RESUMO: O presente artigo tem como objetivo trazer reflexões sobre os novos tipos de sistema existentes na atualidade, dando enfoque às redes sociais como um sistema específico e às pessoas que interagem nesse novo microssistema. Trata-se de conceito inerente às novas relações jurídicas. Dentro dos novos direitos devem ser incluídos os direitos cibernéticos como novos direitos da personalidade. As páginas, perfis sociais e avatares perfazem uma dinâmica diferente de seus criadores e não traduzem de forma irredutível a pessoa ou pessoas por trás.
PALAVRAS CHAVES: direito da personalidade; personalidade; sistemas sociais; redes sociais; personalidade cibernética; direito cibernético.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Personalidade. 3. Novo Sistema. 4 Personalidade Cibernética e os Direitos Cibernéticos. 5. Conclusão.
1. Introdução
A personalização do Direito Civil entende que as premissas do direito civil privado hão de ser vistas pela ótica do indivíduo, visando sua proteção. O texto constitucional determina como fundamento da República a dignidade da Pessoa Humana, dando eficácia irradiante dos direitos fundamentais aos mais diversos ramos. Inclui-se principalmente o Direito Civil, tirando o foco das relações patrimoniais do indivíduo, com feição principalmente monetarizada, deslocando para as relações da pessoa e sua interação com os demais membros de sua comunidade.
O conceito de comunidade ganha especial destaque atualmente, pois é um conceito de proporções muito maior do que os limites geográficos. As redes sociais são verdadeiros sistemas autorreferenciais e autopoiéticos (Luhmann). As pessoas fazem parte das redes sociais, porém, seus perfis, sejam individuais ou coletivos, se distinguem das pessoas por detrás do computador e ganham autonomia, sendo uma relação complexa com titularidade de direitos próprios e inerentes a esse novo ente jurídico criado nesse novo sistema existente.
Com o objetivo de melhor compreender essa mudança de concepção de comunidade e as relações pessoais e interpessoais, esse breve estudo tratará da personalidade cibernética e sua correlação com a personalidade individual, as relações jurídicas existentes para a tutela de novo direito da personalidade.
2. Personalidade
Pela concepção tradicional, os conceitos de pessoa como titular de direitos e deveres tem correlação precípua com a personalidade.
Segundo Goffredo Telles Jr. “a personalidade consiste no conjunto de caracteres próprios da pessoa e isto é objeto de direito”[1]. Esta personalidade já havia sido tutelada pela Constituição de 1988 de forma bastante abrangente, e no Código Civil de 2002, foi lhes destinado capítulo próprio, mas não de forma exaustiva, visto que o legislador quis que os direitos da personalidade fossem tratados apenas de forma exemplificativa, para que a norma tenha atualidade mesmo com o passar do tempo.
Segundo Gustavo Tepedino, a cláusula geral da personalidade se baseia em três pilares “a proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); a solidariedade social, inclusive visando a erradicação da pobreza (art. 3º, I e II); e a igualdade em sentido amplo ou isonomia”.[2]
Os direitos da personalidade têm como características a intransmissibilidade e a irrenunciabilidade, não podendo, inclusive, sofrer limitação nem de forma voluntária. Então, sendo assim, qualquer disposição a esses direitos será nula de pleno direito.
A personalidade é uma característica e não um direito do indivíduo. É qualidade conferida pelo Estado a um ente jurídico que pode ser ou não uma pessoa, assim definida por Pontes de Miranda: “Certo, a personalidade em si não é direito; é qualidade, é o ser capaz de direitos, o ser possível estar nas relações jurídicas como sujeito de direito” (MIRANDA, 2000, p. 211). É assente que a personalidade tem correlação com a pessoa. Nesse sentido, buscam ampliar o conceito para açambarcar as pessoas jurídicas que possuem personalidade distinta de seus membros, com ela não se confundindo.
É importante ainda frisar que a personalidade é conferida pelo Estado. Houve época que o homem negro escravizado não era titular de complexo jurídico próprio inerente à personalidade, sendo um objeto de direitos de seu proprietário, mas não titular de direitos. O mesmo já ocorreu com as mulheres, que durante muito tempo tiveram sua personalidade reduzida pelo Estado como pessoa titular de capacidade relativa, mitigada pela figura patriarcal da sociedade. Há entes específicos que possuem, segundo a doutrina, personalidade própria, como o condomínio. Nesse sentido, mais importante ainda se faz discutir a personalidade formada nas redes sociais que se distancia das pessoas que a organizam, não sendo, tampouco, confundida com a personalidade da pessoa jurídica.
Houve uma evolução do conceito de pessoa e titular de personalidade própria.
3. Novo Sistema
Vivemos em uma sociedade complexa na qual há vários papeis realizados pelos mais diversos indivíduos. A internet e as formas existentes de conexão sem barreiras geográficas e arquitetônicas permitem que as pessoas ultrapassem vida interpessoal física e crie um microcosmo social.
Nesse momento, ganha novo tom os direitos inerentes ao atributo de indivíduo particular e sujeito de direitos que se relaciona em uma dependência simbiótica com os demais de sua comunidade. Destaca-se que o indivíduo moderno possui diversos papeis dentro da sociedade. É um empregado durante o dia, à noite tem um pequeno empreendimento online, cuida dos filhos, busca a realização de algum esporte. Nessa cultura multifacetada, a internet proporciona a possibilidade de realização de diversas tarefas em pouco tempo.
Vivemos em uma sociedade complexa na qual há vários papeis realizados pelos mais diversos indivíduos. A comunicação é ponto central desse sistema e permite o contato com o entorno e ao mesmo tempo a divulgação das informações e ideias para outros sistemas.
4. Personalidade Cibernética e os Direitos Cibernéticos
Um perfil em uma rede social possibilita a realização de variados tipos de socialização ao mesmo tempo, dando uma sensação de completude à vida das pessoas. É um local onde se possibilita uma identificação com outras pessoas que possuem os mesmos gostos, independentemente de fronteiras. Ao mesmo tempo, cria um novo tipo de ideal cibernético. O avatar ou perfil se distingue da pessoa ou pessoas por traz do computador e apesar das semelhanças, com ela não se confunde.
Há vários perfis coletivos que ganham relevo como uma unidade conceitual. Por vezes, é impossível saber identificar se há mais de uma pessoa ou não. É importante destacar ainda que a imagem da página não se confunde com a de seu criador e sequer representa seus anseios e emoções. Ganha novo elemento identificador, demonstra uma outra imagem desconectada das pessoas que criaram, elaboraram aquele ideal e não necessariamente representa a opinião de seus criadores.
São diversos os perfis que formam uma identidade independente de seus criadores; há formadores de opinião, fornecedores de humor, arte, poema, entre outros. Há perfis sociais, sites, redes que ganham unidade desconectada dos indivíduos que os criam. Páginas como Quebrando o Tabu, Cultura Colectiva, Não me Kahlo ganham proporção como mecanismos de modificação política e social.
Recentemente, a Página da Rede Social Facebook Não me Kahlo conseguiu a promessa pública do Governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg, para vetar o projeto de lei 1465/13 que visava adoção de prática antiabortivas para vítimas de estupro.
Essas páginas possuem autonomia própria e simbolizam muito mais do que seu criador. Trata-se de um emaranhado de relações jurídicas que precisa ser respeitado como ente autônomo e distinto dos seus elaboradores, até mesmo porque é possível e bem provável que a página ganhe demandas e prospectos independente de seus mentores.
Não devemos nos esquecer que as redes sociais, como Facebook e Instagram são sistemas sociais completos e precisam ser reconhecidos como tal.
O significado de cibernética demonstra com maestria o que acontece. A origem remonta àquele que controla ou pilota um timoneiro. Atualmente, fala-se ainda como mecanismo de controle, regulação e comunicação. Portanto, a personalidade cibernética representa essa nova modalidade de personalidade que deve ser amparada pelo ordenamento jurídico vigente, independentemente de seus colaboradores. Não se trata de uma empresa ou uma pessoa jurídica, é algo fora, que deve ser respeitado como um complexo único e merecedor de proteção independente.
O Marco Civil da Internet, Lei 12965/2014, não se olvidou nessa nova demanda cibernética que existe, identificando como um dos fundamentos para a disciplinar o uso da internet exatamente o desenvolvimento da personalidade, artigo 2º, II.
Não se trata de qualquer personalidade e sim da personalidade cibernética, que não se confunde com a personalidade da pessoa natural ou da pessoa jurídica, merecendo proteção específica.
Como qualquer característica inerente aos seres dotados de proteção jurídica específica e própria, surgem vários direitos a serem tutelados. Dentre vários, destaca-se:
a) O direito à uma vida cibernética saudável, sem que outras pessoas tomem o seu lugar nessa sociedade líquida e fugaz.
b) O direito de não se ver impedido de utilizar a rede social a qual pertence ou deseja pertencer.
c) O direito de não ser excluído indevidamente das redes sociais, devendo quaisquer redes sociais garantirem a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, conferindo aos participantes o direito de ampla defesa e contraditório, antes de terem seus perfis excluídos. Nesse sentido, uma exclusão indevida equivaleria à extinção da personalidade.
d) O direito de se excluir da rede.
e) O direito de ter uma navegação sem empecilhos, investigações e propaganda abusiva, podendo navegar com discrição.
O roubo da personalidade cibernética ganha relevo nas redes sociais, principalmente em relação a artistas que publicam suas obras apenas na internet. Alguns de índole clássica trabalham com obras físicas e, de alguma forma, possuem mecanismos de indicar a propriedade de sua produção. Porém, há tantos outros que não possuem registro físico. Nesse caso, pode o usurpador não apenas lhes tomar a perspectiva de venda das cópias digitais, mas principalmente o seu espaço e lugar na rede social, ocupando-se, de forma indevida, de sua personalidade cibernética.
Muito pouco se trata sobre essa perspectiva, porém o direito não pode se esquecer dessa nova dinâmica social. É preciso um debate aprofundado sobre a temática.
5. Conclusão
Ante o exposto, verifica-se que as redes sociais atualmente são microcosmos sociais, verdadeiros sistemas autopoiéticos e autorreferenciais. As interações existentes precisam de amparo específico pelo ordenamento jurídico. As relações jurídicas travadas nas redes sociais merecem tutela diferente da já existente no tocante aos direitos da personalidade e no conceito da personalidade em si. A personalidade cibernética se distancia da pessoa ou pessoas por detrás do computador. Não há identificação da personalidade deferida à pessoa natural ou mesmo jurídica. É algo diferente que merece regramento distinto.
Referências
CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados Direitos da Personalidade. In: FACHIN, Edson Luiz (coord.). Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 1: teoria geral do direito civil. 20.ª ed. rev. aum. São Paulo: Saraiva, 2003.
FERNANDES, Milton. Os direitos da personalidade e o Estado de Direito. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n. 50, janeiro, 1980.
FIÚZA, Ricardo. Novo Código Civil Comentado.4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
FRANÇA, Limongi Rubens. Instituições de Direito Civil. 3.ª. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1994.
______. Institutos de proteção à personalidade. Revista dos Tribunais: São Paulo, ano 57, n. 391, maio/1968.
GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de Imprensa e os Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2001.
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
LUHMANN, Nicklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, v. 3. 1959.
TELLES JUNIOR, Goffredo. Direito subjetivo I: Enciclopédia Saraiva de Direito. v. 28, 2002.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
Bacharel pela Faculdade de Direito de Franca. Pós-graduada pela Universidade Católica Dom Bosco. Procuradora Municipal de São Carlos/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Silvia Maria de Paula. Personalidade Cibernética Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jul 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50501/personalidade-cibernetica. Acesso em: 13 nov 2024.
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