O texto não se esgota em sim, sendo o propósito primordial despertar a capacidade de pensar sobre ação afirmativa. Em tempos de discórdias, até entre os que se sentem inferiorizados por serem “privilegiados” pela ação afirmativa, e aos que se acham discriminados por não fazerem parte da ação afirmativa, nada mais oportuno do que questionar, pela Filosofia do Direito, sobre a validade ou invalidade da ação afirmativa. Exemplos cotidianos, diversos, foram introduzidos para que os leitores possam compreender as dinâmicas sociais, em determinadas épocas, e o que seja justo ou injusto, quem tem meritocracia e quem não tem. No final, há perguntas para que o leitor possa refletir sobre o contexto. Contudo, se o leitor tiver uma convicção que lhe impeça de examinar por si, ou seja, não seguir tendências, muito menos se ancorar em valores familiares, sociais e políticos, não haverá o propósito incrustado neste artigo, a de fomentar, pela liberdade de expressão — não a liberdade simples de falar, mas a liberdade incrustada no direito natural —, o justo do injusto.
Para reflexão a priori, transcrevo valorosa e oportuna frase:
"Não acredite em algo simplesmente porque ouviu. Não acredite em algo simplesmente porque todos falam a respeito. Não acredite em algo simplesmente porque está escrito em seus livros religiosos. Não acredite em algo só porque seus professores e mestres dizem que é verdade. Não acredite em tradições só porque foram passadas de geração em geração. Mas depois de muita análise e observação, se você vê que algo concorda com a razão, e que conduz ao bem e benefício de todos, aceite-o e viva-o". (Buda)
Alex Moreno é uma ginasta mexicana. Ficou em 31º lugar entre 59 competidoras. Nada mal, se considerarmos seu peso corpóreo. Aqui que mora o perigo. Por que, indiferentemente de ser atleta, exige-se um corpo musculoso ou magro? E por qual motivo devemos falar sobre isso? Afinal, cada pessoa é livre para ser o que quer? Ou apenas é livre, desde que siga certas regras sociais?
Até a década de 1950, o ideal corporal feminino deveria ser de coxas roliças e cintura fina, uma das rainhas era Marilyn Monroe. Tudo mudou, na década de 1960, quando surgiu Twiggy, uma modelo inglesa magérrima. Twiggy tinha anorexia. Não entrarei na questão do porquê da existência desta doença. O que proponho é reflexão sobre liberdade, autonomia sobre as imposições sociais, de como deve ser uma pessoa.
A chamada "ditadura da beleza" tem causado estragos na vida das mulheres, principalmente, pois elas são cobradas para terem um tipo corporal. No caso da atleta, estudos científicos atuais demonstram que um corpo musculoso, e pouca massa adiposa, favorece ao desempenho. Porém, a questão que quero tecer é quanto aos não atletas competitivos de grandes eventos esportivos.
As últimas pesquisas científicas definem medidas abdominais para se evitar doenças cardíacas. No Japão, o Estado premia quem mantém os centímetros adequados. Já aos que passam da medida abdominal são desencorajados por advertências e outras medidas. Eis a questão. Ser magro, ou se manter magro, conforme a ideia do que seja magro, é uma vitória para os que assim conseguem? Ou seja, aos que estão obedecendo ao modismo, ou até às recomendações médicas, são dignos de honrarias? E aos que estão fora das exigências, são perdedores, ou até preguiçoso. Certo?
Entremos na questão da meritocracia. Aos que conseguem atingir os ideais de saúde, ou de modismo, são dignos de se sentirem melhores? E aos que não estão de acordo os padrões, não são esforçados e não merecem quaisquer atenções ou honrarias?
A MERITOCRACIA ONDULATÓRIA
Se você for adepta da filosofia utilitarista, como Jeremy Benthan, a felicidade de muitos é a regra a seguir. Logo a imposição da beleza padronizada deve ser obedecida por todos, sem exceções. Se você é adepta do libertarismo, como Robert Nozick, cada qual tem a liberdade [direito] de ser o que quiser. Eis os dois polos opostos. E se você for adepto de John Locke, também libertário, mas com ressalvas às liberdades plenas, será que você tem o direito de dispor de sua vida como bem quiser? Para Locke, a vida é o bem mais sagrado, não permitido a ninguém o direito de fazer o que bem quiser. Isto é, pela Lei da Natureza, o corpo não é seu, e você tem o dever de cuidar muito bem dele. Qualquer atitude que possa, conscientemente, gerar até a morte é reprovável, ou até mesmo o suicídio. E os riscos de se manter um corpo dentro dos padrões de beleza é desumano. Querer impor um padrão de beleza é tirar, em primeiro lugar, o direito natural de cada ser humano, e também é violar a sua dignidade, por ser, simplesmente, humano.
Quem tem corpo de acordo com o padrão exigido socialmente, tem qualidade para ser respeitado, considerado até digno. Quem não tem, ou está fora do padrão, não é digno socialmente. Nestes aspectos, a meritocracia pertence ao que está de acordo com o padrão de beleza. Porém, digamos que, numa sociedade que preza pela magreza, uma pessoa gorda — gorda no sentido de estar em desacordo com as medidas antropométricas, não necessariamente ser obeso [pé da letra] — consegue emagrecer ao ponto da exigência do modismo social. Ela foi meritocrática? Revés. O modismo mudou, o corpo ideal é o musculoso. Todos malham para, então conseguirem as medidas antropométricas condizentes com as novas exigências. Houve meritocracia de quem se esforçou?
Para John Rawls, não há mérito moral ou meritocracia. As qualidades de uma pessoa são apreciadas conforme os termos sociais e políticos impostos pela sociedade. Por exemplo, se em determinada localidade o trabalho manual de um artesão não é valorizado, ele não terá como vender suas criações para sobreviver. A sociedade não considera trabalhos manuais como status positivo, considerável. Porém, se esse mesmo artesão mudar para uma localidade, que aprecie, consideravelmente, o trabalho manual, em vez dos produtos produzidos mecanicamente, o trabalho dele terá um valor positivo. Eis a meritocracia. Rawls não desconsidera o esforço próprio, mas considera que qualidades pessoais só surtem efeitos [meritocracia] na sociedade quando ela mesma cria condições para que estas qualidades possam ser externadas. Por consequência, não há mérito moral. Há conexão com a oportunidade que a sociedade forneceu.
Por exemplo, Luiz Gonzaga Pinto da Gama. Enxertarei uma parte de sua vida:
"Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu no dia 21 de junho de 1830, no estado da Bahia. Era filho de um fidalgo português e de Luiza Mahin, negra livre que participou de diversas insurreições de escravos.
Em 1840 foi vendido como escravo pelo pai para pagar uma dívida de jogo. Transportado para o Rio de Janeiro, foi comprado pelo alferes Antônio Pereira Cardoso e passou por diversas cidades de São Paulo até ser levado ao município de Lorena.
(...)
Em 1850 casou-se e tentou frequentar o Curso de Direito do Largo do São Francisco – hoje denominada Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Por ser negro, enfrentou a hostilidade de professores e alunos, mas persistiu como ouvinte das aulas. Não concluiu o curso, mas o conhecimento adquirido permitiu que atuasse na defesa jurídica de negros escravos.
(...)
Nos Tribunais, usando de sua oratória impecável e seus conhecimentos jurídicos, conseguiu libertar mais de 500 escravos, algumas estimativas falam em 1000 escravos. As causas eram diversas, muitas envolviam negros que podiam pagar cartas de alforria, mas eram impedidos pelos seus senhores de serem libertos, ou que haviam entrado no território nacional após a proibição do tráfico negreiro em 1850. Luiz Gama também ganhou notoriedade por defender que ao matar seu senhor, o escravo agia em legítima defesa". [1]
Na época, quando a sociedade brasileira considerava os negros como seres inferiores, Luiz Gama não possuía status positivo. Não houve meritocracia, pelo padrão de não aceitação ao que fez, aos olhos dos cidadãos brancos. Porém, seu esforço de libertar os negros foi considerado, assim direi pelos escravos libertos por Luiz, meritocrático. Destarte, meritocracia é a conexão com as considerações positivas que a sociedade chancela.
Na época, então, o bem maior da sociedade brasileira era desconsiderar os negros — aqui vemos a aplicação do utilitarismo. Contudo, pela abordagem dos libertários, a escravidão negra era uma coação, um crime, pois os negros, assim como quaisquer seres humanos, possuem dignidade humana, por serem simplesmente seres criados pela natureza, que possui uma lei, a Lei Natural, a qual deriva muito antes do ser humano criar sociedades e políticas.
Vimos que, pelas teorias filosóficas, o bem de todos deve ser a diretriz social, pelos utilitários. Porém, pelos libertários, cada ser humano tem o direito de ser livre, de escolher o que deseja, de não ser coagido a fazer algo que não queira. A divergência de John Locke aos libertários, apesar de ele ser um libertário, está no limite imposto pelo Estado da Natureza, a qual impõem limites às ações humanas. Sendo assim, ninguém pode tirar a própria vida, ou tirar a vida de ninguém. Eis alguns limites definidos pelo pensamento filosófico de Locke.
Retornemos para o exemplo de Luiz Gama, as suas condutas foram livres de escolhas, a de libertar os escravos, uma imposição das circunstâncias [escravidão]? A isso podemos invocar Immanuel Kant. O filósofo dizia que não há plena liberdade e uma pessoa se ela age pelas circunstâncias, como, por exemplo, a fome. O comer não é uma liberdade, mas uma necessidade biológica. Escolher entre dois alimentos diferentes também não é liberdade, pois olfato e visão despertaram sensações que levaram a pessoa a escolher o "melhor" alimento. E as indústrias alimentícias sabem muito bem disso. Outro exemplo, você sai de sua residência para comprar, digamos, um produto de limpeza. Já dentro do supermercado, você, que nunca usou nenhum detergente, se depara com várias prateleiras. Interessante que na linha de sua visão estão os produtos mais acessíveis, praticidade, para você comprar. Pegou o produto, na fila, se depara com guloseimas, por que não comprar uma? Pergunto, você teve, realmente, autonomia em suas escolhas? Digo que não. A psicologia comportamental é aplicada há muito tempo no comercio. Praticidade aos tempos modernos da correria, o açúcar, importante alimento para o cérebro, por exemplo, e as indústrias alimentícias abusam na adição de açúcar nos alimentos. Você não teve autonomia, apenas agiu por circunstâncias impostas, mesmo que aperceptíveis. Ou seja, você é um instrumento, não autor.
Termino neste parágrafo com as seguintes perguntas, com base no minúsculo resumo sobre Filosofia do Direito:
a) As cotas raciais são justas ou injustas?
b) As condições econômicas determinam sucessos futuros?
c) Se todos têm os mesmos direitos, pela Lei Natural, as cotas raciais tiram direitos de outras pessoas?
d) As universidades não formam apenas cidadãos intelectualizados, mas cidadãos conscientes dos deveres cívicos. As universidades, na época de Luiz Gama, aplicaram critérios de admissão. Justo ou injusto? E quanto às universidades atuais, que reservam vagas para os afrodescendentes, os critérios são justos ou injustos? Formam cidadãos conscientes de suas responsabilidades cívicas?
e) Se as universidades ditaram e ditam regras admissionais, a dignidade humana está sendo violada. Não há liberdade de escola [libertários]. Cada qual, à sua época, criaram critérios admissionais conforme as motivações sociopolíticas. Qual a finalidade das universidades para a formação psíquica dos futuros cidadãos profissionais? Ou seja, o que se espera do comportamento social? Lembre-se do caso de Luiz Gama.
f) Até que momento o Estado pode ditar regras [art. 5º, II, da CF/88]? Quais os limites, se existirem, das liberdades individuais? E como fica o grupo? Lembre-se do utilitarismo, a máxima felicidade para a maioria, o que, consequentemente, suprime a felicidade da minoria, e do libertarismo, de que o Estado tem que ser mínimo, isto é, não se intrometer muito na vida dos administrados.
g) A democracia implica deveres e direitos. Como ficam os ideais utilitaristas e libertários? A maioria deve ditar regras [utilitarismo] ou cada qual age como quiser [libertários]?
h) A Lei Maria da Penha é um privilégio às mulheres. Então o extinto Código Civil de 1916, que concedia privilégios aos homens, também era arbitrário? Como ficam os ideais utilitaristas e libertários? A maioria deve ditar regras [utilitarismo] ou cada qual age como quiser [libertários]?
i) Se você é libertário dirá que certas leis são justas, por atender a vontade da maioria. Se for libertário, dirá que cada pessoa tem o direito de opinar e não querer certas leis. Dessa forma, cada qual tem força de reivindicar seus direitos [dignidade humana, pela Lei Natural]. A democracia, por assim dizer, é o equilíbrio. Sendo equilíbrio, quando a maioria dita regras excludentes, a minoria pode agir, de forma que distorções aos direitos naturais sejam compensados. Pode-se encaixar as ações afirmativas como correções? Essas correções são privilégios ou compensações para se equilibrar e manter direitos naturais a todos os cidadãos.
j) Sendo as ações afirmativas compensações aos direitos naturais usurpados, há mérito moral aos cidadãos beneficiados pelas ações? Há meritocracia?
k) Houve meritocracia, no tempo de Luiz Gama, aos estudantes das universidades? Eram privilegiados pela forma na qual as universidades escoliam os candidatos?
l) Se a meritocracia é condizente com os valores sociais [status], qual o mérito em fazer algo que a sociedade disponibiliza, isto é, que seja condizente com o que ela acha bom. Pode-se dizer que há qualidades superiores quando as regras sociais permitem que certas qualidades sejam externadas? Pode-se dizer que em caso de a sociedade não considerar certo atributo como positivo a externalização diferente é inferior?
m) A ação afirmativa, pela sua concepção de permitir convívio entre etnias diferente, tem função de construir uma sociedade solidária e justa? Ou apenas acirram discórdias? Porém, pelos fatos históricos de segregações, podemos atribuir, unicamente, a ação afirmativa a culpabilidade de acirramento às discórdias?
REFERÊNCIA:
Oliveira, André Gualtieri de. Filosofia do direito / André Gualtieri de Oliveira. São Paulo: Saraiva, 2012. (Coleção saberes do direito; nº 50)
[1] — Instituto Luiz Gama. Quem foi Luiz Gama? Disponível em: http://institutoluizgama.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=section&layout=blog.
Jornalista, professor, produtor, articulista, palestrante, colunista. Articulista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), ABJ (Associação Brasileira dos Jornalistas), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Fenai/Faibra (Federação Nacional da Imprensa), Investidura - Portal Jurídico, JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Observatório da Imprensa.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Sérgio Henrique da Silva. Introito para as ações afirmativas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 set 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/47460/introito-para-as-acoes-afirmativas. Acesso em: 08 nov 2024.
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