Orientador (a): José Rapahel Batista Freire[1]
Resumo: O Novo Código de Processo Civil que passou a vigorar no ano de 2015 trouxe em seu bojo diversas inovações. Dentre elas está a inserção de uma cláusula geral ao Negócio Jurídico Processual, o qual, em síntese, possibilita as partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa. Inserida, também está a norma da impenhorabilidade prevista no artigo 833 do CPC/15, a qual por muitos doutrinadores é adjetivada de absoluta. Com o desenvolver da presente pesquisa, averiguar-se-á, se as partes de um processo, com base nessa cláusula genérica, poderiam negar o carácter absoluto da impenhorabilidade do artigo 833 do CPC/15, considerando que tal instituto está intimamente ligado a dignidade da pessoa humana, à medida que busca defender o mínimo existencial do executado.
Palavras-chave: Negócio Jurídico Processual, Impenhorabilidade do artigo 833, Novo Código de Processo Civil.
O Código de Processo civil de 2015 (CPC/2015) trouxe diversas inovações, dentre elas está o Negócio Jurídico Processual, o qual será abordado no transcorrer deste artigo. Contudo, de forma sucinta e inaugural, pode ser definido como “uma modalidade de flexibilização do procedimento permitindo às partes escolher entre ‘circuitos’ processuais”[2]. Para que essa flexibilização tenha maior aplicação, inseriu-se o artigo 190 do CPC/2015 uma cláusula genérica que por se tratar de algo novo e de maior abrangência, suscita dúvidas quanto à sua aplicação e relação prática com alguns outros institutos jurídicos. Dentre eles se destaca a chamada impenhorabilidade prevista de forma expressa no artigo 833 do CPC/2015, que regulamenta que determinados bens, por conta da importância, são impenhoráveis, salvo casos expressos em lei. Por esse motivo que alguns doutrinadores, como Elpídio Donizetti[3] (2016), por exemplo, classificam esta impenhorabilidade como “absoluta”. Sem muita dificuldade de perceber a importância da impenhorabilidade, que será comentada adiante, no tocante a proteger o mínimo existencial daquele que está submetido a um processo de execução e consequentemente garantir a dignidade humana. Mas emerge o questionamento a respeito de como os dois institutos coexistiriam na hipótese de partes plenamente capazes de um processo convencionarem a mitigação do caráter absoluto inerente a este instituto. Se o contido na cláusula geral do artigo 190 do CPC/2015 autorizaria essa relativização.
Como regra, na busca da satisfação do exequente, a responsabilidade patrimonial é ampla, de modo que todos os bens do executado podem responder pela dívida, ou nas palavras de Donizetti (2016, p. 1149) “Em princípio, todos os bens de propriedade do devedor ou dos responsáveis pelo débito são passíveis de penhora”[4]. O procedimento de penhora visa justamente delimitar quais os bens que serão alvo da execução, como prelecionam Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero e Sérgio Cruz Arenhart[5] que “A penhora é procedimento de segregação dos bens que efetivamente se sujeitarão à execução, respondendo pela dívida adimplida. Até a penhora, a responsabilidade patrimonial é ampla, de modo que praticamente todos os seus bens respondem por suas dívidas”. (grifa-se)
O uso do termo “praticamente”, demonstra que há um ponto no qual o Exequente tem sua atuação restringida. Conforme prevê o CPC/2015, em seu artigo 789, “o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei” [6]. A restrição na qual o artigo trata diz respeito aos casos de impenhorabilidade considerando que “Há bens absolutamente impenhoráveis e bens relativamente impenhoráveis. Os primeiros não podem ser penhorados em hipótese alguma”[7].Quando o mencionado doutrinador se refere aos bens absolutamente impenhoráveis, ele faz menção aqueles previstos no artigo 833 e incisos o qual define de forma taxativa os bens que não podem ser alvo da execução, exceto nos casos estritamente previstos em lei, ou seja, quando “a execução de dívida é relativa ao próprio bem” (§1º do art. 833 do CPC/2015) e quanto ao “pagamento de prestação alimentícia, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais no que diz respeito aos incisos IV e X” (§2º do art. 833 do CPC/2015), por exemplo.
Em que pese haver uma forte aplicação do Estado no desempenho de sua função jurisdicional na tentativa de garantir a satisfação do exequente, é possível que o valor devido não seja adimplido caso o devedor tenha em sua posse somente bens impenhoráveis. Nesse sentido, podemos destacar a abordagem de Didier Júnior[8]:
“O princípio da efetividade choca-se muita vez com os princípios que protegem o executado, como o princípio da dignidade da pessoa humana, que, embora também sirva ao exequente, costuma ser invocado para fundamentar a existência de uma série de regras de tutela do executado, como, por exemplos, as regras que preveem as impenhorabilidades”
Em épocas passadas, mais precisamente no Império Romano, não havia qualquer espécie de refreamento, de modo que, não somente os bens imprescindíveis ao mínimo existencial do executado podiam ser afetados, mas também, o corpo do devedor podia ser objeto da execução, como explica Assumpção Neves, que “No direito romano a execução era extremamente violenta, permitindo-se a privação corporal e até mesmo a morte do devedor. A famosa Lei das XII Tábuas choca ao estabelecer que em determinadas condições seria possível dividir o corpo do devedor em tantos pedaços quantos sejam os credores” [9]
Com o passar dos anos, houve uma evolução, conforme explica Assumpção Neves, ao se “proibir a morte e o acorrentamento do devedor, a prever de forma institucionalizada a satisfação do crédito mediante a prestação de trabalhos forçados” [10]. Mas o jurista continua explicando que somente no período clássico é que se passou a incidir uma certa limitação à expropriação patrimonial.
Atualmente, está presente, no ordenamento jurídico Pátrio, uma realidade totalmente diversa daquela vivida no Império Romano, uma vez que “A lei brasileira, observando critérios humanitários ou particulares de certas situações de direito material, ressalva determinados bens da responsabilidade por dívidas”[11]. Nesse mesmo contexto, preleciona Theodoro Júnior
“(...) não pode a execução ser utilizada para causar a extrema ruína, que conduza o devedor e sua família à fome e ao desabrigo, gerando situações aflitivas inconciliáveis com a dignidade da pessoa humana. E não é por outra razão que nosso Código de Processo Civil não tolera a penhora de certos bens econômicos como provisões de alimentos, salários, instrumentos de trabalho, pensões, seguro de vida etc”[12]
Portanto, extrai-se de tal entendimento que, por mais que a impenhorabilidade seja uma exceção à regra do princípio da patrimonialidade, nos casos em que ela se manifesta é de crucial importância que seja resguardada, pois busca evitar que o processo de execução gere a penhora de bens imprescindíveis ao mínimo existencial do executado. Sobre o assunto, Sarlet e Figueiredo desenvolvem uma importante diferenciação entre o mínimo existencial e vital:
“(...) mínimo existencial, que não pode ser confundido com o que se tem chamado de mínimo vital ou um mínimo de sobrevivência, de vez que este último diz com a garantia da vida humana, sem necessariamente abranger as condições para uma sobrevivência física em condições dignas, portanto, de uma vida com certa qualidade. Não deixar alguém sucumbir à fome certamente é o primeiro passo em termos da garantia de um mínimo existencial, mas não é – e muitas vezes não o é sequer de longe – o suficiente”[13]
Na visão de Paula de Barcellos “o mínimo existencial corresponderia a um elemento constitucional essencial, pelo qual se deve garantir um conjunto de necessidades básicas do indivíduo”[14]. Portanto a impenhorabilidade tem uma importante função de garantir o mínimo existencial que por sua vez é instituto intimamente relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana, inclusive previsto na Constituição Federal como direito fundamental, o que significa que qualquer negócio jurídico que trate a respeito desse assunto deve ser analisado com muita cautela pelo juiz conforme será visto adiante.
O Negócio Jurídico Processual não é um instituto novo, uma vez que, apesar de se apresentar de maneira distinta pelo NCPC, já se fazia presente no Código de 1973, conforme explica Assumpção Neves, que “a existência de negócios jurídicos processuais não é novidade do Novo Código de Processo Civil, já que no diploma processual revogado existiam várias previsões pontuais de negócios jurídicos típicos”[15]. Contudo, reside na ampliação deste fenômeno por intermédio do artigo 190, caput, do Código de Processo Civil de 2015, considerando que, “(...) o Novo Código de Processo Civil passou a prever de forma expressa uma verdadeira cláusula geral de negócio jurídico processual”[16]. Por se tratar de algo novo e de caráter genérico, surge a dúvida a respeito de como será sua aplicação e relação prática com alguns outros institutos jurídicos. Porém antes de realizar essa análise, é importante definí-lo:
“fato jurídico voluntário em cujo suporte fático, descrito em norma processual, esteja conferido ao respectivo sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou de estabelecer, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais. Estando ligado ao poder de autorregramento da vontade, o negócio jurídico processual esbarra em limitações preestabelecidas pelo ordenamento jurídico, como sucede em todo negócio jurídico”[17]
Em que pese estar presente a possibilidade dada pelo Código de Processo Civil de autorregramento da vontade, tal não se constitui de forma absoluta, uma vez que, “a vontade das partes na celebração de negócio jurídico processual é limitada pela ordem pública, como é curial”[18]. Portanto, as partes devem se submeter ao previsto no caput do artigo 190 do NCPC, que prevê que a causa deve versar sobre direitos que admitam autocomposição, que os contratantes devem ser plenamente capazes e que a convenção deve limitar-se aos ônus, poderes, faculdades e deveres processuais das partes. Também não seriam permitidos, pelo parágrafo único do artigo 190, negócios nos casos de nulidade, de inserção abusiva em contrato de adesão e que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade, cabendo ao magistrado fazer o controle. Cabe verificar se a relativização da impenhorabilidade do artigo 833 incidiria de alguma maneira em alguma dessas ressalvas do caput e parágrafo único do artigo 190, ou por violar alguma outra norma, impediriam a realização do Negócio Jurídico Processual.
Baseado nesta questão, visando dirimir esta dúvida, quanto à possibilidade ou não da mitigação da impenhorabilidade, foi aprovado o enunciado 19 do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC, o qual descrimina de maneira expressa quais as matérias possíveis de serem sujeitadas aos Negócios Jurídicos Processuais, veja-se:
“São admissíveis os seguintes negócios processuais, dentre outros: pacto de impenhorabilidade, acordo de ampliação de prazos das partes de qualquer natureza, acordo de rateio de despesas processuais, dispensa consensual de assistente técnico, acordo para retirar o efeito suspensivo de recurso, acordo para não promover execução provisória”[19]. (grifa-se)
Isto posto, conforme tal Enunciado, é possível que o negócio jurídico verse a respeito da impenhorabilidade. Além disso, vários doutrinadores se manifestaram sobre o assunto corroborando com esse entendimento. É o caso de Rodrigo da Cunha Lima Freire (2016, E-book) o qual explicou que o CPC/2015 admite a realização de negócios típicos e atípicos, de modo que a impenhorabilidade estaria inserida como um exemplo de negócio jurídico atípico. No mesmo sentido, Flávio Tartuce (2015, E-book), defendeu que o conteúdo versado no enunciado 19 é hígido e lícito. Além deles, Elpídio Donizetti, ao comentar sobre o assunto afirma que “A inovação é bastante significativa e, se utilizada com cautela, pode trazer maior efetividade ao processo. Para tanto, é imprescindível a cooperação entre os jurisdicionados e a fiscalização por parte do magistrado, que pode anular a convenção em caso de abuso” [20].
Ainda sob a égide de tal entendimento, se manifestou Fredie Didier:
“não há óbice a que a impenhorabilidade de determinado bem decorra de pactuação das partes, ainda que sem amparo nas hipóteses do artigo 833 e ou nas hipóteses de impenhorabilidade previstas fora do âmbito deste Novo Código de Processual Civil. Em paralelo, embora se trate de hipótese de mais controvérsia, tampouco há óbice a natureza impenhorável de determinado bem ou direito seja renunciada”[21].
Porém conforme exposto acima, há divergência nesse entendimento. Por exemplo, o doutrinador e Juiz Federal Rodolfo Kronemberg Hartmann, em sua obra, conforme segue abaixo:
“Há, também, enunciado do FPPC nesse sentido, quanto à possibilidade de pacto renunciando a impenhorabilidade do bem. Contudo, a jurisprudência, notadamente a do STJ, sempre foi refratária a esse entendimento, o que parece o mais acertado. Com efeito, basta uma atenta leitura da norma em comento (art. 833), para se chegar à conclusão de que, naquelas situações em que o legislador erigiu um bem como impenhorável, pautou-se em um critério razoável para proteger um direito ou interesse extremamente relevante, como vestuário, utensílios domésticos, exercício de profissão, dentre outras mais. Logo, não poderia essa proteção, diretamente ligada à garantia da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, CRFB-88), ser renunciada em negócio processual”[22]
O enunciado citado é o de número 19 do FPPC, onde o jurista citado discorda por considerar que instituto da impenhorabilidade tem íntima relação com o que seria o chamado mínimo existencial do executado, o que acaba se relacionando de forma direta com a dignidade da pessoa humana. O julgado no qual ele faz menção é o que abaixo segue:
“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇAO FISCAL. BEM DE FAMÍLIA OFERECIDO À PENHORA. RENÚNCIA AO BENEFÍCIO ASSEGURADO PELA LEI. 8.009/90. IMPOSSIBILIDADE.
1. A indicação do bem de família à penhora não implica em renúncia ao benefício conferido pela Lei 8.009/90, máxime por tratar-se de norma cogente que contém princípio de ordem pública, consoante a jurisprudência assente neste STJ.
2. Dessarte, a indicação do bem à penhora não produz efeito capaz de elidir o benefício assegurado pela Lei 8.009/90. Precedentes : REsp 684.587 - TO , Relator Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Quarta Turma, DJ de 13 de março de 2005; REsp 242.175 - PR, Relator Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, Quarta Turma, DJ de 08 de maio de 2.000; REsp 205.040 - SP, Relator Ministro EDUARDO RIBEIRO, Terceira Turma, DJ de 15 de abril de 1.999)
3. As exceções à impenhorabilidade devem decorrer de expressa previsão legal.
4. Agravo Regimental provido para dar provimento ao Recurso Especial”[23].
Porém deve-se ressaltar que em outra situação, com base no princípio da boa-fé, o STJ admitiu que um bem de família, após ter sido indicado pelo devedor à penhora, tenha sido constrita por haver a compreensão de que o ato representou um negócio unilateral de renúncia do benefício legal:
“Não se deve desconstituir a penhora de imóvel sob o argumento de se tratar de bem de família na hipótese em que, mediante acordo homologado judicialmente, o executado tenha pactuado com o exequente a prorrogação do prazo para pagamento e a redução do valor de dívida que contraíra em benefício da família, oferecendo o imóvel em garantia e renunciando expressamente ao oferecimento de qualquer defesa, de modo que, descumprido o acordo, a execução prosseguiria com a avaliação e praça do imóvel”[24].
Portanto não se torna unânime o entendimento firmado pelo enunciado 19 do FPPC, o qual se torna alvo de controvérsias, bem como quando o assunto foi tratado na corte Superior de Justiça, também houve divergências considerando as especificidades de cada caso. Desta forma como será destacado adiante, ficaria a cargo do juiz, em cada caso concreto, a análise da situação, decidindo se o convencionado deve ou não prosperar.
O magistrado assume uma importante função para a efetivação do Negócio Jurídico Processual, posto que “A eficácia do negócio jurídico processual, somente ocorrerá quando juiz o homologar. A homologação judicial é, portanto, condição da eficácia endoprocessual do negócio, isto é, da produção dos efeitos dentro do processo”[25].
A relação durante a formulação desse ato processual deve ser interativa entre as partes e o juiz como explica Flávio Tartuce, que “a realização dos negócios jurídicos processuais, seja antes ou durante o processo, estimula o diálogo entre o juiz e as partes, permitindo-lhes avaliar, nos limites possíveis, os melhores caminhos a serem trilhados para o deslinde da controvérsia”[26].
Também como explica Nery Júnior e Nery “o juiz tem o dever de analisar o negócio jurídico processual e lhe conceder validade e eficácia no processo, se presentes os requisitos formais e materiais para tanto”[27]. Os requisitos formais estão previstos no parágrafo único do artigo 190:
“(...) Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade”[28].
Podendo inclusive haver responsabilidade contra a Administração Pública caso a parte tenha sido lesada por intermédio da ação judicial considerando que “Caso a parte interessada tenha sofrido dano (moral ou material) pela ação do juiz com sua intervenção no negócio jurídico processual, tem pretensão indenizatória contra a administração pública”[29].
O juiz não poderia impedir que as partes exerçam seu direito de autorregramento da vontade caso sejam preenchidos os requisitos legais, uma vez que “O art. 190 do CPC consagra a atipicidade da negociação processual celebrada pelas partes. É possível a existência de negócios probatórios atípicos. Uma vez observados os pressupostos do art. 190 e sendo válido o negócio jurídico processual, o juiz fica a ele vinculado” [30](FIGUEIREDO, 2015, E-book).
Em que pese haver esse entendimento, o magistrado precisa, além de observar os requisitos que o CPC/2015 exige, analisar, por intermédio da proporcionalidade, razoabilidade, se a dignidade da pessoa humana está sendo resguardada. Até por que, a função do juiz é mais ampla do que somente analisar os requisitos do artigo 190, uma vez que conforme prevê o artigo 8º do CPC/2015 “Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”[31] (grifa-se).
Neste sentido, explica Henrique Lopes Dornelas que:
“Com a redação do artigo 8º do NCPC, não se diz mais - o juiz ao aplicar a lei, como na redação do artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB): - na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, e sim “aplicar o ordenamento jurídico”, visto que com o pós-positivismo é atribuído força normativa aos princípios jurídicos, adotando-se uma interpretação pautada na aplicação dos direitos fundamentais, sobretudo o da dignidade da pessoa humana”[32] (grifa-se).
Caso contrário, a própria razão de ser do instituto da impenhorabilidade estaria sendo violado, cujo o escopo é justamente evitar que um interesse patrimonial se sobreponha à dignidade de uma pessoa, conforme segue:
“(...) a impenhorabilidade de bens é a última das medidas no trajeto percorrido pela humanização da execução. A garantia de que alguns bens jamais sejam objeto de expropriação judicial é a tentativa mais moderna do legislador de preservar a pessoa do devedor, colocando-se nesses casos sua dignidade humana em patamar superior à satisfação do direito do exequente”[33]
Além disso, em nosso ordenamento jurídico pátrio, a dignidade da pessoa humana é colocada em destaque, no patamar de fundamento da República Federativa do Brasil, conforme prevê o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal[34]. E essa posição tem grande magnitude posto que enfatiza que “toda a atividade estatal deve estar direcionada ao bem coletivo”, ou seja, “o Estado deve servir as pessoas e não as pessoas servirem o Estado. Esta é a premissa fundamental de qualquer Estado Constitucional”[35]. No mesmo sentido afirma Comparato a respeito do assunto:
“(...) a dignidade da pessoa humana não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita. Daí decorre, como assinalou o filósofo, que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas”[36].
Neste diapasão, pelo que prega tal instituto, a “pessoa” é colocada como o objetivo final da atuação do Estado ou como afirma José Afonso da Silva, “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do ser humano, desde o direito à vida”[37].
Apesar da existência do exercício legítimo e constitucional do autorregramento da vontade, conforme defende Di Spirito, “a tutela dos direitos fundamentais também se faz imperativa nas relações privadas, não importando se a imposição abusiva venha de um particular ou do Poder Público”, que prossegue explicando que “(...) o negócio jurídico processual pode ser sindicado pela incidência direta dos direitos fundamentais”[38].
Além disso, Di Spirito explica que, o negócio jurídico está submetido a diversos limites, dentre eles os limites específicos, gerais, implícitos e gerais expressos. Nos limites gerais expressos, que seriam aqueles, definidos pelo doutrinador, como “previstos em outros dispositivos ou diplomas” estaria manifesto o “respeito à dignidade da pessoa humana (arts. 1.º, III, 226, §7º, e 230 da CF/1988; e 8.º do CPC/2015)”[39], que assim como os outros limites tem “o objetivo de impedir que o negócio jurídico processual seja utilizado de modo a desvirtuar a aplicação da lei pela jurisdição”[40]
Conclui-se que o Negócio Jurídico Processual tem como propósito garantir uma flexibilidade no processo, dando maior poder de decisão para as partes, primando assim pela autonomia da vontade. Pelo fato de ser algo facultativo, só pode ser feito com a anuência expressa das partes. Por razão disso, a partir do momento em que as partes aderem ao negócio, passam a ser submetidas ao que foi estipulado, bem como vinculam também o juiz, que é obrigado a homologar caso verifique que os requisitos legais foram preenchidos. Inclusive quando disser respeito à impenhorabilidade do artigo 833 de acordo com o que foi defendido por diversos doutrinadores citados no transcorrer deste trabalho e conforme firmado no enunciado 19 do FPPC.
Porém, se durante a análise judicial, não restar dúvida, no caso concreto, que a realização de um Negócio Jurídico Processual, que trate a respeito da impenhorabilidade, vai comprometer o mínimo existencial de uma das partes, o magistrado poderá, utilizando os critérios da proporcionalidade e razoabilidade, previsto no artigo 8º do NCPC, impedir que o mesmo se realize, visando resguardar a dignidade da pessoa humana, princípio fundante da República Federativa do Brasil, conforme artigo 1º da CF.
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[1] Especialista. Docente na Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, Campus Toledo, e no Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz. Advogado. E-mail: [email protected].
[2] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC. Fundamentos e Sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 226.
[3] DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2016.p. 1449.
[4] Ibid., p. 1149.
[5] MARINONI, Luiz Guilherme. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante o procedimento comum, volume II / Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.p. 967.
[6] BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF. .Acesso em 29 abr. 2017.
[7] DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2016.p. 1149.
[8] DIDIER JÚNIOR, Fredie. et al. Curso de Direito Processual Civil: Execução. 6. ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014.p. 57.
[9] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 8 ed. São Paulo: Jus Podivm, 2015.p.E-Book.
[10] Ibid., E-Book.
[11] MARINONI, Luiz Guilherme. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante o procedimento comum, volume II / Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.p. 969.
[12] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 47 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.p. 454.
[13] SARLET, Ingo Wolfgang. FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.p.22.
[14] BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.p. 126.
[15] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 8 ed. São Paulo: Jus Podivm, 2015.E-Book.
[16] Ibid., E-Book.
[17] NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Negócios Jurídicos Processuais. Análise dos Provimentos Judiciais como Atos Negociais. 2011.p. 206. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia, p. 206. Disponível em:. Acesso em: 05 maio 2011.
[18] NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 16º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.p.761.
[19] PORTAL PROCESSUAL Direito Processual Civil. Fórum permanente de processualistas civis. Disponível em: <http://portalprocessual.com/tag/fppc/>. Acesso em 05 maio 2017.
[20] DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2016.p. 420.
[21] DIDIER JÚNIOR, Fredie. MACEDO DE, Lucas Buril. PEIXOTO, Ravi. Freire, Alexandre. Execução. 2º ed. Bahia: Jus Podivm, 2016. p.639.
[22] HARTMANN, Rodolfo Kronemberg. Os Negócios Processuais (Primeiras Impressões). Revista da Escola da Magistratura da Escola do Rio de Janeiro. Vol. 18, n. 70, 2015. p. 29.
[23] STJ. Agravo regimental no RESP nº 813546/DF. Rel. Min. Fux (acórdão). DJ 04/06/2007.
[24] STJ, REsp 1.461.301-MT, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 5/3/2015, DJ 23/3/2015
[25] NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 16º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.p. 761.
[26] TARTUCE, Flávio. O Novo CPC e o Direito Civil. São Paulo: Método, 2015.E-Book.
[27] NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. op. cit., p. 763.
[28] BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF. .Acesso em 29 abr. 2017.
[29] NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. op. cit., p. 761.
[30] FIGUEIREDO, Simone Diogo Carvalho. Novo Código de Processo Civil anotado e comparado para concursos. São Paulo: Saraiva, 2015.E-Book.
[31] BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015, op. cit.
[32] DORNELAS, Henrique Lopes. Breve Panorama os Princípios Processuais do Novo Código de Processo Civil – NCPC. Revista do Curso de Direito Uniabeu. Vol. 06, n. 01, 2016. p.14.
[33] Assumpção Neves, op. cit. E-Book.
[34] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988. Disponível em: . Acesso em 15 jan. 2017.
[35] GARCIA, Edinês Maria Sormani; CARDOSO, Carla Roberta Fontes. A proteção da pessoa portadora de deficiência e seu fundamento no princípio da dignidade humana. p. 151-172. In: ARAUJO, Luiz Alberto David (Coord). Direito da pessoa portadora de deficiência: uma tarefa a ser completada. Baury: EDITE, 2003. p.156.
[36] COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. p.20.
[37] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.p. 109.
[38] DI SPIRITO, Marcos Paulo Denucci. Controle de Formação e Controle de Conteúdo do Negócio Jurídico Processual. Revista de Direito Privado. Vol. 63, ano 2016. p.167.
[39] DI SPIRITO, Marcos Paulo Denucci, op. cit., p. 132.
[40] Ibid., p. 131.
Graduado no Curso de Formação de Oficiais da Polícia Militar do Paraná, pós-graduado em Administração Educacional pela Faculdade de Pinhais - FAPI, graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica - Toledo-PR.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOTIN, Neemias. A possibilidade de as partes, por intermédio de um negócio jurídico processual, negarem caráter absoluto à impenhorabilidade prevista no artigo 833 do Código de Processo Civil de 2015 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 ago 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50660/a-possibilidade-de-as-partes-por-intermedio-de-um-negocio-juridico-processual-negarem-carater-absoluto-a-impenhorabilidade-prevista-no-artigo-833-do-codigo-de-processo-civil-de-2015. Acesso em: 08 nov 2024.
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