O renomado dicionário Priberam da língua portuguesa define “abuso” como “mau uso, uso excessivo, excesso, desmando, desregramento”.
A expressão abuso, assim, não comporta o ato solitário, o agir inédito, a conduta ocasional. Para a caracterização do abuso mister se faz a ação rotineira, a violação sistemática do dever funcional.
E mais do que isso. O ato abusivo não se satisfaz com a culpa. O dolo reiterado é elemento subjetivo indispensável presente na conduta abusiva – recidivante! – do agente. A culpa é casual, fortuita. No abuso o dolo está (sempre) impregnado na vontade livre e deliberada de exceder, sistematicamente, os limites da lei.
Um aluno que durante a aula pede ao professor uma única vez para ir ao banheiro ou beber água não comete nenhum abuso. Aquele que pede cinco vezes a mesma coisa abusa do seu direito. De modo que o comportamento deste último, analisado sob uma ótica universal e global, permite avaliar a abusividade no seu agir. O primeiro deseja a satisfação de uma necessidade fisiológica, o último destruir a aula de seu professor.
Pois bem. A criminalização do agir do agente público sob o rótulo de abuso de autoridade não é diferente.
Um juiz que entende presentes os motivos para a decretação da prisão preventiva de determinada pessoa ou defere uma medida protetiva de urgência da Lei Maria da Penha não comete nenhum abuso de autoridade. Se sua decisão for reformada através da interposição do recurso cabível ou da impetração de habeas corpus o caso foi de interpretação diversa levada a efeito pelo Tribunal.
Agora, se um juiz sistematicamente têm seus decretos de prisão preventiva revistos pelo Tribunal, configurando-se o agir reiterado em desconformidade com a apreciação da lei, aí sim poderá se perquirir e investigar a possível conduta caracterizadora do abuso de autoridade.
Não se pode dissociar a teoria legislativa da prática forense. Uma coisa é a equivocada ou divergente interpretação da lei, outra coisa é o agente inescrupuloso que sistematicamente viola seu dever funcional. O erro, o equívoco, a imperfeição passa anos-luz da definição de abuso. O abuso é mal, o abuso destrói, seu solo é podre, contaminado pela perversão.
Os próprios Tribunais, inclusive os Tribunais Superiores, possuem interpretações divergentes entre suas Câmaras, Turmas e Seções. A ciência do Direito é fluida, plasmável, admite infinitas interpretações.
Cabe aqui lembrar a velha lição de que o juiz não aplica a lei, mas a norma. É a norma que dá vida ao direito a ser aplicado a cada caso concreto. A norma é extraída de todo o ordenamento jurídico, compreendendo-se também os tratados e convenções internacionais vigentes. O juiz é por primazia o extrator único da norma.
Percebe-se, assim, que o rol de delitos tipificados no Projeto de Lei do Senado nº 280/2016, que trata do abuso de autoridade, mais se aproxima, ou tenta se aproximar, nas suas elementares dos crimes praticados contra a administração pública e contra a administração da Justiça. Estes se comprazem com a conduta única, com o agir casual, fortuito, que não exclui a antijuridicidade material.
Mas se não há o abuso, leia-se, se não há a conduta reiterada, o agir assíduo em desconformidade com a lei e, ainda, ausente esse propósito no espírito do agente público, estaremos diante em última análise de ato judicial praticado dentro das balizas da independência funcional do juiz, passível de impugnação recursal, que poderá vir a ser ou não reformado pelo Tribunal.
A garantia constitucional da independência funcional desautoriza transformar automaticamente a decisão judicial passível de recurso ou irresignação mediante as ações constitucionais em crime de abuso de autoridade, quando ausente a violação sistemática da legislação, o propósito meticuloso de neutralizar o império da lei.
Não queremos juízes somente em Berlim. Todos somos moleiros de Sans-Souci. Não destruam nossos velhos moinhos, nem nossa esperança.
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