ANTÔNIO CESAR MELLO
(Orientador)[1]
RESUMO: O presente artigo discorre sobre a origem da vaquejada e sua realização na atualidade, adentrando no conflito que há entre duas espécies do direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado previsto na Constituição Federal, quais sejam: meio ambiente cultural e meio ambiente natural. O primeiro é tutelado pelo art. 215 da Constituição Federal que garante a livre manifestação cultural e acesso às fontes da cultura nacional, ao passo que o segundo encontra amparo no art. 225, VII, que protege a fauna, vedando qualquer ato que submeta animais à crueldade. Por fim, o artigo analisa a prática da vaquejada, demostrando que o direito fundamental ao meio ambiente natural, livre de crueldade contra animais deve prevalecer em relação ao direito á livre manifestação cultural.
Palavras-chave: Vaquejada; Crueldade contra os animais; Cultura; Direitos Ambientais.
ABSTRACT: This article discusses the origin of the vaquejada and its realization today, entering into the conflict existent between two species of the ecologically balanced environment established in the Federal Constitution, wich are: cultural environment and natural environment. The first is protected by art. 215 of the Federal Constitution that guarantees the free cultural manifestation and access to the sources of the national culture, while the second finds support in art. 225, VII, which protects the fauna, prohibiting any act that subjects animals to cruelty. Finally, the article analyzes the practice of the vaquejada, demonstrating that the fundamental right to the natural environment, free of cruelty against animals, must prevail in relation to the right to free cultural expression.
Keywords: Vaquejada; Cruelty to animals; Culture; Environmental Rights.
Sumário: 1. Introdução. 2. Origem da Vaquejada. 3. A Vaquejada na Atualidade. 4. A Vaquejada como Prática Desportiva/Cultural e a Proteção da Fauna na Legislação Brasileira. 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.983. 6. Consideraçãoes Finais. 7. Referências.
INTRODUÇÃO
A vaquejada é uma prática derivada do fenômeno da apartação, esta era realizada antigamente para separar o gado de um determinado proprietário, selecionar os animais que seriam comercializados e aqueles a serem castrados ou ferrados. No decorrer dos anos essa atividade foi transformada em uma festa popular que arrecada milhões, sendo de interesse de grandes empresários (MENEZES, 2006). Resta questionar se tal prática está em consonância com a Constituição Federal, pois mesmo encontrando-se com o escopo de atividade cultural e desportiva, submete os animais utilizados a maus-tratos.
A Constituição em seu art. 215, § 1º, garante a livre manifestação cultural, em contrapeso seu art. 225, § 1°, VII traz a vedação a atos que submetam os animais a maus-tratos. Esse aparente conflito foi dirimido pela Suprema Corte, que decidiu pela inconstitucionalidade da prática da vaquejada, decisão essa que foi posteriormente contrariada pelo Poder Legislativo, que poucos meses após a decisão editou a lei 13.364/16 que trouxe a vaquejada como prática desportiva e de patrimônio cultural imaterial.
No decorrer desta pesquisa foi utilizado o método dedutivo, sendo realizada inicialmente uma exposição acerca da origem da vaquejada para posteriormente adentrar no cerne da questão, qual seja, qual direito deve preponderar: o direito à livre manifestação cultural ou o direito ao meio ambiente natural, livre de crueldade contra os animais.
ORIGEM DA VAQUEJADA
A vaquejada é uma prática que teve início no Nordeste brasileiro, antigamente os bois eram marcados e soltos na mata, para recuperá-los meses depois os coronéis contratavam os vaqueiros, que adentravam na caatinga sobre seus cavalos em busca dos animais, fazendo malabarismos para se esquivarem dos obtáculos que existiam na mata, como espinhos e pontas de galhos secos. Alguns animais nasciam no mato, eram selvagens por nunca terem mantido contato com seres humanos, sendo eles os mais difíceis de serem capturados (OLIVEIRA, 2016).
Sobre a criação de gado no sertão e a apartação, preceitua o geógrafo Manuel Correia de Andrade (ANDRADE, 1986, p. 122 apud MENEZES, 2006, online):
O animal bravio selvagem, o “barbatão” que logo ganhava fama, atraindo os vaqueiros mais em sua perseguição. Para a sua captura convocavam-se vaqueiros das várias ribeiras que em verdadeira festa iam perseguir o animal bravio. O que o derrubava, além de grande fama recebia como prêmio, ou o animal vencido, ou uma importância em dinheiro.
Essas investidas, tempos depois, se transformaram em rituais festivos e atraiam as comunidades existentes no sertão. Da apartação do gado nasceu uma festa que perdura até os dias atuais.
Em relação aos registros dessa festa, pesquisadores descobriram pela tradição falada que antes de 1870 já se praticava vaquejada em Seridó Potiguar, um dos indícios era a existência de currais de apartação de bois, que deu origem ao nome da cidade de Currais Novos – RN. Tais currais foram feitos em 1760, e durante 30 anos foi realizado em Currais Novos a apartação e feira do gado (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE VAQUEJADA, 2017).
José de Alencar em 1874 escreveu sobre a “puxada de rabo de boi” no Ceará, deixando claro que a prática já ocorria anteriormente. Com a existência dessa atividade no Ceará, tem-se presumido que existia também nos estados vizinhos, como Piauí, Paraíba e Rio Grande do Norte, pois eram cidades muito semelhantes em relação ao ambiente físico, hábitos e atividade econômica (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE VAQUEJADA, 2017).
Em meados de 1940 os vaqueiros de várias partes do Nordeste começaram a mostrar suas habilidades nas corridas de mourão, demonstrando nas provas seus níveis de coragem e bravura. Nessa época, os principais incentivadores foram os coronéis e os senhores de engenho, pois estes organizavam as vaquejadas e realizavam suas apostas. O vaqueiro recebia apenas um agrado pelo seu êxito na competição (TAVARES, 2011).
Nos anos 50 os torneios começaram a migrar das fazendas para os centros urbanos do nordeste, deixando de ser entretenimento apenas dos coronéis e seus familiares. Nessa época a estrutura do evento era improvisada, os acidentes com vaqueiros e animais eram frequentes, não existia demarcação para a derrubada do gado, sendo assim, ganhava quem derrubava o boi em menos tempo. Para participar da disputa o vaqueiro tinha que pagar uma taxa, o montante era revertido para a organização do evento e premiação dos vencedores (TAVARES, 2011).
Entre os anos 1960 e 1970 começaram as disputadas das primeiras vaquejadas na faixa dos seis metros, contudo era permitido derrubar o boi fora das faixas e arrastá-lo para dentro delas, nesse tempo a força prevalecia a técnica. Na década de 80 a faixa passa a ser de 10 metros, trazendo a técnica como fator mais importante que a força, a partir daí começam a ser distribuídos prêmios para os competidores (TAVARES, 2011).
A VAQUEJADA NA ATUALIDADE
A partir de 1990 a vaquejada adquiriu um cunho profissional, surgiram as grandes equipes, a organização passou para o setor privado e os parques ganharam grandes estruturas. Foram criados circuitos de vaquejada, com intuito de fidelizar os vaqueiros e instituir regras para a competição (TAVARES, 2011).
Em 2001 o peão de vaquejada passou a ser considerado um atleta profissional, sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, a Lei 10.220 regulamenta a profissão do peão e dispõe sobre sua atividade, preceitua a referida lei em seu art. 1°:
Art. 1º Considera-se atleta profissional o peão de rodeio, cuja atividade consiste na participação, mediante remuneração pactuada em contrato próprio, em provas de destreza no dorso de animais equinos ou bovinos, em torneios patrocinados por entidades públicas ou privadas.
Parágrafo único. Entendem-se como provas de rodeios as montarias em bovinos e equinos, as vaquejadas e provas de laço, promovidas por entidades públicas ou privadas, além de outras atividades profissionais da modalidade organizadas pelos atletas e entidades dessa prática esportiva.
A lei veio também para assegurar conteúdo mínimo para os contratos celebrados entre as entidades promotoras e os peões, como a obrigatoriedade de contratação de seguro, estipulação de início e término da jornada de trabalho e o recolhimento de contribuições previdenciárias. Foi incluído ainda, como forma de proteção aos peões, que a entidade promotora que estiver com o pagamento da remuneração de seus atletas em atraso há mais de três meses, não poderá participar de qualquer competição, oficial ou amistosa.
Em 2012 foi promulgada a lei n° 6.265/2012 que regulamenta a vaquejada no Estado do Piauí e a classifica como prática desportiva e cultural, fixando parâmetros para sua realização.
No ano de 2013 a vaquejada foi regulamentada em Teresina através da Lei Municipal n° 4.381/2013, na época, o projeto foi vetado pelo prefeito, mas a câmara acabou derrubando o veto e promulgando a norma. Em 2016, a vereadora Teresa Britto (PV) solicitou a revogação da lei na câmara municipal, após constatar maus-tratos aos animais nas vaquejadas realizadas no parque de exposições Dirceu Arcoverde.
Além dos citados, outros estados editaram normas com o intuito de tornar a vaquejada prática desportiva e cultural.
Atualmente pode ser afirmar que da origem da vaquejada só se manteve a técnica de puxar o rabo do boi para que ele caia no chão, pois tudo se transformou em um grande negócio. Durante os eventos foram introduzidos shows artísticos para aumento do público, além de venda e leilões de animais por grandes valores. Hoje, os animais são enclausurados antes do momento em que são lançados à pista, sofrem pelo confinamento, a introdução de pimenta e mostarda em seu ânus e por choques elétricos que recebem com frequência (BUBLITZ, 2017).
É inadmissível a permanência da crueldade contra os animais em nome de uma mascarada tradição. Preceitua Cunha Filho em seu artigo Lei da Vaquejada: Raízes da Contradição (apud FILHO; LEITE; LIMA, 2015, online):
Deste modo, as coisas do passado jamais podem ser consideradas como integrantes do patrimônio cultural, apenas pelo critério de serem antigas; por tal razão isolada, não adquirirem o direito serem reproduzidas como um encargo da tradição, sem que sejam considerados os impactos que provocam nos projetos desenhados para o futuro, previsto na Constituição Federal, esta que nos determina construir uma sociedade livre, justa e solidária, em que se respeite a dignidade humana, dos outros seres e da própria natureza.
O fato de uma prática cultural possuir livre manifestação não significa que possa submeter animais a práticas cruéis, caso submeta, é necessário que esse erro seja corrigido.
A VAQUEJADA COMO PRÁTICA DESPORTIVA/CULTURAL E A PROTEÇÃO DA FAUNA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Segundo o site sua pesquisa.com fauna é defina como: “conjunto de espécies animais quem vivem numa determinada área (floresta, país, ecossistema específico)”.
Sobre o estudo da fauna no Direito Ambiental assevera Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2007, p. 121):
Uma tarefa das mais complexas no âmbito do Direito Ambiental é o estudo da fauna, pelo simples fato de que tais bens possuem uma atávica concepção de natureza privatista, fortemente influenciada pela nossa doutrina civilista do começo deste século, que os estudava exclusivamente como algo que poderia ser objeto de propriedade, no exato sentido que era vista como res nullius.
Essa concepção que a fauna possuía foi modificada ao longo do tempo, pois houve uma crescente conscientização acerca de sua importância para o equilíbrio ecológico. Sobre isso, testifica Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2007, p. 121):
Buscando resguardar as espécies, porquanto a fauna, através da sua função ecológica, possibilita a manutenção do equilíbrio dos ecossistemas, é que se passou a considerá-la como um bem de uso comum do povo, indispensável à sadia qualidade de vida. Com isso, abandonou-se no seu tratamento jurídico o regime privado de propriedade, verificando-se que a importância das suas funções reclamava uma tutela jurídica adequada à sua natureza. Dessa forma, em razão de suas características e funções, a fauna recebe a natureza jurídica de bem ambiental.
Nessa vertente a Constituição Federal de 1988 trouxe como direito fundamental o meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo ao Poder Público e a coletividade o dever de proteção, em seu art. 225, § 1º, é disposto um rol de medidas a serem tomadas pelo Poder Público para assegurar a efetividade desse direito, impedindo práticas delituosas que coloquem em risco o pleno funcionamento do ecossistema ou que submeta os animais à crueldade.
Em 1988 foi promulgada a Lei Federal n° 9.605, Lei de Crimes Ambientais, que determina sanções penais e administrativas para as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Em especial destaque, preceitua o art. 32 acerca das punições para aqueles que praticam crimes contra a fauna:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
Desse modo, é possível verificar que diversas disposições legais têm por objetivo a proteção da fauna.
Os defensores da vaquejada como prática desportiva e cultural trazem como fundamento o art. 215, § 1º, da Constituição Federal, que versa sobre a proteção as manifestações culturais existentes no país. Enquanto a corrente contrária encontra suporte no art. 225, § 1°, VII, da CF/88, segundo esse dispositivo incumbe ao Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.
Em 08 de janeiro de 2013 o Estado do Ceará editou a Lei n° 15.299, que regulamentou a vaquejada como prática desportiva e cultural e criou critérios para a competição e regras de segurança para peões e animais.
A vaquejada, como já relatado, consiste em uma competição onde dois vaqueiros a cavalo têm como objetivo derrubar um touro puxando-o pelo rabo, dentro de uma área previamente demarcada por cal. Anteriormente tinha como escopo a produção agrícola, hoje é explorada como esporte e vendida como espetáculo, por ano, entre premiações, shows e publicidade, as festas movimentam em torno de 50 milhões (SAVANACHI, online). Essa atividade traz como lícitas práticas visivelmente ilegais, que submetem animais à atos de crueldade.
A Presidente da Associação Piauiense de Proteção e Amor aos Animais (APIPA), Drª Roseli Pizzigatti Klein, relata sobre as crueldades a que são submetidos os animais usados nas competições de vaquejada:
O gesto brusco de tracionar violentamente o animal pelo rabo pode causar luxação das vértebras, ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, estabelecendo-se, portanto, lesões traumáticas com o comprometimento, inclusive, da medula espinhal. Não raro, sua cauda é arrancada, já que o vaqueiro se utiliza de luvas aderentes (…) Nas provas que envolvem laçadas e derrubadas, simula-se uma perseguição do peão ao animal; é preciso, então, criar um motivo para que o bovino, manso e vagaroso, adentre a arena em fuga, devendo ser submetido à tortura prévia que, consiste em ser encurralado, molestado com pedaços de madeiras, receber estocadas de choques elétricos e ter sua cauda tracionada ao máximo, antes de ser solto na arena. Garante-se, assim, que o animal, em momento determinado, irá disparar em fuga, pois lhe criaram um motivo para isso (STEINMETZ, online).
Esses hábitos geram danos imensuráveis e constituem maus-tratos aos animais, o que afronta a vedação constitucional de submissão dos animais à atos de crueldade. A natureza perversa dessa atividade não permite sua classificação como manifestação de caráter meramente cultural e desportiva.
O texto constitucional trouxe a proteção da fauna de forma ampla, não restringindo a tutela à espécies determinadas, todos os animais foram igualmente tutelados. A respeito alude Custódio (apud COUTINHO; MELO, 2013, online) animais “nativos ou não, independente de qualquer classificação, espécie ou categoria, de sua ferocidade, nocividade ou mansidão, constituem bens ambientais integrantes dos recursos ambientais juridicamente protegidos”.
A fauna é de suma importância para o equilíbrio ecológico, sendo imprescindível à preservação do meio ambiente. Objetivando a proteção da fauna o constituinte vedou, dentre outras, práticas que submetem os animais a crueldade, assegurando assim o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Evidencia-se que a vaquejada é uma prática cruel, que inafastavelmente submete os animais a maus-tratos, a ocorrência de malvadez é indissociável de sua prática, assim sendo, essa atividade é incompatível com a Constituição Federal, porquanto configura uma verdadeira infração ao ordenamento constitucional.
Vale ressaltar que a crueldade está ligada a ideia de submeter o animal a um mal desnecessário. Uma das características da crueldade é a insensibilidade, o indivíduo trata com indiferença ou até prazer o sofrimento alheio. A Constituição com o intuito de resguardar a vida dos animais proibiu que atos assim fossem praticados contra eles.
Uma das alegações para justificar a edição da Lei 13.299/13 do estado do Ceará é que não havia lei nacional proibindo a vaquejada, e com isso o legislador estadual possuía legitimidade para autorizar tal atividade, contudo esse argumento me parece infundado. É sabido que toda e qualquer prática que maltrate animais, ainda que sob a justificativa dela ocorrer dentro de um contexto cultural, deve ser afastada. A respeito dispôs Machado (2011, p. 885):
Atos praticados ainda que com caráter folclórico ou até histórico, como a ‘farra do boi’ estão abrangidos pelo art. 32 da Lei 9.605/98, e devem ser punidos não só quem os praticam, mas também, em co-autoria, os que os incitam, de qualquer forma. A utilização de instrumentos nos animais, quando da realização de festas ou dos chamados ‘rodeios’ ou ‘vaquejadas’, tipifica o crime comentado, pois concretiza maus-tratos contra os animais. O emprego do ‘sedém’ – aparelho com tiras e faixas de couro, fortemente amarrado na virilha do animal, com finalidade de comprimir seus órgãos genitais e forçá-lo a saltitar e corcovear – caracteriza o crime do art. 32 da Lei 9.605/98. Da mesma forma, e sem qualquer dúvida, todas as atividades que fizerem os animais enfrentar-se em luta ou disputa. As ‘brigas de galo’ são consideradas atos de crueldade contra animais.
A legislação estadual (lei 15.299/2013, do estado do Ceará) trouxe a vaquejada como prática desportiva e cultural na tentativa de fraudar a aplicação da regra constitucional de proteção à fauna. A prática desse “esporte” constitui verdadeira forma de tratar perversamente os animais ali utilizados, a lei ao admitir a realização dessa atividade autoriza a submissão desses espécimes a tratamento cruel, afrontando o que disciplina a Lei Maior.
O Supremo Tribunal Federal repudia a crueldade com animais visando divertimento humano, em sucessivos julgamentos a Suprema Corte tem advertido que essas práticas afrontam o disposto no art. 225, § 1°, inciso VII, da Constituição Federal. Veja-se:
EMENTA: COSTUME - MANIFESTAÇÃO CULTURAL - ESTÍMULO - RAZOABILIDADE - PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA - ANIMAIS - CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’. (RE 153531, Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 03/06/1997, DJ 13-03-1998 PP- 00013 EMENT VOL-01902-02 PP-00388)
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 11.366/00 DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ATO NORMATIVO QUE AUTORIZA E REGULAMENTA A CRIAÇÃO E A EXPOSIÇÃO DE AVES DE RAÇA E A REALIZAÇÃO DE ‘BRIGAS DE GALO’. A sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição do Brasil. Precedentes da Corte. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente. (ADI 2.514/ SC, Rel. Min. EROS GRAU). INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 7.380/98, do Estado do Rio Grande do Norte. Atividades esportivas com aves das raças combatentes. ‘Rinhas’ ou ‘Brigas de galo’. Regulamentação. Inadmissibilidade. Meio Ambiente. Animais. Submissão a tratamento cruel. Ofensa ao art. 225, § 1º, VII, da CF. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei estadual que autorize e regulamente, sob título de práticas ou atividades esportivas com aves de raças ditas combatentes, as chamadas ‘rinhas’ ou ‘brigas de galo’. (ADI 3.776/RN, Rel. Min. CEZAR PELUSO).
Assim como nesses julgados, a lei que regulamenta a vaquejada está em conflito com a Constituição Federal, pois esta veda quaisquer atos que submetam os animais a maus-tratos, ainda que em um contexto cultural específico.
Na mesma vertente Steinmetz (2009, online) afirma que “o tratamento com crueldade está para os animais assim como a tortura está para os humanos”, alega que a proibição da tortura é um mandamento definitivo, não podendo ser afastado por outro princípio ou regra. O autor ressalta que a Constituição não proíbe o abate de animais para consumo, mas é contra “a crueldade, ou seja, maus-tratos, abusos, mutilação etc” que possa haver incorrido.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.983
Foi proposta no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.983), pelo então Procurador-Geral da República, Roberto Monteiro Gurgel Santos, desafiando a constitucionalidade da lei n° 15.299/13, do estado do Ceará, que regulamentou a prática da vaquejada e a instituiu como atividade desportiva e cultural.
No julgamento da ADI o Supremo Tribunal Federal decidiu sabiamente, por maioria e nos termos do voto do relator, pela procedência do pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade da lei estadual (BRASIL, STF, 2016).
Vale ressaltar que estavam em conflito duas espécies que compõe o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, quais sejam: o meio ambiente natural (compõe este conceito a vedação à atos de crueldade contra animais) e o meio ambiente cultural (garante o direito à livre expressão da cultura).
O Relator, Ministro Marco Aurélio, partindo de estudos científicos, baseou seu voto vindo da premissa de que a vaquejada, em si, já é uma prática que inafastavelmente sujeitam os animais à maus-tratos, e que lei alguma pode regulamentar/legalizar tal atividade. Dessa forma, concluiu que a prática viola a Constituição Federal (art. 225, § 1º, VII). Expôs o relator em seu voto:
Ante os dados empíricos evidenciados pelas pesquisas, tem-se como indiscutível o tratamento cruel dispensado às espécies animais envolvidas. O ato repentino e violento de tracionar o touro pelo rabo, assim como a verdadeira tortura prévia – inclusive por meio de estocadas de choques elétricos – à qual é submetido o animal, para que saia do estado de mansidão e dispare em fuga a fim de viabilizar a perseguição, consubstanciam atuação a implicar descompasso com o que preconizado no artigo 225, § 1º, inciso VII, da Carta da Republica.
O argumento em defesa da constitucionalidade da norma, no sentido de a disciplina da prática permitir seja realizada sem ameaça à saúde dos animais, não subsiste. Tendo em vista a forma como desenvolvida, a intolerável crueldade com os bovinos mostra-se inerente à vaquejada. A atividade de perseguir animal que está em movimento, em alta velocidade, puxá-lo pelo rabo e derrubá-lo, sem os quais não mereceria o rótulo de vaquejada, configura maus-tratos. Inexiste a mínima possibilidade de o touro não sofrer violência física e mental quando submetido a esse tratamento.
A par de questões morais relacionadas ao entretenimento às custas do sofrimento dos animais, bem mais sérias se comparadas às que envolvem experiências científicas e médicas, a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988. O sentido da expressão “crueldade” constante da parte final do inciso VII do § 1º do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de dúvida, a tortura e os maus-tratos infringidos aos bovinos durante a prática impugnada, revelando-se intolerável, a mais não poder, a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada. No âmbito de composição dos interesses fundamentais envolvidos neste processo, há de sobressair a pretensão de proteção ao meio ambiente.
A então presidente da Corte, Ministra Cármen Lúcia, votou pela procedência da ação, alegando que a vaquejada é uma prática que efetivamente submete os animais à maus-tratos. Afirma em seu voto:
Sempre haverão os que defendem o que vem de longo tempo e se encravou na cultura do nosso povo. Mas cultura se muda e muitas foram levadas nessa condição até que houvesse outro modo de ver a vida, não somente a do ser humano.
O primeiro Ministro a divergir do relator foi Edson Fachin, alegando que a tradição cultural é direito garantido e protegido pela Constituição Federal:
É preciso despir-se de eventual visão unilateral de uma sociedade eminentemente urbana com produção e acesso a outras manifestações culturais, para se alargar o olhar e alcançar essa outra realidade. Sendo a vaquejada manifestação cultural, encontra proteção expressa na Constituição. E não há razão para se proibir o evento e a competição, que reproduzem e avaliam tecnicamente atividade de captura própria de trabalho de vaqueiros e peões desenvolvidos na zona rural desse país. Ao contrário, tal atividade constitui-se modo de criar, fazer e viver da população sertaneja.
Esse entendimento foi seguido pelos Ministros Gilmar Mendes, Teori Zavascki, Luis Fux e Dias Toffili. Os demais Ministros, assim como Marco Aurélio e Carmem Lúcia, propugnaram pela insconstitucionalidade da lei, são eles: Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Celso de Melo e Ricardo Levandowsky.
Ante o exposto, a vaquejada foi considerada incompatível com a Constituição Federal, de modo que qualquer ato que venha tratar a prática de forma lícita é inconstitucional, violando o direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(...)
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
O processo foi julgado na data de 06 de outubro de 2016. Deputados favoráveis à atividade e com foco em interesses próprios organizaram uma audiência pública em tempo recorde, na data de 25 de outubro de 2016, criaram o projeto de lei n° 24 de 2016, com o objetivo de elevar a vaquejada à condição de manifestação cultural nacional e de patrimônio cultural imaterial.
No dia 1º de novembro de 2016, o plenário do Senado Federal aprovou o Projeto de Lei citado, tornando a prática de rodeios, vaquejadas e suas respectivas expressões patrimônio cultural brasileiro. Em 29 de novembro de 2016, o texto já aprovado pela Câmera e pelo Senado, foi sancionado pelo então Presidente Michel Temer, sendo criada a Lei 13.364, tornando a vaquejada patrimônio cultural.
A intenção do Poder Legislativo de se sobrepor ao Poder Judiciário na interpretação da Constituição Federal e impor a constitucionalidade da “vaquejada” por meio de emenda constitucional é predestinada ao fracasso. Qualquer emenda constitucional que tente mitigar a vedação das práticas cruéis contra animais esbarrará no óbice do art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal, pois o direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito/garantia individual e, portanto, cláusula pétrea, imune a alterações prejudiciais.
Resta ao Supremo Tribunal Federal ser coerente e não se render à pressão imposta pelo Poder Legislativo, e a este obedecer ao que estabelece a Carta Magna.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, verfica-se que a prática da vaquejada prevalece com base em um dissimulado véu de ser uma atividade desportiva e cultural, pois o real interesse está no fato de gerar milhões por ano e favorecer grandes empresários. É indiscutível que se trata de uma prática incostitucional, que submete os animais à crueldade, e por isso deve ser coibida com rigor pelo Poder Público, pois a ele foi designado o dever de proteger a fauna pela nossa Carta Magna.
REFERÊNCIAS
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[1] Bacharel em Direito pela Unirriter, Especialista em Direito e Estado pela UNIVALE, Mestre em Ciências do Ambiente pela UFT e Doutor pela PUC Minas. Professor da Faculdade Católica do Tocantins e do Centro Universitário Luterano de Palmas. Email: [email protected].
Bacharelanda do curso de Direito da Faculdade Católica do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELO, Miliana Fialho de. A prática cultural da vaquejada: um afronte a vedação constitucional de submissão dos animais à atos de crueldade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 nov 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51037/a-pratica-cultural-da-vaquejada-um-afronte-a-vedacao-constitucional-de-submissao-dos-animais-a-atos-de-crueldade. Acesso em: 07 nov 2024.
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