RESUMO: O presente trabalho busca fazer uma análise dos principais aspectos do instituto processual da intervenção anômala, com ênfase na questão relativa ao deslocamento da competência gerado pela apresentanção de recurso por parte do ente público interveniente. Fazendo uso da doutrina especializada, da legislação correlata e da jurisprudência dos Tribunais Superiores, busca-se apresentar as principais controvérsias relacionadas a essa modalidade de intervenção, expondo-se as posições divergentes que existem, bem como apresentando os artigos do Novo Código de Processo Civil relacionados ao assunto. O texto também apresenta noções gerais sobre a competência jurisdicional no direito brasileiro, seus critérios de distribuição e a competência da Justiça Federal, com o escopo de facilitar a compreensão da controvérsia relativa à modificação da competência na fase recursal quando um ente public federal faz uso da intervenção anômala em processo que tramita perante a Justiça Estadual, de modo que o julgamento do recurso seja realizado pelo Tribunal Regional Federal competente.
PALAVRAS-CHAVE: Intervenção Anômala; Competência; Modificação.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. NOÇÕES GERAIS SOBRE A INTERVENÇÃO ANÔMALA. 3. NOÇÕES GERAIS SOBRE COMPETÊNCIA JURISDICIONAL. 3.1 COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 4. O PROBLEMA DA MODIFICAÇÃO DA COMPETÊNCIA NA FASE RECURSAL. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 6. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
Historicamente, o Poder Público sempre foi detentor de diversas prerrogativas, sejam elas nas relações materiais ou nas relações processuais. Desde o Estado Absolutista - onde a vontade do soberano prevalecia -, passando pelo Estado Liberal - marcado pelo absenteísmo estatal -, até o atual Estado Social (já sendo possível, inclusive, falar-se em Estado Pós-Social), ao Poder Estatal sempre foi conferido tratamento diferenciado em suas relações jurídicas, com maior ou menor intesidade. (BONAVIDES, 2013).
É possível perceber que há uma relação de verticalidade entre o Estado e os indivíduos que com ele possuem vínculos jurídicos. E não poderia ser diferente, tendo em vista que ao Estado foi conferido o dever essencial de administrar, proteger e efetivar o interesse público e o bem-estar de toda a sociedade. Dessa forma, a posição de superioridade do Poder Público se justifica, na medida em que, logicamente, o interesse geral acaba por se sobrepor ao interesse individual (CUNHA, 2016).
Nesse contexto, a doutrina administrativa brasileira consagrou o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado, uma das pedras basilares do regime jurídico-administrativo (MEIRELLES, 2013, p. 109). O interesse público ainda é dividido em duas acepções: o interesse público primário e o interesse público secundário. É primário o interesse que se refere à coletividade, à população como um todo, enquanto que o interesse público secundário é o interesse do Estado como sujeito de direitos e deveres (CUNHA, 2016).
O interesse público secundário (do Estado) está diretamente subordinado à consecução do interesse público primário (da coletividade), apesar de nem sempre serem coincidentes, de forma que, atingindo-se os interesses do Estado, presume-se que estejam sendo satisfeitos os interesses da coletividade. Cabe ao Poder Público resguardar ambos.
Por conseguinte, tratando a Fazenda Pública de interesses axiologicamente superiores, a ela devem ser conferidas prerrogativas diversas das conferidas aos particulares, uma vez que, conforme o Princípio da Igualdade em sua faceta material, deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida das desigualdades, tudo dentro da razoabilidade e da proporcionalidade.
Nessa linha de raciocínio, percebe-se que no ordenamento jurídico brasileiro há diversas prerrogativas processuais para a Fazenda Pública, seja em Códigos ou em legislação esparsa, como por exemplo: prazos diferenciados para contestar e para recorrer (art. 183 do CPC), prazo específico de prescrição das dívidas passivas (art. 1º do Decreto n. 20.910/32), o reexame necessário (art. 496 do CPC), dispensa de preparo para interposição de recursos (art. 1.007, §1º, do CPC), entre diversas outras (CUNHA, 2016).
Uma dessas prerogativas é a forma especial de intervenção de terceiros prevista no art. 5, parágrafo único, da Lei n. 9.469/97. Essa modalidade de intervenção permite que a União, Estado-membro, Distrito Federal ou Município intervenha nas causas em que a decisão possa gerar reflexos econômicos direta ou indiretamente, independentemente da demonstração do interesse jurídico.
Há diversos pontos sobre essa espécie de intervenção que são controvertidos na doutrina e na jurisprudência, em especial quanto à possibilidade de modificação da competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal no caso de a União intervir em causa de competência estadual e interpor recurso, como se verá adiante.
2 NOÇÕES GERAIS SOBRE A INTERVENÇÃO ANÔMALA
A intervenção anômala está prevista na Lei n. 9.469, promulgada em 10 de julho de 1997, da seguinte forma:
Art. 5º. A União poderá intervir nas causas em que figurarem, como autoras ou rés, autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas federais.
Parágrafo único. As pessoas jurídicas de direito público poderão, nas causas cuja decisão possa ter reflexos, ainda que indiretos, de natureza econômica, intervir, independentemente da demonstração de interesse jurídico, para esclarecer questões de fato e de direito, podendo juntar documentos e memoriais reputados úteis ao exame da matéria e, se for o caso, recorrer, hipótese em que, para fins de deslocamento de competência, serão consideradas partes.
O dispositivo, na verdade, prevê duas hipóteses diversas de intervenção de terceiros. A primeira, que encontra-se prevista no caput, refere-se apenas à União, levando em conta as pessoas que são partes na causa. E a segunda, prevista no parágrafo único, que alcança todos os Entes Políticos e é objeto do presente estudo.
Foi criada, então, a intervenção anômala, assim chamada por ser uma modalidade especial de intervenção, diversa das demais espécies existentes (alguns preferem chamá-la de intervenção anódina). Através dela, as pessoas jurídicas de direito público interno (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), podem intervir em processos com o fito de resguardar interesse econômico.
Cumpre ressaltar que parte processual é aquela que se encontra em um dos polos do litígio, defendendo direito próprio ou, quando autorizada, direito alheio, em face da pretensão da parte que se encontra no outro polo da relação processual. Já o terceiro, é, por exclusão, todo aquele que não é parte processual e, portanto, é estranho ao objeto da demanda apresentada ao Poder Judiciário.
Na lição de Humberto Theodoro Júnior: “Ocorre o fenômeno processual chamado intervenção de terceiro quando alguém ingressa, como parte ou coadjuvante da parte, em processo pendente entre outras partes”. (THEODORO JÚNIOR, 2013, p. 143).
Com efeito, intervenção anômala permite que a Fazenda Pública, na condição de terceiro, ingresse no processo em curso, independentemente das partes processuais que estejam litigando, sendo suficiente a constatação dos reflexos de natureza econômica que possam advir da decisão final.
Ademais, levando em consideração a finalidade da intervenção, ela pode ser classificada em ad coadiuvandum, quando o terceiro ingresse para cooperar com uma das partes, e ad excludendum, no caso de o terceiro excluir um ou ambos os litigantes.
Quando ocorre a intervenção anômala, o Ente Público ingressa na relação processual e passa a poder esclarecer questões dentro do processo através da juntada de documentos e memoriais relacionados com a matéria, bem como, ao final, sendo o caso, recorrer. Trata-se, portanto, de intervenção de terceiros ad coadiuvandum, semelhante à Assistência, prevista no art. 119 do Código de Processo Civil. Entretanto, como será visto, a natureza jurídica do instituto é polêmica.
Sobre o procedimento através do qual ocorre a intervenção, leciona Leonardo Carneiro da Cunha:
A concretização dessa intervenção de terceiros caracteriza-se pelo imediato comparecimento da Fazenda Pública em juízo, com apresentação de documentos, provas e memoriais tidos como úteis para o desfecho da causa.
Requerida a intervenção anômala pela Fazenda Pública, as partes originárias devem ser intimadas para pronunciamento sobre o pedido de intervenção, podendo questionar a presença ou não de interesse econômico, em obediência ao princípio da ampla defesa e do contraditório. (CUNHA, 2016, p. 148).
Portanto, para que ocorra a intervenção anômala, basta a intimação das partes para que ofereçam manifestação sobre a presença da Fazenda Pública, observando-se os princípios da ampla defesa e do contraditório.
No que tange ao alcance dos poderes do Ente Público quando interveniente, prevalece o entendimento de que, sendo essa modalidade de intervenção uma exceção às demais existentes, ela deve ser interpretada restritivamente, de acordo com as regras gerais de hermenêutica. Por esse motivo, os poderes da Fazenda Pública ficam limitados ao esclarecimento de questões de fato e de direito, através da juntada de documentos e memoriais, podendo, ao final, recorrer, em estrita observância aos termos do parágrafo único do art. 5º da Lei n. 9.469/97. (CUNHA, 2016, p. 149).
Para Leonardo Carneiro da Cunha, tendo em vista essa limitação quanto aos poderes de atuação e por não assumir a condição de parte, a pessoa jurídica de direito público não se sujeita à coisa julgada material, a não ser que venha a interpor recurso, por tornar-se parte no processo. (CUNHA, 2016, p. 156).
3 NOÇÕES GERAIS SOBRE COMPETÊNCIA JURISDICIONAL
Na sistemática da Teoria da Tripartição dos Poderes, baseada nas ideias de Aristóteles e aprimorada por Montesquieu, e adotada pela República Federativa do Brasil, as principais funções exercidas pelo poder soberano de um Estado são repartidas entre três poderes: Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário. Esses poderes, nos termos do art. 2º da Constituição Federal, são independentes e harmônicos entre si. (BONAVIDES, 2013).
Nesse contexto, ao Poder Judiciário foi conferido, primordialmente, o exercício da função jurisdicional ou jurisdição, que representa a função estatal de composição dos litígios entre os indivíduos, fazendo valer o ordenamento jurídico sobre os conflitos de interesses concretamente deduzidos perante o Judiciário.
Trata-se de um meio de solução de controvérsias pela heterocomposição, em que a vontade das partes é substituída por um terceiro imparcial que soluciona a problemática através de um procedimento legal. Se a solução desses litígios fosse deixada apenas para as partes interessadas, o mais forte acabaria por impor sua vontade ao mais fraco, esvaziando a finalidade do Direito.
Nas lúcidas palavras de Humberto Theodoro Júnior:
Do monopólio da justiça enfeixado nas mãos do Estado decorre a jurisdição como um poder-dever de prestar tutela jurisdicional a todo cidadão que tenha uma pretensão resistida por outrem, inclusive por parte de algum agente do próprio Poder Público.(THEODORO JÚNIOR, 2013, p. 187).
É justamente por haver um monopólio da jurisdição no poder do Estado que o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, preconiza que a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Com o propósito de garantir eficiência no funcionamento do Poder Judiciário, tanto o constituinte originário quanto o legislador ordinário buscaram distribuir a jurisdição entre órgãos do Judiciário, segundo critérios constitucionais e legais. E é essa distribuição que dá origem à competência.
Deve-se entender a competência como uma medida da jurisdição, que, para organizar o Poder Judiciário, cria um círculo dentro do qual a função estatal poderá ser exercida. Em outros termos, é a forma limitação do exercício do poder jurisdicional, com o propósito de organizá-lo.
3.1 COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL
A competência da Justiça Federal de primeira instância, tanto cível quanto criminal, encontra-se insculpida no artigo 109 da Constituição Federal, ao passo que a competência dos Tribunais Regionais Federais, tanto originária quanto recursal, foi definida pelo artigo 108 da Carta Magna.
Segundo Fredie Didier Jr., a competência da Justiça Federal determinada pelas normas constitucionais é taxativa e insuscetível de alteração por lei infraconstitucional, além de ser absoluta e, portanto, inderrogável pela vontade das partes, ressalvadas as regras que determinam a competência territorial (DIDIER JUNIOR, 2014, p. 193).
Pela redação do art. 109, da Constituição Federal, a competência cível da Justiça Federal de primeira instância pode ser fixada: em razão da pessoa (incisos I, II e VIII), em razão da matéria (incisos III, V-A, X, fine, e XI), e em razão da função (inciso X, primeira parte) (DIDIER JUNIOR, 2014).
Interessa ao presente trabalho a compreensão da competência cível da Justiça Federal fixada em razão da pessoa que litiga no processo, de acordo com a regra do art. 109, I, da Constituição Federal, que assim determina:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I- as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.
Dessa maneira, à exceção dos processo de falência, relacionados à acidentes de trabalho, ou sujeitos à Justiça Especializada (Eleitoral ou Laboral), sempre que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal estejam presentes no processo na condição de parte (seja no polo ativo ou passivo, ou em intervenção de terceiros), o processo deverá ser julgado pela Justiça Federal.
O dispositivo exclui da sua abrangência as sociedades de economia mista federais, que acabam por se sujeitar apenas à Justiça Estadual, entendimento cristalizado na Súmula 42 do Superior Tribunal de Justiça: “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar as causas cíveis em que é parte sociedade de economia mista e os crimes praticados em seu detrimento”.
O mesmo raciocínio levou o Supremo Tribunal Federal a editar a Súmula 517, assim redigida: “As sociedades de economia mista só têm foro na Justiça Federal, quando a União intervém como assistente ou opoente”.
Nos casos do art. 109, I, da Constituição Federal, a competência é da Justiça Federal levando-se em conta os sujeitos que figuram no processo. É caso de competência absoluta fixada em razão da pessoa. Assim, se uma ação for proposta no juízo estadual e a União, entidade autárquica ou empresa pública federal vier a integrar o litígio, o processo deverá ser remetido à Justiça Federal.
Nesses casos, cabe ao juízo federal decidir sobre a existência ou não de interesse jurídico do ente federal, conforme esclarece a Súmula 150 do Superior Tribunal de Justiça: “Compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas”.
O Novo Código de Processo Civil, trouxe disposição expressa nesse sentido, corroborando com a disposição constitucional e consolidando os entendimentos jurisprudenciais dos Tribunais Superiores:
Art. 45. Tramitando o processo perante outro juízo, os autos serão remetidos ao juízo federal competente se nele intervier a União, suas empresas públicas, entidades autárqucas e fundações, ou conselho de fiscalização de atividade profissional, na qualidade de parte ou de terceiro interveniente, exceto as ações:
I- de recuperação judicial, falência, insolvência civil e acidente de trabalho;
II- sujeitas à justiça eleitoral e à justiça do trabalho.
§1º Os autos não serão remetidos se houver pedido cuja apreciação seja de competência do juízo perante o qual foi proposta a ação.
§2º Na hipótese do §1º, o juiz, ao não admitir a cumulação de pedidos em razão da incompetência para apreciar qualquer deles, não examinará o mérito daquele em que exista interesse da União, de suas entidades autárquicas ou de suas empresas públicas.
§3º O juízo federal restituirá os autos ao juízo estadual sem suscitar conflito se o ente federal cuja presença ensejou a remessa for excluído do processo.
Sobre o alcance da competência fixada pelo art. 109, I, da Constituição Federal, explica Leonardo Carneiro da Cunha:
Na verdade, o art. 109, I, da Constituição Federal apenas alude à assistência e à oposição, por serem as únicas formas de intervenção em que o terceiro ingressa espontaneamente no processo, não sendo citado nem intimado para fazer parte da demanda. (CUNHA, 2016, p. 150).
Prossegue o referido autor, deixando claro que, nas demais hipóteses de intervenção de terceiros, o terceiro é citado para ingressar no processo e assumir a posição de parte, de modo que, tratando-se da União, haverá obrigatoriamente o deslocamento da competência para a Justiça Federal (CUNHA, 2016, p. 150).
Por fim, cumpre salientar que a competência dos Tribunais Regionais Federais está prevista no art. 108 da Constituição Federal. Na lição de Fredie Didier Jr., trata-se sempre de competência funcional, independentemente dos sujeitos e da matéria do litígio (DIDIER JUNIOR, 2014, p. 213). Assim, o art. 108 da Constituição Federal prevê hipóteses de competência absoluta, inderrogável pela vontade das partes ou por leis infraconstitucionais, por estarem previstas no texto constitucional, da mesma forma como ocorre com a competência federal de primeira instância.
4 O PROBLEMA DA MODIFICAÇÃO DA COMPETÊNCIA NA FASE RECURSAL
Uma das grandes discussões doutrinárias sobre o tema Intervenção Anômala é a parte final do parágrafo único do art. 5º da Lei n. 9.469/97, que determina que, na hipótese de o ente que ingressa na causa na forma do dispositivo recorrer da decisão final do processo, será considerado parte para fins de deslocamento de competência.
Dessa forma, intervindo a União em processo que corre perante a Justiça Estadual, esse ente não seria considerado parte processual até o momento da interposição do recurso da sentença de 1º grau, o que tornaria obrigatória a modificação da competência, em respeito ao art. 109, I, da Constituição Federal, apenas nessa fase processual.
Essa exegese do dispositivo gera controvérsia sobre natureza jurídica do instituto processual em análise. Se a modificação da competência para a Justiça Federal só ocorre no momento da interposição do recurso, não é possível considerar a intervenção anômala como modalidade de assistência simples, tendo em vista que, conforme exposto, a competência é absoluta da Justiça Federal no caso de a União intervir na ação como assistente, a partir da demonstração de interesse jurídico.
Entendendo pela impossibilidade de classificação da intervenção anômala como forma de assistência simples, por não adquirir o ente público a qualidade de parte no processo, leciona Leonardo José Carneiro da Cunha:
Ao ingressar como interveniente na causa, com apoio no parágrafo único do art. 5º da Lei nº 9.469/1997, a Fazenda Pública apenas esclarece questões e junta documentos ou memoriais reputados úteis ao desenleio da controvérsia. Daí não haver modificação de competência. E isso porque, em se tratando da União ou de outra pessoa jurídica de direito público federal, a competência somente se modifica para a Justiça Federal quando ela figurar na demanda como autora, ré, assistente ou opoente. (CUNHA, 2016, p. 150).
Nesse ponto, a intervenção anômala estaria mais próxima da figura do Amicus Curiae, que não adquire a qualidade de parte processual e não gera a modificação da competência pela sua presença no processo, em que pese não haver total correspondência entre os dois intitutos.
O problema maior gira em torno da competência da Justiça Federal para julgar o recurso da decisão oriunda da Justiça Estadual. É que o art. 108, II, da Constituição Federal, fixa expressamente a competência recursal dos Tribunais Regionais Federais, de modo a abranger as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais investidos de competência federal nos termos do §3º do art. 109 da Constituição Federal. É esse o entendimento consolidado na Súmula 55 do Superior Tribunal de Justiça: “Tribunal Regional Federal não é competente para julgar recurso de decisão proferida por juiz estadual não investido de jurisdição federal”.
Leonardo Carneiro da Cunha explica a situação:
Interpondo recurso, a pessoa jurídica de direito público passará, na terminologia legal, a figurar como parte, porquanto disporá de todos os poderes que lhe são conferidos, não tendo mais sua atividade limitada. A partir de então, a competência será modificada. É preciso, porém, observar que há regras próprias a respeito da competência recursal. (CUNHA, 2016, p. 152).
Permitir o deslocamento da competência para a Justiça Federal significa ampliar a competência constitucional dos Tribunais Regionais Federais por meio de lei infraconstitucional, que estariam julgando, em grau de recurso, causa decidida por juiz estadual, sem que este estivesse investido de competência federal (CUNHA, 2016).
Fredie Didier Jr. critica esse deslocamento de competência gerado pela interposição de recurso da União quando faz uso do instituto da intervenção anômala:
Por último, mas não menos importante, quer afirmar o legislador que a simples intervenção recursal de uma pessoa jurídica de direito público poderia deslocar a causa para a Justiça Federal. Assim, por exemplo, se o Banco Central do Brasil (BACEN), autarquia federal, recorresse de uma decisão que tramitasse na Justiça Estadual, para fins de modificação da competência, a causa seria transferida para o Tribunal Regional Federal. Ora, como demonstramos, não se pode expandir, por lei infraconstitucional, a competência da Justiça Federal; o TRF, em se tratando de competência funcional recursal, somente pode revisar decisões de juízes federais e de juízes estaduais no exercício da competência delegada (art. 109, §3º, CF/88). A condição de parte, ou não, é irrelevante. Este deslocamento da causa, nestas situações, jamais poderia acontecer. (DIDIER JUNIOR, 2014, p. 439).
Para Leonardo Carneiro da Cunha, a solução é relevar a regra do parágrafo único do art. 5º da Lei n. 9.469/97, em obediência ao art. 108, II, da Constituição Federal, de modo que o recurso interposto pela União ou outro ente federal em processo que corra na Justiça Estadual seja apreciado pelo respectivo Tribunal de Justiça, conforme a Súmula 55 do Superior Tribunal de Justiça (CUNHA, 2016, p. 153).
Apesar das críticas que o dispositivo recebe, o Superior Tribunal de Justiça decidiu interpretar a intervenção anômala da forma como encontra-se redigido o dispositivo legal, sem adentrar na controvérsia doutrinária:
RECURSO ESPECIAL. AUTUAÇÃO MULTA . VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 5º E 9º, DA LEI 9469/97 E 398 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. NÃO-OCORRÊNCIA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E DESPROVIDO. 1. Cuida-se de recurso especial pela letra “a” sustentando violação dos artigos 398 do Código de Processo Civil e 5º, parágrafo único, da Lei 9469/97 por o acórdão não ter intimado o ora recorrente a se pronunciar sobre o documento novo juntado aos autos pelo recorrido constante às fls. 212/213 e 231/232 e por não ter sido deslocada a competência do julgamento para a Justiça Federal em face de ter o DNER participado do feito na qualidade de assistente do impetrante. 2. O enunciado do artigo 398 do Código de Processo Civil tem como escopo, em observância ao princípio da bilateralidade, afastar a surpresa à parte pela juntada de documentos, proporcionando-lhe a oportunidade de manifestação.“In casu”, não há que se falar em prejuízo à autarquia recorrente visto que, ao opor os primeiros embargos de declaração que anularam o primeiro julgamento, obteve acesso aos autos e, deste modo, tomou conhecimento da juntada do documento e, ainda assim, sobre os mesmos não fez qualquer manifestação, quer na sustentação oral, quer quando do oferecimento de seus memoriais. 3. Não configura vulneração ao artigo 5º, parágrafo único, da Lei 9.469/97 o julgamento, pela justiça estadual, de demanda em que não existe justificado interesse jurídico de autarquia federal DNER– no feito nos moldes do artigo 109, I, da Constituição Federal vigente. Afora isso, cumpre registrar que nos termos do parágrafo único do artigo 5º da Lei 9469/97, acusado de violado pelo recorrente, o deslocamento da competência apenas aconteceria no caso de interposição de recurso, o que, incontestavelmente, não é o caso dos autos. 4. Recurso especial conhecido pelas aludidas violações dos artigos 398 do Código de Processo Civil e 5º, parágrafo único, da Lei 9.469/97 e desprovido. (STJ – Resp 633.028/PR, Relator: Ministro JOSÉ DELGADO, Data de Julgamento: 05/10/2004, T1 - PRIMEIRA TURMA) (grifamos)
Portanto, no entendimento do Superior Tribunal de Justiça, por não haver efetivo interesse jurídico do ente federal na causa, já que para a intervenção anômala basta a conprovação de interesse econômico direto ou indireto, o julgamento deve ser realizado pela justiça estadual, apenas ocorrendo o deslocamento da competência com a interposição de recurso, em observância à literalidade do parágrafo único do art. 5º da Lei n. 9.469/97.
Em julgamento mais recente, o mesmo Tribunal assentou a interpretação a ser dada ao dispositivo que trata da intervenção anômala:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. INTERVENÇÃO ANÓDINA DA UNIÃO. ART. 5º DA LEI Nº 9.469/97. INTERESSE MERAMENTE ECONÔMICO. DESLOCAMENTO DA COMPETÊNCIA PARA A JUSTIÇA FEDERAL. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. 1. Conquanto seja tolerável a intervenção anódina da União plasmada no art. 5º da Lei nº 9.469/97, tal circunstância não tem o condão de deslocar a competência para a Justiça Federal, o que só ocorre no caso de demonstração de legítimo interesse jurídico na causa, nos termos dos arts. 50 e 54 do CPC/73. 2. A interpretação é consentânea com toda a sistemática processual, uma vez que, além de não haver previsão legislativa de deslocamento de competência mediante a simples intervenção "anômala" da União, tal providência privilegia a fixação do processo no seu foro natural, preservando-se a especial motivação da intervenção, qual seja, "esclarecer questões de fato e de direito, podendo juntar documentos e memoriais reputados úteis ao exame da matéria". 3. A melhor exegese do art. 5º da Lei nº 9.469/97 deve ser aquela conferida pelo Supremo Tribunal Federal ao art. 70 da Lei 5.010/66 e art. 7º da Lei nº 6.825/80, porquanto aquele dispositivo disciplina a matéria, em essência, do mesmo modo que os diplomas que o antecederam. 4. No caso em exame, o acórdão recorrido firmou premissa, à luz dos fatos observados nas instâncias ordinárias, que os requisitos da intervenção anódina da União não foram revelados, circunstância que faz incidir o Verbete Sumular nº 07/STJ. 5. Recurso especial não conhecido (STJ - REsp: 1097759 BA 2008/0224645-6, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 21/05/2009, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/06/2009)
Nos termos da decisão do Superior Tribunal de Justiça, apenas a efetiva demonstração de interesse jurídico na causa, por parte do ente federal, é que permite o deslocamento da competência para julgamento pela Justiça Federal, o que ocorre com a interposição de recurso.
Dessa maneira, é possível concluir que, de acordo com o entendimento jurisprudencial, apesar das críticas da doutrina especializada, a intervenção anômala da União ou pessoa jurídica de direito público federal em causa que tramite perante a Justiça Estadual, por si só, não transfere a competência para a Justiça Federal, tendo em vista que não há necessidade da demonstração de interesse jurídico, necessário para configuração da competência firmada no art. 109, I, da Constituição Federal. Assim, o ente público interveniente ingressa no processo sem tomar a condição de parte, apenas possuindo poderes para apresentar documentos e memoriais úteis para o deslinde da demanda. Somente na hipótese de interposição de recurso é que a posição de parte processual será assumida, passando então a competência para a Justiça Federal, que conhecerá do recurso e procederá ao julgamento.
Vale ressaltar que toda essa problemática do deslocamento de competência só é pertinente na hipótese de ente federal intervir em processo que tramita na Justiça Estadual. Conforme leciona Leonardo Carneiro da Cunha:
Na hipótese de a Fazenda Pública estadual ou municipal intervir numa demanda que tramite na própria Justiça Estadual, haverá, com a interposição do recurso, modificação de competência, passando a causa, por exemplo, de uma vara cível para uma vara da Fazenda Publica, não sobressaindo maiores dificuldades, já que, nesse caso, os juízos estão vinculados ao mesmo Tribunal de Justiça. (CUNHA, 2016, p. 154).
Em conclusão, com a interpretação dada pelo Superior Tribunal de Justiça, o parágrafo único do art. 5º da Lei n. 9.469/97 permanece em vigor e pode ser utilizado pela Fazenda Pública federal, estadual ou municipal, mesmo não sendo aceito de forma unânime pela doutrina processualista.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto, a intervenção anômala é um instituto processual criado pelo parágrafo único do art. 5º da Lei n. 9.469/97, que permite à Fazenda Pública ingressar em processos em curso nos quais tenha interesse econômico, ainda que indireto, independentemente da demonstração de interesse jurídico. Nesses casos, o Poder Público ingressa no processo sem tomar a posição de parte processual, tendo poderes limitados à apresentação de documentos e memoriais para esclarecer questões de fato e de direito relacionadas ao litígio.
Trata-se de instrumento diverso das demais formas de intervenção de terceiros existentes no ordenamento jurídico brasileiro, que acaba por representar mais uma prerrogativa franqueada ao Poder Público, que o coloca em posição de aparente superioridade em relação aos particulares, motivo pelo qual constitucionalidade dessa modalidade de intervenção é questionada por diversos autores, em que pese os Tribunais Superiores aceitarem sua utilização.
Na verdade, como foi exposto, essa forma especial de intervenção obedece aos princípios constitucionais e processuais, principalmente ao princípio da igualdade, em seu sentido material, já que a Fazenda Pública não deve ser tratada como se estivesse na mesma posição em que se encontram os particulares.
A maior celeuma que gira em torno do parágrafo único do art. 5º da Lei n. 9.469/97 está relacionada à sua parte final, em que preconiza que a interposição de recurso pelo ente público que faz uso da intervenção anômala torna-o parte na demanda, para fins de deslocamento de competência, o que reforça o entendimento de que a intervenção anômala está mais próxima do Amicus Curiae.
Conforme demonstrado, no caso de ação proposta perante o juízo estadual em que ocorra a intervenção anômala da União ou de ente federal, a competência não será deslocada automaticamente, tendo em vista que não será adquirida a condição de parte. Com isso, no caso de interposição recurso, a pessoa jurídica de direito público passará efetivamente a assumir a posição de parte na demanda, ensejando o deslocamento da competência para julgamento perante a Justiça Federal, em obediência aos preceitos constitucionais.
O problema é que esse deslocamento expande, por meio de lei infraconstitucional, a competência dos Tribunais Regionais Federais, que deveria julgar, como instância recursal, apenas as causas decididas pelos juízes federais e juízes estaduais investidos em jurisdição federal na respectiva região.
O tema ainda não é pacífico e os posicionamentos da doutrina e da jurisprudência divergem.
Para a doutrina, essa expansão da competência fixada por norma constitucional é inconcebível. Contudo, o Superior Tribunal de Justiça, firmou o entendimento de que é aceitável a aplicação do dispositivo, fazendo uso de sua literalidade.
Independentemente das polêmicas geradas pela intervenção anômala, não há dúvida de que esse instituto é de grande valia para o Poder Público, que pode, de forma mais simples, sem precisar demonstrar interesse jurídico, intervir em processos nos quais esteja presente o interesse econômico, de modo a permitir uma proteção mais efetiva dos interesses públicos, que é função essencial do Estado.
REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
BRASIL. Superior Tribunal De Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 633.028 - PR (2004/0023030-4). Relator: Ministro José Delgado. Disponível em > Acesso em 24 de abril de 2018.
BRASIL. Superior Tribunal De Justiça. Recurso Especial nº 1.097.759 - BA (2008/0224645-6). Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Disponível em > Acesso em 24 de abril de 2018.
CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 9ª ed. São Paulo: Dialética, 2011.
CUNHA Jr., Dirley da. Controle de Constitucionalidade: Teoria e Prática. 7ª ed. Salvador: JusPodivm, 2014.
DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 16 ed. Salvador: JusPodivm, 2014.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: teoria do processo civil. v. 1. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 39ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
THEODORO Júnior., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 54 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
Advogado, graduado em Direito pelo Instituto de Educação Superior da Paraíba - IESP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALBUQUERQUE, Caio Felipe Caminha de. Intervenção anômala da União e a modificação da competência na fase recursal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 abr 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51602/intervencao-anomala-da-uniao-e-a-modificacao-da-competencia-na-fase-recursal. Acesso em: 05 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
Por: PRISCILA GOULART GARRASTAZU XAVIER
Precisa estar logado para fazer comentários.