saúde: “o certo é que dizer a verdade, por mais necessária que ela seja, não é sinônimo de relato frio e brutal.” (VELOSO, 2007, p. 505)
Nos casos delicados, em que o médico percebe que a informação poderá causar danos ao paciente, deve comunicar o fato a um familiar seu ou responsável legal, cumprindo o que determina o artigo 59 do Código de Ética Médica.
Dessa forma, tomando os devidos cuidados, o médico está evitando situações em que o indivíduo, dominado pela depressão, opta pela suspensão do tratamento.
Questão totalmente diversa é um terceiro, por exemplo, familiar, o Estado ou o próprio médico decidir por suspender o tratamento, pois a vida é um bem inalienável e indisponível, de forma que o paciente não poderá ter sua vida tolhida por questões econômicas ou qualquer outra que seja.
No caso dos familiares que avocam para si a decisão pela abreviação da vida, essa escolha é motivada por questões de compaixão, por não suportarem presenciar tanto sofrimento de seu ente querido. No entanto, observe que a compaixão não é fundamento razoável perante um bem tão precioso que é a vida.
Por outro lado, o Estado fundamenta o debate por conveniência de redução de gastos públicos. Entretanto, a vida é um bem personalíssimo, fundamental e, por conseguinte, extrapatrimonial. Dessa forma, não há como mensurá-la economicamente e, portanto, quantificar o que vale mais: a vida de uma pessoa ou outro bem como a educação de vários.
Todos aqueles que são a favor da humanidade e lutam pela manutenção da vida são contra qualquer retrocesso no sentido de permitir a prática da distanásia por escolha de terceiros que não o paciente em sã consciência, na medida em que este é o único capaz de mensurar seu real sofrimento em conviver com sua doença e certeza de morte iminente, cabendo-lhe unicamente, portanto, a escolha.
3 BIOÉTICA
A bioética é um estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e da saúde, objetivando soluções para os novos casos e situações polêmicos que surgem no campo da saúde com base nos valores éticos e morais.
Nos ensinamentos de Hubert Lepargneur (LEPARGNEUR, 1996 apud FERREIRA, 2005, p. 5):
a bioética é a resposta da ética aos novos casos e situações originadas da ciência no campo da saúde. Poder-se-ia definir a bioética como a expressão crítica do nosso interesse em usar convenientemente os poderes da medicina para conseguir um atendimento eficaz dos problemas da vida, saúde e morte do ser humano.
Percebe-se que a bioética é um ramo do conhecimento auxiliar, destacando-se nas áreas da saúde por enfrentar questões polêmicas como as questões da eutanásia, ortotanásia e distanásia.
Pretende-se, pois, analisar as questões de abreviação da vida sob o enfoque dos princípios basilares da bioética: não maleficência, beneficência, respeito à autonomia e justiça.
O princípio da não maleficência se consubstancia no dever do profissional da saúde de não adotar, intencionalmente, condutas que prejudiquem o próximo. Vislumbra-se mais que um dever profissional, configurando um dever ético. (LOCH, 2002, p. 2)
Percebe-se que o princípio da não maleficência é de grande valia, mas o não prejudicar é insuficiente, pois o paciente que procura o médico objetiva uma melhora de seu quadro clínico. Note-se que a inércia do médico seria suficiente para caracterizar uma conduta compatível com esse princípio e poderia justificar atitudes como a de não realizar determinadas intervenções médicas, única e exclusivamente, por medo de errar.
Em razão disso, o princípio da beneficência exerce a função de complementar esse princípio, significando, de forma, singela, fazer o bem. Jussara de Azambuja nos ensina que “a Beneficência requer ações positivas, ou seja, é necessário que o profissional atue para beneficiar seu paciente. Além disso, é preciso avaliar a utilidade do ato, pesando benefícios versus riscos e/ou custos”. (LOCH, 2002, p. 3)
A passagem transcrita destaca a necessidade de ações positivas por parte do profissional da saúde a fim de que utilize de todo o seu arcabouço médico para beneficiar o paciente, e enfatiza, ainda, que é necessário avaliar a utilidade do ato, sopesando os benefícios e os riscos das medidas a serem tomadas.
O respeito à autonomia é o dever do profissional da saúde em respeitar as decisões tomadas pelo paciente por livre e espontânea escolha, preservando, pois, o projeto de vida do paciente, bem como suas opiniões e valores. Autonomia pode ser conceituada como a capacidade de uma pessoa para decidir, fazer ou buscar aquilo que ela julga ser o melhor para si. (LOCH, 2002, p. 4)
Não obstante o dever de respeitar a autodeterminação do paciente, imperioso que o indivíduo apresente condições psicológicas de informar sua opinião, o que não ocorre nas hipóteses em que crianças figuram como pacientes, nos casos de patologias neurológicas e psiquiátricas severas e, ainda, situações de urgência.
Por último, o princípio da justiça vela pela distribuição equitativa de bens e recursos, numa tentativa de permitir que todos tenham acesso às oportunidades de tratamento, exames e diagnósticos. O Sistema Único de Saúde é uma expressão desse princípio, permitindo que cidadãos desprovidos de recursos financeiros possam lutar pela sua sobrevivência.
A perspectiva proposta pelo campo da bioética vem, cada vez mais, ganhando força perante a sociedade e a comunidade médica, pois, umbilicalmente, interligada com os valores éticos e morais, representando, assim, os anseios da sociedade.
A propósito, em pesquisa desenvolvida com o objetivo de analisar a percepção sobre distanásia, ortotanásia e eutanásia dos enfermeiros que atuam em unidades de terapia intensiva de um hospital universitário de grande porte na cidade de São Paulo, evidenciou forte respeito à autonomia do paciente em tomar suas decisões, conforme conclusões do estudo a seguir transcritas (BIONDO, PAES, SECCO, 2008, p. 7):
Convém ao enfermeiro a reflexão cuidadosa acerca dessas situações vivenciadas em sua prática, para que não ratifique a aplicação de terapêutica inútil. O simples fato de pensar de modo acrítico propicia ao profissional da saúde ajudar "a qualquer custo" a manutenção da vida, sem maiores discussões, incidindo, contraditoriamente, em distanásia
[...]
Também é seu dever respeitar e reconhecer o direito do cliente decidir sobre sua pessoa, seu tratamento e seu bem-estar e respeitar o ser humano na situação de morte e pós-morte. O enfermeiro precisa, então, garantir informações em sua veracidade aos familiares e pacientes, para que possam tomar as decisões cabíveis, livres e conscientemente, exercitando sua autonomia
Os trechos citados reforçam a ideia do respeito à autonomia do indivíduo e sua família em fazer suas escolhas, bem como convida à reflexão crítica sobre o tratamento fútil que não conduzirá à cura do indivíduo.
Por outro lado, é digna de menção passagem que afirma ser dever do profissional da saúde desempenhar seu papel com zelo “para aqueles que lutam pela vida e têm como base para essa luta a bioética é certeza e verdade fundamental que os cuidados não podem acabar diante de um caso de incurabilidade”. (BIONDO, PAES, SECCO, 2008, p. 7)
A perspectiva proposta pela bioética é uma visão humanista das questões complexas postas em discussão pelo campo das ciências médicas. Esse ramo do conhecimento é bastante arraigado aos valores éticos e morais da sociedade, razão pela qual ainda não há um caminho consolidado a ser seguido.
As soluções propostas pela bioética é no sentido de preservar a vida do ser humano, desde que seja respeitada da dignidade da pessoa humana, de modo que a vida do individuo não seja um prolongamento de sofrimento e desolação, tanto para o paciente como para a sua família.
O respeito à autonomia do paciente ganhou bastante força com a bioética, pois não ninguém melhor para expressar o seu sofrimento que o próprio paciente. Portanto, esse ramo de estudo distingue o “estar vivo” do “ter vida”, visto que prolongar artificialmente a vida de alguém que sofre pode até preservar o “ter vida”, mas nunca o “estar vivo”, a oportunidade de sentir as emoções e prazeres da vida.
Destarte, a sua contribuição é significativa, todavia não se deve perder o foco em respeitar a vida do ser humano como valor supremo, na medida em que é o pressuposto para os demais direitos.
4 CONCLUSÃO
Visto à luz da teoria humanista e dos princípios da Bioética, o direito à vida, pressuposto dos demais direitos, apresenta toda a sua complexidade quando se discute a decisão de sua abreviação em prol de outros princípios como a dignidade da pessoa e de sentimentos de compaixão ou, ainda, para satisfação de interesses meramente econômicos e mercadológicos.
Nesse passo, restou explicitado o confronto social e doutrinário que emerge entre a garantia da vida e o princípio da dignidade da pessoa humana. De um lado, indivíduos abalados emocionalmente com a certeza de morte iminente, sendo submetidos a tratamentos penosos que castigam seu corpo e sua alma, mas de forma alguma se entregam às adversidades da vida. Noutra vertente, a desistência pela vida de alguns pacientes e a compaixão dos familiares que enxergam uma vida indigna e incompatível com os sonhos e metas traçados pelo seu ente querido.
Se, por uma via, não se pode obrigar o indivíduo a se submeter a tratamento penoso, em desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e a sua autonomia, não se pode tolher os sonhos e a vontade de viver, dando-lhe substância que abrevie sua vida ou desligando os parelhos que o mantém vivo quando não lhe é nem sequer perguntado qual a sua vontade.
Nesse ínterim, nada obstante serem veementemente rechaçadas a prática de condutas que restrinjam o direito à vida pelo nosso ordenamento jurídico, a discussão doutrinária alcança importante espaço, enfrentadas as questões postas à luz dos princípios éticos e morais.
De tal forma, resta impraticável a eutanásia, sob qualquer pretexto e ainda que requerido pelo paciente em sã consciência, pois não é dado à medicina fazer o mal ao próximo. A ortotanásia, quando praticado nos moldes propostos por Genival Veloso, é possível, pois diagnosticada a morte encefálica não há que se falar em abreviação da vida. Por fim, a distanásia, entendida como tratamento penoso e inútil, somente poderá ser praticada com o aval do paciente, sob pena de solapar-se o direito à autonomia em se submeter a tratamento médico com risco de vida ou penoso.
REFERÊNCIAS
BIONDO, Chaiane Amorim; Silva, Maria Júlia Paes da; SECCO, Lígia Maria Dal. Distanásia, eutanásia e ortotanásia: percepções dos enfermeiros de unidades de terapia intensiva e implicações na assistência. Disponível em: Distanásia, eutanásia e ortotanásia: percepções dos enfermeiros de unidades de terapia intensiva e implicações na assistência. Acesso em: 03 dez. 2011.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
CROCE, Delton & Jr. CROCE, Delton. Manual de Medicina Legal. 4. ed. rev e ampl. São Paulo: Saraiva, 1998.
FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Bioética e Biodireito. Disponível em: http://www.josecaubidinizjunior.com.br/sol/imagens_clientes/imagens/4/145.pdf. Acesso em: 03 dez 2011.
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MARANHÃO, Odon Ramos. Curso Básico de Medicina Legal. 8. ed. rev. atual e amp. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires & BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010.
Advogado da União. Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Danillo Vilar. Eutanásia, ortotanásia e distanásia à luz da bioética Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 ago 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/47231/eutanasia-ortotanasia-e-distanasia-a-luz-da-bioetica. Acesso em: 07 nov 2024.
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