RESUMO: inspirado no artigo Responsabilidade Fiscal, Renúncia de Receitas e Guerra Fiscal, de Betina Treiger Grupenmacher o artigo busca dar novas contribuições à análise de uma das qualidades da competência tributária: a facultatividade. Discute-se se, com a edição da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), a competência para instituição de tributos teria passado a ser obrigatória.
Palavras-chaves: Competência tributária. Facultatividade. Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).
Sumário: INTRODUÇÃO. 1 - DA FACULTATIVIDADE OU OBRIGATORIEDADE DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA; a) Competência tributária x Competência para legislar sobre direito tributário; b) Visão clássica pela facultatividade; c) A Lei Complementar nº 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a tese da obrigatoriedade; d) A obrigatoriedade do exercício da competência para criação do ICMS; CONCLUSÃO.
INTRODUÇÃO
O exercício da competência tributária é um dos pilares da autonomia financeira dos entes federativos, sobretudo pelos entes de menor abrangência, que, pela forma de Estado adotada pela Constituição Federal, acabaram por receber menos fontes de recurso quando comparados à União. A autonomia financeira, diga-se, é pressuposto indissociável das autonomias política, administrativa e legislativa, propaladas pelo art. 18 da Carta.
A precisa compreensão da competência legislativa tributária, além de alicerce fundamental da autonomia dos entes federativos, é essencial para garantia dos direitos dos contribuintes. Conforme aponta Carrazza[1], a repartição de competências tributárias encerra duplo comando: habilitam a pessoa política contemplada – e somente ela – a criar o tributo (aspecto positivo); e proíbem as demais de fazê-lo (aspecto negativo).
Contudo, não basta a atribuição constitucional da competência para assegurar a autonomia financeira dos entes. É necessária a integração pelo legislador infraconstitucional, a quem cabe a instituição do tributo. Geraldo Ataliba atenta para a questão:
Efetivamente, não basta que a lei atribua certa parcela da riqueza privada – segundo o critério da capacidade contributiva, ou outro – ao estado. Para que a expressão financeira desta parcela de riqueza vá para os cofres públicos, há a necessidade de que gestos humanos, atos humanos (o comportamento humano) a levem[2].
A reflexão que se propõe é: o exercício dessa competência tributária é facultativo ou obrigatório? A Lei de Responsabilidade Fiscal, ao estabelecer como requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação, teria tornado o exercício da competência tributária obrigatório?
1. DA FACULTATIVIDADE OU OBRIGATORIEDADE DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA
a. Competência tributária x Competência para legislar sobre direito tributário
A princípio, deve-se delimitar o objeto do debate. Aqui nos referimos exclusivamente à competência para instituição de tributos, outorgada pela Constituição Federal. Não se confunde, portanto, com a competência genérica para editar leis que tracem regras sobre o exercício do poder de tributar.
Como esclarece Ricardo Alexandre[3], foi exercendo a competência para legislar sobre direito tributário que a União editou o Código Tributário Nacional, dispondo sobre normas gerais sobre tal ramo do direito. Mas foi exercendo a competência tributária que a União, por exemplo, por meio de lei federal, instituiu o PIS e a COFINS.
b. Visão clássica pela facultatividade
A doutrina majoritária sempre defendeu que a competência tributária seria facultativa. A Constituição Federal outorgaria aos entes federativos a possibilidade de instituir os tributos nela discriminados, mas não impunha qualquer dever neste sentido. Para Roque Antonio Carrazza, por exemplo, “a competência tributária é a faculdade de editar leis que criem, in abstracto, tributos”[4].
Sendo o exercício da competência tributária uma prerrogativa legislativa e inexistindo mecanismos de ordem constitucional que obriguem o legislativo a criar tributos, a facultativade é ilação necessária a que se chega a partir da interpretação sistemática do Texto Constitucional e, por essa razão, não se pode afirmar, em relação à competência tributária, que a inércia do legislador caracterizaria uma omissão inconstitucional[5].
c. A Lei Complementar nº 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a tese da obrigatoriedade
No que concerne ao movimento de formação, a República Federativa do Brasil se originou de um movimento centrífugo, a partir da descentralização de um Estado unitário centralizado. Todavia, no que tange à concentração de atribuições, diz-se que o Brasil adotou o modelo centrípeto, verificando-se uma maior gama de competências, inclusive para instituição de tributos, no ente central (União).
Esse modelo de Estado acaba por limitar o poder arrecadatório dos entes federativos menores, quando comparados à União. Sobretudo nos Municípios menos populosos, há impostos cuja criação não é política ou economicamente vantajosa. Diante de insuficiências de caixa, os entes menores têm duas opções: ou aumentam a carga tributária ou pleiteiam transferências por parte do ente central.
Como se sabe, o aumento ou criação de impostos é medida politicamente delicada, que pode se refletir nas urnas. Diante disso, muitos Municípios, ao invés de buscar o reforço orçamentário por meio da competência tributária, preferem se sustentar nas transferências voluntárias da União. A adoção dessa prática por um vasto número de municípios acabou por onerar significativamente os cofres federais.
Como forma de frear esse costume, o art. 11 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) previu como requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação. No parágrafo único, vedou a realização de transferências voluntárias para o ente que não observasse o disposto no caput, em relação aos impostos.
Diante do surgimento desta norma, houve quem sustentasse a obrigatoriedade da competência tributária, vez que a LRF impunha uma sanção ao ente omisso. Por outro lado, houve quem defendesse a inconstitucionalidade do art. 11 e seu parágrafo único, vez que a Constituição ostentaria caráter facultativo ao exercício da competência. Entendo que nenhuma das teses está correta. Como veremos, o art. 11 da LRF é constitucional, o que não retira a facultatividade da competência tributária.
No julgamento da ADI nº 2.238/DF[6], o STF se debruçou sobre a constitucionalidade dos dispositivos, mas o fundamento da alegada inconstitucionalidade não era a facultatividade da competência tributária, mas sim o art. 160 da CF, que vedaria a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego dos recursos atribuídos, na forma prevista na Carta, aos Estados e Municípios. Na oportunidade, fazendo a distinção entre transferências obrigatórias e voluntárias, pontuou que a restrição destas últimas a entes que se revelem negligentes na instituição, previsão e arrecadação de tributos não afronta a Constituição, sendo constitucional a previsão da LRF.
A doutrina passou a defender uma interpretação finalística da LRF, pela qual se exigiria apenas a criação dos tributos economicamente viáveis, isto é, que a arrecadação fosse maior que o custo de cobrança. O argumento é coerente, posto que o objetivo da LC nº 101/00 foi justamente a busca da responsabilidade na gestão fiscal. Mas podemos ir além. A competência tributária é facultativa para todo e qualquer tributo, viável ou não, inclusive para impostos.
O que o art. 11 da LRF esclarece é que o não exercício da competência tributária equivale à renúncia de receita. Assim, caso os entes optem por não instituir determinado imposto, deve observar uma série de requisitos previstos no art. 14 da mesma LC nº 101/00[7].
Efetivamente, a competência tributária era, antes da edição da Lei Complementar 101/2000, e ainda é, facultativa, ou seja, as Pessoas Políticas de Direito Público podem deixar de instituir ou arrecadar os tributos que estão na sua competência constitucional impositiva; no entanto, após a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal, se deixarem de instituí-los ou arrecadá-los, tal comportamento se compreende como renúncia de receita e, nessa hipótese, como anteriormente expostos, devem em contrapartida, apresentar estimativa de impacto orçamentário financeiro da medida adotada, demonstrando de que forma se fará a compensação da perda de receita, a fim de que não restem afetadas as metas de resultados fiscais previstas na respectiva lei orçamentária anual, para que se opere o equilíbrio das finanças públicas[8].
O espírito do art. 14, §3º, II da LRF, que dispensa a observância das exigências do caput quando do cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança, compactua com o argumento da dispensabilidade da instituição de tributos inviáveis. Assim, tratando-se do que a doutrina conveio chamar de tributos “viáveis”, deve-se observar as condições do art. 14. Revelando-se os tributos “inviáveis”, as condições são dispensadas.
No que tange mais precisamente aos impostos, a LC nº 101/00 previu outra condição. O ente que não os institui, em face da presunção de superávit orçamentário, não poderão receber transferências voluntárias. Contudo, se o ente comprova que os custos de cobrança são superiores ao montante que seria arrecadado, não incide a restrição às transferências, em face da aplicação analógica do art. 14, §3º, II da LRF.
Vale um alerta quanto ao que seria “renúncia de receita”. Como a expressão já sugere, a renúncia se dá sobre a receita. A competência é irrenunciável, não havendo nenhum empecilho para que os entes, por vontade política superveniente, optem por instituir determinado tributo. A “receita renunciada” é intangível, até porque, pelo princípio da irretroatividade, a incidência tributária só se dará sobre os fatos geradores posteriores à sua instituição.
Tácio Lacerda Gama leciona:
[...] não se confundem a renúncia e o não exercício da competência tributária. Uma coisa é, por decisão própria, alterar os termos da competência, abrindo mão da faculdade de, posteriormente, editar normas. Outra, bem distinta, é, simplesmente, exercer o direito de não exercitar tal competência, não criando norma[9].
Outro ponto que merece destaque é a caracterização do lançamento como atividade vinculada, sob pena de responsabilidade fiscal, conforme determina o parágrafo único do art. 142 do CTN. Isso quer dizer que o ente federativo tem a faculdade para instituir ou não o tributo. Todavia, instituído este e verificado o fato gerador da exação, não há discricionariedade administrativa: o lançamento deve ser feito e os valores arrecadados.
d. A obrigatoriedade do exercício da competência para criação do ICMS
Paulo de Barros Carvalho critica a qualidade de faculdade que se atribui à competência tributária. Reconhece que a facultatividade é a regra geral, mas aponta uma exceção que vem para solapar o caráter de universalidade da proposição: O ICMS[10]. Segundo defende o autor, pela índole eminentemente nacional deste imposto, não é dado a qualquer Estado-membro ser omisso quanto à sua instituição. O autor aponta os riscos dessa omissão:
[...] Caso houvesse uma só unidade da federação que empreendesse tal procedimento e o sistema do ICMS perderia consistência, abrindo-se ao acaso das manipulações episódicas, tentadas com tanta frequência naquele clima que conhecemos por “guerra fiscal”. Seria efetivamente um desastre para a sistemática impositiva da exação que mais recursos carreia para o erário do País. O ICMS deixaria, paulatinamente, de existir.
O argumento é perspicaz, contudo, com a devida vênia, parece-me partir de uma visão econômica do direito, método interpretativo que é criticado com veemência pelo autor[11]. De fato, reconhece-se que a inércia de algum estado-membro em instituir o ICMS teria sérios reflexos na arrecadação nacional, mas não vislumbro amparo jurídico suficiente para afirmar que a criação desse imposto seria obrigatória.
CONCLUSÃO
A competência para instituir tributos é facultativa, inclusive quanto aos tributos que se dizem viáveis. Mesmo com a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal, prevendo como requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação, essa qualidade se sustenta.
O que a LRF fez foi criar condições para que os entes federativos possam renunciar à receita que seria arrecada com os tributos, prezando pela responsabilidade na gestão fiscal. A omissão quanto à criação do tributo não impede que, por vontade política superveniente, o ente venha a instituí-lo. A competência é facultativa e incaducável. Todavia, instituído o tributo, não há discricionariedade no lançamento e consequente arrecadação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 9. ed. rev., atual. e ampl. – Rio da Janeiro: Forense; São Paulo MÉTODO, 2015, p. 191-192.
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 28.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
CARRAZA, Roque Antônio - Impossibilidade de conflitos de competência no sistema tributário brasileiro - http://www.ibet.com.br/download/Roque%20Antonio%20Carrazza.pdf – acesso em: 19/07/2017, p. 6.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário: 24. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012, p. 276.
CARVALHO, Paulo de Barros. O ABSURDO DA INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA DO “FATO GERADOR” Direito e sua autonomia – o paradoxo da interdisciplinariedade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, vol. 102, p. 441 – 456, jan./dez. 2007.
GAMA, Tácio Lacerda. Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade. São Paulo: Noeses, 2009, p. 275.
GRUPENMACHER, Betina Treiger. Responsabilidade Fiscal, Renúncia de Receitas e Guerra Fiscal. Lei de Responsabilidade Fiscal: 10 anos de vigência – questões atuais. Instituto Brasileiro de Direito Financeiro – IBDF. Coord. Fernando Facury Scaff e José Maurício Conti. Porto Alegre: Conceito, 2010.
[1] CARRAZA, Roque Antônio - Impossibilidade de conflitos de competência no sistema tributário brasileiro - http://www.ibet.com.br/download/Roque%20Antonio%20Carrazza.pdf – acesso em: 19/07/2017, p. 6.
[2] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 28.
[3] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 9. ed. rev., atual. e ampl. – Rio da Janeiro: Forense; São Paulo MÉTODO, 2015, p. 191-192.
[4] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 287.
[5] GRUPENMACHER, Betina Treiger. Responsabilidade Fiscal, Renúncia de Receitas e Guerra Fiscal. Lei de Responsabilidade Fiscal: 10 anos de vigência – questões atuais. Instituto Brasileiro de Direito Financeiro – IBDF. Coord. Fernando Facury Scaff e José Maurício Conti. Porto Alegre: Conceito, 2010.
[6] ADI 2.238-MC/DF. Relator Min. Ilmar Galvão. DJe 11/09/2008
[7] Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:
I - demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;
II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
[8] GRUPENMACHER, Betina Treiger. Responsabilidade Fiscal, Renúncia de Receitas e Guerra Fiscal. Lei de Responsabilidade Fiscal: 10 anos de vigência – questões atuais. Instituto Brasileiro de Direito Financeiro – IBDF. Coord. Fernando Facury Scaff e José Maurício Conti. Porto Alegre: Conceito, 2010.
[9] GAMA, Tácio Lacerda. Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade. São Paulo: Noeses, 2009, p. 275.
[10] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário: 24. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012, p. 276.
[11] CARVALHO, Paulo de Barros. O ABSURDO DA INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA DO “FATO GERADOR” Direito e sua autonomia – o paradoxo da interdisciplinariedade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, vol. 102, p. 441 – 456, jan./dez. 2007.
Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Graduado pela Faculdade de Direito do Recife - UFPE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Henrique Portela. A facultatividade da competência tributária: novas considerações quanto ao art. 11 da lei de responsabilidade fiscal. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jul 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50535/a-facultatividade-da-competencia-tributaria-novas-consideracoes-quanto-ao-art-11-da-lei-de-responsabilidade-fiscal. Acesso em: 12 nov 2024.
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