RESUMO: De acordo com tradicional entendimento firmado sob a égide das súmulas 269 e 271 do Supremo Tribunal Federal, reafirmado pela previsão contida no §4º, do art. 14 da Lei nº 12.016/09, a concessão do mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais em relação a período anterior à impetração da demanda, os quais devem ser reclamados por ação própria. Tal orientação se fundamenta, basicamente, no caráter mandamental do mandado de segurança, instrumento que não pode ser usado indistintamente como substitutivo de mera ação de cobrança, sob pena de afronta aos limites protegidos pela estreita via do remédio constitucional. Ocorre que, não obstante seja praticamente assente na doutrina e na jurisprudência a aplicação dos referidos verbetes sumulares, percebe-se que novos olhares são atualmente jogados sobre o tema. Nesse sentido, constitui objeto do presente artigo a análise dos argumentos apresentados no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial 1.164.514-AM, oportunidade em que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, afastando a concepção majoritária, estendeu à data da prática do ato coator os efeitos pecuniários decorrentes da concessão da ordem, dispensando-se a necessidade do ajuizamento de nova ação.
Palavras-Chave: Mandado de Segurança; Efeitos pecuniários; Superior Tribunal de Justiça.
Sumário: 1 INTRODUÇÃO; 2 MANDADO DE SEGURANÇA E EFEITOS PECUNIÁRIOS; 2.1 Procedimento especial e natureza mandamental da prestação; 2.2 Impossibilidade de execução de verbas anteriores à impetração: súmulas 269 e 271 do STF e §4º, do art. 14 da Lei nº 12.016/09; 2.3 Orientação firmada no EREsp 1.164.514-AM: um novo olhar do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema; 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS; 4 REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO
Constituem entendimento assente no meio jurídico as clássicas orientações contidas nas súmulas 269 e 271 do Supremo Tribunal Federal, segundo as quais, respectivamente, “o mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança” e “ concessão de mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais, em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria”.
Editadas no longínquo ano de 1963, referidas súmulas foram elaboradas com o claro intuito de controlar a grande quantidade de mandados de segurança que eram rotineiramente impetrados por servidores públicos buscando, principalmente, o recebimento de verbas remuneratórias eventualmente devidas pela Administração. A situação se repetia: valendo-se do rito mais célere imposto ao procedimento do mandado de segurança, os servidores abarrotavam o Judiciário com demandas que, muitas vezes, ultrapassavam o objeto protegido pela estreita via da ação mandamental.
Todavia, se, por um lado, tais orientações foram eficazes em afastar pretensões que escapavam da proteção estrita conferida pelo mandamus, por outro lado são, até hoje, a causa do desnecessário ajuizamento de diversas demandas que, inevitavelmente, já se prestariam à procedência. É que, na esteira da orientação sumular, por não produzir efeito patrimonial em relação a período pretérito, a sentença concessiva da segurança não constitui título executivo dos valores devidos antes da impetração do writ, impondo-se a necessidade da propositura de ação específica, voltada apenas à inútil discussão de direitos que já foram objeto de reconhecimento judicial.
Atualmente, a ilógica situação se mostra ainda mais evidente diante da manutenção de previsão similar no §4º, do art. 14 da Lei nº 12.016/09 – Nova Lei do Mandado de Segurança, a determinar que o pagamento de vantagens pecuniárias a servidor público das três esferas federativas “somente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial”.
Todo esse cenário somente reforça a importância da recente decisão proferida pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial 1.164.514-AM, no qual foi firmada a orientação de que, “nas hipóteses em que o servidor público deixa de auferir seus vencimentos ou parte deles em razão de ato ilegal ou abusivo do Poder Público, os efeitos financeiros da concessão de ordem mandamental devem retroagir à data do ato impugnado, violador do direito líquido e certo do impetrante” (EREsp 1.164.514-AM, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 16/12/2015, DJe 25/2/2016).
Como se vê, em sentido contrário à determinação contida nas súmulas 269 e 271 do STF e no §4º, do art. 14 da Lei nº 12.016/09, o Superior Tribunal de Justiça entendeu, de forma coerente, pela ampliação dos efeitos financeiros da concessão da ordem mandamental para além da data do ajuizamento da ação, de modo a abranger todo o período em que vigorou o ato violador de direito líquido e certo do impetrante.
Apesar de tal entendimento ainda não constituir jurisprudência pacífica daquela Corte[1], vê-se que o citado julgado trouxe importantes elementos de discussão, sobretudo relativos à pertinência da manutenção das vetustas orientações sumulares do STF, diante da aplicação de princípios como o da efetividade processual, da celeridade e da razoável duração do processo, demonstrando-se a relevância de um estudo mais aprofundado do tema.
Assim, a partir das novas luzes jogadas sobre a matéria, pretende o presente artigo apresentar um panorama geral e histórico do tema, partindo da concepção do mandado de segurança como procedimento especial voltado à satisfação de uma pretensão mandamental, passando pelos fundamentos que justificaram a edição dos mencionados verbetes sumulares, até se chegar à análise dos argumentos apresentados no julgamento do EREsp 1.164.514-AM.
2 MANDADO DE SEGURANÇA E EFEITOS PECUNIÁRIOS
2.1 Procedimento especial e natureza mandamental da prestação
De acordo com antiga doutrina de Meirelles, Wald e Mendes:
Mandado de segurança é o meio constitucional posto à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, lesado ou ameaçado de lesão por ato de autoridade, não amparado por habeas corpus ou habeas data, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça. (Meirelles; Wald; Mendes, 2009, p. 25)
Como se observa, em sua essência, o mandado de segurança se presta à proteção de um direito subjetivo do indivíduo, consubstanciando-se em verdadeira garantia contra os atos abusivos do Poder Público, ou de quem a ele é equiparado. Não é por outra razão que referido instrumento veio justamente previsto no art. 5º LXIX da Constituição Federal de 1988, pertencente ao Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.
Sob o viés processual, a fim de concretizar a garantia fundamental constitucionalmente prevista, o mandado de segurança sempre contou com disciplina legal especial que lhe atribui rito sumário específico (atualmente disciplinado pela Lei nº 12.016/09). De fato, se o objetivo do remédio constitucional é assegurar um direito líquido e certo do indivíduo, conferindo proteção contra as arbitrariedades do Estado, nada mais efetivo do que atribuir um rito célere à ação.
Nesse sentido, caracterizando o mandado de segurança como um remédio jurídico processual, Leonardo Carneiro da Cunha nos ensina que:
Para que se conceda o mandado de segurança, é preciso, como se viu, que o direito seja líquido e certo. O requisito da liquidez e certeza do direito está relacionado com a comprovação das alegações contidas na petição inicial. Vale dizer que o direito somente será líquido e certo se as alegações da parte autora estiverem comprovadas por documentos, de maneira pré-constituída.
O procedimento do mandado de segurança é construído a partir desse requisito específico. Seu procedimento é, então, sumário, abreviado, expedito, destinado à obtenção de uma sentença em pouco tempo, já que tudo já está provado, não havendo necessidade de instrução probatória.
O mandado de segurança é remédio jurídico processual, mas a relação material afirmada em sua petição inicial não guarda qualquer especialidade além das necessárias para a adoção do seu procedimento especial. Tanto isso é verdade que a ação material nele afirmada pode ser igualmente alegada em procedimento comum.
A diferença entre o mandado de segurança e o procedimento comum é procedimental. Quem tem direito ao mandado de segurança tem, na verdade, direito a um procedimento especial, diferenciado, abreviado, sumário. (CUNHA, 2016, pg. 513)
Já quanto à própria natureza da pretensão submetida ao judiciário, costuma-se, com certa frequência, evidenciar o caráter mandamental da ação constitucional. A doutrina, nesse compasso, partindo da noção de que a ordem concedida no mandado de segurança se dirige, fundamentalmente, à correção de um ato administrativo praticado com abuso, atribui ao provimento característico da ação força executiva própria, capaz de produzir o efeito específico de determinar a conduta que deverá ser adotada pela Administração.
Sobre tal natureza mandamental, o ilustre Ponte de Miranda esclarece que:
A prestação jurisdicional, no mandado de segurança, é de mandamento. O juiz ou tribunal manda; o que ele manda já é conteúdo dessa prestação: manda que se tenha como existente, ou como não-existente, alguma relação jurídica, que a autoridade pública teve como inexistente, ou por existente, contra a Constituição, ou contra a lei; manda que se tenha como constituído, ou por desconstituído, algum ato jurídico, porque contra a Constituição, ou contra a lei, a autoridade pública, ou o teve por inconstituível, ou como constituído; manda que se emposse, ou que se desemposse, ou que se reintegre, ou que se destitua algum funcionário público, ou pessoa que foi ofendida, ou cujo atendimento pela autoridade pública, contra a Constituição ou contra a lei, ofenderia a outrem. (MIRANDA, 1998, pg. 55)
Assim, especificamente em relação às características processuais que são usualmente atribuídas ao mandado de segurança, é possível destacar, basicamente, a natureza do rito e o conteúdo da prestação jurisdicional. Por um lado, como garantia fundamental voltada à defesa de um direito líquido e certo, o remédio constitucional mereceu receber do ordenamento jurídico um tratamento especial, o qual lhe atribui rito sumário específico (atualmente disciplinado pela Lei nº 12.016/09). Noutro giro, dada a natureza da prestação buscada pelo indivíduo, consubstanciada em ordem de execução imediata, dotada de força executiva própria, resta evidenciado, a partir das lições doutrinárias, o caráter mandamental da ação.
2.2 Impossibilidade de execução de verbas anteriores à impetração: súmulas 269 e 271 do STF e §4º, do art. 14 da Lei nº 12.016/09
Conforme acima ressaltado, de um modo geral, quanto à natureza da prestação judicial típica do mandado de segurança, não há maiores questionamentos: a doutrina, quase que de maneira uníssona, evidencia o caráter mandamental da ação constitucional. O mesmo não se verifica, por outro lado, quanto aos efeitos do reconhecimento de tal natureza mandamental às situações em que, inevitavelmente, a ordem concedida irá produzir efeitos pecuniários secundários. Especificamente, diante da natureza mandamental da pretensão, há objeções de toda a ordem voltadas ao afastamento da utilização da ação como meio de também já promover a execução dos valores pecuniários reflexamente originados da situação de violação a direito líquido e certo, anteriores mesmo à impetração do writ.
É que, não obstante grande parte das ordens proferidas em mandado de segurança seja dirigida a situações despidas de qualquer conteúdo pecuniário, haverá casos em que a própria correção do ato questionado implicará, necessariamente, efeitos financeiros imediatos aos cofres públicos. Tal ocorre, por exemplo, quando o pedido principal da ação diz respeito a hipóteses de reenquadramento funcional do servidor.
Nesses casos, apesar do objeto principal da ação ser o próprio ato que atribui classificação funcional distinta da prevista em lei, não há dúvidas de que eventual provimento do mandado de segurança, ainda que de maneira reflexa, também acarretará efeitos financeiros. Por certo, como efeito característico do dito reenquadramento, haverá o correlato reconhecimento do direito à percepção de todas as verbas remuneratórias típicas da posição funcional objeto da demanda.
Essas hipóteses, quando observadas a partir de uma visão prospectiva, ou seja, para o futuro, não encontram maiores dificuldades práticas, uma vez que o recebimento dos valores constitui apenas um mero reflexo da situação jurídica judicialmente reconhecida. Todavia, quando há uma análise retroativa, tomando por base os valores que já deixaram de ser recebidos ao longo de todo o período em que a situação de ilegalidade perdurou, a conclusão é diferente.
Nesse ponto específico de debate, para esclarecer a origem da discussão, valemo-nos, inicialmente, da posição defendida por Hely Lopes Meirelles, para quem “a execução da sentença concessiva da segurança é imediata, especifica ou in natura, isto é, mediante o cumprimento da providência determinada pelo juiz sem a possibilidade de ser substituída pela reparação pecuniária” (MEIRELLES, 2000, p. 93).
Ou seja, em uma interpretação literal do entendimento exposto pelo saudoso administrativista, por ter caráter mandamental, a condenação proferida em mandado de segurança não poderia, sob qualquer hipótese, ser substituída pela reparação pecuniária. Dessa forma, rotineiramente costuma-se utilizar o caráter mandamental da ação para impedir o recebimento de eventuais valores pretéritos devidos em razão da prática do ato ilegal.
Esse foi o fundamento que motivou a edição, no longínquo ano de 1963, dos clássicos entendimentos sumulares do Supremo Tribunal Federal, reproduzidos nos verbetes de números 269 e 271. Vejamos:
Súmula 269: O mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança.
Súmula 271: Concessão de mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais, em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria.
Mais adiante, o art. 1º da revogada Lei nº 5.021/66, de modo a especificar o momento a partir do qual seria possível a cobrança de valores em mandado de segurança, estabeleceu que o pagamento de vantagens pecuniárias a servidor público das três esferas federativas “somente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial”.
A previsão supra também veio repetida no §4º, do art. 14 da nova Lei nº 12.016/09, in verbis:
Art. 14. Da sentença, denegando ou concedendo o mandado, cabe apelação.
(...)
§ 4o O pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias assegurados em sentença concessiva de mandado de segurança a servidor público da administração direta ou autárquica federal, estadual e municipal somente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial.
Logo, atualmente, seja em razão da aplicação das Súmulas 269 e 271 do Supremo Tribunal Federal, seja por decorrência do que impõe o art.14, §4º da Lei nº 12.016/09, há o entendimento majoritário de que o provimento mandamental proferido no mandado de segurança não contempla o recebimento de valores relativos a período anteriores à impetração, que devem ser objeto de ação própria.
De modo a sintetizar o entendimento dominante da doutrina sobre o tema, colacionam-se os seguintes ensinamentos de Leonardo Carneiro da Cunha:
A sentença, no mandado de segurança, também pode ser condenatória, quando acolhe pedido de servidor público, visando a obtenção de vantagem ou de diferença de vencimentos. Nesse caso, não cabe a liminar, mas se permite o manejo do mandado de segurança. Acontece, entretanto, que o “mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança” (Súmula 269 do STF). Demais disso, o pagamento de vantagens pecuniárias asseguradas em writ somente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial (Lei 12.016/2009, art. 14, §4º). Nesse sentido, “consoante jurisprudência do STJ, o pagamento de verbas atrasada em sede de mandado de segurança restringe-se às parcelas existentes entre a data da impetração e a concessão da ordem”.
Quer isso dizer que, concedida a segurança para impor o pagamento de diferenças estipendiárias, seu cumprimento será feito a partir do trânsito em julgado. Significa que, a partir do trânsito em julgado, deve ser a vantagem incluída em folha, consistindo em verdadeira obrigação de fazer, caracterizando uma tutela mandamental. Quanto ao período que antecede o ajuizamento do writ, não estará compreendido pela sentença, devendo o impetrante cobrá-lo pelo procedimento comum. Realmente, nos termos do enunciado 271 da Súmula do STF, “concessão de mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais, em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria”. (CUNHA, 2016, p. 578)
Noutra banda, com a finalidade de demonstrar a ampla aceitação da tese na jurisprudência dos Tribunais Superiores, abaixo são transcritos trechos de alguns julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal no mesmo sentido:
Há a considerar, ainda, no que concerne ao pedido de concessão de 'efeito retroativo a dezembro de 2011' ao benefício previdenciário ora questionado, que o entendimento consagrado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que se mostra plenamente viável a utilização do mandado de segurança para veicular pretensão de conteúdo patrimonial, desde que a reparação pecuniária vindicada abranja período situado entre a data da impetração do 'writ' e aquela em que se der o efetivo cumprimento da ordem mandamental. Isso significa, portanto, que efeitos patrimoniais produzidos em momento que precede a data da impetração do mandado de segurança não são alcançados pela decisão que o concede, tal como prescreve a Lei nº 12.016/2009, cujo art. 14, § 4º, impõe essa limitação de ordem temporal ao destacar que 'O pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias assegurados em sentença concessiva de mandado de segurança a servidor público da administração direta ou autárquica federal, estadual e municipal somente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial'. Na realidade, essa regra legal, que constitui reprodução do que se continha na Lei nº 5.029/66 (art. 1º), nada mais reflete senão diretriz jurisprudencial consubstanciada na Súmula 271 desta Suprema Corte, (...)." (STF. MS 31690 AgR, Relator Ministro Celso de Mello, julgamento em 11.2.2014, DJe de 27.2.2014)
"Ementa: (...) 1. Embora o Supremo Tribunal Federal haja reconhecido o direito líquido e certo dos impetrantes quanto à percepção da Gratificação de Atividade de Segurança (GAS), instituída pelo art. 15 da Lei nº 11.415/2006, a ordem judicial aqui proferida não alcança pagamentos referentes a parcelas anteriores ao ajuizamento da ação, 'os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria' (Súmulas n. 269 e 271 do STF)." (STF. MS 26740 ED, Relator Ministro Ayres Britto, Segunda Turma, julgamento em 7.2.2012, DJe de 22.2.2012)
"Ressalto que, conforme jurisprudência do Tribunal consubstanciada nas súmulas 269 e 271, o mandado de segurança não se presta aos fins de ação de cobrança, de forma que a concessão da segurança não produz efeitos patrimoniais em relação ao período anterior à impetração." (STF. MS 27565, Relator Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgamento em 18.10.2011, DJe de 22.11.2011)
2.3 Orientação firmada no EREsp 1.164.514-AM: um novo olhar do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema
Como visto, desde a edição das súmulas 269 e 271 do Supremo Tribunal Federal em 1963, passando pela promulgação da Lei nº 5.021/66 e da atual Lei nº 12.016/09, consolidou-se, na doutrina e na jurisprudência, a tese pela impossibilidade da utilização do mandado de segurança como meio de promover a execução de parcelas pecuniárias reflexas devidas em momento anterior ao da impetração do writ.
No entanto, recentemente, importante julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça trouxe novos contornos ao tema, dignos de reflexão. Na oportunidade, ao julgar os Embargos de Divergência em Recurso Especial 1.164.514-AM, a Corte Especial daquele Tribunal Superior firmou orientação no sentido de conferir efeitos financeiros pretéritos ao mandado de segurança, ampliando-se o alcance da decisão aos pagamentos devidos desde a data do ato impugnado.
Com efeito, esse foi o teor do que foi veiculado sobre o julgado no Informativo de Jurisprudência nº 578, de 03 a 16 de março de 2016:
DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. EFEITOS FINANCEIROS DA CONCESSÃO DE ORDEM MANDAMENTAL CONTRA ATO DE REDUÇÃO DE VANTAGEM DE SERVIDOR PÚBLICO.
Em mandado de segurança impetrado contra redução do valor de vantagem integrante de proventos ou de remuneração de servidor público, os efeitos financeiros da concessão da ordem retroagem à data do ato impugnado. Não se desconhece a orientação das Súmulas n. 269 e 271 do STF, à luz das quais caberia à parte impetrante, após o trânsito em julgado da sentença mandamental concessiva, ajuizar nova demanda de natureza condenatória para reivindicar os valores vencidos em data anterior à impetração do mandado de segurança. Essa exigência, contudo, não apresenta nenhuma utilidade prática e atenta contra os princípios da justiça, da efetividade processual, da celeridade e da razoável duração do processo. Ademais, essa imposição estimula demandas desnecessárias e que movimentam a máquina judiciária, de modo a consumir tempo e recursos de forma completamente inútil, e enseja inclusive a fixação de honorários sucumbenciais, em ação que já se sabe destinada à procedência. Corroborando esse entendimento, o STJ firmou a orientação de que, nas hipóteses em que o servidor público deixa de auferir seus vencimentos ou parte deles em razão de ato ilegal ou abusivo do Poder Público, os efeitos financeiros da concessão de ordem mandamental devem retroagir à data do ato impugnado, violador do direito líquido e certo do impetrante. Isso porque os efeitos patrimoniais são mera consequência da anulação do ato impugnado que reduz o valor de vantagem nos proventos ou remuneração do impetrante (MS 12.397-DF, Terceira Seção, DJe 16/6/2008). Precedentes citados: EDcl no REsp 1.236.588-SP, Segunda Turma, DJe 10/5/2011; e AgRg no REsp 1.090.572-DF, Quinta Turma, DJe 1º/6/2009. (STJ. EREsp 1.164.514-AM, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 16/12/2015, DJe 25/2/2016)
Na realidade, percebe-se que a emissão de entendimento frontalmente contrário à aplicação das súmulas 269 e 271 do STF não constituiu verdadeira novidade naquele Tribunal. Como bem destacado no conteúdo do julgado supra, já existiam julgados anteriores do Superior de Tribunal de Justiça que concluíram da mesma maneira.
Exemplo notório disso foi o entendimento exarado no Mandado de Segurança 12.397-DF, da Terceira Seção, publicado em 16/6/2008, cujo trecho, extraído do voto do eminente Ministro Arnaldo Esteves Lima, ora transcreve-se:
Ocorre que os enunciados das Súmulas 269/STF e 271/STF devem ser interpretados com temperamentos. Não se pode, efetivamente, deixar de consignar que tal jurisprudência sumulada formou-se há mais de 45 anos. Houve, em tal interstício de tempo, mudanças jurídicas, sociais e econômicas a recomendar não simplesmente o seu abandono, mas, sim, a sua aplicação de forma consentânea com a nova realidade superveniente.
(...)
Como sabemos, é uma constante a busca de soluções, as mais prontas e efetivas, nas resoluções dos conflitos judiciais. É a permanente luta contra a morosidade, mal maior, talvez, da prestação jurisdicional, de difícil superação. Assim, sempre que possível – sem violar as normas de regência e muito menos os princípios jurídicos –, mas, ao contrário, atribuindo-lhes racional inteligência, devemos buscar soluções que se harmonizem com tal propósito, em favor do próprio interesse público, da cidadania, destinatária final e única, a rigor, dos serviços públicos, inclusive daqueles, como cediço, prestados pelo Judiciário. (STJ. MS nº 12.397 - DF, Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima, Publicado em: 16/06/208)
Entretanto, apesar de não ser inédita, a orientação firmada trouxe novos elementos que são capazes de influir de modo mais significativo nos debates existentes sobre o tema. Em primeiro lugar, porque foi proferida pela Corte Especial do STJ. Em segundo lugar, porque já emitida na vigência da Lei nº 12.016/09 que, de forma anacrônica, como defendido por alguns doutrinadores, manteve a previsão outrora existente na Lei nº 5.021/66.
Ademais, da análise dos argumentos que foram suscitados, nota-se a relevante contribuição do julgado para o momento atual. De fato, em dias nos quais se busca cada vez mais a concretização de um modelo efetivo de processo, a exemplo da consagração de princípios como o da instrumentalidade das formas e da primazia da resolução de mérito no Novo Código de Processo Civil, não há espaço para soluções que posterguem indefinidamente, sem fundamento prático, a relação processual.
Se já houve o reconhecimento do direito do impetrante, não há razões jurídicas para impedir a imediata execução da sentença, inclusive no que concerne à cobrança das verbas anteriores ao ajuizamento da ação. Isso porque, nem mesmo o caráter mandamental da ação é capaz de afastar o direito ao recebimento das parcelas pretéritas, que, nos termos do disposto na súmula 271 do STF, apenas passariam a ser reclamadas administrativamente ou pela via judicial própria.
Logo, vê-se que, em verdade, como ressaltado no julgado, a disposição contida nas súmulas 269 e 271 do STF e no §4º, do art. 14 da Lei nº 12.016/09 apenas estimula demandas desnecessárias, ensejando, inclusive, “fixação de honorários sucumbenciais, em ação que já se sabe destinada à procedência”. Assim, além de importar clara violação ao princípio da razoável duração do processo, consagrado no art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal, a imposição do ajuizamento de outra demanda, que já se sabe procedente, também implica em injustificável dispêndio de verbas públicas, destinadas ao pagamento de novos honorários sucumbenciais estipulados em favor do administrado.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O mandado de segurança, como garantia constitucional posta à disposição do indivíduo para proteção de direito líquido e certo violado por ato de autoridade, possui importância ímpar no ordenamento jurídico brasileiro. A partir da efetiva concretização do instituto, atualmente disciplinado pela Lei nº 12.016/09, que lhe confere rito sumário específico, o administrado passa a ter em suas mãos fundamental ferramenta a ser utilizada contra os atos abusivos praticados pelo Poder Público.
Todavia, justamente por ser restrito à proteção de direito líquido e certo, o mandado de segurança não pode ser utilizado de forma ampla, sem maiores questionamentos. Com efeito, sob o viés processual, somente será concedida a ordem naquelas hipóteses em que, de forma cristalina, ficar comprovado, através de prova exclusivamente documental, a violação ou, ao menos, a ameaça de violação a direito, por ato de autoridade. A sentença concessiva de ordem, nesses casos, irá então determinar a conduta específica a ser adotada pela Administração, de modo a restaurar a situação de legalidade anteriormente comprometida.
Daí decorre o caráter eminentemente mandamental da ação: a pretensão protegida no mandado de segurança deve consistir apenas em uma ordem de conduta; não se pode, na estreita via constitucionalmente posta à disposição do administrado, discutir, de forma principal, pretensões como as decorrentes de mera ação de cobrança.
Entretanto, tal vedação não se confunde com a possibilidade de que, na situação concreta, surjam efeitos pecuniários secundários, decorrentes da própria ordem de conduta determinada. Nesses casos, não há propriamente o desvirtuamento do instituto, pois os efeitos pecuniários existentes são apenas reflexos ao objeto principal da ação, que continua sendo o ato coator ilegal.
A separação entre as pretensões mandamental e condenatória, nessas hipóteses, se revela inútil, já que os efeitos financeiros da sentença apenas subsistem em razão do próprio ato ilegal atacado. Mais que isso, a necessidade do ajuizamento de uma ação específica apenas para cobrar os valores pretéritos que decorrem naturalmente da sentença concessiva vai na contramão de qualquer modelo de processo que pretenda ser efetivo.
Por isso, percebe-se que caminhou bem o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do EREsp 1.164.514-AM, ao abandonar a concepção tradicional adotada pelas súmulas 269 e 271 do STF. De fato, no modelo processualista atualmente adotado no Brasil, que tem por princípios fundantes a duração razoável do processo e a economia processual, não faz sentido a manutenção de orientações voltadas mais a aspectos formalistas do que à efetividade da jurisdição. Espera-se, assim, que referido entendimento seja seguido nas futuras decisões da Corte Cidadã.
4 REFERÊNCIAS
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 27565, Relator: Ministro Gilmar Mendes, Data de Julgamento: 18/10/2011. Disponível em: . Acesso em: Out. 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Embargos de Declaração em Mandado de Segurança nº 26740, Relator: Ministro Ayres Britto, Data de Julgamento: 07/02/2012. Disponível em: . Acesso em: Out. 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Mandado de Segurança nº 31690, Relator: Ministro Celso de Mello, Data de Julgamento: 11/02/2014. Disponível em: . Acesso em: Out. 2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1.164.514 - AM, Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Data de Julgamento: 16/12/2015. Disponível em: . Acesso em: Out. 2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança nº 12.397 - DF, Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima, Publicado em: 16/06/208. Disponível em: . Acesso em: Out. 2017.
CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo, 13º Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, 23.ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de Segurança e Ações Constitucionais, 32ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
MIRANDA, Pontes de. Tratado das Ações. Campinas: Bookseller, 1998.
[1] Vide, nesse sentido, teor do julgamento posterior proferido no AgRg no RMS 47.640/RS, em 10/03/2016, no qual constou o seguinte: “A Primeira Seção deste Superior Tribunal firmou entendimento segundo o qual o mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais pretéritos, motivo pelo qual os eventuais valores devidos, anteriores à data impetração, deverão ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria. Súmulas 269/STF e 271/STF. (...)” (STJ. 1ª Turma. AgRg no RMS 47.640/RS, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 10/03/2016)
Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUIZA TEODORO DE MENDONçA, . Mandado de Segurança e efeitos pecuniários pretéritos: da necessidade de superação das Súmulas 269 e 271 do STF à luz do entendimento firmado no EREsp 1.164.514/AM Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 nov 2017, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50971/mandado-de-seguranca-e-efeitos-pecuniarios-preteritos-da-necessidade-de-superacao-das-sumulas-269-e-271-do-stf-a-luz-do-entendimento-firmado-no-eresp-1-164-514-am. Acesso em: 07 nov 2024.
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