RESUMO:O processo de formação desordenado das cidades brasileiros acarretou em inúmeros problemas que dificultam a vida daqueles que usam de forma direta ou indireta de sua infra-estrutura. Com efeito, o Direito Urbanístico, utilizando as técnicas da ciência do urbanismo, busca desenvolver ferramentas aptas a proporcionar a sustentabilidade e o equilíbrio no meio urbano. Desta forma, a Constituição Federal de 1988, fundamentando um Estado Democrático de Direito, instituiu em seu texto um capítulo voltado para a implementação da política urbana, estabelecendo como instrumento essencial à concretização do direito fundamental à cidade sustentável a elaboração do Plano Diretor por parte dos Municípios. Neste sentido, a omissão do poder público municipal no que concerne à não elaboração do Plano Diretor configura verdadeira omissão inconstitucional. Em contraponto, a Constituição fixa como uma ação apta a figurar como um remédio constitucional em caso de falta de norma regulamentadora que obste o exercício de um direito constitucionalmente estabelecido o Mandado de Injunção. Assim, o presente trabalho propõe uma análise dos institutos do Direito Urbanístico, dos contornos do direito à cidade sustentável e da importância do Plano Diretor para sua consecução, avaliando como o Mandado de Injunção poderá figurar como uma ferramenta para a sua tutela.
Palavras- chave: Direitos Fundamentais. Direito à cidade sustentável. Plano Diretor. Mandado de Injunção.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. CAPÍTULO I- A FORMAÇÃO DAS GRANDES CIDADES BRASILEIRAS, E O ADVENTO DO DIREITO URBANÍSTICO. 1.1 O processo de formação dos grandes centros urbanos brasileiros.5 1.2 O advento do Direito Urbanístico como forma de tutelar o bem-estar dos habitantes dos espaços urbanos. CAPÍTULO II- O DIREITO À CIDADE SUSTENTÁVEL. 2.1 O Direito à cidade sustentável como um direito constitucional fundamental. 2.2 A política urbana na Constituição. CAPÍTULO III- O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO NECESSÁRIO À CONSECUÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL A UMA CIDADE SUSTENTÁVEL. CAPÍTULO IV- O MANDADO DE INJUNÇÃO COMO REMÉDIO CONSTITUCIONAL APTO A COIBIR A INÉRCIA LEGISLATIVA. 4.1 Os Remédios constitucionais. 4.2 Aplicabilidade das normas constitucionais. 4.3 O mandado de injunção: origem, fundamento e objetivo. 4.4 Legitimidade ativa e passiva no Mandado de Injunção. 4.5 O procedimento do mandado de injunção. 4.6 Mandado de Injunção e Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. 4.7 O mandado de injunção e a separação dos poderes: uma análise dos efeitos da sentença que julga o mandado procedente. CAPÍTULO V- DA POSSIBILIDADE DE IMPETRAÇÃO DE MANDADO DE INJUNÇÃO EM FACE DA NÃO EDIÇÃO DO PLANO DIRETOR. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
Durante o século XX, com o advento da tecnologia e com a formação dos primeiros distritos industriais no país, o Brasil assistiu à formação de grandes centros urbanos, processo este marcado pela significante migração da população rural para as cidades. Todavia, este processo ocorreu de forma desordenada, não estando as cidades brasileiras preparadas para receber um contingente populacional tão expressivo: não havia uma política de planejamento urbana apta a fornecer a infra-estrutura necessária para comportar um grande número de habitantes nos centros urbanos. Como conseqüência deste fenômeno, surgiram diversos problemas de ordem social e espacial próprios do desenvolvimento desordenados da urbe, a exemplo da massiva favelização, das habitações ilegais, da segregação territorial, da falta de segurança, das péssimas condições de saneamento, dentre outros.
Tais problemas deram ensejo à construção e ao aperfeiçoamento de vários instrumentos jurídicos, políticos e econômicos que convergissem para a realização da sustentabilidade, do equilíbrio e da ordenação do meio urbano. Neste contexto, atendendo aos preceitos do caráter social da propriedade, e com objetivo de ajustar e organizar as cidades, regulando a atividade urbanística de forma a garantir a qualidade de vida de todos aqueles que moram e que desempenham suas atividades no meio ambiente urbano, a Constituição Federal, em seus artigos 182 e 183, institui a Política Urbana, respaldando, por sua vez, a edição de regras de Direito Urbanístico.
Neste contexto, foram estabelecidas normas e princípios que disciplinam o planejamento urbano, bem como organizam os espaços das cidades, tudo com o fim de promover o atendimento às necessidades básicas das pessoas que vivem no meio urbano e, assim, preservar a dignidade da pessoa humana. O meio ambiente urbano, pois, deixa de ser encarado como mero espaço no qual se aglomeram pessoas, serviços e a infra-estrutura apta a comportar estes, passando a ser compreendido como meio cultural e coletivo que possui como função comportar de forma digna as relações que nele se desenvolvem, tendo por base a justiça social.
O direito de usufruir de uma cidade sustentável e equilibrada é o marco principiológico que funda toda a atividade jus-política do urbanismo. Tal direito respalda o desenvolvimento de elementos jurídicos em prol da tutela efetiva aos interesses individuais e coletivos de todos aqueles que dependem de um espaço urbano ordenado, garantindo, assim, vida digna e plena aos habitantes e visitantes das cidades. Com efeito, há de se reconhecer e avaliar o caráter fundamental do direito à cidade sustentável, visto que este espaço é o local no qual as pessoas travam suas principais relações, sendo sua conservação e ordenação um requisito essencial para que sejam atendidos os contornos da dignidade da pessoa humana.
De acordo com o que estabelece o art. 182 da Constituição Federal, o Poder Público Municipal deve executar a política de desenvolvimento urbano, objetivando a promoção do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, garantindo, assim, o bem-estar de seus habitantes. O plano diretor, lei municipal aprovada pela Câmara Municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, e, conforme estabelece o §1º do art. 182 da Constituição Federal, é obrigatório para as cidades com mais de vinte mil habitantes.
Cumpre a sua função social a propriedade urbana que atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Assim, tem-se que não será possível auferir quais os parâmetros da correta utilização e da devida otimização do espaço urbano sem que haja plano diretor, não havendo, pois, como adotar políticas que promovam o adequado uso e desenvolvimento do meio urbano sem este instrumento normativo. A não edição do plano diretor acaba, pois, por tolher o direito fundamental dos munícipes ao devido desenvolvimento sustentável da cidade.
A edição do Plano Diretor do Município é medida fundamental para fins de promover a política de ordenação e desenvolvimento do espaço urbano, mostrando-se, assim, instrumento de extrema importância para a promoção da qualidade de vida de todos aqueles que habitam e que desenvolvem as suas atividades neste meio. Desta forma, é necessário que os Municípios, através de suas Câmaras Municipais, editem e aprovem os seus planos diretores, atendendo aos preceitos da função social da propriedade e da necessária organização do meio ambiente urbano, atendendo, como conseqüência, a dignidade daqueles que nele vivem.
Ocorre que diversos Municípios, muito embora sejam obrigados por determinação constitucional e legal, não editam os seus Planos Diretores, o que acaba por embargar o direito dos munícipes de viver em uma cidade organizada e bem estruturada, planejada objetivamente com o intuito de promover a qualidade de vida dos seus habitantes. Assim, se faz necessário refletir acerca de quais seriam os meios legais e judiciais aptos a promover a edição deste ato normativo, uma vez que dele depende a concretização do direito fundamental à cidade sustentável.
Como forma de garantir a exeqüibilidade de seus dispositivos, bem como de conferir a correta aplicação dos direitos fundamentais nela discriminados, a Constituição Federal prevê em seu texto, como garantias fundamentais, a interposição de determinadas ações judiciais, as quais foram denominadas de remédios constitucionais. Nesta esteira, com o intuito de tutelar os direitos fundamentais que dependam de edição de norma regulamentadora para ter aplicabilidade, a Carta Magna, em seu art. 5º, LXXI, prevê que “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.”
Destarte, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos constitucionais será cabível a impetração de Mandado de Injunção em face da inércia da entidade pública competente para edição de tal norma. Assim, ao encararmos o Plano Diretor como norma essencial à concretização do direito fundamental à ordenação e ao desenvolvimento sustentável do meio urbano, conclui-se que o Mandado de Injunção pode ser utilizado como instrumento para, através da tutela jurisdicional, corrigir a inércia do Legislativo Municipal diante da necessidade de edição daquela lei municipal.
Ao passo que é reconhecida a natureza fundamental do direito à cidade sustentável, tem-se que o Mandado de Injunção pode ser utilizado como um meio eficaz de tutela deste direito sempre que o Plano Diretor da cidade não for editado. Constata-se, pois, que a ausência de Plano Diretor nos casos em que há a obrigatoriedade de sua edição, configura verdadeira violação ao direito à cidade sustentável, sendo tal omissão, pois, inconstitucional, pelo que o Mandado de Injunção mostra-se um instrumento hábil a afastar este óbice ao exercício do citado direito fundamental.
Diante disto, este trabalho pretende analisar como o Mandado de Injunção configura um instrumento apto para, através da tutela jurisdicional, coibir a inércia legislativa municipal, determinando a edição do Plano Diretor, promovendo, assim, o pleno desenvolvimento e a adequada ordenação urbana. Para tanto, será feita uma análise do processo de formação dos centros urbanos brasileiros e da gênese de seus principais problemas, após o que será estudado como o urbanismo figura como uma técnica de estudo através da qual são traçados e avaliados instrumentos aptos a promoverem a construção de uma cidade sustentável, bem como qual o papel do Plano Diretor neste processo.
Em ato contínuo, será analisado o caráter fundamental e constitucional do direito à cidade sustentável, avaliando como o equilíbrio e a ordenação do meio urbano atendem à dignidade da pessoa humana. Depois, será feito um estudo acerca da ação do mandado de injunção, observando quais os efeitos da sua sentença de procedência, e como o Judiciário pode atuar em prol da concretização dos direitos fundamentais individuais e coletivos. Por fim, analisaremos como o direito fundamental à cidade sustentável pode ser concretizado através do uso do Mandado de Injunção quando o ente municipal não realiza a sua obrigação de editá-lo.
CAPÍTULO I- A FORMAÇÃO DAS GRANDES CIDADES BRASILEIRAS, E O ADVENTO DO DIREITO URBANÍSTICO
1.1 O processo de formação dos grandes centros urbanos brasileiros
O fenômeno de formação das cidades está diretamente ligado a um longo processo histórico, sendo resultado de diversas causas de ordem econômica, política, cultural e social. Conforme ensina Júlio César de Sá Rocha[1], a cidade é um centro populacional permanente, organizado, com costumes, relações sociais, funções urbanas e políticas próprias que transformam o espaço geográfico ocupado.
O espaço urbano se insere no conceito de meio ambiente artificial, uma vez que este advém da modificação do ambiente natural a fim de criar o espaço público urbano, com a construção de calçadas, prédios, avenidas, parque, e etc. O centro urbano é criado, assim, da imersão do homem sob o meio ambiente, compreendendo a idéia de conglomerado de pessoas com interesses individuais e gerais que criam um espaço em prol da funcionalidade de suas atividades.
A cidade, todavia, não se restringe a um mero aglomerado de pessoas em torno do desenvolvimento econômico e da convivência habitacional, não sendo, pois, uma simples entidade destacada e isolada no território. É a cidade, pois, um complexo dinâmico, um espaço que proporciona e direciona o desenvolvimento daqueles que nela habitam e daqueles que com ela interagem, sendo a vida em sociedade no ambiente urbano um fenômeno que passa por constantes alterações, uma vez que a forma como as relações econômicas, familiares, ambientais e políticas se organizam nesse meio também sempre estão mudando.
Conforme afirma Ana Fani Alessandri Carlos, a cidade “não pode ser analisada como um fenômeno pronto e acabado, pois as formas que a cidade assume ganham dinamismo ao longo do processo histórico”.[2] Assim, a construção do meio urbano é entendida não só como a formação de um espaço privilegiado em que ocorrem as atividades econômicas mais relevantes e da grande maioria da população, mas também como processo de criação de um espaço difusor de novos padrões de relações sociais, inclusive de produção e de estilo de vida.[3]
No Brasil, o processo de urbanização começa a ganhar destaque a partir da segunda metade do século XIX e ao longo do século XX, sendo marcado por fatores político-sociais importantes, como a chegada dos imigrantes europeus no país, a Proclamação da República em 1889 e a assinatura da Lei Áurea em 1888. Todavia, de um ponto de vista histórico, a formação dos grandes centros urbanos brasileiros é recente, e está ligada diretamente a um grande ciclo de expansão das migrações internas, principalmente aquelas concernentes ao marcante êxodo rural que se deu a partir de 1940: o crescimento industrial na Região Sudeste do país, as condições precárias na Região Nordeste e a concentração do poder econômico em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo atraíram a população do campo para estes centros urbanos em busca de melhores oportunidades de emprego e de condições de vida, fazendo com que a população das cidades aumentasse exponencialmente.
O fenômeno da urbanização do Brasil se deu, neste contexto, em ritmo acelerado: na segunda metade do século XX, a população urbana passou de 19 milhões para 138 milhões, com uma taxa de crescimento médio anual de 4,1%, conforme se nota na Tabela abaixo:[4]
É estimado que durante o auge do ciclo migratório, o qual se deu entre os anos de 1960 e 1980, cerca de 43 milhões de pessoas saíram do campo para as cidades, o que foi determinante para o crescimento dos centros urbanos brasileiros.[5]
De acordo com os dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) [6], 84% da população brasileira vive em áreas urbanas. Tal índice demonstra que, em 10 anos, mais de 160.879.708 pessoas mudaram-se da zona rural para o meio urbano, o que demonstra que o processo de migração zona rural-zona urbana ainda continua acontecendo, muito embora ocorra em um ritmo bem menos acelerado que o de anos atrás.
O rápido crescimento das cidades brasileiras ocorreu de forma desordenada, sem planejamento e sem a implementação de políticas públicas específicas, o que provocou diversos problemas de ordem territorial, cultural, ambiental e socioeconômica na zona urbana. A população rural migratória chegou às cidades sem que houvesse uma infra-estrutura adequada para comportar o seu recebimento, tendo estas pessoas dificuldade de acesso à moradia e a serviços básicos, o que gerou uma significante segregação espacial e econômica, aumentando o número de favelas e de loteamentos ilegais nas periferias. A falta de planejamento urbano, assim, acabou por contribuir com o aumento da desigualdade social, da violência, e para o agravamento de problemas de mobilidade urbana, insuficiência de saneamento ambiental, poluição, dentre outros.
É a falta de infra-estrutura e a ausência de mecanismos que concorram para o adequado desenvolvimento humano no ambiente urbano que ensejam o início dos debates acerca da ordenação do espaço urbano no Brasil, alertando para a necessidade de planejar, ordenar e traçar diretrizes para o crescimento e para a formação e modificação do espaço urbano em prol dos seus habitantes. Desta forma, o planejamento urbano surge como uma solução para minimizar os impactos do crescimento desordenado das cidades, buscando oferecer à população um espaço urbano sustentável, de tal forma que nele possam ser desenvolvidas todas as atividades dos seus habitantes sem que haja desrespeito à dignidade da pessoa humana.
1.2 O advento do Direito Urbanístico como forma de tutelar o bem-estar dos habitantes dos espaços urbanos
O urbanismo, enquanto ciência e técnica criada para solucionar problemas advindos da urbanização, objetiva organizar o espaço urbano visando o bem estar coletivo, sendo “instrumento de correção dos desequilíbrios urbanos, nascidos da urbanização e agravados com a chamada ‘explosão urbana’ do nosso tempo”.[7] O urbanismo envolve, pois, as ações estatais em prol da organização funcional da dinâmica urbana, proporcionando a habitação, o lazer e o trabalho dos seus habitantes de forma sustentável e digna. É, em verdade, um fato social, uma técnica de criação, reforma e desenvolvimento do meio urbano.
Conforme conceitua Hely Lopes Meirelles, urbanismo é
O conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade. Entendam-se por espaços habitáveis todas as áreas em que o homem exerce coletivamente qualquer das quatros funções sociais: habitação, trabalho, circulação e recreação.[8]
É importante, pois, diferenciar a urbanização do urbanismo: enquanto aquela abrange o fenômeno de formação das cidades, este envolve o olhar científico para este fenômeno, problematizando a forma como este ocorre, buscando soluções para as conseqüências negativas e propondo institutos de otimização dos pontos positivos. Portanto, é possível concluir que a urbanização é o objeto sob o qual se debruça a técnica do urbanismo.
Em um primeiro momento, o urbanismo se desenvolveu como um conjunto de técnicas para aformoseamento e ornamentação das cidades. Todavia, esse conceito evoluiu para uma dimensão social, estendendo o olhar do urbanismo para além de questões estéticas, entendendo que este abrange a preocupação de adequar o espaço físico às necessidades e à dignidade da população; e, para uma dimensão espacial, compreendendo como objeto a ser avaliado não só a área da cidade, mas também toda a área em que a cidade se integra com os espaços circunvizinhos, abrangendo um plano local, regional e até mesmo nacional, abarcando não só a zona urbana, mas também a zona rural.
Para atingir sua finalidade, o urbanismo trabalha em conjunto com diversos campos do conhecimento, como a Sociologia, a Medicina, a Engenharia, a História, a Geografia, dentre outras áreas do conhecimento. Assim, o fenômeno urbano, enquanto objeto de estudo científico, exige uma avaliação por uma ótica multidisciplinar, tudo com o objetivo de atender as demandas e solucionar os problemas do ambiente urbano.
É da interação entre o Direito e o Urbanismo que advém o Direito Urbanístico enquanto o olhar científico e jurídico para os problemas dos espaços urbanos, buscando, através de normas jurídicas, promover o adequado e correto ordenamento do espaço urbano, visando a dignidade da pessoa humana. Assim, o Direito Urbanístico traz um conjunto de normas e princípios reguladores da atividade e do desenvolvimento urbanístico.
Através dos estudos e das análises do Direito Urbanístico, a ordem jurídica propõe e estuda meios de dispor sobre a formação do espaço urbano, determinando e estabelecendo diretrizes para a política urbana, propondo soluções técnicas e democráticas com o intuito de superar a falta de planejamento, tudo com o fim de promover o desenvolvimento urbano sustentável.
A política de desenvolvimento urbano no Brasil foi impulsionada pelos ideais trazidos pelo Movimento Nacional de Reforma Urbana, na década de 60, o qual perdeu força durante o golpe militar de 1964, voltando a ganhar força na década de 80, compreendendo a reforma urbana como importante elemento no processo de democratização da sociedade brasileira. Os ideais deste movimento foram incorporados pela Constituição de 1988, proporcionando uma mudança de paradigmas em torno da questão urbanística, trazendo a preocupação com a dignidade da pessoa humana para a função desempenhada pela propriedade e pela cidade. Assim, o meio urbano passa a ser encarado como um “espaço cultural e coletivo, cuja função é atender aos interesses dos cidadãos com base nos princípios da justiça social, da função social da cidade e da propriedade.”[9]
Desta forma, a crise nos centros urbanos despertou a preocupação com o respeito à dignidade de todos os indivíduos que neles habitam e que deles necessitam para desempenhar suas atividades e usufruir de serviços básicos, desenvolvendo neste meio suas relações pessoais, trabalhistas e comerciais. Por isso, mostra-se de extrema importância que as mais diversas áreas do conhecimento, dentre as quais se encontra o Direito Urbanístico, ampliem suas discussões em busca de soluções para os principais problemas das cidades, debatendo acerca da sua forma de gestão e da busca pela sua sustentabilidade.
Com o intuito de superar os problemas existentes no meio urbano, principalmente aqueles que são conseqüência do citado crescimento desordenado das cidades no Brasil, a Constituição Federal reservou em seu texto um capítulo específico para tratar de política urbana, tratando, ainda, de institutos de extrema importância para tal, a exemplo do Estatuto da Cidade e do Plano Diretor dos municípios.
CAPÍTULO II- O DIREITO À CIDADE SUSTENTÁVEL
Através de um ponto de vista crítico acerca da importância do planejamento e da ordenação do espaço urbano, buscando tornar este lugar em um meio no qual seja possível realizar as atividades humanas sob condições dignas para todos os indivíduos, chega-se à constatação de que a persecução de uma cidade sustentável converge na procura pela garantia ao respeito à dignidade da pessoa humana no espaço citadino. Neste sentido, o Direito Urbanístico baseia-se em mecanismos e institutos de ordem jurídica, política e social em prol da promoção de uma gestão democrática da cidade, estimulando a cooperação entre os diferentes atores sociais do meio urbano, buscando implementar transformações nos padrões das relações que se dão no contexto urbano. Assim, tem-se que as políticas públicas aplicadas ao ambiente citadino devem ter como objetivo supremo garantir qualidade de vida para todos os indivíduos que nela habitam ou que nela desenvolvem suas atividades.
Promover a dignidade da pessoa humana nas cidades, pode-se dizer, está diretamente ligado à forma como serão planejadas e promovidas as políticas públicas que proporcionem a ordem no ambiente urbano, construindo e mantendo, assim, um modelo sustentável de sociedade e vida urbana, guiando-se pelos princípios da solidariedade, da igualdade, da justiça social, do equilíbrio ambiental e do respeito às diferenças culturais. A promoção de uma cidade sustentável não se restringe a uma mudança na forma como se dão as relações entre os indivíduos e o meio ambiente: a sustentabilidade urbana engloba, ainda, a superação dos problemas sociais, a exemplo do desemprego, das péssimas condições de saneamento básico, da falta de mobilidade urbana e da violência.
O princípio da sustentabilidade urbana implica, pois, na “maximização das potencialidades humanas em consonância com o respeito ao meio essencialmente plural e complexo em que se constituem as cidades.”[10] Ainda, a efetivação de uma melhor qualidade de vida para os indivíduos que desenvolvem suas relações no ambiente urbano, objetivando acabar com o quadro de exclusão social conseqüente do processo de crescimento desordenado das cidades, fundamenta-se na justiça social e no desenvolvimento econômico atento à preservação sustentável dos recursos naturais.
Tem-se, pois, que promover o equilíbrio que demanda a realização de uma cidade sustentável é um dos grandes desafios enfrentados pelos grandes centros urbanos atualmente. Para que haja uma cidade sustentável, conforme muito bem assevera Alva[11], deve haver a capacidade de reorganizar os espaços, gerir novas economias externas, eliminar as deseconomias de aglomeração, melhorar a qualidade de vida das populações e superar as desigualdades socioeconômicas para o crescimento econômico.
A cidade, enquanto espaço coletivo, deve, pois, possibilitar que todas as pessoas possam viver e usufruir dos benefícios do meio urbano de forma sustentável, democrática, equitativa e justa, devendo o seu território ser um local de exercício e cumprimento dos direitos individuais e coletivos. Assim, o planejamento urbano, enquanto instrumento para o desempenho da função social da cidade, deve convergir para o acesso à moradia, ao transporte público, ao lazer, à cultura, e etc.
O direito à cidade sustentável enquadra-se como um direito difuso, ou seja, um direito de caráter transindividual, de natureza indivisível, sendo suas titulares pessoas indeterminadas, ligadas pela circunstância fática de habitarem ou de interagirem com o mesmo espaço físico e político. Conforme já afirmado, o direito à cidade sustentável implica no respeito à dignidade não só daqueles que nela habitam, mas de todos aqueles que com ela interagem, seja a nível local, regional, nacional ou até mesmo internacional.
A preocupação com o adequado desenvolvimento do espaço urbano diz respeito a todas as esferas de governabilidade, seja a esfera municipal, estadual, nacional, e até mesmo internacional. No que concerne a esta última, diversos documentos já foram assinados em prol do correto aproveitamento e organização do meio urbano, a exemplo da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO/92, realizada no Rio de Janeiro; a Agenda Habitat, resultante da Conferência Habitat II, realizada em Istambul (1978); o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (1972); a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986); e a Carta Mundial pelo Direito à Cidade, a qual dispõe que:
O Direito à cidade amplia o tradicional enfoque sobre a melhora da qualidade de vida das pessoas centrado na moradia e no bairro até abarcar a qualidade de vida à escala da cidade e de ser entorno rural, como um mecanismo de proteção da população que vive nas cidades ou regiões em acelerado processo de urbanização. Isso implica em enfatizar uma nova maneira de promoção, respeito, defesa e realização dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais garantidos nos instrumentos regionais e internacionais de direitos humanos.[12]
A efetivação da cidade sustentável depende, pois, do atendimento à função social da cidade e da reestruturação da política de desenvolvimento urbano. Para que isso ocorra, é necessário que haja uma atuação positiva Estatal em conjunto com a coletividade, o que demonstra, assim, que o direito à cidade sustentável está diretamente ligado aos pilares do Estado Democrático de Direito. Este último, consagrado pela Constituição Federal de 1988, lei fundamental do ordenamento jurídico brasileiro, consagra uma ordem jurídica que vive sob o primado do Direito, proporcionando, ainda, o exercício dos direitos pelo cidadão de forma direta e indireta, limitando e guiando a atuação estatal em prol da dignidade da pessoa humana e da justiça social.
2.1 O Direito à cidade sustentável como um direito constitucional fundamental
Os direitos fundamentais, enquanto instrumentos de proteção ao indivíduo frente a atuação positiva ou negativa do poder estatal, advém do processo de positivação dos direitos humanos pela ordem constitucional. Segundo esclarece Dirley da Cunha Júnior[13], os direitos fundamentais compõem-se de uma série de normas jurídicas claras e precisas, voltadas a proteger os interesses mais fundamentais da pessoa humana, informados pelas seguintes características: são inalienáveis, imprescritíveis, intransferíveis, naturais, uma vez que nascem com o próprio ser humano, e não se revestem de caráter absoluto.
Tais direitos se prestam a proteger a dignidade humana em todas as suas dimensões, decorrendo o seu reconhecimento de diversas transformações sociais, políticas, religiosas e econômicas. Assim, conforme ensina Marcelo Galuppo, os “direitos fundamentais são produtos de um processo de constitucionalização dos direitos humanos, entendidos estes últimos como elementos de discursos morais justificados ao longa da História.” [14]
As normas constitucionais que consignam direitos fundamentais perfazem princípios e garantias que devem orientar toda a atividade Estatal, vinculando, ainda, todo o Ordenamento jurídico brasileiro. Estas normas concebem a todo o sistema jurídico o suporte axiológico em que irá se basear, incorporando os valores da ética e da justiça.
De acordo com o que ensina Robert Alexy, os direitos fundamentais são “aqueles dotados de uma determinada estrutura, qual seja, a dos direitos individuais de liberdade”.[15] Neste sentido, A Constituição Federal de 1988 consagra como direitos fundamentais aqueles dispostos no seu Título II, que são os direitos e deveres individuais e coletivos, os direitos sociais, e aqueles direitos concernentes à nacionalidade. Todavia, conforme o art. 5º, §2º da Constituição preceitua, o rol do Título II não é taxativo, uma vez que ao longo do texto da Carta Magna é possível encontrar outros direitos fundamentais, decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, bem como possuem esta natureza aqueles direitos e garantias decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Conforme já apontado, o direito à cidade sustentável, principalmente ao encararmos ele como a garantia a um meio ambiente cultural saudável e apto ao desenvolvimento adequado dos seus habitantes, é sucedâneo do direito à vida, do direito à moradia, do direito ao lazer, do direito à mobilidade, do direito ao trabalho, dentre outros. Também, o direito à cidade sustentável é um desdobramento dos objetivos da erradicação da pobreza e marginalização, da redução das desigualdades sociais, da promoção do bem de todos, bem como apresenta a mesma vertente axiológica e idêntico propósito à consecução do princípio da dignidade da pessoa humana, conformando, além disso, a função social da propriedade, consagrada no art. 5º, XXIII, da CF. Uma vez que o direito à cidade sustentável decorre de todos esses outros direitos e princípios adotados pelo texto constitucional, é inegável, pois, o seu caráter de direito fundamental, conforme estabelecido no art. 5º, §2º da CF.
Um meio urbano sem a estrutura necessária para comportar as atividades dos indivíduos tem um efeito negativo direto sobre a vida humana, influenciando nas condições de saúde, na qualidade de vida, no exercício do direito à propriedade, no trabalho, no comércio, dentre outros. E, neste sentido, não se pode negar que a ausência de uma política urbana adequada, nos moldes do que estabelece o Título VII, Capítulo II da Constituição Federal, acarreta em uma violação a princípios consagrados no texto constitucional, como garantia do bem-estar a todos, e a própria dignidade da vida humana.
Ainda, nos termos do art. 225 da Lei Fundamental, o direito a um meio ambiente equilibrado é um direito fundamental, sendo este bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida. Por extensão conceitual, uma vez que a zona urbana se encaixa na categoria de meio ambiente artificial, sendo a cidade o local em que se concentram as atividades humanas, a inserção do meio ambiente equilibrado como um direito fundamental envolve também o direito à cidade sustentável.
De acordo com a classificação proposta por Paulo Bonavides[16], os direitos fundamentais podem indicar uma atividade negativa do Estado (direitos de 1ª geração), uma atividade positiva do Estado (direitos de 2ª geração), um posicionamento de toda a sociedade mundial em torno de direitos que são difusos (direitos de 3ª geração), ou uma garantia dos povos no contexto da globalização político-econômica (direitos de 4ª geração). Sob esta perspectiva, o direito à cidade sustentável impõe uma postura ativa do Estado, fazendo-o disponibilizar prestações de natureza jurídica e material necessárias ao efetivo exercício dos direitos constitucionalmente conferidos aos indivíduos e à coletividade, configurando, assim, um direito de 2ª geração. Conforme bem pontua Sarlet, os direitos prestacionais “implicam uma postura ativa do Estado, no sentido de que este se encontra obrigado a colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material (fática).”[17]
Todavia, além de um dever estatal, a ordenação e a conservação de um meio urbano equilibrado é um dever de todos, dado o caráter difuso do direito a uma cidade sustentável, já que, como meio ambiente artificial que é, serve às atividades não só daqueles que nela habitam, mas também de todos aqueles que, efetiva ou potencialmente, direta ou indiretamente, possam com ela interagir, configurando, sob esta perspectiva, um direito de 3ª geração.
Uma vez que as cidades são o cenário em que ocorrem as interações sociológicas, políticas, culturais e econômicas entre os indivíduos, se faz imprescindível a tutela jurídica deste meio, o qual deve ser equilibrado, sendo, pois, inegável a natureza jurídica de direito fundamental do direito à cidade sustentável. Necessária, desta forma, a disciplina constitucional da política urbana, uma vez que a afirmação da superioridade da Constituição, como norma superior e matriz das demais normas, só faz sentido se direcionada a assegurar a maior proteção possível de iguais direitos fundamentais a todos os membros uma dada sociedade. [18]
2.2 A política urbana na Constituição Federal
A Constituição Federal de 1988, a qual é social, democrática e dirigente, confere ao Estado o papel de responsável pela promoção do bem-estar social. Em seu Título VII, Capítulo II, a Constituição Federal estabelece, de forma inédita, as diretrizes para a política urbana, objetivando ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, o que foi um grande avanço no que concerne à busca pela sustentabilidade dos espaços urbanos.
O texto constitucional dá respaldo às políticas urbanas para a criação e manutenção de uma cidade sustentável, sobretudo, através da determinação da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito que vigora na República Federativa do Brasil, o que o faz em seu art. 1º, III, bem como através do estabelecimento de objetivos fundamentais da República, como a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais, bem como a promoção do bem de todos.
Trazendo estes fundamentos para a perspectiva urbana, tem-se que o Direito Urbanístico encontra nestas disposições constitucionais, pois, o respaldo necessário para desenvolver suas técnicas de ordenação do território citadino e de uso correto da propriedade urbana, promovendo melhores condições de moradia, lazer, circulação e trabalho, por exemplo, concretizando, assim, a dignidade da pessoa humana através da promoção de uma cidade sustentável. Neste contexto, a Constituição Federal por meio de suas normas e princípios constitui a base normativa que determina a necessidade da sustentabilidade do meio urbano. Conforme ensina José Afonso da Silva,
A Constituição fundamenta a doutrina segundo a qual a propriedade urbana é formada e condicionada pelo direito urbanístico a fim de cumprir sua função social específica: realizar as chamadas funções urbanísticas de propiciar habitação (moradia), condições adequadas de trabalho, recreação e de circulação humana.[19]
Em seu art. 21, XIX, a CF estabelece como competência privativa da União instituir as diretrizes para o desenvolvimento urbano no país, o que inclui, entre outras, as diretrizes para as políticas de habitação, saneamento e transportes urbanos. Com fulcro no seu art. 24, I, §2º e no art. 30, II, ambos da Constituição Federal, os Estados e os municípios possuem competência para, respectivamente, suplementar a norma federal em matéria urbanística e para editar normas de direito urbanístico de interesse local.
Ainda com base no art. 24, I, §2º da CF, fica determinado que cabe à União estabelecer as normas gerais de direito urbanístico por meio de lei federal. Também, o art. 182 da CF dispõe que a política de desenvolvimento urbano deve ser executada pelo Poder Público Municipal em conformidade com as diretrizes federais fixadas em lei. Com o intuito de regulamentar os mencionados dispositivos constitucionais, a União editou a Lei 10.257 de 2001, o Estatuto da Cidade, a qual, com base nos artigos 182 e 183 da Constituição, contêm as diretrizes do desenvolvimento urbano e regional, os objetivos da política urbana nacional, os instrumentos urbanísticos e o sistema de gestão da política urbana.
O Estatuto da Cidade tem como princípios jurídicos e políticos a função social da propriedade, a participação popular e a dignidade da pessoa humana, estabelecendo as principais diretrizes do meio ambiente artificial, figurando como o principal instrumento da reforma urbana, estabelecendo normas de ordem pública e interesse social, regulando o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental, conforme dispõe o seu art. 1º, Parágrafo Único. Além disto, o Estatuto da Cidade dá especial atenção ao princípio da proteção à propriedade privada, estabelecido nos arts. 5º, caput, X, XII, XIII, XXIV, e 170, III da Constituição Federal, observando a função social da propriedade, bem como ao direito à moradia, previsto no art. 6º da CF, o qual é um dos principais direitos sociais a serem promovidos pelo Estado.
Com o objetivo de concretizar a sustentabilidade do meio citadino, o Estatuto da Cidade fixa em seu texto diretrizes de cunho social, jurídico, econômico-financeiro, governamental, bem como de ordenação do solo urbano, estabelecendo, ainda, os principais instrumentos da política urbana. Assim, a edição desta lei significa um grande avanço em prol da realização da função social da cidade, sendo sua observância extremamente necessária pelos Poderes locais.
Conforme previsto no art. 182 da CF, a política do desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, tem como objetivos ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Tal determinação cria para o Poder Público Municipal o dever de implementar um planejamento urbano, aplicando-o de forma contínua e permanente, desenvolvendo de forma racional a política urbana, de forma a sanar os problemas que afetam a sociedade citadina.
Como cada localidade apresenta suas peculiaridades, possuindo determinados problemas que lhe são próprios, andou bem o constituinte originário ao estabelecer que a competência para executar a política de desenvolvimento urbano pertence ao Município, uma vez que é no contexto municipal que se conhecem a realidade e as necessidades locais. Tal competência confere ao Município, conforme já demonstrado nesta obra, a possibilidade de editar normas de caráter local para fixar os parâmetros para o desenvolvimento da política urbana, sempre respeitando as normas urbanísticas de cunho federal e estadual. Todavia, tal competência não se restringe a uma prerrogativa: mais do que um poder, a execução da política urbana na busca pela sustentabilidade do espaço urbano é um dever do ente político municipal.
Em seu art. 182, §1º, a Constituição Federal estabeleceu como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana o Plano Diretor, o qual será editado pelos municípios, sendo obrigatório, conforme o texto constitucional, para cidades com mais de vinte mil habitantes. Dada a importância de tal instrumento normativo, é necessário que se analise como a sua edição é fundamental para que se alcance a sustentabilidade no meio urbano.
CAPÍTULO III- O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO NECESSÁRIO À CONSECUÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL A UMA CIDADE SUSTENTÁVEL
Consoante já apontado no presente trabalho, a Constituição Federal de 1988, de forma inédita, instituiu o dever da implementação da política urbana no Brasil, determinando a sua execução ao Poder Público Municipal. Dentre os instrumentos que serviriam ao direcionamento desta política, a Lei Maior conferiu ao Poder Federal a competência para legislar acerca das diretrizes que iriam guiar a ordenação do meio urbano, o que foi feito através do Estatuto da Cidade, a Lei 10.257/2001. Tanto a Constituição Federal quanto o Estatuto da Cidade consagram o Plano Diretor como instrumento destinado à gestão urbana, através do qual será promovida a função social da cidade.
Conforme conceitua Lilian Regina,
o plano diretor é o instrumento de planificação urbana mais importante do nosso ordenamento jurídico, pois ele determina as exigências de ordenação da cidade, tendo como finalidade assegurar a qualidade de vida, a justiça social e o desenvolvimento das atividades econômicas dos cidadãos que nele habitam.[20]
O plano diretor, neste sentido, traz para a realidade local a consecução das diretrizes estabelecidas no Estatuto da Cidade, objetivando de forma mais direta a ordenação citadina.
Contudo, importa destacar que o Plano Diretor não é um mero documento técnico, que ignora as práticas sociais do cotidiano da cidade. Em contraponto, é um instrumento político que interfere diretamente do desenvolvimento local, contemplando e ponderando os fatores e as características locais. O plano diretor, sobretudo, traça as diretrizes e os planos específicos para determinada área municipal, respeitando a diversidade das características sociais, econômicas, demográficas, políticas e geográficas da cidade, não sendo, assim, um documento fixo e padronizado. Segundo José Afonso da Silva, a nomenclatura de plano diretor pode ser compreendida da seguinte forma:
É plano, porque estabelece os objetivos a serem atingidos, o prazo em que estes devem ser alcançados (ainda que, sendo plano geral, não precise fixar prazo, no que tange às diretrizes básicas), as atividades a serem executadas e quem deve executá-las. É diretor, porque fixa as diretrizes do desenvolvimento urbano do Município.[21]
De acordo com o art. 182, §1º da CF e com o art. 40 do Estatuto da Cidade, o plano diretor será aprovado pela Câmara Municipal, sendo obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, sendo instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Assim, através do plano diretor serão fixados os moldes da política urbana, dispondo este de mecanismos para que se possa orientar o espaço urbano a ponto de solucionar os efeitos da expansão urbana sem planejamento, assegurando a melhor qualidade de vida para a população.
Desta forma, o plano diretor mostra-se uma ferramenta de intervenção, ordenando o meio urbano a fim de propiciar um desenvolvimento justo e equilibrado da cidade, atendendo às necessidades dos indivíduos de toda a sociedade.
Conforme ensina Carvalho Filho[22], os planos diretores devem conter os seguintes aspectos gerais: aspectos físicos, planejando a ocupação e ordenação do solo do município; aspectos econômicos, projetando a destinação de áreas para a atividade de construção de edifícios comerciais ou não e residências, em especial para atender o mercado imobiliário; aspecto ambiental, abrangendo a proteção ao meio ambiente cultural, artificial e natural; aspecto social, organizando e dispondo sobre os serviços de educação, saúde, habitação, transporte, trabalho, dentre outros; e aspecto administrativo, planejando a execução dos projetos urbanísticos. O plano diretor deve englobar todo o território municipal, abrangendo, inclusive, as áreas rurais existentes dentro do perímetro do Município, uma vez que são áreas de expansão urbana, sendo os serviços desenvolvidos no centro urbano também destinados de forma direta ou indireta a estas áreas.
De acordo com o que dispõe o art. 41 do Estatuto da Cidade, o plano diretor é obrigatório não só para as cidades com mais de vinte mil habitantes, como estabelece a Constituição Federal, mas também para: cidades integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas (art. 41, II); cidades onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumento previstos no § 4º do artigo 182, da CF/88, qualquer que seja a população (art. 41, III); cidades integrantes de áreas de especial interesse turístico(art. 41, IV); e cidades inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto de âmbito regional ou nacional (art. 41, V). É importante destacar que, muito embora tal norma cogente não tenha natureza constitucional, visto que decorre diretamente de lei, esta se fundamenta na ordem constitucional de estabelecimento de diretrizes gerais para a política urbana, a qual é disposta no Estatuto das Cidades, concluindo-se, portanto, que o desrespeito a tal mandamento configura violação a uma determinação constitucional.
Consoante ensina José Afonso da Silva[23], existem quatro etapas para a elaboração do plano diretor: primeiro, são feitos estudos preliminares, onde se elabora uma avaliação sumária da situação e dos problemas existentes no município. Depois, faz-se um diagnóstico acerca dos principais problemas da cidade, traçando soluções para estes, prevendo as perspectivas de evolução. A terceira fase, por sua vez, consiste em elaborar o plano de diretrizes, estabelecendo a política para a consecução das soluções propostas para os problemas diagnosticados, bem como os objetivos e metas para a organização espacial da cidade. Por último, instrumenta-se o plano com base nas ferramentas e meios de atuação traçados nas fases anteriores.
A lei que estabelece o plano diretor deve ser revista, pelo menos, a cada dez anos. Tal regra, prevista no art. 40, §3º do Estatuto da Cidade, atende ao princípio da adequação, uma vez que o plano diretor deve se adequar às novas realidades do ambiente urbano. Esta revisão constitui um dever jurídico imposto ao Poder Municipal, constituindo a inércia em fazê-lo verdadeira omissão ilegal. Neste sentido, o Estatuto da Cidade prevê no art. 52, VII que tal omissão é uma conduta que figura improbidade administrativa.
O plano diretor deve, necessariamente, tratar de determinados conteúdos, sem os quais será um instrumento vazio, não tendo condições de regular a ordem urbana. Assim, o art. 42 do Estatuto da Cidade estabelece que o plano diretor deverá tratar, no mínimo das seguintes matérias: delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, considerando a existência de infra-estrutura e de demanda para utilização; sistema de acompanhamento e controle da política urbana; direito de preempção municipal; outorga onerosa do direito de construir; alteração do uso do solo; operações urbanas consorciadas; e a transferência do direito de construir.
Dentro da conjuntura de um Estado Democrático de Direito, a política de desenvolvimento urbano deve advir de uma construção conjunta do poder público com a população por ela abarcada, sendo imprescindível a participação popular não só na elaboração do Plano Diretor, mas também na constante fiscalização da sua execução. O engajamento da população na política urbana é, portanto, extremamente importante, uma vez que a concepção de sustentabilidade do meio urbano abarca a idéia de uma cidade feita para atender as necessidades de todos.
Neste sentido, o processo de elaboração do plano diretor e a fiscalização de seu cumprimento deverá observar o respeito a certas garantias de participação da sociedade e da publicidade. Deve o plano diretor, portanto, ser fruto de mecanismos democráticos, tendo na gestão compartilhada uma importante forma de controle social. Para tanto, conforme determina o art. 40, §4º do Estatuto da Cidade, no preparo do plano diretor os Poderes Executivo e Legislativo municipais deverão garantir: a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade; a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos; o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos. A ausência da participação popular pode resultar na inconstitucionalidade da lei que institui o plano diretor.
Repensando os espaços habitáveis e a ocupação do solo urbano, o plano diretor define a função social da propriedade e da cidade, sendo estas alcançadas através da implementação de medidas que diminuam as desigualdades e segregações espaciais. O direito de propriedade, que antes era tido como absoluto, ganha novos contornos na medida em que impõe ao proprietário o dever de observar o interesse público, conferindo um conteúdo social àquele direito. Neste sentido, José Cretella Júnior afirma que “a propriedade privada urbana predial cumpre, por inteiro, sua função social, quando adequadamente utilizada. O solo urbano cumpre sua função social sempre que tenha aproveitamento racional e adequado.”[24]
O art. 182, §2º da CF dispõe que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.” Assim, o plano diretor é essencial para a definição dos parâmetros de uso da propriedade privada, delimitando o conteúdo social da propriedade urbana.
Para que o Município utilize dos instrumentos conferidos no art. 182, §4º da Constituição Federal, promovendo o adequado aproveitamento do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utlizado, é necessário, também, que seja editado plano diretor. Desta forma, as medidas de parcelamento ou edificação compulsórios, progressividade temporal do Imposto Predial Territorial Urbano e desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública (que serão aplicadas sucessivamente) só poderão ser utilizadas por Municípios que tenham editado os seus respectivos planos diretores.
A construção de uma política urbana através do plano diretor é essencial para a criação de cidades sustentáveis. Neste sentido, o plano diretor é um instrumento básico no delineamento das diretrizes urbanísticas do município, promovendo o uso racional do espaço urbano, democratizando a cidade, estimulando a melhoria de vida dos seus cidadãos, direcionando a construção de uma sociedade mais solidária e igualitária, sempre focando nos parâmetros da justiça social e da dignidade da pessoa humana, atendendo, assim, a todos os demais preceitos de um Estado Democrático de Direito. O plano diretor é, assim, uma peça de extrema valia dentro do complexo normativo que se destina a concretizar o direito fundamental a uma cidade sustentável.
A não edição do plano diretor constitui, portanto, verdadeira violação ao citado direito fundamental, infringindo, ainda, os princípios constitucionais da justiça social, do meio ambiente equilibrado, da gestão democrática, da função social da propriedade e da cidade, dentre outros. Assim, busca-se no Mandado de Injunção a solução para o problema da inércia do Poder Municipal ao não editar o Plano Diretor, ou ao fazê-lo de forma insuficiente, uma vez que, nestes casos, há verdadeiro impasse ao exercício de um direito constitucional fundamental.
CAPÍTULO IV- O MANDADO DE INJUNÇÃO COMO REMÉDIO CONSTITUCIONAL APTO A COIBIR A INÉRCIA LEGISLATIVA
4.1 Os Remédios constitucionais
Com o intuito de conferir aplicabilidade e efetivação aos direitos fundamentais, dando-lhes validade prática, a Constituição Federal traz em seu texto os chamados remédios constitucionais, os quais são garantias instrumentais destinadas à proteção dos direitos individuais e coletivos fundamentais. Os remédios constitucionais, neste sentido, constituem juridicamente um conjunto de meios garantísticos em face do abuso do poder estatal apto a ameaçar os direitos constitucionalmente previstos. Neste sentido,
A constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não significou mera enunciação formal de princípios, mas a plena positivação de direitos, a partir dos quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela perante o Poder Judiciário para a concretização da democracia. Ressalte-se que a proteção judicial é absolutamente indispensável para tornar efetiva a aplicabilidade e o respeito aos direitos humanos fundamentais previstos na Constituição Federal e no ordenamento jurídico em geral.[25]
Assim, como um mecanismo de tutela aos próprios direitos constitucionais, os remédios constitucionais funcionam como ações postas a salvaguardar os direitos fundamentais de todos os indivíduos, conferindo segurança quanto à eficácia da norma constitucional que os conferem. Conforme ensina José Afonso da Silva, as garantias constitucionais exprimem os meios, instrumentos, procedimentos e instituições destinados a assegurar o respeito, a efetividade do gozo e a exigibilidade dos direitos individuais. [26]
As garantias constitucionais se diferenciam dos direitos na medida em que, ao passo que estes últimos possuem uma feição material, aquelas são asseguradas como direitos de ordem processual, provocando a tutela estatal para proteger e conferir eficácia aos direitos fundamentais. Desta forma, as garantias funcionam como instrumentos em relação aos direitos, protegendo-os em caso de lesão ou ameaça de lesão. Tais ações constitucionais, dado o objetivo de proteger direitos fundamentais, se desenvolvem de forma mais célere em comparação às ações ordinárias, possuindo como principais características:
A sumariedade dos ritos e preferência de trâmite; b) a informalidade processual; c) antecipação da tutela, de caráter preventivo ou repressivo; d) manifestação jurisdicional de caráter condenatório/mandamental; e) amplitude na legitimação ativa.[27]
Neste sentido, são garantias ou remédios constitucionais: a) o habeas corpus (art. 5º LXVIII, CF); b) o habeas data (art. 5º, LXXII, CF) ; c) o mandado de segurança, individual e coletivo (Art. 5º LXIX e LXX, CF); d) o mandado de injunção, individual e coletivo (Art. 5º, LXXI); e) a ação popular (Art. 5º, LXXIII, CF); e f) a ação civil pública (art. 129, III, CF).
4.2 Aplicabilidade das normas constitucionais
Em regra, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, conforme estabelece o art. 5º, §1º da Lei Maior. Isso implica que, usualmente, as normas que estabelecem os direitos fundamentais possuem eficácia plena, tendo aplicabilidade independentemente de posterior regulação, não podendo o legislador criar norma posterior que restrinja a sua aplicabilidade.
Todavia, há certas normas constitucionais que, apesar de definirem direitos fundamentais, possuem eficácia contida ou eficácia limitada. No primeiro caso, a norma pode ser aplicada de forma imediata, tendo eficácia plena em um primeiro momento, podendo, contudo, ter sua aplicação restringida pela atuação do legislador infraconstitucional. Exemplo de norma de eficácia contida é aquele descrita no art. 5º, XIII da Constituição Federal, que estabelece que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
No caso da norma de eficácia limitada, a Constituição delega ao legislador infraconstitucional a tarefa de regular e definir a aplicação da norma, sendo sua eficácia, assim, condicionada à atuação legislativa. Assim, o exercício do direito consignado no dispositivo constitucional fica prejudicado enquanto não houver a edição da lei regulamentadora da norma de eficácia limitada, conforme determinado pelo próprio texto constitucional, uma vez que esta não reúne todos os elementos necessários para a produção de todos os seus efeitos jurídicos, possuindo tão somente aplicabilidade indireta ou mediata.
Uma vez que determinadas normas que prevêem direitos fundamentais possuem eficácia limitada, dependendo da edição de uma norma infralegal para que haja o exercício do direito nela consignado, a omissão por parte do legislativo, nesses casos, configura uma ameaça a estes direitos e liberdades constitucionais. Neste sentido, com o objetivo de solucionar tal problema, a Constituição Federal, em seu art. 5º, LXXI, trouxe o Mandado de Injunção como um remédio apto a sanar a ameaça a estes direitos decorrente da falta de uma norma regulamentadora.
4.3. O mandado de injunção: origem, fundamento e objetivo
Após o fim da ditadura militar no Brasil em 1985, e durante o processo de redemocratização, a Assembléia Nacional Constituinte que deu origem à Constituição Federal de 1988 preocupou-se em consignar no texto constitucional formas para dotar o cidadão e toda a sociedade de instrumentos que lhes garantissem a efetividade da norma fundamental, proporcionando-os ferramentas para evitar que a concretização de seus direitos restasse impossibilitada. Neste contexto, a Carta Magna de 1988 elencou, de forma inédita, um mecanismo que servisse de meio de tutela às omissões estatais. Assim, surgia em nosso ordenamento jurídico, com status de garantia constitucional, o mandado de injunção.
Muito se discute na doutrina acerca de qual é a origem do instituto do Mandado de Injunção, havendo quem acredite que este é um produto derivado do direito inglês e do direito norte-americano, quem defenda a sua originalidade, afirmando que esta ação é uma criação do direito brasileiro, e quem advogue que a fonte do mandado de injunção no nosso ordenamento é o próprio mandado de segurança. Segundo José Afonso da Silva, o mandado de injunção tem sua origem no direito inglês, derivando dos conceitos de equity traçados naquele ordenamento jurídico.[28] Hely Lopes Meireles, por sua vez, afirma que “o nosso mandado de injunção não é o mesmo writ dos ingleses e norte-americanos, assemelhando-se apenas na denominação”.[29]
No direito inglês, a injuction tem fundamento na idéia de equidade, servindo como um instrumento apto para proteger os casos não abarcados pela lei ou pelo sistema da common Law. Esta ação se presta a solucionar situações em que existe um dito vácuo legislativo, podendo ter caráter de writ, possuindo efeito mandamental; ou ter caráter de prohibitory, consignando uma ordem de não fazer ou de não cumprir um ato determinado quando este constituir uma violação a determinado direito.[30] Da mesma forma, seguindo os contornos do direito anglo-saxão com as devidas adaptações e modificações, o direito norte-americano adota o chamado writ of injuction como um remédio extraordinário, o qual se presta a solucionar questões de direito público e de direito privado através da imposição de um mandamento de não fazer
Ultrapassando a discussão acerca da originalidade do mandado de injunção no ordenamento jurídico brasileiro ou da exportação do instituto do direito estrangeiro, certo é que no direito nacional esta ação constitucional ganha novos contornos, propondo-se a, através de um juízo de justiça e equidade, corrigir a omissão ilegal que acaba por impedir o exercício direto e imediato de um direito constitucionalmente assegurado. Desta forma, não se pode negar que há originalidade no instituto pátrio, o qual dá, dentro da perspectiva do direito estrangeiro, um importante passo para salvaguardar os direitos dos indivíduos em face da inércia do Poder Estatal.
Em um Estado Democrático de Direito, no qual o Poder Público desempenha importante papel na realização dos direitos sociais e na concretização de direitos individuais, é comum que existam dispositivos constitucionais de cunho programático, bem como aqueles aos quais corresponda o dever de legislar para garantir a efetivação dos direitos e garantias conferidos pela Carta Magna. Neste contexto, em um sistema em que são impostas tarefas ao Estado em prol do bem-estar dos cidadãos é importante que exista uma preocupação com a inércia do poder estatal, principalmente no que concerne às omissões legislativas, uma vez que estas impedem que os direitos sejam efetivamente implantados no mundo dos fatos.
Conforme muito bem pontua André Rosa, o imperativo de promoção da igualdade material confere ao Poder Judiciário a permissão para não apenas funcionar como legislador, mas também para atuar como “verdadero órgano de corrección activa de la labor del parlamento.”[31] Assim, a omissão legislativa nos casos em que a norma constitucional demanda regulamentação implica em uma perda de força normativa do texto constitucional, não sendo, pois, desejável a manutenção desta.
A omissão pode ser total ou parcial. No primeiro caso, não existe norma infraconstitucional sobre tema, o que implica na completa impossibilidade de exercício do direito. Já no segundo caso, a norma infraconstitucional trata a matéria de forma insuficiente, seja porque alguns aspectos da norma constitucional não foram regulados, ou porque o diploma infraconstitucional deixou de contemplar possíveis destinatários da norma constitucional.
De acordo com Cunha Júnior, a expressão “norma regulamentadora” utilizada no art. 5º, LXXI da Constituição Federal deve ser interpretada de forma extensiva, abrangendo não apenas atos legislativos, mas também atos regulamentares e, até mesmo, atos materiais da Administração Pública.[32] Desta forma, o mandado de injunção se presta a sanar a omissão não só em sede legislativa, mas também em sede administrativa.
O mandado de injunção configura uma ação judicial de caráter constitucional, consistindo, conforme ensina Marcelo Novelino, uma
Ação de controle difuso-concreto de constitucionalidade, na qual a pretensão é deduzida em juízo por meio de um processo constitucional subjetivo destinado a assegurar o exercício de direitos subjetivos.[33]
Assim, como medida essencial ao exercício de determinado direito, liberdade ou prerrogativa relacionada à nacionalidade, soberania ou cidadania, em face da inércia legislativa ou administrativa, o Poder Judiciário poderá ser provocado a solucionar tal situação através da impetração do mandado de injunção.
O mandado de injunção é, pois, uma garantia fundamental à efetivação da Constituição, relacionando-se diretamente com o princípio da inafastabilidade jurisdicional e, sobretudo, com a dignidade da pessoa humana e com o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais. Com efeito, todo aquele que necessite da complementação da Constituição com o fim de conferir plenitude ao exercício do seu direito subjetivo constitucionalmente garantido possui o direito fundamental à impetração de Mandado de Injunção.
O Mandado de Injunção consigna um direito fundamental à efetivação da Constituição, e, consoante aponta Dirley da Cunha Júnior[34], é possível identificar neste uma dimensão objetiva e uma dimensão subjetiva: pela dimensão subjetiva, o direito investe o cidadão na posição jurídica subjetiva de exigir o desfrute imediato de todos os direitos e garantias fundamentais, e de exigir a emanação de normas ou atos materiais de concretização da Constituição; pela dimensão objetiva, o mandado de injunção irradia uma eficácia dirigente, impondo ao Estado o dever jurídico permanente de concretizar e realizar todas as normas constitucionais, incumbindo a todos os órgãos e todas as entidades estatais o dever-poder de efetivá-las.
O instrumento do mandado de injunção confere proteção a toda a sociedade, servindo como elemento de concretização da cidadania, ao passo que evita que a coletividade fique refém da vontade do Poder Estatal em concretizar ou não um direito dependente de regulamentação. A omissão legislativa acarreta um desequilíbrio na sistemática dos direitos fundamentais, constituindo uma violação à ordem constitucional como um todo.
Para que haja a possibilidade de impetração de Mandado de Injunção, a doutrina e a jurisprudência afirmam que é necessário que sejam atendidos determinados requisitos, quais sejam: a previsão de um direito constitucional relacionado às liberdades fundamentais, à nacionalidade, à soberania ou à cidadania; e a ausência de norma regulamentadora que inviabilize a fruição deste direito.
Observa-se que o Mandado de injunção não se presta a tutelar todo e qualquer direito. A prerrogativa carente de regulamentação deve possuir previsão constitucional, não sendo cabível a interposição do remédio em análise para obter a fruição de direito previsto em qualquer outra espécie normativa.
Esclarecido que apenas prerrogativas elencadas no texto fundamental receberão a tutela através da ação de injunção, questiona-se quais seriam os direitos constitucionais não regulamentados que ensejarão a prestação jurisdicional por meio do citado mandado. A priori, quis a doutrina e a jurisprudência delimitar o seu alcance às normas de eficácia limitada elencadas no Título II da Constituição Federal, o qual diz respeito aos direitos e garantias fundamentais. Todavia, no decorrer do aprofundamento dos estudos doutrinários constatou-se que o espectro de incidência deste instituto é muito mais amplo, sendo capaz de tutelar todo e qualquer direito, liberdade ou prerrogativa prevista ao longo do texto constitucional. Neste sentido, Piovesan aponta para existência de três correntes que tratam da norma constitucional objeto do mandado de injunção, nos seguintes termos:
A corrente mais restritiva sustenta que a parte final do art. 5º, LXXI, ao se referir a prerrogativas “inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”, restringe o alcance da expressão “direitos e liberdades constitucionais” a estes bens jurídicos. Uma segunda corrente restringe a expressão “direitos e liberdades constitucionais” aos direitos e garantias fundamentais do Título II do texto. A terceira corrente, a que se adota, entende que os direitos, liberdades e prerrogativas tuteláveis pela injunção não são apenas os constantes no Título II da Carta Maior, que se refere aos direitos e garantias fundamentais, mas quaisquer direitos, liberdades e prerrogativas, previstos em qualquer dispositivo da Constituição, tendo em vista que inexiste qualquer restrição no art. 5º., LXXI, do texto. Entende-se que o Mandado de Injunção protege os direitos e liberdades constitucionais e prerrogativas, estas sim, inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.[35]
Portanto, o posicionamento atual é de que, sendo de eficácia limitada, qualquer norma constitucional que conferir direitos, liberdades e prerrogativas pode ensejar a utilização do mandado de injunção.
Quanto à ausência de norma regulamentadora enquanto condição para a impetração de mandado de injunção, tem-se que este termo não se restringe à inexistência de lei propriamente dita, abrangendo, por sua vez, outras espécies normativas. Neste sentido, Diomar Ackel Filho afirma que
O regulamento a que atine a injunção é aquele em sua acepção material, ampla e compreensiva de todas as modalidades de normas necessárias para operar a exeqüibilidade de um dispositivo constitucional ou legal (leis complementares, leis ordinárias, decretos, resoluções, etc.). Por isso, a expressão regulamento não deve ser tomada em seu sentido literal. Formalmente, o regulamento é um ato legislativo ou administrativo que traduz a norma primária em seus aspectos menores, aclarando-a e disciplinando a sua exigibilidade. Mas, sob o aspecto material, o regulamento é ato legal necessário para a exeqüibilidade de outra norma superior.[36]
Assim, a norma regulamentadora faltante poderá ter não só natureza legislativa, mas também natureza administrativa, o que reflete diretamente na definição da legitimidade passiva do mandamus.
4.4 Legitimidade ativa e passiva no Mandado de Injunção
É parte legítima para figurar no pólo passivo da demanda de injunção aquele que possuir o dever constitucional de editar a norma regulamentadora faltante. Não cabe, todavia, sob o argumento de que somente as pessoas estatais possuem competência para a edição de provimentos normativos, afirmar que tal legitimidade atinge somente tais entes.
Pode figurar no pólo passivo da ação, assim, qualquer órgão da Administração direta ou indireta, sejam pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado. Neste sentido, defende-se a possibilidade de impetração de mandado de injunção em face de pessoa jurídica privada, ao passo que estas também podem obstar direitos em conseqüência de uma omissão normativa inconstitucional, como, por exemplo, ocorre no caso das empresas que estão obrigadas a conceder participação nos lucros a seus empregados e não o fazem através de ato geral. Neste sentido, Flávia Piovesan salienta que
Cabe mandado de injunção tanto nas relações de natureza pública como nas relações privadas, como, por exemplo, nas relações de emprego privado, hipótese que envolve os direitos previstos no art. 7º do texto constitucional. Nesta ótica, sustenta-se que no mandado de injunção a legitimidade passiva recai sobre a parte privada ou pública que viria a suportar o ônus de eventual concessão da injunção. Isto é, a legitimidade passiva recai sobre o ente cuja atuação é necessária para viabilizar o exercício do direito e não recai, portanto, sobre a autoridade competente para elaborar a norma regulamentadora faltante.[37]
O pólo passivo, assim, deve ser constituído pelo órgão que sofrerá o ônus de se submeter à decisão de procedência do mandado de injunção, seja ele um ente político, um ente administrativo, ou até mesmo uma pessoa jurídica de direito privado.
Quanto ao sujeito legitimado para figurar no pólo ativo da ação de injunção, nota-se que este, dada a natureza de garantia fundamental deste remédio constitucional, poderá ser pessoa física ou jurídica, brasileiro ou estrangeiro, ente personalizado ou despersonalizado. A legitimidade ativa no writ em questão é, pois, ampla, podendo ser autor da ação qualquer pessoa que tenha o exercício do seu direito constitucionalmente conferido obstaculizado pela falta de norma regulamentadora. Não se exige, assim, legitimação específica, qualificada: qualquer um que tiver interesse jurídico por prevalecer-se do mandado de injunção.[38]
Muito embora não haja previsão constitucional, a jurisprudência passou a admitir o Mandado de Injunção Coletivo, uma vez que restou entendido determinados entes coletivos possuem legitimidade ativa para impetrar mandamus. Neste sentido, destaca-se o Mandado de Injunção nº 833, no qual o Supremo Tribunal Federal deferiu pedido de mandado de injunção coletivo impetrado pelo Sindicato dos Servidores das Justiças Federais do Estado do Rio de Janeiro.
Todavia, com a promulgação da Lei 13.300/16, a qual regulamenta o procedimento de Mandado de Injunção, sedimentou-se de vez a possibilidade de impetrar o Mandado de injunção coletivo, sendo este cabível para tutelar os direitos, as liberdades e as prerrogativas pertencentes, indistintamente, a uma coletividade indeterminada de pessoas ou determinada por grupo, classe ou categoria, podendo esta ação ser promovida:
“Art. 12. I - pelo Ministério Público, quando a tutela requerida for especialmente relevante para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático ou dos interesses sociais ou individuais indisponíveis;
II - por partido político com representação no Congresso Nacional, para assegurar o exercício de direitos, liberdades e prerrogativas de seus integrantes ou relacionados com a finalidade partidária;
III - por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos 1 (um) ano, para assegurar o exercício de direitos, liberdades e prerrogativas em favor da totalidade ou de parte de seus membros ou associados, na forma de seus estatutos e desde que pertinentes a suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial;
IV - pela Defensoria Pública, quando a tutela requerida for especialmente relevante para a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5o da Constituição Federal.”
A sentença proferida no mandado de injunção coletivo faz coisa julgada limitadamente às pessoas integrantes da coletividade, do grupo, da classe ou da categoria substituídos pelo ente impetrante.
4.5 O procedimento do mandado de injunção
O dispositivo constitucional que prevê a possibilidade de interposição de Mandado de Injunção possui aplicabilidade imediata, não dependendo, pois, de regulamentação por meio de lei. Todavia, a ausência de uma disciplina legal acerca do instituto trouxe à tona, por um longo período de tempo, diversas dificuldades em estabelecer os contornos do seu procedimento, o que deu ensejo a uma forte construção doutrinária e jurisprudencial em torno desta ação. Foi definido, assim, que ao Mandado de Injunção seria aplicado o procedimento da Lei 12.016/09, que trata do mandado de segurança.
Ocorre que, no ano de 2016, foi promulgada a Lei 13.300, a qual disciplinou o procedimento do mandado de injunção, determinando que a este procedimento é aplicável de forma subsidiária as regras da Lei do Mandado de Segurança e o Código de Processo Civil. Tal lei regulamentou o processo e o julgamento não só do mandado de injunção individual, mas também do mandado de injunção coletivo.
O processo do mandado de injunção começa com a petição inicial, a qual, além de atender aos requisitos legais dos arts. 319 e 320 do CPC, deverá indicar o órgão impetrado e a pessoa jurídica que ele integra ou a que está vinculado. Caso à petição inicial falte algum pressuposto processual, ou caso o mérito do pedido seja manifestamente improcedente, nos contornos do art. 332 do CPC, o juiz poderá indeferi-la de pronto, cabendo apelação se a decisão for proferida em 1ª instância, ou agravo interno se a decisão tiver sido prolatada por Relator em processo de competência originária do Tribunal.
Recebida a inicial, o juiz ou o relator dará um despacho ordenando a notificação do impetrado para que, no prazo de 10 dias, preste as informações cabíveis; bem como determinando a ciência do ajuizamento da ação ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada para que, querendo, ingresse no feito. Após o término do prazo para a prestação de informações pelo impetrado, o Ministério Público deverá oferecer parecer no prazo de 10 dias. Depois disto, o juiz ou o órgão colegiado apreciarão a ação, proferindo sentença ou acórdão.
Observa-se que o procedimento do mandado de injunção tem como característica a simplicidade e a celeridade. Isso se dá pelo caráter garantidor da ação, a qual, atendendo os preceitos de um Estado Democrático de Direito, se propõe a tutelar direitos fundamentais carentes de efetividade.
A Lei 13.300/2016 não prevê a possibilidade de pedido liminar no âmbito do mandado de injunção. Neste sentido, o STF já se pronunciou diversas vezes pela impossibilidade de implementar liminarmente a tutela no mandado de injunção. Todavia, parte da doutrina advoga a possibilidade de concessão de pedido liminar na ação de injunção quando presentes os requisitos de periculum in mora e fumus boni juris. Mas, ressalta-se, esta não é a tese adotada pelo STF e pela Lei que disciplina o mandado de injunção.
Nos termos do art. 102, I, q da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal é competente para conhecer do mandado de injunção quando a incumbência referida couber ao Presidente da República, ao Congresso Nacional, à Câmara dos Deputados, ao Senado Federal, à Mesa de uma dessas Casas Legislativas, ao Tribunal de Contas da União, aos Tribunais Superior ou, por fim, a ele próprio. O art. 105, I, h da CF, por outro lado, dispõe que o Superior Tribunal de Justiça é competente para processar e julgar originariamente o mandado de injunção quando a elaboração da norma faltante for atribuição de órgão, entidade ou autoridade federal, da administração direta ou indireta, desde que não sejam esses casos já açambarcados pela competência do Supremo Tribunal Federal e dos órgãos da Justiça Militar, da Justiça Eleitoral, da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal.
4.6 Mandado de Injunção e Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
Ao lado do mandado de injunção, figura no texto constitucional como ferramenta para solucionar uma omissão legiferante a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a qual é um instituto do controle de constitucionalidade brasileiro. Quando o Estado deixa de tomar as medidas necessárias à concretização das normas da Constituição, deixando de praticar atos legislativos ou executivos indispensáveis para tornar aplicáveis os mandamentos constitucionais, observar-se-á a inconstitucionalidade por omissão, prevendo o art. 103, §2º da CF, neste caso, a possibilidade de interposição de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. Com efeito, a referida ação busca sanar uma inatividade consciente do Poder Estatal quando da aplicação da Constituição.
Nota-se que ambas as citadas ações possuem objeto semelhante, qual seja, a finalidade de implementar a aplicabilidade da norma constitucional em face de uma omissão estatal. Todavia, apesar de possuírem as mesmas finalidades, os dois institutos possuem notáveis diferenças, sobretudo no que concerne à legitimação para interposição, o âmbito de incidência e os efeitos da decisão.
Primeiramente, tem-se que o mandado de injunção figura como uma ação de caráter subjetivo, sendo um instrumento de controle concreto ou incidental de constitucionalidade da omissão, objetivando, neste sentido, tutelar direitos subjetivos. Por sua vez, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão é uma ação de caráter objetivo, idealizada como ferramenta de controle abstrato, concentrado e principal de constitucionalidade da omissão, defendendo objetivamente a Constituição. Com efeito, ao passo que a ação direta de inconstitucionalidade por omissão é uma ação de cunho jurisdicional que busca garantir a própria Constituição, o mandado de injunção é um remédio constitucional que visa garantir direitos.
Ao passo que o mandado de injunção objetiva tornar viável o exercício de direitos fundamentais, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão tem como finalidade tornar efetiva uma norma constitucional, seja ela definidora de um direito ou não. No mandado de injunção, a atividade jurisdicional será dirigida para garantir a viabilidade do exercício de um direito, enquanto na ação direta de inconstitucionalidade por omissão a providência judicial visará a concretização da própria Constituição.
É interessante notar que o mandado de injunção possui um caráter de especialidade, na medida em que se destina a sanar uma omissão ilegal que empata o exercício de um direito fundamental. Em contraponto, a omissão objeto da ação direta de inconstitucionalidade pode dizer respeito à efetividade de qualquer norma constitucional, diga ela respeito a um direito fundamental ou não.
Ao tratar da distinção entre mandado de injunção e ação direta de inconstitucionalidade por omissão, Flávia Piovesan salienta que este writ tutela direitos individuais ou coletivos, mas não direitos difusos. Isso porque, segundo afirma a doutrinadora, a tutela de direitos difusos cabe à ação direta, ao passo que o mandado de injunção atua em defesa de direito subjetivo.[39]
No momento em que se auferir a impossibilidade da efetividade de um direito fundamental em decorrência da falta de norma que o regulamente, poderá ser impetrado o mandado de injunção, não havendo, portanto, estipulação de prazo para o exercício desta garantia constitucional. Por outro lado, no que concerne à ação direta de inconstitucionalidade por omissão, é imprescindível que seja aguardado um lapso temporal razoável para que seja caracterizada uma omissão inconstitucional apta a ensejar a manifestação jurisdicional.
Outro ponto de importante divergência entre as ações aqui analisadas se encontra na fixação da legitimidade ativa e passiva: ao passo que na ação direta por inconstitucionalidade a Constituição fixa um rol de legitimados para propô-la, no mandado de injunção a legitimidade ativa é mais ampla, ao passo que, conforme já apontado no presente trabalho, permite que qualquer indivíduo ou ente coletivo impetre a ação em face da omissão estatal. Por este motivo, afirma-se que em sede de mandado de injunção o controle da omissão legislativa é muito mais democrático quando comparado com aquele que se dá no âmago da ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
O mandado de injunção, enquanto ação de controle concreto, se funda na análise de uma relação jurídica instituída por partes definidas, limitando os seus efeitos, em regra, às partes processuais. Já a ação direta de inconstitucionalidade por omissão possui efeito erga omnes, uma vez que possui natureza abstrata e objetiva.
4.7 O mandado de injunção e a separação dos poderes: uma análise dos efeitos da sentença que julga o mandado procedente
Na ordem político- jurídica brasileira vigora a separação de poderes, princípio este instituído no art. 2º da Lei Maior, o qual dispõe que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário serão independentes e harmônicos entre si. Desta forma, o mesmo texto que estipula uma separação entre os poderes determina que estes atuem de forma harmônica, o que significa que os poderes exercerão uma fiscalização e um controle mútuo, tudo à luz da sistemática de “freios e contrapesos”.
A separação harmônica entre os poderes da República deve ser utilizada como meio, e não como fim do Estado, tudo com a finalidade de atingir os objetivos fundamentais proclamas no texto constitucional. O Poder Judiciário, neste sentido, não pode se ingerir na atividade legislativa, prestando-se a, através do seu exercício, legislar nos casos em que o Poder Legislativo ou o Poder Administrativo restaram inertes. Todavia, isto não significa que o Poder Judiciário não possa fazer o controle judicial desta omissão. Conforme ensina Esteves,
Não se pode negar que é preciso que o Judiciário atue de forma ativa, anulando regras inconstitucionais, dando aplicação à norma infraconstitucional no caso concreto de forma que o resultado seja adequado aos objetivos constitucionais e supra omissões legislativas e administrativas, redefinindo políticas públicas quando ocorrer inoperância dos outros poderes.[40]
Assim, ao exercer sua tutela nas ações de mandado de injunção, visando corrigir a omissão legislativa ou administrativa, o Poder Judiciário não pretende substituir o Poder Legislativo e o Poder Executivo. Em verdade, o Judiciário busca concretizar os objetivos traçados na Constituição através de um instituto previsto na própria lei fundamental. Neste sentido, é possível afirmar que o mandado de injunção serve como ferramenta do controle judicial das atividades administrativa e legislativa, uma vez que este é um meio de provocar a atividade jurisdicional em prol da aplicação concreta de norma constitucional em face da falta de regulamentação que lhe embargue a eficácia.
Ao passo que o chamado ativismo judicial não pode ser admitido a ponto de haver uma sobreposição da atividade jurisdicional ao exercício do Poder Legislativo, a separação dos poderes não pode ser encarada de forma rígida a ponto de afastar o controle judicial da omissão legislativa. Ao passo que esta não-atuação legislativa traz prejuízo aos indivíduos, entende-se que, através do Mandado de Injunção, a separação dos poderes é flexibilizada a fim de viabilizar a atividade do Judiciário em prol da fruição dos direitos previstos na Carta Magna.
Consoante já afirmado no presente trabalho, o mandado de injunção é um instituto recente, uma novidade da Constituição Federal de 1988, não havendo no direito estrangeiro nenhum outro instituto semelhante. Também, até o ano de 2016 não havia uma legislação ordinária que regulamentasse o instituto, o que, apesar de ser dispensável, gerou uma grande discussão acerca de como se daria o seu processamento e como seria feita, propriamente, a tutela ao direito obstado pela inércia estatal. Nesta esteira, ao longo do tempo foram sendo construídos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca da natureza jurídica e dos efeitos da decisão proferida no julgamento do mandado de injunção.
Muitos posicionamentos surgiram acerca dos efeitos da sentença procedência do mandado de injunção, os quais, segundo Alexandre de Moraes, podem ser divididos em dois grandes grupos: concretista e não concretista. A posição concretista, por outro lado, pode ser subdividida em geral e individual, sendo esta última dividida em direta ou intermediária.[41]
Na posição concretista tem-se que o Poder Judiciário poderá, através da sentença de procedência, implementar o exercício do direito, liberdade ou prerrogativa constitucional, tendo tal decisão eficácia constitutiva, conferindo máxima efetividade ao instrumento. O concretismo advoga, pois, a possibilidade de a decisão judicial suprir a lacuna legislativa de forma a viabilizar desde já o exercício do direito prejudicado pela lacuna legislativa, funcionando, assim, como instrumento de suprimento da norma regulamentadora faltante, disciplinando a matéria até a superveniente regulamentação.
A corrente concretista é subdividida em outras duas: a concretista geral e a concretista individual. No que concerne à primeira, a sentença que declara a existência da omissão inconstitucional produz efeito erga omnes, possuindo, assim, uma normatividade geral.
Os críticos da corrente concretista geral argumentam que este entendimento permite que o Poder Judiciário, ao prolatar decisões com efeitos erga omnes em sede de mandado de injunção, usurpe a competência que foi constitucionalmente atribuída ao Poder Legislativo. Segundo ensina Carraza, este posicionamento “implicitamente admite que o Judiciário avoque a competência do Legislativo, vulnera o princípio da harmonia e separação dos Poderes e, destarte, à falta de autorização constitucional, não pode prevalecer.”[42] Também neste sentido, advoga Piovesan que “não seria razoável que o Poder Judiciário elaborasse norma geral e abstrata, quando da apreciação de um caso concreto, cujo pedido é a restauração de direito subjetivo violado”.[43]
Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, pontua que o mandado de injunção versaria sobre o controle abstrato da omissão inconstitucional e, como tal, deve ter eficácia erga omnes da mesma forma como tem a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Assim,
É de excluir-se, de plano, a idéia de que a decisão proferida no controle abstrato da omissão deva ter eficácia inter partes, porque tais processos de garantia da Constituição, enquanto processos objetivos, não conhecem partes. As decisões proferidas nesses processos, tal como admitido pelo Tribunal, devem ser dotadas, necessariamente, de eficácia geral.[44]
A corrente concretista individual, por outro lado, defende que a decisão produz efeitos apenas entre as partes, beneficiando somente o impetrante do mandado de injunção. Desta forma, a decisão deixa de lado a generalidade dos casos que poderiam ser enquadrados na mesma situação fática que aquela levada a juízo, limitando-se a disciplinar somente o caso concreto submetido à apreciação judicial. Aparece, assim, como uma solução ao impasse apontado no concretismo geral, uma vez que não configura uma ingerência do Judiciário na atividade legislativa. Este posicionamento, por sua vez, se subdivide nas correntes individual direta e individual intermediária.
Na concretista individual direta tem-se que a sentença de procedência do pedido do mandado de injunção deve, desde já, implementar entre as partes a eficácia da norma em questão. Dentro desta perspectiva, há autores que defendem que a decisão do mandado de injunção não tem, propriamente, um cunho legislativo, mas sim tem como finalidade a aplicação direta do preceito constitucional. Há, ainda, autores que entendem que a sentença que reconhece a omissão constitui, por si, uma lei provisória aplicável apenas ao caso concreto, fixando, assim, parâmetros para haja o exercício do direito obstado pela lacuna legislativa.
Na concretista individual intermediária, em contraponto, o Poder Judiciário deve determinar um prazo para que o Poder Legislativo elabore a norma regulamentadora faltante. Apenas após o escoamento do prazo assinalado o juiz fixará as condições necessárias ao exercício do direito fundamental obstado pela omissão inconstitucional. Defende este posicionamento o doutrinador Jorge Hage, o qual afirma, ainda, que o mandado de injunção “não visa à defesa objetiva do ordenamento jurídico”[45], mas sim a viabilização do exercício de um direito obstado pela ausência de norma regulamentadora, devendo, assim, ter a sua decisão eficácia apenas entre as partes do processo, dado o seu cunho subjetivo.
Em oposição à corrente concretista há a posição não concretista, a qual nega que a sentença de procedência do mandado de injunção possa ter qualquer efeito constitutivo, limitando-se tão somente a declarar a existência da omissão inconstitucional. Assim, a finalidade única do mandado de injunção seria o reconhecimento formal da omissão.
Muito embora prevaleça na doutrina o posicionamento concretista, uma das primeiras decisões do Supremo Tribunal Federal adotou um posicionamento não concretista. No julgamento do MI 107-3/DF, no ano de 1990, restou consignado no teor da decisão que
Não se diz que caberá ao Poder Judiciário, substituindo-se ao Poder competente, fazer essa regulamentação, restrita ao caso concreto, ou extensível a todos os casos análogos. A Constituição partiu da premissa de que, com a procedência da ação direta ou do mandado de injunção, o Poder competente, declarada a inconstitucionalidade de sua omissão, não persistirá em sua atitude omissa. E, bem ou mal, contentou-se com essa eficácia. Ao Supremo Tribunal Federal, a que precipuamente incumbe a guarda dessa Constituição, não é dado, sem qualquer apoio em elementos interpretativos sólidos, desconsiderar essa eficácia, para, com base nessa desconsideração, ter como inócuo o mandado de injunção, e atribuir-lhe efeitos que, como se demonstrou, não se coadunam com o sistema dessa mesma Constituição.
Percebe-se, pois, que a decisão proferiu o entendimento de que a decisão do mandado de injunção possui meramente efeito declaratório. E, muito embora a sentença tenha carga mandamental, uma vez que determina que o poder competente inerte adote medidas para editar a norma faltante, não existe nenhum instrumento de coação que assegure que o órgão omisso cumprirá a determinação judicial. Por este motivo, parte da doutrina saiu em oposição a tal posicionamento, considerando que conferir à decisão de procedência do mandado de injunção natureza meramente declaratória tornaria tal remédio constitucional uma ferramenta inócua, incapaz de ter a efetividade que lhe seria razoável esperar. Não possuiria a sentença, assim, força executiva, ficando na dependência de sua observância por parte dos responsáveis, escapando ao controle do Poder Judiciário, perdendo sua eficácia prática.
Após a prolação da decisão do MI 107-3/DF o STF continuou aplicando o posicionamento não-concretista em outros casos. Todavia, de forma tímida, a Corte foi fazendo breves incursões à posição concretista, como pode ser percebida da leitura da decisão prolatada no Mandado de Injunção 232/RJ, no qual, ao apreciar um pedido de entidade beneficente da assistência social, a Corte fixou prazo de seis meses para elaboração da norma faltante, sob pena de, ultrapassado este prazo, a requerente passar a gozar da imunidade pretendida. Desta forma, a decisão apontou um tendência ao uso do posicionamento concretista individual intermediário.
Foi em 2007, no julgamento do Mandado de Injunção nº 670/ES, o qual discutia o direito de greve dos servidores públicos, que a Suprema Corte demonstrou uma modificação em seu posicionamento. Em um primeiro momento, o STF assinalou um prazo para que o Poder Legislativo editasse a norma faltante, o que, apesar das diversas prorrogações deste prazo, não ocorreu. Diante da persistente omissão legislativa, a Corte proferiu decisão suprindo-a, determinando que aos servidores públicos fosse aplicada a lei de greve dos empregados privados até que o Poder Legislativo venha a editar norma sobre o tema. Com efeito, esta decisão significou um expressivo avanço na proteção dos direitos constitucionais, vez que, com maior efetividade, viabilizou uma solução prática para o problema posto à sua análise.
Desta forma, apesar de não ter sido unânime a decisão, restou consignada a possibilidade de o Mandado de Injunção possuir efeitos concretos, de forma a viabilizar o gozo imediato dos direitos e liberdades constitucionais. Privilegiou-se, assim, a eficácia dos direitos constitucionais fundamentais em face da rígida separação de poderes.
Com a promulgação da Lei 13.300/16, estabeleceu-se que a decisão proferida no mandado de injunção terá eficácia subjetiva limitada às partes, produzindo efeitos até o advento da norma regulamentadora. Todavia, consoante o art. 9º, §1º da citada lei, “poderá ser conferida eficácia ultra partes ou erga omnes à decisão, quando isso for inerente ou indispensável ao exercício do direito, da liberdade ou da prerrogativa objeto da impetração”.
CAPÍTULO V- DA POSSIBILIDADE DE IMPETRAÇÃO DE MANDADO DE INJUNÇÃO EM FACE DA NÃO EDIÇÃO DO PLANO DIRETOR
O processo desordenado de formação dos grandes centros urbanos brasileiros deu origem a sérios problemas na zona urbana, como a falta de mobilidade, a exclusão espacial, a falta de saneamento básico, a marginalização de parcela da sociedade, o uso precário do solo, dentre outros. Com o advento da Constituição Federal de 1988, a qual consagrou um Estado Democrático de Direito na República brasileira, o ordenamento jurídico pátrio voltou-se para a tutela da dignidade da pessoa humana, demonstrando uma relevante preocupação com o meio em que os indivíduos se desenvolvem, e com a forma como este desenvolvimento acontece.
Neste contexto, o texto constitucional conferiu ao Poder Público a árdua tarefa de, através da cooperação com a sociedade, planejar e fornecer ferramentas para a concretização dos direitos concernentes ao meio urbano. Para isso, foi inserido na Carta Magna um capítulo específico para tratar da política urbana, visando solucionar o grande caos encontrado nas cidades brasileiras, delegando aos entes políticos a competência para legislar e para executar os principais planos para a regulamentação do desenvolvimento urbano.
Implicando numa busca constante por transformações na dinâmica citadina, o direito fundamental à cidade sustentável surge como fundamento axiológico para impulsionar as mudanças necessárias na ordenação do espaço urbano. Ao lado de princípios como o da função social da cidade e da propriedade urbana, da justiça social, da equidade e da gestão democrática da cidade, a cidade sustentável funciona como base para o arcabouço jurídico urbanístico, o qual fundamenta a política de desenvolvimento e expansão urbana.
Compreendendo o espaço citadino como um meio coletivo e cultural, o qual objetiva atender aos interesses dos cidadãos, o direito fundamental à cidade sustentável leva a uma reflexão acerca da função social, política, filosófica e jurídica da cidade, encarando esta como o local onde se desenvolvem as potencialidades humanas, e onde se realizam as condições de vida digna dos seus cidadãos. Curial, pois, reconhecer que o direito à cidade sustentável carrega o status de direito fundamental constitucional, uma vez que se presta a concretizar os princípios e objetos fundamentais da nossa República, como a busca pela erradicação da pobreza e da marginalização, pela redução das desigualdades sociais, e pela promoção do bem de todos, bem como o respaldo na dignidade da pessoa humana. Com efeito,
O direito à cidade sustentável insere-se na categoria de “trunfo”, tal como no jogo de cartas, impondo a observância por parte dos demais participantes, cuja ideia inspiradora remonta às lições de Dworkin, voltada aos direitos fundamentais individuais. Por outro lado, tal concepção possui maior abrangência, haja vista a evolução da teoria dos direitos fundamentais, consideradas as suas múltiplas dimensões ou gerações, deitando raízes, inclusive, nos direitos fundamentais sociais e coletivos lato sensu.[46]
O direito à cidade sustentável é o fundamento para todo o desenvolvimento do Direito Urbanístico. Este, enquanto o conjunto de normas que se destinam a disciplinar a organização do espaço urbano, compreende a efetivação de direitos civis e sociais, proporcionando o acesso ao sistema de educação, de saúde, de segurança, de lazer, de transporte, à promoção do meio ambiente equilibrado, dentre outros. Neste sentido, tem-se que o direito fundamental à cidade sustentável, e o direito urbanístico como um todo, não se restringem aos espaços maciçamente urbanizados, implicando, ainda, a tutela aos direitos daqueles que vivem às margens da cidade, nos espaços rurais e semi-rurais. Com efeito, reconhece-se a característica de universalidade da titularidade deste direito, uma vez que ele se estende a todos os indivíduos, sejam eles habitantes de espaço rural, semi-rural ou amplamente urbanizado.
O Direito Urbanístico, nesta conjuntura, se volta para as pessoas, sendo elas a sua principal preocupação, sendo a sustentabilidade das cidades voltada para a qualidade de vida de todos. O espaço urbano, assim, é repensado como um local em que se desenvolvem as potencialidades humanas e, como tal, merece ser conservado e equilibrado, repercutindo o conceito de sustentabilidade diretamente na dignidade da pessoa humana. Desta forma,
No rol dos desafios atinentes ao estado pós-liberal, viver em um ambiente citadino sustentável envolve questões que não se restringem somente as relações entre seres humanos e meio ambiente ecologicamente equilibrado, este constitui um dos seus objetivos primordiais, porem não é o único, sustentabilidade urbana engloba, também, a superação de mazelas sociais a exemplo da busca pelo equilíbrio que deve existir entre os diferentes fatores sociais de poder, inclusão cidadã das camadas sociais historicamente excluídas, através da efetivação dos direitos citadinos promotores de dignidade da pessoa humana, e principalmente, visa contribuir na formação de uma identidade social que só passará a ser desenvolvida quando a população “urbana” se reconhecer como construtor e principal destinatário da cidade e, consequentemente, dos mecanismos citadinos. O direito fundamental à cidade sustentável visa alcançar a harmonização entre as diversas vertentes aludidas, que traduz-se basicamente em sustentabilidade, através do principio da sustentabilidade urbana aliado ao princípio da gestão democrática da cidade, que impõe a criação de órgão deliberativo composto pelos diversos setores da sociedade para a governança local.[47]
A sustentabilidade urbana implica a busca pela maximização das potencialidades humanas no espaço urbano, respeitando sempre as características deste meio como um local plural e complexo, o qual abrange não só diferentes relações sociais, mas também a interação do homem com o próprio meio ambiente artificial. O urbanismo se destina, assim, à busca pelo equilíbrio que deve existir na cidade, fundamentando-se na justiça social, podendo ser conceituado como
A ciência que se preocupa com a sistematização e desenvolvimento da cidade buscando determinar a melhor posição das ruas, dos edifícios e obras públicas, de habitação privada, de modo que a população possa gozar de uma situação são, cômoda e estimada.[48]
Com a finalidade de concretizar o direito fundamental à cidade sustentável, o Direito Urbanístico, através dos seus estudos, desenvolve diversos instrumentos de cunho político e jurídico. A base da consecução deste direito se funda no planejamento urbano municipal, conforme decorre da política urbana traçada na Constituição Federal, o qual será traçado pelo Plano Diretor Municipal, tendo como principal característica a convergência entre as diretrizes gerais fixadas na Lei Maior e no Estatuto da Cidade e as principais características socioculturais do Município.
Dentro desta perspectiva, o Plano Diretor assume o papel de um instrumento imprescindível para a realização do direito à cidade sustentável, planejando-o em âmbito local. Assim, pode-se afirmar que o plano diretor
Define o melhor modo de ocupar um município ou região, prever as áreas onde se localizarão os pontos de lazer, as atividades industriais e todos os usos do solo, não somente no presente, mas também no futuro. Isso permitirá a consolidação de valores com vista à qualidade de vida urbana.[49]
Neste sentido, o Plano Diretor tem a sua validade condicionada à observância da gestão democrática, da justiça social, da função social da propriedade e da cidade, do equilíbrio ambiental e da dignidade da pessoa humana, sem o que será considerado inconstitucional.
Uma vez que o Plano Diretor é o instrumento básico para delinear objetivamente a função social da cidade, estipulando as diretrizes jus-urbanísticas do município, traçando o planejamento urbanístico municipal, pode-se dizer que os entes políticos municipais possuem grande responsabilidade na execução da Política Urbana, garantindo, assim, a vida digna aos indivíduos que habitem os centros urbanos e ao que necessitem, ainda que indiretamente, da estrutura citadina.
Neste contexto, a promoção do uso racional e sustentável do espaço urbano, enquanto meio de concretização do direito fundamental à cidade sustentável, depende diretamente da elaboração do Plano Diretor, uma vez que é neste que serão traçadas de forma objetiva as metas e diretrizes para a consecução do equilíbrio, da ordenação e da sustentabilidade territorial. O Plano Diretor concretiza, assim, em nível municipal, os ditames do Estado Democrático de Direito, respaldando um complexo normativo que torne possível a realização dos direitos fundamentais e humanos, respeitando à dignidade da pessoa humana.
O Plano Diretor é composto de mecanismos técnicos e jurídicos que respaldam a política urbana. Conforme determina a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade, cabe ao legislativo municipal, com observância ao devido processo legislativo, aprovar o Plano Diretor, sendo este instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes e para as cidades: com mais de vinte mil habitantes; integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4o do art. 182 da Constituição Federal; integrantes de áreas de especial interesse turístico; inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional; incluídas no cadastro nacional de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos. Ainda, o Estatuto da Cidade, em seu art. 40, §3º determina que a lei que instituir o plano diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada dez anos.
Sintetizando a definição do que vem a ser o Plano Diretor, Jacintho Arruda Câmara afirma que este é
O mais importante instrumento de planificação urbana previsto no Direito Brasileiro, sendo obrigatório para alguns Municípios e facultativo para outros; deve ser aprovado por lei e tem, entre outras prerrogativas, a condição de definir qual a função social a ser atingida pela propriedade urbana e de viabilizar a adoção dos demais instrumentos de implementação da política urbana (parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, IPTU progressivo, desapropriação com pagamento em títulos, direito de preempção, outorga onerosa do direito de construir, operações urbanas consorciadas e transferência do direito de construir).[50]
Constata-se que a elaboração do Plano Diretor por parte do poder municipal configura um poder-dever, uma vez que, ao passo que o Município tem a competência para a sua elaboração, a norma constitucional, disciplinada por lei federal, indica que a elaboração deste instrumento consiste em uma obrigação. Isso se dá pela importância do Plano Diretor para a consecução da política urbana e para a concretização do direito fundamental à cidade sustentável.
Neste sentido, a Lei 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, fixa sanções cabíveis no caso do descumprimento da obrigação de elaboração do Plano Diretor. Dentre elas destacam-se as conseqüências institucionais, as quais consistem na impossibilidade de utilização, pelo município, de vários instrumentos de política urbana, uma vez que o plano diretor é um requisito para que estes possam ser aplicados, como, por exemplo, o direito de preempção, a outorga onerosa, a edificação compulsória, dentre outros.
Ocorre que, ao passo que serve à concretização do direito fundamental à cidade sustentável, a não elaboração do Plano Diretor ou a sua não revisão em conformidade com a determinação legal configuram uma omissão inconstitucional, que embarga o usufruto de um direito constitucionalmente conferido a toda a coletividade. E, ao passo que os Direitos Fundamentais são pautas ético-políticas intimamente ligadas à concepção de dignidade da pessoa humana, a existência de barreiras à concretização destes deve ser prontamente eliminadas.
Os Direitos Fundamentais determinam ao poder estatal um fazer ou um não fazer, ao passo que estabeleçam, respectivamente, direitos positivos e prestacionais ou direitos negativos. Estes direitos não são meras normas matrizes de outras, mas são, sobretudo, normas diretamente reguladoras de todas as relações jurídicas travadas no mundo dos fatos. O Poder Estatal, assim, tem sua atividade condicionada à observação desses direitos, os quais fincam verdadeiros princípios para a atividade estatal. A ação ou a omissão do Poder Público, neste contexto, configura uma inconstitucionalidade no momento em que deixa de atender aos preceitos fixados nos direitos fundamentais constitucionais.
É preceito de um Estado Democrático de Direito que a atuação estatal esteja condicionada e limitada pelos ditames constitucionais e legais, sendo, ao mesmo tempo, responsável pela concretização dos direitos dos seus administrados. E, como conseqüência, cabe à Lei Fundamental que consagrar este Estado Democrático de Direito fixar ferramentas para inibir a atuação ou a omissão inconstitucional do poder público.
Neste sentido, ao passo que o direito a uma cidade sustentável figura como um direito constitucional fundamental, conforme já demonstrado neste trabalho, a sua não elaboração configura uma omissão inconstitucional, cabendo, portanto, a utilização de remédios constitucionalmente ou legalmente previstos a fim de inibir tal violação à Lei Maior. Assim, dá-se ensejo a um posicionamento proativo do Judiciário, a fim de que o direito fundamental ganhe consecução. A respeito desse entendimento, utilizando a concepção de cidade como meio ambiente artificial, tem-se que o ativismo judicial configura
A capacidade de o juiz –liberto dos antolhos positivistas que resumem sua atividade, seu raciocínio, aos parâmetros da lógica formal, subserviente ao falso paradigma da segurança jurídica –de utilizar toda indumentária teórico-jurídica, imposta e posta a sua disposição, com a finalidade precípua de salvaguardar, defender e reagir energicamente contra qualquer ameaça ao meio ambiente. Deixar de ser a montesquiana “inanimada boca que pronuncia as palavras da lei”, servo que coxeia atrás da carruagem do sistema, desideologizado, neutro, para assumir a dimensão política de sua atividade, tornar-se lawmaker sem legislar, não se ocultando por detrás de dogmas esclerosados e aceitando as implicações morais e práticas de suas escolhas.[51]
Assim, levanta-se a possibilidade de utilizar ações judiciais como meios de, através da prestação jurisdicional, auferir a concretização do direito perseguido, o qual, neste caso, está embargado pela inércia estatal concernente à não elaboração do Plano Diretor. Assim, embora caiba ao Poder Legislativo elaborar o Plano Diretor, e ao Poder Executivo implementar as diretrizes da política urbana nele estabelecidas, tem-se que o Poder Judiciário poderá apreciar a omissão estatal quanto à não elaboração desta norma, vez que esta é um importante instrumento para a implementação do direito à cidade sustentável. Neste sentido, destaca-se o seguinte julgado:
Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão –por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório –mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. (STF –RE – AGr 410.715/SP –2ª Turma–rel: min. Celso Mello –DJ 03.02.2006).
Com o intuito de conferir proteção ao meio ambiente, conceito no qual encontra-se o meio urbano, o ordenamento jurídico brasileiro dispõe de várias ações, dentre as quais a doutrina destaca a ação popular e a ação civil pública, que são as mais utilizadas por aqueles que pretendem tutelar o direito a um meio ambiente equilibrado.
A ação popular pode ser interposta por qualquer cidadão com o objetivo de anular ato lesivo ao meio ambiente, conforme prevê o art. 5º, LXXIII da Constituição Federal. A Ação civil pública, por sua vez, a qual é disciplina pela Lei 7347/85, busca responsabilizar aqueles que, por omissão ou ação, causam danos ao meio ambiente, sendo partes legitimadas a ingressarem com tal ação o Ministério Público, a Defensoria Pública, a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista, ou associação que, concomitantemente, esteja constituída há pelo menos 1 ano e inclua entre suas finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente.
Todavia, muito embora não seja um instrumento comumente utilizado para tutelar o direito à cidade sustentável, destaca-se como remédio constitucional apto a solucionar o problema do embargo ao usufruto do direito fundamental ao equilíbrio e à sustentabilidade diante da não elaboração do Plano Diretor o Mandado de Injunção. Tal remédio constitucional, conforme ensina Rachel Bruno Anastácio, figura no ordenamento jurídico como uma “garantia de exaltação constitucional, ação que visa conferir imediata aplicabilidade à norma constitucional nas hipóteses de normas fundamentais não autoaplicáveis ou de eficácia limitada”.[52]
Uma vez que esta ação constitucional presta-se a proteger o exercício de um direito constitucional em face da não elaboração de uma norma regulamentadora que proporcione a sua concretização, tem-se que a ausência de Plano Diretor pode, indubitavelmente, figurar como seu objeto. Não restam dúvidas de que, em um Estado Democrático de Direito, não se pode permitir que a população seja impedida de usufruir de direitos que lhe proporcionem a fruição de lazer, transporte, moradia, e, em síntese, de uma vida digna.
Visto que o Plano Diretor se presta a tornar exeqüível a ordenação do meio urbano, direcionando a política de desenvolvimento citadino com destino à solução dos principais problemas destes locais, este se mostra um instrumento fundamental na realização da dignidade da pessoa humana e, como tal, merece concretização. A ausência do Plano Diretor, por sua vez, configura uma ululante violação a direitos fundamentais básicos, vez que o Poder Público resolve ignorar o seu dever constitucional de dar consecução à política pública, não realizando, desta forma, o desenvolvimento ordenado e equilibrado do espaço urbano.
Conforme já destacado no presente trabalho, o Supremo Tribunal Federal vem conferindo ao Mandado de Injunção um caráter concretista, afastando a antes vigente natureza meramente declaratória do instrumento constitucional. Portanto, ao passo que a Constituição e a lei federal que a disciplina estipulam casos em que a elaboração do Plano Diretor é obrigatória, a não elaboração desta norma configura omissão a ser solucionada pelo Mandado de Injunção, vez que configura omissão que embarga que os indivíduos e a coletividade em geral tenham acesso a direito constitucionalmente garantido.
Muito embora a doutrina e a jurisprudência utilizem-se de meios indiretos para coibir a falta do Plano Diretor como impeditivo à implementação da política urbana no Município, a exemplo das sanções aplicadas ao Chefe do executivo municipal, a ação popular e a ação civil pública, tem-se que estes não são capazes de efetivamente institucionalizá-lo ou coagir a sua institucionalização. Ao passo que a jurisprudência e a Lei 13.300/2016 vêm reconhecendo o caráter concretizador da sentença de procedência do Mandado de Injunção, é inegável que, através deste instrumento, será possível chegar-se a uma solução mais efetiva para o problema causado pela falta do Plano Diretor.
Além disto, é importante salientar que o Mandado de Injunção figura como meio mais democrático à tutela de direitos fundamentais descritos em normas de eficácia limitada, se comparados com ações como a ação popular e a ação civil pública. Ao passo que estas últimas possuem um número taxativo de legitimados, o mandado de injunção permite que todo e qualquer indivíduo, seja ele pessoa jurídica ou física, ente personalizada ou despersonalizado, impetre o writ com a finalidade de proteger direito fundamental cuja executividade esteja embarga pela falta de norma regulamentadora.
No caso de ausência de Plano Diretor, todos os requisitos necessários para a propositura de Mandado de Injunção estarão atendidos: haverá uma omissão estatal inconstitucional impedindo o usufruto de um direito fundamental individual e coletivo. Cabível, pois, esta ferramenta constitucional, visto que além do direito fundamental à cidade sustentável, a falta do Plano Diretor impede o devido acesso ao direito de moradia, lazer, saúde, transporte, dentre outros.
É importante pontuar que, no caso da falta do Plano Diretor, a sentença do Mandado de Injunção não poderá suprimir a necessária participação popular na sua confecção, execução e fiscalização, uma vez que isto é um ditame decorrente da própria concepção de tutela à dignidade da pessoa humana em um Estado Democrático de Direito. Desta forma, abordando os efeitos da sentença que julga procedente o Mandado de Injunção nestes casos, tem-se que, muito embora possa ter caráter concretizador, há de determinar uma formulação do Plano junto à sociedade diretamente interessada, coagindo, assim, o Poder Público a promovê-la.
A omissão estatal pode ser tão ofensiva à coletividade quanto uma ação quando o Poder Público possuir o dever de atuar em prol da concretização de um direito fundamental dos indivíduos. Neste contexto, o Mandado de Injunção, enquanto garantia constitucional à concretização dos direitos constitucionalmente conferidos, é ferramenta apta a inibir os embargos ao usufruto a uma cidade sustentável diante da falta do Plano Diretor. Portanto,
O desrespeito à Constituição por inércia legislativa, quer dizer, o efetivo estado o efetivo “estado de mora (inconstitucional) do poder legislativo” não deve frustrar o exercício de direitos, impondo-se assim que o mandado de injunção seja “visto e qualificado como instrumento de concretização das cláusulas constitucionais frustradas em sua eficácia pela inaceitável omissão” do legislativo.[53]
Com efeito, não há dúvidas de que, vez que o Plano diretor constitui verdadeiro instrumento destinado à efetivação de direitos e liberdades constitucionais, dentre os quais encontra-se o direito fundamental à cidade sustentável, no que concerne à não elaboração do Plano Diretor, o Mandado de Injunção é uma ferramenta cabível e de extrema eficácia diante da omissão do poder municipal.
CONCLUSÃO
Através da positivação dos direitos dos homens por parte da Constituição Federal, processo pelo qual forma-se a base axiológica sobre a qual todo o arcabouço jurídico brasileiro se funda, tem-se o estabelecimento dos direitos fundamentais constitucionais no ordenamento jurídico pátrio. Tais direitos informam a ideologia juspolítica de todo o sistema jurídico, concretizando, em termos gerais, o direito à liberdade, à igualdade e a uma vida digna. São, assim, consectários da lógica humanística fixada por um Estado Democrático de Direito, ao passo que a existência deste pressupõe o atendimento e o respeito a direitos individuais e coletivos, limitando e direcionando, assim, a atividade do poder público.
A Constituição Federal prevê inúmeros direitos e garantias fundamentais ao longo do seu texto, sem excluir aqueles advindos de tratados internacionais. Tais direitos, muito embora tenham caráter relativo, são indisponíveis, imprescritíveis e inalienáveis, sendo oponíveis não só contra o Estado, mas também em face de outros indivíduos, pelo que são pontuadas as suas eficácias horizontal e vertical.
Por fundamentarem todo o arcabouço normativo, indicando os valores garantísticos que respaldarão a promoção de uma vida digna a todos os indivíduos, tem-se que os direitos fundamentais devem ser protegidos de toda e qualquer ação ou omissão que implique em violação ou tolhimento exercício destes. Neste sentido, com o intuito de resguardar a eficácia e a aplicabilidade dos direitos fundamentais, a própria Constituição Federal estabelece ações aptas a afastar qualquer ameaça ao usufruto e ao exercício desses, que são as garantias processuais constitucionais chamadas de remédios constitucionais.
O processo desordenado de formação dos centros urbanos, o qual teve seu estopim no Brasil após o século XX, gerou diversos problemas que ainda hoje são encontrados nas cidades brasileiras: falta de segurança, marginalização, favelização, segregação territorial, falta de mobilidade urbana, ausência de saneamento básico, dentre outros. Tal quadro negativo se agravou nos últimos anos, restando conclusivo que a manutenção do desequilíbrio e da desordem nas cidades acarreta um ululante desrespeito aos direitos fundamentais daqueles que travam suas principais relações neste meio, a exemplo do direito à saúde, à segurança, ao transporte, à moradia, ao lazer, e, em resumo, à vida digna.
A situação de precariedade dos grandes centros urbanos brasileiros demandam um posicionamento científico das mais diversas áreas do conhecimento na busca por instrumentos que viabilizem a melhor solução para eles. Neste contexto, o urbanismo, através dos seus estudos, busca solucionar os problemas decorrentes da urbanização desordenada, procurando medidas técnicas para organizar o espaço urbano, garantindo a todos o acesso aos seus direitos subjetivos fundamentais.
Trazendo a ciência do urbanismo para uma perspectiva jurídica, é desenvolvido o Direito Urbanístico, o qual propõe instrumentos jurídicos associados a ferramentas políticas, econômicas e sociais em prol da promoção de uma infra-estrutura urbana básica que garanta àqueles que travam suas relações no meio citadino uma vida digna.
Atendendo aos anseios de movimentos que buscavam a correção dos problemas existentes nos grandes centros urbanos brasileiros, a Constituição Federal de 1988 trouxe um capítulo específico para tratar da política urbana, fixando instrumentos técnicos e jurídicos que auxiliassem na concretização da função social da cidade e da garantia do bem-estar dos habitantes do espaço citadino. Com efeito, destaca-se a preocupação com a construção de uma cidade sustentável e equilibrada, que proporcione aos seus moradores e àqueles que se relacionem com este meio a ordenação apropriada para abarcar suas atividades e o seu desenvolvimento pleno, saudável e digno.
O direito à cidade sustentável, decorrente do estabelecimento da política urbana prevista na Carta Magna, é corolário dos princípios e objetivos fundamentais da República Federativa brasileira, a exemplo da busca pela erradicação da pobreza e da marginalização, pela promoção do bem de todos e pela realização da dignidade da pessoa humana. Neste contexto, o direito à cidade sustentável tem natureza de direito fundamental constitucional, tendo este consagrado, dentro da perspectiva urbana, o valor da busca pelo bem de todos. Fixando as diretrizes básicas da política urbana, o Estatuto da Cidade esclarece que o direito a cidades sustentáveis envolve o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.
Com o intuito de promover a sustentabilidade e o equilíbrio no meio urbano, a Lei Fundamental, em seu art. 182, §1º, estabelece como um dos instrumentos da política urbana o Plano Diretor, o qual deverá ser editado pelo Poder Público Municipal, com aprovação da Câmara de Vereadores, sendo obrigatório para municípios com mais de vinte mil habitantes, e para os municípios elencados no art. 41 do Estatuto da Cidade (Lei 10. 257/01). Esta lei dispõe sobre o planejamento urbano, balizando o desenvolvimento e a expansão do espaço citadinho, tudo com o intuito de alterar a realidade urbana e trazer melhoras para a vida da população.
O Plano Diretor é, pois, uma ferramenta imprescindível para a realização do direito a uma cidade sustentável, sendo a sua não edição uma omissão inconstitucional que demanda uma solução célere e eficaz, visto que embarga o exercício do mencionado direito fundamental constitucional.
Para corrigir uma omissão estatal que impeça o exercício de direitos fundamentais constitucionais, a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu texto a previsão do Mandado de Injunção, o qual funciona como um remédio constitucional apto a afastar uma omissão inconstitucional. Vê-se, assim, que o Mandado de Injunção configura uma garantia constitucional ao usufruto dos direitos subjetivos fundamentais frente à falta de norma regulamentadora que obstaculiza o exercício destes.
Tal instituto, enquanto um instrumento originalmente formulado e desenvolvido no ordenamento jurídico brasileiro, demandou um intenso estudo por parte da doutrina e da jurisprudência acerca dos seus contornos. Dentre as questões que mais levantavam dúvidas estava a da incerteza quanto aos efeitos da sentença de procedência da ação, vez que se cogitava que a disciplina do exercício de determinado direito por meio de sentença configuraria uma ingerência do Poder Judiciário na atividade do Poder Legislativo, violando, assim, a separação dos poderes.
Muito embora o Supremo Tribunal Federal viesse entendendo que a sentença de procedência no Mandado de Injunção teria como única finalidade a notificação da autoridade legiferante inerte acerca da necessidade de editar a norma faltante, o que acabava por configurar uma menor eficácia do writ perante a tutela dos direitos fundamentais, atualmente o posicionamento da Suprema Corte vem mudando, dando-se à setença de procedência da ação de injunção um novo contorno: vem ganhando força o entendimento concretista, pelo qual o Mandado de Injunção possui efeitos concretos, estando a decisão que o julgar apta a viabilizar o gozo imediato dos direitos e liberdades constitucionais.
Uma vez que a não edição do Plano Diretor impede a vigência e a concretização do direito fundamental à cidade sustentável, tem-se que o Mandado de Injunção, enquanto remédio constitucional apto a solucionar omissões inconstitucionais, é uma ferramenta hábil na busca pela solução da inércia do poder municipal. Todavia, é importante ressaltar que a sentença que julgue procedente o Mandado de Injunção nesses casos não pode ter um efeito concretizador máximo, vez que a edição do Plano Diretor deve respeitar regras essenciais à sua validade, como o planejamento e a edição democráticos do seu projeto de lei, exigência esta que não pode ser superada pela disciplina judicial do tema por meio de sentença.
Desta forma, o presente trabalho demonstrou, através de uma análise da formação dos grandes centros brasileiros e do desenvolvimento da técnica urbanística, como o direito à cidade sustentável possui o caráter de direito fundamental, sendo o Plano Diretor essencial para a sua concretização. Quando o Município que esteja obrigado a possuir um plano diretor não o tiver por omissão do poder público municipal, estará configurada uma omissão inconstitucional a ser tutelada, na via judicial, pelo Mandado de Injunção, vez que este é um instrumento jurisdicional eficaz, respaldado em uma base garantística.
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[8] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva. 2003. Pág., 377.
[9] PINHEIRO, Gabriele Araújo; RODRIGUES, Wagner de Oliveira. Direito fundamental à cidade sustentável e os dilemas do planejamento urbano no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 106/107, janeiro a dezembro de 2011/2012. Pág., 373.
[10] PINHEIRO, Gabriele Araújo; RODRIGUES, Wagner de Oliveira. Direito fundamental à cidade sustentável e os dilemas do planejamento urbano no Estado Democrático de Direito. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 106/107. Jan./dez. 2011/2012. Pág., 106.
[11] ALVA, Eduardo Neiva. Metrópoles (in) sustentáveis. Rio de Janeiro: Relume Damará, 1997. Pág., 15.
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[20] PIRES, Lilian Regina Gabriel. Função Social da Propriedade Urbana e o Plano Diretor. São Paulo: Editora Fórum, 2007. Pág., 137.
[21] SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2008. Pág., 139.
[22] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. São Paulo: Atlas, 2013. Págs. 340 a 342.
[23] SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2008. Pág., 141.
[24] CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. Pág., 3975.
[25] MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência, 5 ed., São Paulo: Atlas, 2003, Pág., 21.
[26] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20 ed., São Paulo : Malheiros, 2002.
[27] CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo constitucional e a efetividade dos direitos fundamentais. In: Hermenêutica e jurisdição constitucional. Coordenadores: José Adércio LEITE SAMPAIO; Álvaro Ricardo de SOUZA CRUZ. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2001. p. 234.
[28] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15º ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 449.
[29] MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 31.ed. São Paulo: Malheiros, 2008. Pág., 258.
[30] PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Mandado de injunção. São Paulo: Atlas, 1999. Pág., 26.
[31] ROSA, André Vicente Pires. Las omisiones legislativas y su control constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. Pág., 46.
[32] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle judicial das omissões do poder público: em busca de uma dogmática constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. Pág., 265.
[33] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011. Pág., 323.
[34] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle judicial das omissões do poder público: em busca de uma dogmática constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. Pág., 265.
[35]PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas. 2ª Ed – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. Pág., 140.
[36] ACKEL FILHO, Diomar. Apud. OLIVEIRA, Francisco Antonio de. Mandado de injunção. 2ª Ed – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. Pág., 53.
[37] PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas. 2ª Ed – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. Pág., 145.
[38] MACIEL, Adhemar Ferreira. Mandado de Injunção e Inconstitucionalidade por Omissão. Revista de Informação Legislativa, n. 101, 1989. Pág., 131.
[39] PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas. 2ª Ed – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. Pág., 191.
[40] ESTEVES, João Luiz Martins. Direitos fundamentais sociais no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Método, 2007. Pág., 76.
[41] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2000. Pág., 175.
[42] CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 24ª Ed – São Paulo: Malheiros, 2008. Pág., 407.
[43] PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas. 2ª Ed – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. Pág., 191.
[44] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. Pág. 296.
[45] HAGE, Jorge. A realização da constituição, a eficácia das normas constitucionais e o mandado de injunção. In: Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Ano 5, nº 9, p. 111-142, 1997.
[46] LIMA, Vinícius de Melo. O direito fundamental à cidade sustentável e a atuação do Ministério Público: estudo de caso. In: Revista do Ministério Público do RS. Porto Alegre, n. 68, jan. 2011-abr.2011. Pág., 49.
[47] PINHEIRO, Gabriele Araújo; RODRIGUES, Wagner de Oliveira. Direito fundamental à cidade sustentável e os dilemas do planejamento urbano no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 106/107, janeiro a dezembro de 2011/2012.
[48] MUKAI, Toshio. Direito e legislação urbanística no Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988. Pág., 3.
[49] SAYAGO, Doris; PINTO, Mariana Oliveira. Plano Diretor: instrumento de política urbana e gestão ambiental. Disponível em http://www.ecoeco.org.br/conteudo/publicacoes/encontros/vi_en/artigos/mesa3/des_urbano_meioambiente.pdf. Acesso em 02 de abril de 2017.
[50] CÂMARA, Jacintho Arruda et. al. Estatuto da Cidade: Comentário à Lei Federal 10.257/2001. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. Pág., 324.
[51] SILVA, Luis Virgílio Afonso. O Proporcional e o Razoável. In Revista dos Tribunais. Ano 91, vol. 798, p. 23-45. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Págs., 60 e 61.
[52] ANASTÁCIO, Rachel Bruno. Mandado de injunção: em busca da efetividade da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. Pág., 30.
[53] Voto do Ministro Celso de Melo, MI/708-DF, 19/09/2007.
Advogada pós-graduada em Direito Público pela Faculdade Damásio, e graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TORRES, Emanuela Pilé de Barros. Mandado de injunção em face da não edição do plano diretor: o direito fundamental a uma cidade ordenada e sustentável Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jan 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51270/mandado-de-injuncao-em-face-da-nao-edicao-do-plano-diretor-o-direito-fundamental-a-uma-cidade-ordenada-e-sustentavel. Acesso em: 06 nov 2024.
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