Resumo:O objetivo deste trabalho consiste em examinar de que maneira o instituto da desaposentação deve ser visto como expressão de princípios constitucionais, notadamente a dignidade da pessoa humana, a garantia do melhor benefício previdenciário e a isonomia. Serão analisados, inicialmente, a origem e o conceito da desaposentação. Em seguida, serão apresentados os argumentos utilizados pelo STF para considerar inadmissível a desaposentação, quais sejam, a irrenunciabilidade da aposentadoria, o princípio da solidariedade e a ausência de previsão legal acerca do instituto. Ao final, será exposta uma análise crítica em relação ao atual entendimento do Pretório Excelso.
Sumário: 1. Da origem e do conceito da desaposentação. 2. Dos empecilhos à desaposentação na visão do STF. 2.1 Da irrenunciabilidade à aposentadoria. 2.2 Do princípio da solidariedade. 2.3. Da ausência de previsão legal do instituto. 3. Críticas ao entendimento do STF. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas.
1. Da origem e do conceito da desaposentação
Até o advento da Lei 8.870/94, os aposentados do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) que permanecessem exercendo ou voltassem a exercer atividade remunerada possuíam o direito de receber, em cota única, o valor correspondente às contribuições vertidas, devidamente corrigidas. Tratava-se do pecúlio, assim chamado “o montante em espécie devolvido ao aposentado que tivesse contribuído ao RGPS, por força da obrigatoriedade de filiação pelo exercício de atividade remunerada, quando este se desligasse do trabalho”[1].
Com a extinção do pecúlio pela referida lei e, posteriormente, com a edição da Lei 9.032/95 – que, dentre outras alterações, incluiu os inativos que continuassem ou passassem a exercer atividade remunerada como segurados obrigatórios –, houve uma diminuição dos direitos dos aposentados, na medida em que, além de não receberem mais o pecúlio, eram obrigados a prosseguir vertendo as contribuições previdenciárias, sem receber, para tanto, qualquer contrapartida financeira em sua aposentadoria.
Esse cenário normativo era, pois, profícuo ao desenvolvimento da tese da desaposentação. Com efeito, a despeito de não possuir previsão legal expressa, passou-se, no âmbito da doutrina e da jurisprudência, a discutir a possibilidade de o inativo que permaneceu em atividade ou a ela retornou poder utilizar as contribuições realizadas após a aposentadoria para receber um acréscimo no valor do seu benefício.
Nesse contexto, a desaposentação pode ser compreendida como a desconstituição, por vontade do segurado, do ato de aposentação – que, por sua vez, consiste no ato administrativo estatal que modifica o status do segurado de ativo para inativo –, visando a uma nova aposentadoria, economicamente mais benéfica, no mesmo regime previdenciário ou em outro.
Frederico Amado bem conceitua a desaposentação, além de apontar os principais casos da sua ocorrência na atualidade:
“A desaposentação é a renúncia da aposentadoria por requerimento do segurado, com o intuito de obter alguma vantagem previdenciária.
(...)
Há uma série de hipóteses em que a desaposentação será útil ao segurado. É possível que o pagamento de novas contribuições previdenciárias após a aposentadoria eleve a renda mensal inicial do benefício, a depender do seu valor, com a incidência mais tênue do fator previdenciário, havendo interesse em renunciar a aposentadoria e requerer uma nova.
Outrossim, poderá o segurado pedir a renúncia de uma aposentadoria por tempo de contribuição proporcional para, posteriormente, requerer uma integral, utilizando novos salários de contribuição após a primeira aposentadoria.
É também possível que um aposentado do RGPS queira aproveitar esse tempo de contribuição para ter direito a uma aposentadoria no RPPS, caso tenha sido aprovado em concurso público de provimento de cargo efetivo, pois sem esse período não preencheria os requisitos para se aposentar no regime dos servidores públicos”[2].
O escólio de Gustavo Filipe Barbosa Garcia também contribui para a compreensão do instituto. Vejamos:
“A desaposentação é o desfazimento do ato que concedeu a aposentadoria por vontade do segurado. Trata-se de desconstituição da aposentadoria, em razão de renúncia do benefício pelo segurado, entendida como ato unilateral pelo qual se dispõe do direito, extinguindo-o independentemente do consentimento do devedor.
O beneficiário, assim, renunciaria à aposentadoria recebida, desconstituindo o ato de concessão, para que pudesse requerer novo benefício, com o acréscimo do tempo de contribuição posterior à primeira aposentadoria. Com a desaposentação, o segurado retornaria à posição original de beneficiário, passando a ter direito de requerer o benefício novamente”[3].
Quanto ao amparo legal do instituto no direito brasileiro, mister asseverar que a desaposentação não possui previsão expressa nas normas que atualmente versam sobre a previdência social, mas pode ser extraída por meio de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico.
Contudo, como se demonstrará, não foi esse o entendimento predominante no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF).
2. Empecilhos à desaposentação na visão do STF
Segundo entendeu a maioria dos ministros do STF, no bojo do julgamento do Recurso Extraordinário 661.256/SC[4], sob o rito da repercussão geral, somente lei pode criar benefícios e vantagens previdenciárias, sendo constitucional a vedação contida no art. 18, § 2°, da Lei 8.213/91, que estabelece:
Art. 18. O Regime Geral de Previdência Social compreende as seguintes prestações, devidas inclusive em razão de eventos decorrentes de acidente do trabalho, expressas em benefícios e serviços:
(...)
§ 2º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social – RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado.
Dentre os fundamentos utilizados pelos ministros, destacam-se o caráter irrenunciável da aposentadoria, o princípio da solidariedade decorrente do regime de repartição simples e a ausência de previsão legal do instituto, conforme se detalhará a seguir.
2.1 Da irrenunciabilidade à aposentadoria
Consoante a tese prevalecente no STF, a aposentadoria não pode ser vista como um direito patrimonial disponível, de modo que não comportaria renúncia.
Os partidários dessa corrente baseiam-se na redação literal do art. 181-B do Decreto 3048/99, que estabelece:
Art. 181-B. As aposentadorias por idade, tempo de contribuição e especial concedidas pela previdência social, na forma deste Regulamento, são irreversíveis e irrenunciáveis.
Ainda para esses defensores, os efeitos da aposentadoria e da eventual desaposentação não seriam restritos à esfera patrimonial do segurado, devendo-se levar em consideração o equilíbrio econômico e atuarial da previdência social. Assim, o instituto representaria ameaça ao aludido equilíbrio na medida em que as consequências financeiras da desaposentação não seriam passíveis de previsão pelo Estado por ocasião do ingresso do segurado no sistema geral previdenciário.
Além disso, na desaposentação, não haveria uma renúncia à aposentadoria propriamente dita, mas uma verdadeira troca de um benefício por outro. Daí a necessidade de previsão em lei e da vedação à desistência.
A propósito, confiram-se as palavras do saudoso ministro Teori Zavascki exaradas no julgamento do RE 661.256/SC:
“Presente o estatuto jurídico acima delineado, não há como supor a existência do direito subjetivo afirmado na presente demanda, consistente em uma ‘desaposentação’, que seria o direito do segurado do RGPS a ‘renunciar’ a um benefício de aposentadoria já requerido e concedido, para, simultaneamente, obter outro benefício da mesma natureza, porém mais vantajoso, em face da agregação de tempo de contribuição ocorrido nesse interregno e da menor expectativa de sobrevida. Não é preciso enfatizar que de renúncia não se trata, mas, sim, de substituição de um beneficio menor por um benefício maior, uma espécie de ‘progressão’ de escala. Essa espécie de ‘promoção’ não tem previsão alguma no sistema previdenciário estabelecido atualmente, o que, considerada a natureza estatutária da situação jurídica em que se insere, seria indispensável para gerar um correspondente dever de prestação. (...)”[5].
Dessa forma, malgrado se encontrem posições contrárias no âmbito doutrinário e jurisprudencial, a exemplo dos entendimentos do Superior Tribunal de Justiça e da Turma Nacional de Uniformização, prevalece, atualmente, a visão do STF quanto ao caráter irrenunciável e irreversível da aposentadoria.
2.2 Do princípio da solidariedade
Segundo o princípio da solidariedade, para alguns previsto implicitamente no art. 3º, I, da Constituição Federal (CF)[6], os segurados ativos contribuem não somente para sustentar a si próprios, mas também para os que já se encontram inativos. Em outras palavras, uma maioria, com capacidade contributiva, colabora para que uma minoria também possa usufruir de benefícios previdenciários.
Em verdade, tão logo foram surgindo os sistemas previdenciários, percebeu-se que o indivíduo, sozinho ou mesmo por meio de sua família, não conseguiria suportar todos os riscos sociais. Dessa forma, a solidariedade era imprescindível à organização da previdência social.
A respeito do princípio da solidariedade, leciona Wladimir Noaves Martinez:
“(...) A solidariedade, referida no princípio, quer dizer a união de pessoas em grupo, globalmente consideradas, cotizando para a sustentação econômica de indivíduos em sociedade, individualmente apreciados e, por sua vez, em dado momento, também contribuirão ou não, para a manutenção de outras pessoas, e, assim, sucessivamente.
No momento da contribuição, é a sociedade quem aporta. No instante da percepção da prestação, é o indivíduo a usufruir. Embora no ato da contribuição seja possível individualizar o contribuinte, não é possível vincular cada uma das contribuições a cada um dos percipientes, pois há um fundo anônimo de recursos e um número determinável de beneficiários”[7].
Em virtude desse princípio, explica-se o motivo pelo qual uma pessoa recém-ingressa no sistema previdenciário faz jus a determinados benefícios se acometida por certas contingências, a exemplo da aposentadoria por invalidez. A concessão desses benefícios é possível porque outros trabalhadores contribuem para viabilizar tal cobertura.
A solidariedade foi utilizada por diversos ministros do STF para amparar a tese de que a desaposentação não seria permitida atualmente pelo ordenamento brasileiro. Assim, a circunstância de o indivíduo aposentado que retornou ao trabalho continuar obrigado a verter contribuições, sem receber, em contrapartida, qualquer acréscimo em seu benefício, decorreria do caráter colaborativo do atual sistema geral previdenciário.
Nesse sentido, confira-se a manifestação do ministro Dias Toffoli:
“Nosso regime previdenciário possui, já há algum tempo, feição nitidamente solidária e contributiva, não se vislumbrando nenhuma inconstitucionalidade na aludida norma do art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91, a qual veda aos aposentados que permaneçam em atividade, ou a essa retornem, o recebimento de qualquer prestação adicional em razão disso, exceto salário-família e reabilitação profissional.
Como salientei em meu voto nos autos do RE nº 381.367/RS, além de não vislumbrar a apontada inconstitucionalidade da norma, tampouco entendo ser o caso de se conferir a ela ‘interpretação conforme ao texto constitucional em vigor’, pois me parece clara a interpretação que vem dando a União e o INSS no sentido de que esse dispositivo, combinado com o art. 181-B do Decreto nº 3.048/99 - acrescentado pelo Decreto nº 3.265/99 -, impede a desaposentação”[8].
Destarte, segundo o Pretório Excelso, não há qualquer incongruência no fato de o indivíduo aposentado, que volta a trabalhar, recolher contribuições e não poder acrescê-las no valor do seu benefício, já que vigora em nosso ordenamento o princípio da solidariedade em matéria previdenciária.
2.3. Da ausência de previsão legal do instituto
Outro argumento apresentado pelos ministros vitoriosos no julgamento do RE 661.256/SC consistiu no fato de a desaposentação não possuir previsão expressa no ordenamento pátrio.
Segundo esse entendimento, em face do princípio da legalidade – segundo o qual a Administração Pública somente pode fazer o que a lei permitir – e da natureza estatutária do Regime Geral da Previdência Social, o recálculo da aposentadoria somente poderia ser realizado por expressa previsão legislativa.
Não foi outra a manifestação do ministro Teori Zavascki:
“Portanto, no âmbito do Regime Geral da Previdência Social, que é estatutário, os direitos subjetivos estão integralmente disciplinados pelo ordenamento jurídico: são apenas e tão somente aqueles previstos no referido estatuto, segundo a configuração jurídica que lhes for atribuída no momento em que implementados os requisitos necessários à sua aquisição. Isso significa que a ausência de proibição à obtenção ou ao usufruto de certa vantagem não pode ser tida como afirmação do direito subjetivo de exercê-la. Na verdade, dada a natureza institucional do regime, a simples ausência de previsão estatutária do direito equivale à inexistência de um dever de prestação por parte da Previdência Social”[9].
Em suma, entendeu-se que o legislador ordinário até poderá vir a prever a desaposentação; todavia, até que isso aconteça – se é que um dia ocorrerá –, não há amparo normativo para a revisão do benefício.
3. Críticas ao entendimento do STF
A despeito de todos os empecilhos vislumbrados pelo STF para se permitir a desaposentação no ordenamento jurídico hodierno, entendemos que o instituto deve ser analisado de forma harmônica com importantes princípios constitucionais, em especial com o da dignidade da pessoa humana, o da garantia do melhor benefício previdenciário e o da isonomia.
Ora, não se pode olvidar que o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1°, inciso III, da Carta da República, deve informar todo o Direito Previdenciário, sobretudo em se considerando que a aposentadoria é espécie de direito social e, portanto, de direito fundamental. Dessa forma, o respeito a esse princípio fundamental deve ser observado também no âmbito da seguridade social e, mais especificamente, da previdência social.
Nessa ordem de ideias, à luz da dignidade da pessoa humana, deve-se apurar eventual anacronismo na legislação, procedendo-se à sua constante atualização, a fim de possibilitar o bem estar e o mínimo existencial do indivíduo. Assim, o ato de rechaçar a possibilidade da desaposentação em virtude da ausência de previsão expressa no ordenamento não se coaduna com a condição humana do indivíduo, nem com a necessidade da sua proteção social.
Destarte, embora seja de todo recomendável a pronta intervenção do Congresso Nacional, com o intuito de adequar a legislação atual aos anseios dos segurados que permanecem em atividade ou a ela retornam após aposentados, compreende-se que, enquanto não editada lei para permitir a desaposentação, a desconstituição da aposentadoria por vontade do segurado deve ser reconhecida, à luz da dignidade da pessoa humana. Aliás, não se pode ignorar a realidade de milhares de aposentados que, em verdade, não optam por retornar à atividade por vontade própria, mas o fazem por necessidade pessoal, a fim de garantir o seu sustento mínimo e o de sua família.
A possibilidade da desaposentação como expressão da dignidade da pessoa humana é bem descrita por Camila Oliveira Reis Araújo. Confira-se:
“As normas previdenciárias devem ser interpretadas de acordo com a carga valorativa subjacente a sua existência e de modo a respeitar a dignidade da pessoa humana, objetivando sempre a busca do pleno atendimento aos anseios e expectativas da sociedade.
(...)
Contudo, não se pode olvidar que o instituto da desaposentação acarreta um bem-estar ao segurado, vez que não se busca o desfazimento puro e simples de seu benefício, mas sim a percepção de nova prestação, mais vantajosa, melhorando sua qualidade de vida e de seus dependentes, no sentido do que dispõe a Carta Magna sobre o direito ao trabalho, à vida e à dignidade da pessoa humana e revertendo a seu benefício a contribuição realizada”[10].
Na mesma esteira é o ensinamento de Serau Júnior:
“A expectativa de que o STF propiciasse uma justa contrapartida social em virtude das contribuições previdenciárias vertidas ao sistema após a primeira aposentadoria equivaleu, para o cidadão e para a advocacia previdenciária, a uma pretensão de justiça social e de dignidade no campo previdenciário.
Que o resultado negativo do julgamento sobre a desaposentação não aponte para a desconstrução da Previdência Social como verdadeiro direito fundamental”[11].
A ministra Rosa Weber, ao julgar o RE 661.256/SC, asseverou que a dignidade humana é imprescindível à construção dos direitos sociais, categoria na qual a previdência social encontra-se incluída. Nas palavras da eminente ministra:
“O intuito de otimizar o padrão de vida é ínsito ao ser humano, não lhe sendo proibido legal, moral ou eticamente ter em mira o referido intento. Ao contrário, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil foram consagrados justamente nesse sentido, tendo sido enunciados explicitamente entre esses a promoção do bem de todos e o desenvolvimento nacional, bem como proclamado, desde o preâmbulo da Constituição Federal, o bem-estar social como valor supremo da sociedade. Igualmente, o escopo último da ordem social consiste na garantia do bem-estar e justiça sociais, assim como objetiva o artigo 7º da Lei Fundamental propiciar melhores condições de vida aos trabalhadores, mediante os direitos que enuncia”[12].
A par da violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, a proibição à desaposentadoria implica, também, ofensa à garantia do melhor benefício previdenciário. É o que se extrai da lição de Theodoro Vicente Agostinho e Sérgio Henrique Salvador:
“Portanto, além de se tratar de direito manifestamente disponível, de explícito conteúdo alimentar, direito social e fundamental por excelência, na desaposentação busca o aposentado uma melhor condição em sua alocação no plano previdenciário, buscando melhorias não só econômicas de seu benefício, mas sim aprimorar e tentar
concretizar a dignidade humana, um sonho constitucional”[13].
No que se refere à afronta ao princípio da isonomia, é plenamente possível vislumbrar na vedação à desaposentação a ocorrência de uma situação de desigualdade gerada em relação aos ativos. Deveras, enquanto os inativos que retornarem ao trabalho serão obrigados a prosseguir com o pagamento das contribuições previdenciárias sem receber, em contrapartida, qualquer diferença em sua aposentadoria, os ativos não aposentados manterão garantido o direito de receberem o retorno financeiro de suas contribuições vertidas.
Por outro lado, tendo em vista a existência de fonte de custeio, a saber, o recolhimento de contribuições previdenciárias pelos aposentados que retornam à atividade, mostra-se atendida a norma do art. 195, § 5°, da CF[14], revelando-se desproporcional, injusto e desigual o não aproveitamento dessas contribuições para o incremento no benefício previdenciário dos ex-aposentados. Em verdade, a inadmissão da desaposentação importa em enriquecimento injustificado do Poder Público.
Nesse sentido caminham as críticas tecidas por Gustavo Filipe Barbosa Garcia ao atual entendimento do STF:
“Trata-se de entendimento que desestimula o aposentado de continuar trabalhando e contribuindo ao sistema previdenciário. Com isso, pode haver redução de valores recolhidos e até mesmo o efeito social e econômico negativo de se incentivar o trabalho informal.
Apesar de a Previdência Social ser fundada no princípio da solidariedade, ao não se admitir a desaposentação de quem continua contribuindo ao sistema, ocorre o pagamento de contribuições sociais (que não se confundem com impostos) pelo segurado, mas sem qualquer contrapartida efetiva em seu favor, revelando certo enriquecimento sem causa pelo Poder Público.
Espera-se, assim, que a questão seja prontamente revista pela jurisprudência e adequadamente disciplinada pelo legislador”[15].
Como se não bastasse, se é certo que não há previsão legal acerca da desaposentação atualmente, não é menos certo que o ordenamento pátrio também não a veda. A esse respeito, veja-se o posicionamento de Sérgio Pinto Martins:
“A Constituição não veda a desaposentação. As Leis n. 8.212/91 e n. 8.213/91 também não o fazem. O que não é proibido é permitido. Há acórdãos do TCU permitindo a desaposentação. O objetivo é poder requerer outra aposentadoria e até mais vantajosa, com a utilização do tempo de serviço. A norma não pode ser interpretada contra o segurado, com o intuito de obrigá-lo a permanecer aposentado.
A desaposentação é um direito patrimonial de caráter disponível. Não há lei que vede a desaposentação. O INSS não pode obrigar alguém a continuar aposentado, recebendo o benefício”[16].
Vale lembrar que mesmo o art. 18, § 2°, da Lei 8.213/91 não veda a desaposentação, pois apenas versa sobre solicitações de novos benefícios ou serviços previdenciários. Situação diversa ocorre na desaposentadoria, por meio da qual se visa a complementação de benefício já existente. Não por outra razão, o ministro Luis Roberto Barroso, em seu voto minoritário proferido no RE 661.256/SC, esclareceu, de maneira acertada, a desnecessidade de se apreciar a constitucionalidade do indigitado dispositivo, que não seria aplicável à desaposentação.
Já quanto à tese da irrenunciabilidade da aposentadoria, esclareça-se que a sua previsão atual encontra-se restrita ao Decreto 3.048/99 (art. 181-B), que, enquanto norma de natureza infralegal, não tem o condão de impedir o exercício de um direito individual, sobretudo em vista do seu caráter patrimonial e disponível.
Outrossim, não se pode olvidar que o deferimento da desaposentação não traz prejuízo a terceiros, ao passo que melhora, sobremaneira, a vida do segurado aposentado. Daí não serem a ausência de previsão legal do instituto ou o princípio da solidariedade fundamentos suficientes para impedir a complementação do benefício pelo segurado, mormente em se considerando que a possibilidade de desaposentação pode ser extraída do próprio sistema, e que se encontra relacionada com princípios constitucionais, a exemplo da dignidade da pessoa humana e da isonomia.
4. Conclusão
Com o término do benefício previdenciário intitulado pecúlio e o advento da Lei 9.032/95, que estabeleceu o enquadramento, como segurados obrigatórios, dos inativos que permanecessem ou retornassem à atividade laboral, ganhou força a tese da desaposentação, que consiste na renúncia, pelo segurado, da aposentadoria que recebe, a fim de requerer uma nova, mais vantajosa.
A possibilidade de desaposentação sempre foi controvertida no ordenamento brasileiro, porquanto, se de um lado, não há previsão legal expressa acerca do instituto, de outro, a possibilidade de desconstituição da aposentadoria, por vontade do segurado, com vistas a obter melhor benefício, parece decorrer do próprio sistema previdenciário, que obriga aquele que retorna à atividade a verter contribuições previdenciárias.
No final de 2016, contudo, o STF julgou o Recurso Extraordinário 661.256/SC, sob o rito da repercussão geral, fixando o entendimento de que as vantagens e os benefícios previdenciários somente podem ser instituídos por lei e que o art. 18, § 2°, da Lei 8.213/91, que, em tese, veda a desaposentação, é constitucional. Dentre os principais argumentos utilizados pela Suprema Corte, destacam-se o caráter irrenunciável da aposentadoria, o princípio da solidariedade e a ausência de previsão legal do instituto.
Com a devida vênia, entendemos que o atual entendimento do STF é passível de críticas, pois não se coaduna com os princípios constitucionais da isonomia, da dignidade da pessoa humana e da garantia do melhor benefício previdenciário. Talvez por ter se sensibilizado com a crise econômica vivenciada pelo país e por um apego desmedido ao princípio da solidariedade, o entendimento sufragado olvidou-se de valores maiores insculpidos na própria Carta da República.
5. Referências bibliográficas
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SANTIAGO, Rogério Vieira. “Desaposentadoria” no Serviço Público. Belo Horizonte: Del Rey, 2016.
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[1] LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro e MASOTTI, Viviane. Desaposentação: Teoria e Prática. 2ª edição, revista e atualizada. Curitiba: Juruá, 2014, p. 88.
[2] AMADO, Frederico. Direito Previdenciário. Juspodvim. Salvador: 2015, p. 545-546.
[3] GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Desaposentação na atual jurisprudência do STF. Disponível em: http://biblioteca2.senado.gov.br:8991/F/EG73X1QJ7EE8SGCNGIXP1CHQQUVQJ4VV4VE8GYFB88VM1294GI-52973?func=service&doc_library=SEN01&doc_number=001086286&line_number=0001&func_code=WEB-BRIEF&service_type=MEDIA. Acesso em: 13 de março de 2018.
[4] Na ocasião, o STF também julgou os Recursos Extraordinários 827.833/SC e 381.367/RS, referentes à mesma matéria.
[5] Voto do ministro Teori Zavascki proferido no julgamento do RE 661.256/SC, p. 72 do acórdão.
[6] “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;”.
[7] MARTINEZ, Wladimir Novaes. Princípios de Direito Previdenciário. São Paulo: LTR, 2015, p. 75.
[8] Voto do ministro Dias Toffoli proferido no julgamento do RE 661.256/SC, p. 55 do acórdão.
[9] Voto do ministro Teori Zavascki proferido no julgamento do RE 661.256/SC, p. 68-69 do acórdão.
[10] ARAÚJO, Camila Oliveira Reis. Aspectos constitucionais e processuais da ação de desaposentação. In: Reflexões do direito brasileiro na contemporaneidade. Curitiba: CRV, 2017, p. 65 e 66.
[11] SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. Desaposentação: julgamento como sinônimo de justiça social. In: Repertório IOB de jurisprudência: trabalhista e previdenciário, n. 1, jan. 2017, p. 21.
[12] Voto da ministra Rosa Weber proferido no julgamento do RE 661.256/SC, p. 171 e 172 do acórdão.
[13] AGOSTINHO, Theodoro Vicente e SALVADOR, Sérgio Henrique. O impacto da Desaposentação no Direito Previdenciário: uma Reflexão da Sua Viabilidade e Importância no Cenário Jurídico. In: Revista Síntese Direito Previdenciário. Porto Alegre, v. 15, n. 74, set.-out/2016, p. 69.
[14] “Art. 195. (...)
§ 5º Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”.
[15] GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Desaposentação na Atual Jurisprudência do STF. Disponível em: http://biblioteca2.senado.gov.br:8991/F/EG73X1QJ7EE8SGCNGIXP1CHQQUVQJ4VV4VE8GYFB88VM1294GI-52973?func=service&doc_library=SEN01&doc_number=001086286&line_number=0001&func_code=WEB-BRIEF&service_type=MEDIA. Acesso em: 18 de março de 2018.
[16] MARTINS, Sérgio Pinto. Prática Previdenciária. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 48.
graduada pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-graduada em Direito e Jurisdição pela Escola da Magistratura do Distrito Federal (ESMA-DF).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMOS, Fernanda Rocha. Desaposentação: análise crítica do atual entendimento do STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 mar 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51483/desaposentacao-analise-critica-do-atual-entendimento-do-stf. Acesso em: 06 nov 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: DESIREE EVANGELISTA DA SILVA
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