RESUMO: A convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) estabeleceu, em seu art. 13, a liberdade de pensamento e expressão. Com a ratificação de tal tratado internacional pelo Brasil e, considerando o seu status de norma supralegal, de acordo com o entendimento so Supremo Tribunal federal, é certo que implica na atipicidade formal do crime de desacato.
PALAVRAS-CHAVE: Crime desacato. Atipicidade formal. Convenção Americana de Direitos Humanos.
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Desenvolvimento 3. Conclusão 4. Referências Bibliográficas.
1. Introdução
O artigo 331 do Código Penal tipificou como crime a conduta de “Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”, com pena de detenção de seus meses a dois anos ou multa.
Ocorre, entretanto, que, com amparo na Convenção Americana de Direitos Humanos (ratificada pelo Brasil no ano de 1992, conforme Decreto n° 678 de 06/11/1992), a condenação por tal delito afigura-se indevida, pois seu artigo 13 derrogou o art. 331 do Código Penal Brasileiro, por total descompasso entre a norma incriminadora e a liberdade de expressão assegurada pelo Pacto Internacional, in verbis:
“Artigo 13. Liberdade de Pensamento e de Expressão.
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidade ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei a ser necessárias para assegurar:
a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, como objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.
5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.”
2. Desenvolvimento
O Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil e incorporados ao direito interno têm natureza supralegal, na forma do art. 5°, §2° da CRFB/1988.
Dessa forma, tendo como parâmetro a citada interpretação, baseada na hierarquia das normas, a CADH encontra-se inegavelmente em posição superior às leis ordinárias e exrraordinárias, o que inclui a legislação penal.
Ademais, o Decreto que incorporou as normas da Convenção ao direito pátrio data do ano de 1992, sendo, portanto, norma ulterior revogadora de norma penal incriminadora anterior, considerando-se que o Decreto-Lei instituidor do crime de desacato no Código Penal data do ano de 1940.
Por sua vez, o órgão jurisdicional com competência autêntica para decidir em matéria de Convenção Americana de Direitos Humanos é a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com o reconhecimento pelo Brasil como obrigatória a competência da referida Corte “em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos” nos termos do art. 1º do Decreto nº 4.463/2002, torna-se imperioso que o Judiciário nacional garanta o fiel cumprimento deste tratado, em consonância com o que decide a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
E, neste diapasão, surge a imperiosa necessidade de se reconhecer a atipicidade da conduta tradicionalmente reconhecida jurídico-penalmente como adequada aos moldes do tipo penal de “desacato”.
Neste caminhar é que se mostra frontalmente violador do art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos o art. 331 do Código Penal, que tipifica a conduta de desacato, “porque se prestavam ao abuso como um meio para silenciar ideias e opiniões impopulares, reprimindo, desse modo, o debate que é crítico para o efetivo funcionamento das instituições democráticas”[1], além de proporcionar “um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos privados, em direta contravenção com o princípio fundamental de um sistema democrático, que sujeita o governo a controle popular para impedir e controlar o abuso de seus poderes coercitivos”[2].
Esse, inclusive, é o entendimento atual desta c. Corte Superior, conforme se constata da análise da jurisprudência abaixo:
“DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. ROUBO, DESACATO E RESISTÊNCIA. APELAÇÃO CRIMINAL. EFEITO DEVOLUTIVO AMPLO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. ROUBO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME DE ROUBO PARA O DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. TEMA NÃO PREQUESTIONADO. SÚMULAS 282 E 356 DO STF. DESACATO. INCOMPATIBILIDADE DO TIPO PENAL COM A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE.
1. Uma vez interposto o recurso de apelação, o Tribunal, respeitando o contraditório, poderá enfrentar todas as questões suscitadas, ainda que não decididas na primeira instância, desde que relacionadas ao objeto litigioso recursal, bem como apreciar fundamentos não acolhidos pelo juiz (arts. 10 e 1.013, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Civil, c/c art. 3º do Código de Processo Penal).
2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça afasta a aplicabilidade do princípio da insignificância em crimes cometidos mediante o uso de violência ou grave ameaça, como o roubo.
3. O pleito de desclassificação do crime de roubo para o de constrangimento ilegal carece da indicação do dispositivo legal considerado malferido e das razões que poderiam fundamentar o pedido, devendo-se aplicar o veto da Súmula 284/STF. Além disso, o tema não foi objeto de apreciação pelo Tribunal de origem, nem a parte interessada opôs embargos de declaração para suprir tal omissão, o que atrai o óbice das Súmulas 282 e 356 do STF.
4. O art. 2º, c/c o art. 29, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) prevê a adoção, pelos Estados Partes, de "medidas legislativas ou de outra natureza" visando à solução de antinomias normativas que possam suprimir ou limitar o efetivo exercício de direitos e liberdades fundamentais.
5. Na sessão de 4/2/2009, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar, pelo rito do art. 543-C do CPC/1973, o Recurso Especial 914.253/SP, de relatoria do Ministro LUIZ FUX, adotou o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 466.343/SP, no sentido de que os tratados de direitos humanos, ratificados pelo país, têm força supralegal, ‘o que significa dizer que toda lei antagônica às normas emanadas de tratados internacionais sobre direitos humanos é destituída de validade.’
6. Decidiu-se, no precedente repetitivo, que, ‘no plano material, as regras provindas da Convenção Americana de Direitos Humanos, em relação às normas internas, são ampliativas do exercício do direito fundamental à liberdade, razão pela qual paralisam a eficácia normativa da regra interna em sentido contrário, haja vista que não se trata aqui de revogação, mas de invalidade.’
7. A adequação das normas legais aos tratados e convenções internacionais adotados pelo Direito Pátrio configura controle de constitucionalidade, o qual, no caso concreto, por não se cuidar de convenção votada sob regime de emenda constitucional, não invade a seara do controle de constitucionalidade e pode ser feito de forma difusa, até mesmo em sede de recurso especial.
8. Nesse particular, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando do julgamento do caso Almonacid Arellano y otros v. Chile, passou a exigir que o Poder Judiciário de cada Estado Parte do Pacto de São José da Costa Rica exerça o controle de convencionalidade das normas jurídicas internas que aplica aos casos concretos.
9. Por conseguinte, a ausência de lei veiculadora de abolitio criminis não inibe a atuação do Poder Judiciário na verificação da inconformidade do art. 331 do Código Penal, que prevê a figura típica do desacato, com o art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, que estipula mecanismos de proteção à liberdade de pensamento e de expressão.
10. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH já se manifestou no sentido de que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário.
11. A adesão ao Pacto de São José significa a transposição, para a ordem jurídica interna, de critérios recíprocos de interpretação, sob pena de negação da universalidade dos valores insertos nos direitos fundamentais internacionalmente reconhecidos. Assim, o método hermenêutico mais adequado à concretização da liberdade de expressão reside no postulado pro homine, composto de dois princípios de proteção de direitos: a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos.
12. A criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado - personificado em seus agentes - sobre o indivíduo.
13. A existência de tal normativo em nosso ordenamento jurídico é anacrônica, pois traduz desigualdade entre funcionários e particulares, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito.
14. Punir o uso de linguagem e atitudes ofensivas contra agentes estatais é medida capaz de fazer com que as pessoas se abstenham de usufruir do direito à liberdade de expressão, por temor de sanções penais, sendo esta uma das razões pelas quais a CIDH estabeleceu a recomendação de que os países aderentes ao Pacto de São Paulo abolissem suas respectivas leis de desacato.
15. O afastamento da tipificação criminal do desacato não impede a responsabilidade ulterior, civil ou até mesmo de outra figura típica penal (calúnia, injúria, difamação etc.), pela ocorrência de abuso na expressão verbal ou gestual utilizada perante o funcionário público.
16. Recurso especial conhecido em parte, e nessa extensão, parcialmente provido para afastar a condenação do recorrente pelo crime de desacato (art. 331 do CP).
(...)
Alega o recorrente a existência de violação dos arts. 381, III, do Código de Processo Penal, 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos e 157 do Código Penal. (...) uma vez interposto o recurso de apelação, o Tribunal, respeitando o contraditório, poderá enfrentar todas as questões suscitadas, ainda que não decididas na primeira instância, desde que relacionadas ao objeto litigioso recursal, bem como apreciar fundamentos não acolhidos pelo juiz (arts. 10 e 1.013, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Civil, c/c art. 3º do Código de Processo Penal). (...) Ainda sobre o tema: ‘(...) 2. O efeito devolutivo da apelação é total ou parcial quanto à extensão e sempre integral quanto à profundidade. O Tribunal poderá analisar, com ampla profundidade, a pretensão recursal que lhe foi submetida, não ficando adstrito aos fundamentos adotados em primeiro grau, desde que respeitada a extensão objetiva do recurso. (...)’ (HC 311.439/DF, Rel. Ministro ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, DJe 2/2/2016.) O agravo foi convertido em recurso especial, conforme o disposto no art. 253, parágrafo único, II, "d", do RISTJ. (...) O art. 2º, c/c o art. 29, da Convenção Americana de Direitos Humanos prevê a adoção, pelos Estados Partes, de ‘medidas legislativas ou de outra natureza’, visando à solução de antinomias normativas que possam suprimir ou limitar o efetivo exercício de direitos e liberdades fundamentais: (...) Na sessão de 4/2/2009, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar, pelo rito do art. 543-C do CPC/1973, o Recurso Especial 914.253/SP, de relatoria do Ministro LUIZ FUX, adotou o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 466.343/SP, no sentido de que os tratados de direitos humanos, ratificados pelo país, têm força supralegal, ‘o que significa dizer que toda lei antagônica às normas emanadas de tratados internacionais sobre direitos humanos é destituída de validade.’ (...) Os acórdãos acima mencionados, ao reconhecerem o caráter supralegal dos tratados que cuidam da proteção aos direitos humanos, enfatizaram que, ‘no plano material, as regras provindas da Convenção Americana de Direitos Humanos, em relação às normas internas, são ampliativas do exercício do direito fundamental à liberdade, razão pela qual paralisam a eficácia normativa da regra interna em sentido contrário, haja vista que não se trata aqui de revogação, mas de invalidade’ (REsp 914.253/SP). (...) Dessarte, ao contrário do que entenderam as instâncias ordinárias, a ausência de lei veiculadora de abolitio criminis não inibe a atuação do Poder Judiciário na verificação de possível inconformidade do art. 331 do CP, que prevê a figura típica do desacato, com o art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, que estipula mecanismos de proteção à liberdade de pensamento e de expressão. (...) A Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH já se manifestou a respeito do tema em casos que envolveram Argentina, Chile, Panamá, Peru e Venezuela, resultando, sempre, em decisões pela prevalência do art. 13 do Pacto de São José sobre normas internas que tipificam o crime em exame. Destaca-se, como paradigma, o Caso n. 11.012, relativo ao jornalista Horácio Verbitsky, condenado por desacato em razão de ter chamado de ‘asqueroso’ o Ministro Augusto César Belluscio, da Suprema Corte de Justiça da República Argentina. A controvérsia foi resolvida mediante o compromisso do país vizinho no sentido de extirpar de seu ordenamento jurídico o delito de desacato. No caso Palamara Iribarne v. Chile (2005) a solução não foi amistosa, tendo a CIDH considerado que a República do Chile violou o disposto no art. 13 da Convenção ante a imputação do crime de desacato ao escritor Humberto Antonio Palamara Iribarne. No relatório especial de 1995, a Comissão afirmou que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment , bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário (CIDH, Relatório sobre a compatibilidade entre as leis de desacato e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, OEA/Ser. L/V/II.88, doc. 9 rev., 17 de fevereiro de 1995, 197-212) . A CIDH, em seu 108º período ordinário de sessões, realizado de 16 a 27/10/2000, aprovou a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, que estatui: "11. Os funcionários públicos estão sujeitos a um maior controle por parte da sociedade. As leis que punem a manifestação ofensiva dirigida a funcionários públicos, geralmente conhecidas como 'leis de desacato', atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação." (...) Assim mesmo, o Brasil não retirou da legislação o crime de desacato, o que, a teor de denúncias formuladas pelas Defensorias Públicas da União e do Estado de São Paulo à CIDH, consubstanciaria descumprimento do art. 13 da CADH e do respectivo Princípio sobre Liberdade de Expressão n. 11. Com semelhantes argumentos, em 31/5/2016, a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Doutora DEBORAH DUPRAT, representou ao Procurador-Geral da República pela propositura de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental perante o Supremo Tribunal Federal. A proposta de ADPF, disponível no sítio eletrônico http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/temas-de-atuacao/direitos-humanos/i nternacionais/atuacao-do-mpf/representacao-proposicao-adpf-crime-desacato, destaca que a tipificação do crime de desacato ‘atenta contra o regime democrático, na medida em que impede o controle da atuação de servidores públicos a propósito de suas funções. Do mesmo modo, inibe a liberdade de expressão nos seus aspectos e fundamentos essenciais, além de atingir mais severamente aqueles que estão em luta pela implementação de seu catálogo de direitos, em clara ofensa ao princípio da igualdade.’ Ressalta que a situação ‘compromete o Brasil no cenário internacional, em razão do não cumprimento de obrigações às quais aderiu livremente.’ A existência do crime do art. 331 do CP, para a PFDC, não raras vezes, serviu de instrumento de abuso de poder pelas autoridades estatais, para suprimir direitos fundamentais, em especial a liberdade de expressão (...) A adesão ao Pacto de São José significa a transposição, para a ordem jurídica interna, de critérios recíprocos de interpretação, sob pena de negação da universalidade dos valores insertos nos direitos fundamentais nele reconhecidos. (...) Não há dúvida de que a criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado - personificado em seus agentes - sobre o indivíduo. Afinal, é da Doutrina o conceito de que ‘todo funcionário público, desde o mais graduado ao mais humilde, é instrumento da soberana vontade e atuação do Estado’, daí a especial proteção que lhe consagra a lei penal (HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. v. 9. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 420). A continuar dessa forma, o funcionário púbico que se sentir vitimado por qualquer desaire tem direito de invocar a cláusula absolutista e dizer, sem exagero, L'État c'est moi, porquanto com respaldo no art. 331 do CP. (...) Louvo-me, no aspecto, na argumentação expendida pelo Subprocurador-Geral da República, Doutor NÍVIO DE FREITAS SILVA FILHO, para ‘ressaltar que eventuais condutas que exorbitem os limites da razoabilidade podem ser suficientemente responsabilizadas por instrumentos de natureza cível e mesmo penal, aplicáveis a toda e qualquer pessoa, mostrando-se desnecessário manter um tipo dotado de conceitos vagos e imprecisos, que tem servido mais como meio de intimidação dos cidadãos do que para a proteção da Administração Pública.’ Com razão, portanto, o recorrente, no ponto em que aduz a inviabilidade da condenação por desacato com fundamento em tipo penal incompatível com os parâmetros normativos oferecidos pelo art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, do qual a República Federativa do Brasil é signatária. Ante o exposto, conheço em parte do recurso especial e, nessa extensão, dou-lhe parcial provimento, para afastar a condenação do recorrente pelo delito de desacato (art. 331 do Código Penal). (REsp 1640084/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 15/12/2016, DJe 01/02/2017) (grifos nossos)
3. Conclusão
Por todo exposto, outra não pode ser a conclusão de que há incompatibilidade entre a previsão do crime de desacato do Código Penal e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Nesse sentido é o entendimento da Relatoria para Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos[3], ou seja, de que não há como deixar de concluir que as leis nacionais que estabelecem crimes de desacato são contrárias ao artigo 13 da CADH, incongruentes com a estrutura do Estado Democrático de Direito. In verbis:
“(...) La protección especial que brindan las leyes de desacato a los funcionarios públicos contra un lenguaje insultante u ofensivo es incongruente con el objetivo de una sociedad democrática de fomentar el debate público. Ello es especialmente así teniendo en cuenta la función dominante del gobierno en la sociedad y, particularmente, donde se dispone de otros medios para responder a ataques injustificados mediante el acceso del gobierno a los medios de difusión o mediante acciones civiles individuales por difamación y calumnia. Toda crítica que no se relacione con el cargo del funcionario puede estar sujeta, como ocurre en el caso de todo particular, a acciones civiles por difamación y calumnia. En este sentido, el encausamiento por parte del gobierno de una persona que critica a un funcionario público que actúa en carácter oficial no satisface los requisitos del artículo 13(2) porque se puede concebir la protección del honor en este contexto sin restringir la crítica a la administración pública. En tal sentido, estas leyes constituyen también un medio injustificado de limitar el derecho de expresión que ya está restringido por la legislación que puede invocar toda persona, independientemente de su condición.
Es más, la Comisión observa que, contrariamente a la estructura que establecen las leyes de desacato, en una sociedad democrática, las personalidades políticas y públicas deben estar más expuestas --y no menos expuestas-- al escrutinio y la crítica del público. La necesidad de que exista un debate abierto y amplio, que es crucial para una sociedad democrática, debe abarcar necesariamente a las personas que participan en la formulación o la aplicación de la política pública. Dado que estas personas están en el centro del debate público y se exponen a sabiendas al escrutinio de la ciudadanía, deben demostrar mayor tolerancia a la crítica”
As ações tificadas como descato demonstram, na verdade, o inconformismo, o protesto, a indignação quanto à forma de condução da atividade pública. Assim, o exercício do direito de crítica de um serviço prestado pelo Estado jamais poderia se reverter em crime, por ser parte indissociável do próprio exercício da democracia.
Em virtude destes argumentos, nenhuma pessoa deveria sofrer condenação criminal e ter sua liberdade restringida por norma de direito interno que colide com tal Convenção, e essa providência – revogação expressa da Lei Penal incriminadora – já foi adotada por alguns países da América Latina, com vistas a atender ao Pacto, a saber, Argentina, Peru, Costa Rica, Honduras e Guatemala.
4. Referências Bibliográficas[4]
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 220.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 13
[1] Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório sobre a compatibilidade entre as leis de desacato e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, OEA/Ser. L/V/II.88, doc. 9 rev., 17 de fevereiro de 1995, 197-212.
[2] Idem
[3] Disponível em https://www.cidh.oas.org/annualrep/94span/cap.V.htm. Acesso em 16/06/2015 às 16:00h
[4] Artigo desenvolvido com base em minuta elaborada para o Recurso Especial nº 000608-55.2012.8.19.0007 na Assessoria Criminal da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
Técnico Superior Jurídico da Defensoria Púlica do Estado do Rio de Janeiro. Graduação em Direito na UERJ. Pós Graduação em Direito Administrativo na UCAM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BLANCO, Thais Cristina Muniz. Da Atipicidade do Crime de Desacato Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jul 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50512/da-atipicidade-do-crime-de-desacato. Acesso em: 08 nov 2024.
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