RESUMO: O Código de Trânsito Brasileiro, como legislação específica, tipificou alguns crimes específicos, os chamados “crimes de trânsito”, relacionados à condução de veículos automotores. Por razões de política criminal, o legislador optou por tipificar a maioria dos crimes de trânsito como delitos de perigo, dentre os quais há crimes de perigo abstrato e de perigo concreto. Nesse sentido, doutrina e jurisprudência apresentam divergências significativas acerca da natureza jurídica do delito do art. 310 do CTB (Entregar veículo a pessoa não habilitada), levando a decisões conflitantes e à indesejada insegurança jurídica. O presente estudo se propõe a analisar os fundamentos jurídicos da controvérsia acerca da natureza do delito, em especial quanto à sua relação com os tipos penais dos arts. 306 e 309 do Código de Trânsito Brasileiro, de modo a apresentar argumentos técnico-jurídicos a subsidiar o entendimento de que o referido crime é de perigo abstrato. Entendimento esse que, apesar de ainda haver vozes dissonantes na doutrina, foi jurisprudencialmente pacificado, no ano de 2016, por meio de súmula editada pelo Superior Tribunal de Justiça.
Palavras-chave: Crimes de Trânsito; Entregar veículo; Perigo Abstrato.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Crimes de Perigo Concreto e de Perigo Abstrato. 2. A relação entre os crimes do art. 306, 309 e 310 do Código de Trânsito Brasileiro. 3. O delito do art. 310: Perigo Abstrato ou Perigo Concreto? 4. Considerações Finais. Referências.
O Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97) trata, em seu Capítulo XIX, dos Crimes de Trânsito, onde tipificou algumas condutas específicas, relativas à condução de veículos automotores. Nesse âmbito, por razões de política criminal e como forma de evitar a proliferação de condutas perigosas nas ruas e rodovias do país, optou pela criação de uma maior quantidade de delitos de perigo em lugar de crimes de dano, visando prevenir que os prováveis danos efetivamente aconteçam e aumentem ainda mais o já alarmante número de acidentes e vítimas fatais no trânsito brasileiro.
Algumas das condutas tipificadas pela legislação de trânsito se referem à condução do veículo em desrespeito às normas de segurança coletiva, isto é, não possuem relação direta com a condição pessoal do agente, mas com o modo de condução do automóvel. Sob esse aspecto, foram criminalizadas as condutas de participar, em via pública, de competição automobilística não autorizada (art. 308 do CTB), e de trafegar em velocidade incompatível com a segurança em determinadas vias (proximidade de escolas, hospitais, etc.), nos termos do art. 311 do CTB.
Por outro lado, outros delitos foram criados de modo mais genérico, isto é, não prevendo expressamente uma conduta específica referente ao modo de condução do veículo automotor. Tais delitos, apesar de ter fundamento na prevenção de um potencial risco à coletividade, se referem à condição do agente, do condutor. Nesse sentido, o Código de Trânsito trouxe algumas tipificações referentes à condução de veículos por pessoa que, seja por não possuir habilitação, seja por estar com a capacidade psicomotora alterada, não tenha plena aptidão para dirigir.
Dessa forma, além de serem tidas como circunstâncias que aumentam as penas cominadas aos crimes de homicídio culposo de trânsito (art. 302 do CTB) ou de lesão corporal culposa na condução de veículo automotor (art. 303 do CTB), por exemplo, as situações em que o condutor não possui comprovada capacidade para dirigir foram tipificadas como delitos autônomos, crimes de perigo. São exemplos disso os crimes dos arts. 306, 309 e 310 do CTB:
Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
(...)
Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.
Art. 310. Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.
A simples leitura dos citados tipos penais leva a percepção de inter-relação entre o crime do art. 310 (que trata do agente que entrega o veículo à pessoa inapta a conduzi-lo) e os delitos dos arts. 306 e 309 (que se referem ao próprio condutor). Essa inter-relação entre os tipos penais levou a controvérsia jurisprudencial acerca da natureza jurídica do crime do art. 310, questionando-se se este seria crime de perigo concreto ou de perigo abstrato.
A distinção não é meramente teórica, possuindo consequências práticas relevantes, uma vez que o entendimento adotado determina a tipicidade ou atipicidade da conduta do agente. A necessidade de pacificação da questão, por razões de segurança jurídica, passa por uma breve análise dos referidos tipos penais, objeto do presente estudo.
Os tipos penais são criados como objetivo de proteger determinado bem jurídico, valores sociais ou bens da vida que o ordenamento jurídico elege como necessários à sociedade. Dentre os bens jurídicos, por meio de outra análise de relevância social, são escolhidos aqueles cuja importância torna necessária a rigorosa tutela do Direito Penal.
Apenas os interesses mais relevantes são erigidos à categoria de bens jurídicos penais, em face do caráter fragmentário e da subsidiariedade do Direito Penal. O legislador seleciona, em um Estado Democrático de Direito, os bens especialmente relevantes para a vida social e, por isso mesmo, merecedores da tutela penal[1].
Na tipificação de determinada conduta, tendo em vista o bem jurídico a ser tutelado, o legislador pode assumir uma postura mais ou menos cautelosa, no sentido de punir a conduta que efetivamente lesione o bem jurídico ou que simplesmente o coloque em risco de ser lesionado. No primeiro caso, tem-se os chamados crimes de dano, isto é, aqueles delitos que se configuram quando o bem jurídico por eles protegido sofre efetiva lesão por parte do agente.
Por outro lado, quando o legislador opta, por razões de política criminal, em punir a conduta que apenas coloque em perigo determinado valor social protegido, criam-se os crimes de perigo. Tais crimes se caracterizam como forma de coibir determinadas condutas que a experiência mostrou serem arriscadas com grande probabilidade de causar efetivos danos. Assim, pune-se, preventivamente, a própria conduta perigosa, sendo desnecessária a configuração da lesão.
Ainda dentre os crimes de perigo, há duas opções ao legislador, também relacionadas com a periculosidade da conduta que se objetiva coibir. Nesse sentido, ao tipificar um crime de perigo, pode-se optar por exigir que, na situação fática ocorrida, haja comprovada exposição do bem jurídico a um perigo concreto ou escolher condutas que, dada sua periculosidade conhecida, sua simples ocorrência é necessária à configuração do delito, independentemente de ter o agente posto o bem jurídico em efetivo perigo.
No primeiro caso, cria-se um crime de perigo concreto, para cuja configuração é necessário que, no caso concreto, se verifique que a conduta praticada tenha exposto o bem jurídico a um perigo real, a um iminente risco de lesão. Por outro lado, dada a existência de determinadas condutas de conhecida periculosidade, não é necessário exigir que se configure o perigo real, sendo este presumido. São os delitos de perigo abstrato.
Os crimes de perigo abstrato ou presumido são aqueles cujo tipo não prevê o perigo como elementar, razão por que sua demonstração efetiva é desnecessária. A conduta típica é perigosa por sua própria natureza. O legislador, nesses casos, descreve uma conduta potencialmente danosa e de reconhecida perniciosidade social, bastando, portanto, a comprovação de que o agente a praticou para que o delito encontre-se consumado.[2]
A análise dos tipos penais dos arts. 306, 309 e 310 do Código de Trânsito Brasileiro, prima facie, evidencia a relação entre as condutas por eles criminalizadas. Enquanto os crimes dos artigos 306 e 309 punem o agente que conduz veículo sem atender às exigências legais (sob efeito de álcool ou substâncias psicoativas ou sem possuir habilitação, respectivamente), o art. 310 pune aquele que entrega o veículo a uma dessas pessoas.
O crime do art. 310, portanto, tipifica uma conduta que, em determinados casos, antecede a configuração de um dos demais delitos mencionados. A título de exemplo, o agente que entrega veículo para que outro o conduza em estado de embriaguez pratica uma conduta antecedente à de “conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”, de que trata o art. 306.
No supracitado exemplo, caso não houvesse a tipificação autônoma da conduta daquele que entrega o veículo, este poderia ser considerado partícipe do crime do art. 306. Enquanto o autor do crime seria o agente que efetivamente conduziu o veículo (realizou a ação descrita no tipo penal), aquele que lhe entregou o automóvel seria partícipe do delito, tendo em vista que, embora não tenha realizado o verbo do tipo penal, concorreu para o cometimento do delito.
[...] de acordo com o que dispõe nosso Código Penal, pode-se dizer que autor é aquele que realiza a ação nuclear do tipo (o verbo), enquanto partícipe é quem, sem realizar o núcleo (verbo) do tipo, concorre de alguma maneira para a produção do resultado ou para a consumação do crime.[3]
Por esse motivo, é possível afirmar que a sistemática adotada pela Lei nº 9.503/97 excepciona a Teoria Monista, adotada pelo Código Penal Brasileiro, segundo a qual autor e partícipe respondem pelo mesmo crime. Nesse sentido, assim leciona o mestre Cezar Roberto Bitencourt:
[...] teoria monista ou unitária foi a adotada pelo Código Penal de 1940 e segundo ela, não haveria qualquer distinção entre autor, partícipe, instigação e cumplicidade. Assim, todo aquele que concorresse para a prática do crime responderia por ele integralmente. Com a reforma penal de 1984, ela permaneceu acolhida pelo sistema brasileiro, entretanto, estabeleceram-se diferentes níveis de participação, de modo que todos os agentes responderiam pelo mesmo crime, mas na medida individual da sua culpabilidade, conforme prescreve o artigo 29, caput do Código Penal.[4]
Situação análoga ocorre no tocante à relação entre a conduta de entregar veículo a pessoa não habilitada (também descrita no art. 310 do CTB) e a de conduzir veículo sem possuir habilitação (art. 309 do CTB). Há, nesse caso, a mesma característica de acessoriedade do crime do art. 310, uma vez que ele define uma conduta antecedente, auxiliar à de quem conduz o veículo.
Conforme analisado supra (item 3), o tipo penal do art. 310 do CTB tipifica diversas condutas, algumas delas guardam estrita relação com a conduta prevista no art. 306 do CTB, enquanto outras são estritamente ligadas ao tipo penal do art. 309.
Todo questionamento acerca da natureza jurídica do crime do art. 310 do CTB gira em torno da suposta necessidade de equivalência de natureza jurídica entre delitos que tratem de condutas correlacionadas. Assim, segundo determinada corrente doutrinária e jurisprudencial, quem entrega veículo a pessoa embriagada deveria ter o mesmo tratamento da pessoa que conduz o veículo sob efeito de álcool e, de forma semelhante, quem entrega o veículo a quem não possui habilitação, deveria ter o mesmo tratamento daquele que dirige sem habilitação.
Nos termos do raciocínio supramencionado, caso se exija comprovação de dano concreto causado pelo condutor, será necessária a mesma exigência para a configuração do crime de quem lhe entregou o veículo. Cria-se, assim, um paralelismo inafastável entre as condutas, o qual, ao nosso entendimento, não encontra fundamento jurídico para prevalecer.
Quanto ao primeiro caso, isto é, no tocante às situações envolvendo embriaguez do condutor, o “paralelismo” entre as condutas de quem entrega o veículo (art. 310 do CTB) e de quem o conduz (art. 306 do CTB) passou a existir apenas após a modificação trazida pela Lei 11. 705/2008, que modificou a redação do art. 306 do CTB, suprimindo a exigência de “dano potencial a incolumidade de outrem”:
Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Observa-se que, com a modificação legislativa no sentido de retirar da tipificação a exigência de exposição a "dano potencial a incolumidade de outrem" constante da redação anterior, o delito do art. 306 passou a ser de perigo abstrato, e não mais de perigo concreto.
Dessa forma, devido à alteração legislativa, tornou-se insustentável o argumento de que a correlação entre parte das condutas tipificadas no art. 310 com o delito do art. 306 levaria ao reconhecimento daquele como delito de perigo concreto. Portanto, com a alteração realizada pela Lei 11.705/2008 no art. 306 do Código de Trânsito, a conduta prevista no art. 310 que guarda relação com o tipo penal de “embriaguez ao volante”, qual seja “permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a quem, por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança”, é entendida, incontestavelmente, como delito de perigo abstrato.
Por outro lado, quanto às condutas descritas no tipo penal do art. 310 que não possuem relação com qualquer outro delito tipificado pelo Código de Trânsito, também não há qualquer controvérsia. Considera-se, assim, de perigo abstrato o crime de entregar veículo a pessoa que, por seu estado de saúde, física ou mental, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança.
A dúvida permaneceu em relação à conduta correlacionada ao crime do art. 309 do CTB, vez que o tipo penal, incontestavelmente, a comprovação de efetivo perigo de dano, isto é, trata-se de um crime de perigo concreto. Argumenta-se, então, que para manutenção de coerência no sistema criado pelo Código de Trânsito Brasileiro é necessário que a conduta de entregar veículo a pessoa não habilitada também seja considerada um crime de perigo concreto.
Nesse sentido, no entendimento de parte da doutrina e da jurisprudência, sendo crime de perigo concreto o delito do art. 309, seria necessária, para a configuração do crime do art. 310, a comprovação de que o condutor que recebera o veículo teria causado efetivo perigo de dano à coletividade.
Para os defensores desse posicionamento, um dos argumentos para a necessária correlação entre os delitos é o fato de que a inter-relação entre o crime do art. 309 e do art. 310 do CTB é tida como uma exceção à teoria monista. Assim, excepcionando a regra segundo a qual autor e partícipe respondem pelo mesmo delito (art.29 do Código Penal), o Código de Trânsito pune autor e partícipe por crimes diversos, isto é, entende-se que o art. 310 pune a participação na prática da infração do art. 309.
Sob a ótica adotada por essa corrente, parece lógico que, uma vez que o art. 309 exige, para a punição do agente que efetivamente conduz o veículo sem habilitação, o efetivo perigo de dano, não é razoável que tal exigência não se repita em relação ao indivíduo que entrega o veículo para que o não habilitado o conduza, sendo assim, "partícipe autônomo" do primeiro delito.
A lição de Damásio de Jesus, ao defender o entendimento em análise é de que:
“Se simplesmente dirigir sem habilitação não configura crime, a participação pela entrega da direção não pode constituir delito autônomo. Se o fato principal (a direção) não é típico, a participação (entrega da direção do veículo) não pode ser transformada em delito autônomo. O legislador não pode converter uma participação atípica numa conduta típica autônoma. (...)”[5]
Embora pareça lógico o raciocínio apresentado, é necessário observar que a impossibilidade narrada - de punição da participação em um fato principal atípico - é aceita em nosso ordenamento jurídico.
A título de exemplo, o crime do art. 122 do Código Penal Brasileiro, pune aquele que "induz ou instiga alguém a suicidar-se, ou presta-lhe auxílio para que o faça", não punindo, por outro lado, o suicida. Mas qual a relação entre a atipicidade do Suicídio e a tipificação da participação nele com o caso em análise? Ora, o Direito Penal opta por não punir o autoflagelo, embora não desejado, a lesão e o perigo que vitima o próprio agente não é penalmente relevante, mas é punido aquele que concorre para tal resultado.
Deve ser reconhecido o fato de que o Código de Trânsito Brasileiro dedica diversas de suas normas a garantir exclusivamente a segurança do condutor, ou seja, o fato de não possuir habilitação ou de não estar apto a conduzir o veículo põe em risco não apenas a coletividade, mas o próprio motorista. Como exemplos de tais normas, têm-se a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança (art. 65 do CTB), de uso de capacete de segurança (art. 54, I, do CTB), dentre inúmeras outras.
É por esse motivo que o entendimento aqui defendido é no sentido de que, em paralelo ao indivíduo que se suicida (ou tenta o fazer), o motorista sem habilitação que conduz veículo automotor está também se colocando em perigo. Se assim não fosse, não fariam sentido todas as normas do Código de Trânsito Brasileiro que visam exclusivamente a segurança do condutor.
Assim, quem entrega veículo a pessoa não habilitada causa perigo, imediatamente, ao condutor a quem fora confiada a direção e, mediatamente, à coletividade, vez que são frequentes acidentes em que apenas o condutor sofre lesões ou morre, sem que sequer cause perigo a outras pessoas. É nesse mesmo sentido que o próprio art. 310 elenca outras circunstâncias em que a pessoa a quem é entregue o veículo não está apta a conduzi-lo, sob o risco de se submeter, também, a perigo pessoal ("quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança").
Considerando essas características da sistemática criada pelo CTB, a segunda corrente, à qual nos filiamos, entende que o art. 310 não traz a mesma exigência, sendo crime formal, consumado, portanto, com a mera entrega do veículo à pessoa não habilitada, gerando esta perigo de dano à coletividade ou não. Esse entendimento é encampado, dentre outros autores, por Guilherme de Souza Nucci, que ao comentar os crimes de trânsito, assim leciona:
(...) constitui-se delito de perigo abstrato a figura típica penal cuja probabilidade de ocorrência do dano (perigo) é presumida pelo legislador, independendo de prova no caso concreto. Exemplo: entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada (art. 310) é crime de perigo abstrato. Basta a prova da conduta e presume-se o perigo. Por outro lado, considera-se crime de perigo concreto a figura típica que, fazendo previsão da conduta, exige prova da efetiva probabilidade de dano a bem jurídico tutelado. Exemplo: dirigir veículo automotor sem estar devidamente habilitado, gerando perigo de dano (art. 309). É indispensável que a acusação, além de descrever na denúncia ou queixa a conduta (dirigir o veículo), faça menção à concreta possibilidade de dano (invadindo a contramão ou subindo na calçada e quase atingindo pedestres, por exemplo).[6]
Há que se entender que a exigência de habilitação, a partir do conhecido processo cada vez mais exigente, busca a garantia da segurança do trânsito em seus dois vieses, quais sejam, a segurança da coletividade (pedestres e demais condutores), mas também a segurança do próprio condutor.
A almejada coerência sistêmica está mantida. Não há qualquer incongruência na tipificação autônoma (e com menos requisitos) do art. 310 do Código de Trânsito. Entendeu o legislador que não há necessidade de comprovação do efetivo perigo a que está submetido o condutor não habilitado, fazendo tal exigência apenas para que se comprove o perigo à coletividade. Assim, embora seja de perigo concreto o crime do art. 309 do CTB, é de perigo abstrato o delito do art. 310.
Nada obstante os valiosos argumentos utilizados pelos partidários da ideia oposta à que sustentamos, e que reclamam a presença de perigo concreto em todas as situações tratadas, é necessário reconhecer, não sem duras críticas, na medida em que ao art. 310 permite punir como crime o perigo abstrato de um perigo concreto, que a opção do legislados é carregada de fundamentação protetiva e antecipadora de um mal hipotético.[7]
Outrossim, uma vez que expor si mesmo a perigo não é fato penalmente relevante, o condutor não habilitado não poderá ser punido pelo perigo a que se submete, sendo responsabilizado somente por eventual perigo concreto de dano que causar à coletividade, nos termos do art. 309 do CTB.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, pondo fim à controvérsia doutrinária e jurisprudencial acerca do tema, sumulou, em junho de 2016, entendimento no sentido de que o delito de entregar veículo a pessoa não habilitada (art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro), não exige comprovação de efetivo perigo, sendo, portanto, delito de perigo abstrato. Assim dispõe a referida súmula:
Súmula 575-STJ: Constitui crime a conduta de permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor à pessoa que não seja habilitada, ou que se encontre em qualquer das situações previstas no art. 310 do CTB, independentemente da ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na condução do veículo.
O entendimento, portanto, apesar de haver posicionamentos doutrinários discordantes, encontra-se atualmente pacificado no âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, por meio da supracitada Súmula nº 575. Dessa forma, as condutas tipificadas pelo art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro, independentemente de terem correlação com os delitos do art. 306 ou do art. 309 do CTB, configuram crime de perigo abstrato.
O Código de Trânsito Brasileiro, ao tratar dos crimes específicos relacionados à condução de veículo automotor, optou pela majoritária tipificação de delitos de perigo, como forma de coibir o grande número de acidentes e vítimas fatais nas rodovias brasileiras. Dentre os crimes de perigo criados, destacou-se o crime do art. 310 do CTB, acerca do qual, por muito tempo, doutrina e jurisprudência divergiam, quanto à definição de sua natureza jurídica.
A inter-relação entre as condutas tipificadas pelo art. 310 e as condutas punidas pelos delitos previstos nos arts. 306 e 309 do Código de Trânsito, conduziu ao argumento de que as condutas relacionadas deveriam ter o mesmo tratamento jurídico. Dessa forma, argumentava-se que, uma vez sendo o crime do art. 309 do Código de Trânsito um delito de perigo concreto, a conduta de entregar veículo a pessoa não habilitada, prevista no tipo penal do art. 310 mas intimamente relacionada ao disposto no art. 309, também deveria ser considerara um delito de perigo concreto.
Todavia, como visto, é necessário destacar que muitas das normas do Código de Trânsito Brasileiro buscam, além da proteção da coletividade, a importante proteção dos condutores dos automóveis, de modo que o rigoroso processo de obtenção de habilitação ou de permissão para dirigir é um mecanismo de proporcionar maior segurança no trânsito, inclusive para o próprio motorista.
Por essa razão, entende-se que, ao se entregar um veículo a pessoa não devidamente habilitada, há a criação de um duplo risco: à coletividade e ao próprio condutor. Dessa forma, a conduta de entregar o veículo (tipificada ao teor do art. 310), embora seja relacionada à conduta descrita no art. 309 do CTB (dirigir sem habilitação, gerando perigo de dano), não é a ela equivalente, inexistindo, como por muito tempo se pretendeu, um estrito paralelismo entre os tipos penais.
A discussão acerca da natureza jurídica do crime do art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro chegou ao Superior Tribunal de Justiça que, em maio de 2016, sumulou entendimento no sentido acima exposto. Assim, o tribunal se posicionou no sentido de que todas as condutas previstas no tipo penal são de perigo abstrato, ou seja, independem de demonstração de efetivo perigo criado pelo agente.
O Superior Tribunal de Justiça decidiu, portanto, no mesmo viés protecionista que permeia toda codificação de trânsito nacional, privilegiando o entendimento de que condutas reconhecidamente perigosas devem ser preventivamente punidas, de modo a impedir a efetiva ocorrência de acidentes e o aumento do alarmante número de vítimas fatais no trânsito brasileiro.
Cumpre destacar, todavia, que embora não se negue a importância da existência de previsão de infrações penais no Código de Trânsito Brasileiro, o Direito Penal não pode ser visto como a “panaceia de todos os males”. Não se pode olvidar que o Direito Penal ostenta característica de ultima ratio, conceito segundo o qual sendo possível a tutela por via extrapenal, esta deve prevalecer.[8]
Nesse sentido, em se tratando do Código de Trânsito, diversas medidas de natureza administrativa são preferíveis e, quando não suficientes, são indispensáveis à eficácia do próprio Direito Penal. Para um eficaz controle das condutas ilegais no trânsito brasileiro, ainda é imprescindível a implementação de ações de fiscalização preventivas, sem as quais a punição de agentes infratores, administrativa ou criminalmente, torna-se impossível.
Portanto, nesse contexto, o necessário policiamento ostensivo de trânsito inclui a fiscalização das infrações de trânsito praticadas nas vias públicas, bem como os demais atos de polícia relativos ao trânsito, aí incluídas as ações de fiscalização preventivas, componentes do conjunto de medidas destinado, diretamente, a manter íntegra a ordem pública.[9]
Assim, de nada adiantarão os esforços argumentativos para o enquadramento de condutas perigosas em crimes de perigo abstrato, com intuito de fazer-se concretizar o escopo preventivo do Código de Trânsito Brasileiro se não houver efetiva ação administrativa e fiscalizatória. Apenas a atuação preventiva evitará o absurdo número de acidentes e vítimas fatais nas estradas e rodovias brasileiras.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal. Parte Geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. Vol. I
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral- volume 1. 6.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003
ESTEFAM, André; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2012, capítulo 8, item 8.2.6.
GASPARINI, Diógenes. Novo Código de trânsito: os municípios e o policiamento. In: Revista de informação legislativa, v. 35, n. 139, p. 57-70, jul./set. de 1998.
JESUS, Damásio de. Crimes de Trânsito: anotações à parte criminal do Código de Trânsito (Lei 9.503, de 23 de Setembro de 1997). 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
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MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado: Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. 8ª Ed. Vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal: parte geral. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
[1] MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado: Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
[2] ESTEFAM, André; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2012, capítulo 8, item 8.2.6.
[3] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral- volume 1. 6.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003.
[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal. Parte Geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. Vol. I
[5] JESUS, Damásio de. Crimes de Trânsito: anotações à parte criminal do Código de Trânsito (Lei 9.503, de 23 de Setembro de 1997). 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. 8ª Ed. Vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
[7] MARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. Anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da Lei 9.503, de 23-9-197. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011
[8] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal: parte geral. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
[9] GASPARINI, Diógenes. Novo Código de trânsito: os municípios e o policiamento. In: Revista de informação legislativa, v. 35, n. 139, p. 57-70, jul./set. de 1998.
Técnico Ministerial do Ministério Público de Pernambuco, pós-graduado em Direito Público pela Faculdade Damásio, e graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Fábio Dias. Análise acerca da natureza jurídica do tipo penal do art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 fev 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51310/analise-acerca-da-natureza-juridica-do-tipo-penal-do-art-310-do-codigo-de-transito-brasileiro. Acesso em: 06 nov 2024.
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