RESUMO: Este estudo pretende abordar as peculiaridades da relação de emprego doméstico, especificamente no que tange à jornada de trabalho e ao regime de compensação de horários, explorando seu caráter singular, sui generis. Aborda-se algumas das mudanças trazidas pela Emenda Constitucional nº 72, de 02 de abril de 2013, mormente quanto à limitação da jornada de labor. Por fim, analisa-se a compatibilidade do banco de horas com o trabalho desenvolvido no âmbito doméstico após a promulgação da referida emenda constitucional, destacando as dificuldades práticas de sua aplicação, notadamente em relação às formas de controle de jornada e aos obstáculos para a negociação coletiva, procedendo-se, outrossim, a uma análise crítica das disposições trazidas pela LC nº 150/2015.
Palavras-chave: Banco de Horas. Trabalho doméstico. Emenda Constitucional nº 72/2013. Lei Complementar nº 150/2015.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. EC nº 72/2013 e a limitação da jornada de trabalho. 3. Controle de horários. 4. Negociação coletiva entre patrões e empregados domésticos. 4.1 importância do processo negocial coletivo para a implantação do banco de horas. 4.2 obstáculos à negociação coletiva entre sujeitos da relação empregatícia doméstica. 4.3 da indispensabilidade do título negocial coletivo para a instituição do regime compensatório anual. 5. Análise da lei complementar nº 150/2015. 5.1 celebração do banco de horas por meio de acordo bilateral. 5.2 ausência de limite diário de horas extraordinárias. 5.3 a sistemática do regime de compensação. 5.4 rescisão do contrato de trabalho sem a compensação dos créditos. 6. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A aprovação da EC nº 72/2013 foi uma conquista para a classe dos empregados domésticos, representando um enorme avanço para os direitos trabalhistas no país, que assume posição de vanguarda no cenário internacional no que tange a este tema, tudo em sintonia com as diretrizes da Organização Internacional do Trabalho, expressas, principalmente, na Convenção nº 189/2011 e na Recomendação nº 201/2011.
No plano infraconstitucional, as mudanças foram implementadas pela Lei Complementar nº 150/2015, que regulamentou a relação empregatícia doméstica de forma global, sendo que interessam ao presente estudo apenas às questões concernentes à limitação de jornada de trabalho e sua regulamentação.
O estudo da aplicação do banco de horas para a relação de emprego doméstica é tema bastante atual e que ostenta notável importância, considerando o quadro de mudanças socioculturais em que está inserido, tudo no contexto da regulamentação da revolucionária EC nº 72/2013 e da LC nº 150/2015.
Entende-se que a melhor forma de abordar o assunto é discutindo os obstáculos peculiares desse tipo de relação de emprego à limitação de jornada e à compensação de horários e fazendo uma análise crítica dos dispositivos legais que regulamentaram a matéria.
2. EC Nº 72/2013 E A LIMITAÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO
Seguindo a orientação da Organização Internacional do Trabalho – OIT, expressa na Convenção nº 189/2011 e na Recomendação nº 201/2011,e enfrentando resistência de setores patronais e da classe média, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional nº 72/2013, trazendo vários direitos à classe dos trabalhadores domésticos, como: garantia de salário nunca inferior ao mínimo para os que percebem remuneração variável (art. 7º, VII); proteção do salário, constituindo crime sua retenção dolosa (art. 7º, X); redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, XXII); reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho(art. 7º, XXVI); proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de idade, sexo, cor ou estado civil (art. 7º, XXX); proibição de discriminação no tocante a salários e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência (art. 7º, XXXI) e proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos e de qualquer trabalho a menores de dezesseis, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos (art. 7º, XXXIII), entre outros.
Ganha especial relevo para o objeto desse o direito constante no inciso XIII do art. 7º, a mais importante inovação trazida pela EC nº 72: a duração do trabalho normal de até oito horas diárias e quarenta e quatro semanais. Como direitos anexos ao controle da jornada de labor foram contemplados ainda o adicional de hora extra de, pelo menos, 50% em relação à hora ordinária (art. 7º, XVI) e o adicional de hora noturna (art. 7º, IX).
No que toca especificamente à jornada de trabalho e sua compensação, destacam-se dois dos maiores dilemas quando da análise das características sistema a ser implementado para regulamentar o banco de horas no contexto da relação empregatícia doméstica: a especial dificuldade em controlar os horários de trabalho e os entraves que se opõem ao processo negocial coletivo entre os atores sociais protagonistas desta relação de emprego, pontos a serem abordados nos tópicos subsequentes.
De todos os novos direitos trazidos pela EC nº 72, talvez o mais importante – e também polêmico – seja a limitação de jornada. Através dessa modificação, o legislador deu o importante passo no processo de dignificação do trabalho doméstico, na medida em que este direito proporciona vários outros dele derivados, como direito ao descanso, à prevenção de fadigas e acidentes de trabalho, ao convívio familiar, à organização sindical, além de possibilitar o desempenho de outras atividades, como estudar, praticar esportes, etc.
A polêmica se deve, principalmente, à questão do controle de horário de trabalho do empregado doméstico, em virtude das especificidades na prestação do serviço, quando comparado ao desempenhado por outras categorias profissionais. Com efeito, logo que houve a promulgação desta emenda, surgiram vozes no expressando preocupação neste sentido, afirmando que tais alterações inviabilizariam o labor doméstico.
De fato, é bastante comum que os empregadores se ausentem da residência durante o dia para trabalhar ou resolver problemas pessoais, não sendo possível aos mesmos fazer, de perto, o controle dos horários de chegada, saída e de descanso dos seus subordinados. Igualmente, os patrões que não residem no local onde ocorre a prestação de serviços, a exemplo de casas de campo ou de praia, também se veem impossibilitados de aferir a quantidade de horas trabalhadas – e descansadas – pelo obreiro.
Controlar o horário de trabalho à distância se tornou um dos desafios a serem superados para a garantir a efetividade do direito à jornada limitada e, consequentemente, a horas extras, além de ser indispensável para a instituição de eventual sistema banco de horas.
Outrossim, ganhou relevo a questão dos empregados que residem, ou dormem, no local de trabalho, confundindo, mesclando os momentos de trabalho e descanso entre si, sem observância a qualquer padrão.
Nesse cenário, alertou-se para o potencial perigo que surgiria para os empregadores, em eventuais lides trabalhistas, quando fosse deferida a inversão do ônus da prova das horas extras, que recairia sobre o patrão, o qual não iria dispor de meios idôneos à comprovação da inexistência da sobrejornada[i]. Este argumento, no entanto, reduz-se a uma falsa preocupação quando confrontado com as normas legais sobre o tema: o artigo 818, I, da CLT, alterado pela Lei nº 13.467/2017, preceitua que “o ônus da prova incumbe ao reclamante, quanto ao fato constitutivo de seu direito”, assim como dispõe o CPC. Neste sentido, e considerando que as horas extras laboradas são fatos constitutivos do direito ao adicional de sobrejornada, cabe ao obreiro provar sua ocorrência.
Seguindo esta linha de raciocínio, colaciona-se o seguinte aresto:
EMENTA: HORAS EXTRAS. TRABALHADOR QUE RESIDE NO LOCAL DA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS. INEXISTÊNCIA DE CONTROLE DE HORÁRIO. O exercício de tarefas típicas de zeladoria, comum em condomínios e áreas de terra (caseiros), cuja prestação de serviços ocorre sem controle de horário e fiscalização pelo empregador, afasta, em tese, o direito à percepção de horas extras. Cabia ao autor, portanto, o ônus de provar o labor em horário excedente de 44 horas semanais, por se tratar de propriedade rural na qual ele era o único empregado, encargo do qual não logrou se desincumbir[ii]. (grifou-se)
No que se refere às formas que podem ser utilizadas para se proceder ao efetivo controle, variadas são as soluções propostas. De antemão, é importante ressaltar que o empregador doméstico tem obrigação legal de manter registros de horários, de acordo com o que dispõe o art. 12, da Lei Complementar nº 150/2015
Art. 12. É obrigatório o registro do horário de trabalho do empregado doméstico por qualquer meio manual, mecânico ou eletrônico, desde que idôneo.
Dessa forma, ao adotar mecanismos de registro, mormente no que tange ao livro de ponto e a outras forma de registro manual, o patrão deve atentar para a exatidão quanto às horas e minutos nas anotações, de modo a evitar o estabelecimento de horários-padrão nos cartões de ponto, em consonância com o entendimento sumulado do TST sobre o tema:
Súmula nº 338
JORNADA DE TRABALHO. REGISTRO. ÔNUS DA PROVA (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 234 e 306 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005
I - É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário. (ex-Súmula nº 338 – alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003)
II - A presunção de veracidade da jornada de trabalho, ainda que prevista em instrumento normativo, pode ser elidida por prova em contrário. (ex-OJ nº 234 da SBDI-1 - inserida em 20.06.2001)
III - Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir. (ex-OJ nº 306 da SBDI-1- DJ 11.08.2003) (grifou-se)
A tecnologia proporciona diversas alternativas à clássica – e obsoleta – anotação manual nos registros de ponto. A título meramente exemplificativo, destaca-se a ideia de um empresário de Uberlândia, que criou um aplicativo para computadores, celulares smartphones e tablets (desde que com acesso à internet), através do qual o empregado insere uma senha ao chegar e sair do ambiente de trabalho, bem como no início e fim dos horários de descanso, sendo tais informações repassadas instantaneamente para o patrão (contanto que também esteja conectado à internet) e armazenadas num sistema informatizado[iii].
Relógio eletrônico de ponto (com teclado, leitor de código de barras e de crachás), sistema de alarme residencial e a instalação de câmeras constituem outras opções, contudo, mais dispendiosas, considerando os custos de aquisição e de manutenção dos equipamentos, que poderiam onerar demasiadamente o empregador. Ainda, pode-se vislumbrar utilização coletiva pelos empregadores domésticos do sistema de monitoramento condominial como meio de registro de horários.
Enfim, todos os meios idôneos que os recursos tecnológicos podem disponibilizar são alternativas viáveis para o controle da jornada.
O ideal para as partes protagonistas desta peculiar relação de trabalho é encontrar um meio fácil e transparente de controle de jornada, o qual se amolde às necessidades de cada ambiente residencial. Não se pode aceitar, contudo, que este aspecto se torne um obstáculo que inviabilize o direito à limitação de jornada e – por si só – a eventual implantação de um regime de compensação.
Historicamente, a necessidade ou não de prévio entendimento coletivo entre os atores sociais para a instituição do regime de compensação já gerava agudas discussões antes mesmo da expansão das fronteiras compensatórias para abarcar o limite anual, levada a efeito pela Lei nº 9.601/98. Após a promulgação deste diploma legal, o debate sore o título jurídico autorizador do banco de horas intensificou ainda mais, repercutindo tanto na seara legislativa, quanto na esfera judiciária e no meio doutrinário, em virtude das severas consequências trazidas por este novo regime, as quais reclamariam a chancela coletiva sindical como forma de proteção aos direitos dos trabalhadores.
A querela que aparentava ter sido pacificada, quando da sedimentação de entendimento do TST no sentido da imprescindibilidade da negociação coletiva para tal fim, através da inclusão do item V na Súmula nº 85 do TST, voltou a ganhara espaço com a aprovação da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017), que alterou significativamente às normas relativas ao assunto. Assim ficou a redação do art. 59 da CLT após as modificações:
Art. 59. A duração diária do trabalho poderá ser acrescida de horas extras, em número não excedente de duas, por acordo individual, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)
§ 1o A remuneração da hora extra será, pelo menos, 50% (cinquenta por cento) superior à da hora normal. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)
§ 2o Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.164-41, de 2001)
§ 3º Na hipótese de rescisão do contrato de trabalho sem que tenha havido a compensação integral da jornada extraordinária, na forma dos §§ 2o e 5o deste artigo, o trabalhador terá direito ao pagamento das horas extras não compensadas, calculadas sobre o valor da remuneração na data da rescisão. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)
§ 5º O banco de horas de que trata o § 2o deste artigo poderá ser pactuado por acordo individual escrito, desde que a compensação ocorra no período máximo de seis meses. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
§ 6o É lícito o regime de compensação de jornada estabelecido por acordo individual, tácito ou escrito, para a compensação no mesmo mês. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
Observa-se que foram diferenciadas duas formas de compensação de jornada: a compensação “normal” e o banco de horas, este se subdividindo em individual e coletivo.
Na compensação “normal” ou “ordinária”, as horas extras prestadas em um dia podem ser compensadas em outros, sem o pagamento do adicional, desde que tal encontro de contas ocorra dentro do período de um mês. Nessa hipótese, o instrumento autorizador pode ser acordo individual, escrito ou tácito.
Por outro lado, na modalidade “Banco de Horas” o prazo para compensar varia a depender do instrumento jurídico utilizado para sua formalização: 6 (seis) meses, em caso de acordo individual (necessariamente escrito); ou 1 ano, em havendo negociação coletiva.
Constata-se que, com as mudanças, houve uma diminuição da participações dos atores coletivos na negociação da compensação de jornada, já que: (i) até o período de um mês, qualquer modalidade de acordo individual autoriza a compensação; (ii) divergindo da orientação da Súmula 85, V, do TST (“As disposições contidas nesta súmula não se aplicam ao regime compensatório na modalidade «banco de horas», que somente pode ser instituído por negociação coletiva”), passou-se a admitir a negociação individual quando o período compensatório não ultrapassar 6 (seis) meses.
A par das disposições celetistas, cumpre esclarecer que o regramento previsto pela Lei Complementar nº 150/2015 para a relação empregatícia doméstica foi significativamente diverso, sendo objeto de análise nos subtópicos a seguir.
Em primeiro lugar, faz-se oportuno destacar qual a relevância da intervenção das entidades sindicais no processo de negociação das condições laborais. Em linhas gerais, os sindicatos funcionam atuam na defesa dos interesses coletivos ou individuais dos trabalhadores, prestando-lhes assistência, fornecendo-lhes informações, instruindo-os em questões administrativas e jurídicas, dentre outras medidas.
No âmbito do processo negocial, o sindicato tem a relevante função de representar o equilíbrio nas forças contrapostas, na medida em que, ao atuar com prerrogativas especiais, constitui real instrumento de pressão, atribuindo ao obreiro ampliação no seu poder de exigir, de barganhar, perante o empregador, a quem se encontra jurídica e – na grande maioria dos casos – economicamente subordinado. A atuação do sindicato se apresenta, assim, como efetiva garantia ao obreiro frente à imposição do poder patronal. Entender em sentido contrário significa dar margem à instituição normas abusivas, representando verdadeiro retrocesso social.
A Função negocial foi conferida a estes entes sindicais, justamente, em virtude da proteção que os mesmos proporcionam aos trabalhadores na busca por melhores condições de trabalho, que, ao atuarem de forma isolada, estariam sujeitos, de forma mais acentuada, a injustas perseguições por parte do poder patronal.
Nesse sentido, o princípio da interveniência sindical na normatização coletiva, consagrado no art. 8º, VI da CF/88, se reveste de salutar importância porquanto visa a assegurar a equivalência entre as partes com interesses adversos, “evitando a negociação informal do empregador com grupos coletivos de obreiros estruturados apenas de modo episódico, eventual, sem a força de uma institucionalização democrática[iv]”, que pode resultar em considerável decréscimo na proteção jurídica destinada ao trabalhador.
De acordo com o referido princípio, portanto, apenas com a intervenção do sindicato obreiro é que se pode instituir norma jurídica coletiva autônoma, sendo certo que qualquer outro ajuste de vontade, do qual não participe esta entidade sindical, constitui mera cláusula contratual, que não tem o condão de estabelecer direitos laborais inferiores aos patamares mínimos previstos pela legislação, tendo em vista o princípio da inalterabilidade contratual lesiva.
No que tange ao regime compensatório anual, a necessidade da atuação do sindicato se revela ainda mais importante, haja vista todas as consequências gravosas que dele advém. Não obstante, conforme será melhor abordado em tópico próprio, mais adiante, a LC nº 150/2015 erigiu como título jurídico autorizador da implantação do banco de horas o mero acordo bilateral escrito entre empregado e patrão.
Antes das modificações imprimidas pela EC nº 72/2013, não havia reconhecimento jurídico às convenções e acordos coletivos de trabalho celebrados entre os sindicatos dos trabalhadores domésticos.
Por sua vez, os artigos da CLT que regulam a atuação e o funcionamento sindical não se aplicam a este grupo de obreiros, por força do art. 7º, a, desta lei. Dessa forma, a entidade sindical representativa dos empregados domésticos não pode celebrar ACT e CCT na forma do artigo 611; também não faz jus ao imposto sindical previsto nos artigos 578 e seguintes. Não goza, assim, das prerrogativas nem dos poderes sindicais, faltando-lhe legitimação sindical, podendo ser equiparado a uma associação[v].
Nesse toar, em que pese ser possível a criação de sindicatos de trabalhadores domésticos desde a CF/88, que adotou a liberdade sindical – ainda com resquícios de intervencionismo estatal, é verdade – findando o paralelismo (pelo qual deveria haver vinculação entre os sindicatos dos trabalhadores com o ramo econômico correspondente), a atuação destes se mostrava bastante limitada, inócua, visto que desprovida das prerrogativas e poderes característicos. Deriva dessa inocuidade a escassa quantidade de sindicatos registrados no Ministério do Trabalho e Emprego, que somavam, antes da EC nº 72/2013, apenas 45 sindicatos de empregados domésticos e quatro patronais[vi], num país de dimensões continentais, que conta com mais de sete milhões de trabalhadores domésticos[vii].
Outro fator que explica esses baixos números consiste na dificuldade de organização, tanto dos empregados, como dos patrões. Do lado dos obreiros, deve-se, especialmente, às peculiares condições de trabalho, mormente o isolamento em domicílios privados, e às longas e exaustivas jornadas. No que concerne aos empregadores, a dificuldade principal reside no fato de que estes não possuem interesses em comum tão claros, nítidos – como o são os fins econômicos visados pelas empresas – a ponto de inspirar uma ligação espontânea entre si. A situação na residência de cada empregador é tão particular que a criação de um sindicato para representá-los pode acarretar o estabelecimento de um vínculo artificial.
Ademais, outro problema grave se apresenta: a possível falta de representatividade dos sindicatos, os quais, tendo em vista a dificuldade em identificar pormenorizadamente tanto empregados quanto empregadores de determinada área territorial, podem carecer de legitimação social. Fato este que demanda rigoroso processo de registro sindical, com o fito de evitar a atuação de organizações irregulares ou ilegítimas.
Com a promulgação da nova emenda, contundo, o panorama mostrou-se completamente diferente: em apenas um mês, pelo menos dez editais de convocação para criação de sindicatos no setor foram publicados no Diário Oficial da União[viii]. Outro passo importante foi a celebração, em 26 de agosto de 2013, da primeira convenção coletiva do país envolvendo o setor, documento assinado entre a Federação dos Empregados e Trabalhadores Domésticos do Estado de São Paulo e o SEDESP (Sindicato dos Empregadores Domésticos do Estado), sendo reconhecido como válido pela Superintendência Regional do Trabalho[ix]. Esta CCT evidencia a real possibilidade do processo negocial coletivo entre os atores sociais em questão, através da organização dos interessados para formar entidades sindicais sólidas e que representem de forma efetiva os membros das quais fazem parte.
Insta salientar que um dos objetivos perseguidos pela Convenção Internacional nº 189, é proporcionar, para os trabalhadores domésticos, “a liberdade de associação, a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva (artigo 3, item 2a)[x]”. A Recomendação nº 201 especifica algumas medidas a serem tomadas pelos Estados para alcançar este fim, como identificar e eliminar restrições legislativas, administrativas ou outros obstáculos burocratizantes, bem como adotar meios para fortalecer a capacidade de organização dos trabalhadores, primando pela independência e autonomia das entidades sindicais (item 2ª)[xi].
Ante os argumentos expostos, não se afigura razoável dispensar da chancela sindical – e desprezar, assim, o manto protetivo que dela advém – a implantação de regime de compensação de jornada que ultrapasse o limite máximo em que se garante mínima proteção à saúde e ao bem-estar do trabalhador – que aqui se entende ser o parâmetro intrassemanal – no contexto do trabalho doméstico. Defender posição contrária representa claro retrocesso social, tendo em vista o tormentoso processo de construção doutrinária e jurisprudencial que pacificou o entendimento pela imprescindibilidade de negociação coletiva para a mesma finalidade nas relações empregatícias sujeitas ao estatuto normativo celetista.
A Lei Complementar nº 150/2015 regulamentou os novos preceitos trazidos pela EC nº 72/2013, adequando o estuário normativo legal à vigente ordem constitucional.
Dentre as várias matérias abordadas, está a jornada de trabalho do empregado doméstico, incluindo seu regime de compensação, tema central do presente estudo. O tema foi abordado, principalmente, nos artigos 2º, 3º, 10 e 11 do projeto. Vale ressaltar, todavia, que o artigo 3º, por cuidar do trabalho a regime de tempo parcial, e o artigo 10, por abordar a jornada de 12x36 horas, não serão objeto de análise, pois não se relacionam – pelo menos não diretamente – com a temática do banco de horas.
Antes de passar ao exame do modelo compensatório adotado na Lei, é de bom alvitre destacar que o legislador, na esteira do mandamento constitucional, estabeleceu como jornada normal de labor oito horas diárias, com módulo semanal compreendendo 44 horas (art. 2º, caput). Igualmente, o adicional das horas extraordinárias previsto também coincide com o fixado
Nos §§ 2º e 3, indicou-se, ainda, como calcular o valor do salário-hora – que se obtém a partir do dividindo o salário mensal pelo divisor 220, desde que não estipulada jornada inferior à padrão – e do salário-dia – dividindo-se o salário mensal por 30 – para os empregados mensalistas.
O §4º do artigo 2º da LC nº 150/2015 assim dispõe:
§ 4o Poderá? ser dispensado o acréscimo de salário e instituído regime de compensação de horas, mediante acordo escrito entre empregador e empregado, se o excesso de horas de um dia for compensado em outro dia.
Infere-se da redação do dispositivo acima transcrito que o legislador optou por dispensar a chancela coletiva sindical para efeito de implantação do regime compensatório (lato sensu) entre patrão e empregado. A orientação adotada despreza todo o valor protetivo proporcionado ao trabalhador, polo mais fraco da relação empregatícia, agregado pela participação da entidade sindical de base nas negociações coletivas, mormente quando se trata de medida que, em aspectos gerais, precarizam as condições de trabalho.
É de salutar importância frisar que a compensação intrassemanal de horários – pela qual, comumente, suprime-se o labor sabatino ou nos chamados dias-ponte, através da concentração de mais horas de trabalho em uma quantidade menor de dias, seguida, porém, de um alongado período de descanso, no qual o empregado pode dispor de mais tempo para suas atividades particulares, não-laborais – traz, de regra, benefícios ao próprio empregado. Ao revés, o regime de compensação cujas fronteiras se distanciem deste parâmetro temporal, atingindo patamares longínquos, como meses ou até 1 ano, prejudica de forma significativa a saúde do trabalhador, por força do desgaste físico e psicológico que o acúmulo de corriqueiras jornadas extenuantes, sem o contrapeso do respectivo período de repouso prolongado, pode acarretar.
Desta maneira, também no âmbito do emprego doméstico, em que pesem suas peculiaridades, a instituição de sistema de compensação de horas adotando parâmetros temporais que têm o condão de provocar significativa desproporção na relação “trabalho-descanso” deve ser precedida de negociação coletiva, como garantia mínima aos direitos do obreiro. Por outro lado, mero acordo bilateral escrito deve ser suficiente para a pactuação de regime benéfico ao empregado, a exemplo da compensação intrassemanal.
Seguindo a mesma linha de pensamento, a assistente jurídica da Federação do Sindicato das Domésticas de São Paulo, Camila Francisca Ferrari, já se manifestou contrária à discriminação trazida pela Lei, que proporciona proteção jurídica inferior à classe dos trabalhadores domésticos, quando comparada com as demais[xii].
A redação da Lei peca ao não fazer alusão a qualquer limite temporal para as horas laboradas em regime de sobrejornada.
A omissão pode ensejar consequências severas em detrimento da saúde, da integridade física e psicológica do empregado doméstico, indo de encontro às normas de saúde e segurança do trabalho, de ordem constitucional. Neste ponto, cabe invocar o sábio pensamento sustentado pela Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho –ANAMATRA, em nota técnica (com data de 28/05/2013) dirigida ao Senado Federal, in verbis:
Tratando-se, com efeito, de matéria que diz com a integridade psicossomática do trabalhador, não está sequer suscetível a flexibilizações no plano de autonomia coletiva, por configurar matéria de ordem pública (e, logo, decorrer de normas jurídicas de absoluta indisponibilidade). Nessa medida, por se tratar do núcleo irredutível de um direito humano fundamental (o direito à saúde), tampouco o legislador ordinário pode relativizar, sob pena de inconstitucionalidade, por violação da garantia constitucional de conteúdo mínimo[xiii]
A lei trouxe um tratamento diferenciado entre as primeiras 40 horas extras trabalhadas dentro do mês e as demais que ultrapassarem este limite. Nesse ínterim, a redação do §5º do art. 2º da Lei dispõe:
§ 5o No regime de compensação previsto no § 4o:
I – será? devido o pagamento, como horas extras, na forma do § 1o, das primeiras 40 (quarenta) horas mensais excedentes ao horário normal de trabalho;
II – das 40 (quarenta) horas referidas no inciso I, poderão ser deduzidas, sem o correspondente pagamento, as horas não trabalhadas, em função de redução do horário normal de trabalho ou de dia útil não trabalhado, durante o mês;
III – o saldo de horas que excederem as 40 (quarenta) primeiras horas mensais de que trata o inciso I, com a dedução prevista no inciso II, quando for o caso, será? compensado no período máximo de 1 (um) ano.
Infere-se da leitura atenta do trecho destacado que se criou um sistema sui generis, subdivido em dois regimes. Com efeito, até o limite de 40 horas extras, opera-se uma espécie de compensação mensal, visto que o montante de horas que não for deduzido por meio de folgas ou redução na jornada deverá ser pago no mês subsequente com o devido adicional de 50%. As horas que ultrapassarem o referido teto passam a compor o regular sistema de créditos e débitos, característico do banco de horas, para serem compensadas no prazo máximo de 01 ano.
Percebe-se como positivo a criação desse novel sistema, já que, na prática, relega-se ao segundo plano a compensação anual para a compensação dos horários, muito mais prejudicial quando comparada ao parâmetro mensal.
No que tange ao prazo anual para compensar o montante que exceder as primeiras 40 horas extras do mês, cabe destacar que a ANAMATRA sugeriu, na segunda nota técnica (datada de 04/06/2013) enviada ao Senado Federal, ainda durante a tramitação do Projeto de Lei, a redução do prazo máximo para três meses, tendo em vista as peculiaridades do emprego doméstico, em especial no que se refere à dificuldade de controle, pelos sujeitos desta relação laboral, de um sistema demasiadamente largo de réditos e débitos de horas[xiv].
Enfim, é importante destacar a Lei em epígrafe regulamentou hipóteses especiais nas quais o empregado acompanha o patrão prestando serviços em viagem (artigo 11). Nessas situações, julgou o legislador oportuno considerar como tempo de labor apenas as horas efetivamente trabalhadas, a serem remuneradas com adicional de 25% sobre o valor normal do salário-hora, caso o trabalhador não optar por transformá-lo, mediante acordo, em crédito no banco de horas. O tempo de serviço dispendido em regime de sobrejornada segue os moldes de compensação do artigo 2º.
À semelhança do regramento celetista, a LC nº 150/2015 dispõe que, caso se dê a ruptura do pacto laboral sem a devida compensação das horas extras acumuladas, deverão estas ser pagas com o devido adicional (art. 2º, §6º). Dessa forma, mais uma vez resta prejudicado o obreiro, considerando que, além de não ter recebido a folga compensatória, receberá a destempo o adicional a que faz jus, porquanto deveria ter sido remunerado no mês subsequente ao labor em regime de sobrejornada, não fosse a pactuação do banco de horas.
Igual crítica manejada em face do texto celetista pode ser redirecionada ao diploma legislativo em análise, que se omite quanto à hipótese de a ruptura do pacto ocorrer com débito para o empregado. Seguindo essa linha de raciocínio, defende-se que, em tais casos, o empregador poderá compensar os respectivos valores com outras parcelas trabalhistas devidas, sob pena de enriquecimento indevido do obreiro, aplicando-se analogicamente o limite previsto no artigo 477, §5º da CLT.
6. CONCLUSÃO
A Convenção nº 189 e a Recomendação nº 201, ambas do ano de 2011, mostraram à comunidade internacional o posicionamento da OIT sobre o tema direitos dos trabalhadores domésticos, tencionando dignificar e humanizar a relação de emprego doméstico. Diante da pressão interna e internacional, o Brasil promulgou a Emenda Constitucional nº 72, em abril de 2013, que representou a maior conquista desde o reconhecimento do labor doméstico como relação de emprego.
Dentre os novos direitos assegurados, destaca-se a limitação da jornada de trabalho, prevista no inciso XIII da CF/88, que possibilita a instituição do respectivo regime de compensação. Considerando que a CLT não se aplica aos domésticos, esse sistema demanda regulamentação infraconstitucional, tarefa que coube à Lei Complementar nº 150/2015.
O que restou constatado da análise da Lei, contudo, foi que foram utilizadas as peculiaridades do labor doméstico, tais como a dificuldade de controle de horários e os obstáculos à negociação coletiva, como fundamento para legitimar discriminações em relação às demais categorias, regidas pelo estatuto celetista.
Com efeito, previu-se a dispensabilidade do título negocial coletivo – e toda a proteção que dele advém – para a implementação do banco de horas, qualquer que seja o período de compensação, apoiando-se no falso argumento de que os empregados e patrões domésticos não têm condições de se organizarem coletivamente. Demonstra a falácia de tal discurso, a Convenção coletiva firmada entre o Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo – SINDOMÉSTICA/SP – e o Sindicato dos Empregadores Domésticos do Estado de São Paulo – SEDESP, primeira do seu gênero no país.
Ademais, a repetição de disposições prejudiciais trazidas ao mundo jurídico pela lei nº 9.601/98, tendo como maior exemplo o limite anual para o “ajuste de contas”, pode acarretar sérios déficits aos direitos trabalhistas dos empregados domésticos.
Isto posto, reconhece-se o importante avanço dado pelo Brasil no trato da questão do trabalho doméstico, levado a efeito pela EC nº 72/2013. No que tange à regulamentação infraconstitucional do tema, defende-se, todavia, mudanças na LC nº 150/2015, a fim de eliminar os instrumentos de discriminação a esta tão sofrida classe de trabalhadores, que representam verdadeiro retrocesso social.
REFERÊNCIAS:
[i] MARTINS, Ricardo Ferreira. Inovações da emenda constitucional nº 72 e sua influência no controle da jornada de trabalho do empregado doméstico. Disponível em: . Acesso em: 04, dez., 2012.
[ii] BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Recurso Ordinário n. 0011900-37.2000.5.04.0941. Recorrentes: Valdemar Vieira da Silva e Suely Lopes. Recorridos: Os mesmos. Relator(a): Desembargadora convocada Denise. Rio Grande do Sul, 10 mar 2003. Disponível em: . Acesso em: 04 dez., 2013.
[iii] LEAL, Leandro. Patrões podem usar vários meios para controlar jornada de empregados domésticos. Correio de Uberlândia, 23 abr., 2013. Disponível em: . Acesso em: 04 dez., 2013.
[iv] DELGADO, Maurício Godinho. Direito coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2008, p. 54.
[v] CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho. Niterói: Impetus, 2010, pp. 385-386.
[vi] ACAYABA, Cíntia e NÉRI, Felipe. Patrões e domésticas se mobilizam para criar sindicatos após emenda: promulgação de emenda constitucional completa um mês nesta quinta. Desde então, se iniciaram processos de ao menos dez novos sindicatos. G1, 02 mai., 2013. Disponível em: . Acesso em: 10 jan., 2014.
[vii] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Entra em vigor a convenção sobre trabalho doméstico da OIT. Disponível em: . Acesso em: 10 jan., 2014.
[viii] ACAYABA, Cíntia e NÉRI, Felipe. Patrões e domésticas se mobilizam para criar sindicatos após emenda: promulgação de emenda constitucional completa um mês nesta quinta. Desde então, se iniciaram processos de ao menos dez novos sindicatos. G1, 02 mai., 2013. Disponível em: . Acesso em: 10 jan., 2014
[ix] Disponível em: . Acesso em: 10 jan., 2014.
[x] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 189/2013. Convenc?a?o sobre o trabalho decente para as trabalhadoras e os trabalhadores dome?sticos. Disponível em: . Acesso em: 10 jan., 2014.
[xi] Idem. Recomendação nº 201/2013. Recomendação sobre o trabalho dome?stico decente para as trabalhadoras e os trabalhadores dome?sticos. Disponível em: . Acesso em: 10 jan., 2014.
[xii] HORA DO POVO. Domésticas defendem que banco de horas seja negociado com sindicato. Disponível em: . Acesso em: 12 jan., 2014.
[xiii] ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MAGISTRADOS DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Nota técnica. 28/05/2013. Disponível em: . Acesso em: 12 jan., 2014.
[xiv] Idem. Nota técnica. 04/06/2013. Disponível em: . Acesso em: 12 jan., 2014.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEONARDO ANDRADE LIMA VIDAL DE ARAúJO, . Aplicação do banco de horas no âmbito da relação empregatícia doméstica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 abr 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51593/aplicacao-do-banco-de-horas-no-ambito-da-relacao-empregaticia-domestica. Acesso em: 05 nov 2024.
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