Na última semana diversas mídias publicaram a notícia de um projeto de inteligência artificial (AI) desenvolvido pelo Facebook para práticas de negociação. No sítios Independent e Digital Journal, entre outros locais e meios de informação, noticiou-se que a Divisão de Pesquisa do Facebook, a Facebook AI Research (FAIR), estaria desativando um projeto de inteligência artificial (AI) pois, segundo se relata, os robôs Bob e Alice, projetados para “conversarem” como se estivessem negociando uma troca, teriam desenvolvido uma linguagem própria, aparentemente ininteligível para os pesquisadores, mas efetiva para obter os resultados pretendidos, o acordo em torno de uma negociação[1].
A linguagem criada por Bob e Alice permitia que estes conseguissem se entender melhor e, assim, o resultado “acordo” era maximizado. Ou seja, com uma linguagem aparentemente non sense, a AI do Facebook produzia os resultados queridos, obtendo, assim, os incentivos programados – Bob e Alice recebiam “pontos” nas negociações “bem sucedidas”, deixando de auferir “benefícios” quando não efetivados os acordos.
Esta notícia traz uma série de (sérias) possibilidades para se pensarem não apenas os diversos modelos de justiça consensual – de jurisconstrução como nomeei há cerca de uma década – mas, em particular, as práticas implementadas por estas plagas, em especial aquelas executadas no âmbito dos CEJUSCs, insertos no Poder Judiciário brasileiro, voltados à “resolução” consensual de conflitos.
Desde a sua origem, alguns chamaram a atenção acerca das implicações das novas tecnologias no Direito. Em especial, podemos dizer que a dita Quarta Revolução Industrial, com a sua velocidade peculiar, põe em questão muitas das fórmulas jurídico-políticas modernas. Se, por um lado, permite a constituição de uma democracia tecnológica, por outro faz envelhecer, muitas vezes precocemente, práticas que sequer atingiram seu pleno potencial.
Neste aspecto, as potencialidades da AI, que parecem infinitas, têm indicado que sua utilização no campo jurídico – em suas diversas facetas – parece pôr em xeque modelos e práticas tradicionais de exercício das atividades jurídicas e, agora, também as ditas fórmulas “alternativas” de tratamento de conflitos.
Em particular, a notícia antes referida nos confronta com aquilo que se está fazendo em termos de políticas judiciárias de gestão da crise do sistema de prestação jurisdicional, utilizando meios consensuais.
De há muito se conhece e discute a chamada “crise da justiça”, em especial como “crise do poder judiciário”. Neste ponto, entre outros aspectos que aqui não cabem – para isso veja-se o meu Mediação e Arbitragem. Alternativas à Jurisdição, com Fabiana M. Spengler -, as fórmulas consensuais ganharam um status até há pouco inédito, sobretudo desde 2010, com a edição da Portaria CNJ n. 125/2010, e, ainda mais, em 2015, com o Novo Código de Processo Civil e a Lei n. 13140.
Hoje, o tema do consenso, especialmente sob a fórmula da mediação, passou de “patinho feio” a “objeto de desejo”. Ganhou uma centralidade nunca antes experimentada. Se isso pode significar um ganho por um lado, por outro traz muitas preocupações, em particular quando submetido às estratégias de gestão do fluxo input/output do Poder Judiciário e a modelos de obtenção do consenso voltados a resultado – no caso, o acordo.
É aqui que entra o que vou nomear “modelo Bob&Alice” de obtenção do consenso.
Mesmo que, ainda, não tenhamos os robôs negociadores/conciliadores/mediadores, até mesmo porque, ao que parece, os pesquisadores do Facebook resolveram “descontinuar” – palavra muito cara às práticas neoliberais – a pesquisa, o que as informações que chegam das experiências jurisdicionais de consenso – sem desconhecer ou menosprezar os resultados obtidos e aquelas práticas diferenciadas – nos levam a questionar se já não adotamos este modelo de obtenção de consenso.
Ora, se as práticas consensuais ali postas em ação estão submetidas à obtenção de resultados – e, aqui, resultado significa “acordo” –, não estamos longe de criarmos – se já não criadas – linguagens que otimizem a chegada a esses mesmos resultados.
E estas linguagens – algumas também ininteligíveis, outras já dissecadas (o que deixaremos de tratar aqui e agora) – vão de encontro às potencialidades disruptivas que os “consensos” podem ter, sobretudo se entendidos como uma nova cultura jurídica,…, como um modo de lidar com o inesperado e transformar o conflito…” – como chamava a atenção Luis Alberto Warat (In: Epistemologia e Ensino do Direito: o sonho acabou).
Dito de outro modo, o eficientismo e o finalismo (acordo), que parecem nortear as práticas consensuais jurisdicionais – e não só elas –, dialogam diretamente com as pesquisas da FAIR.
O “modelo Bob&Alice”, no qual o “incentivo” ao acordo leva à construção de práticas que maximizem este resultado, inclusive com o uso de linguagens ininteligíveis – que podem ser traduzidas por linguagens autoritárias, impositivas, condicionantes etc –, parece já estar “instalado”.
E os robôs, “descontinuados” pela FAIR do Facebook, já estão por aí…em carne e osso.
Notas e Referências:
[1] E poderíamos mencionar outras tantas “possibilidades”, do tipo on line dispute resolution (ODR). Ver, a título exemplificativo: https://www.theguardian.com/law/2015/feb/16/online-court-proposed-to-resolve-claims-of-up-to-25000
Precisa estar logado para fazer comentários.