RESUMO: O presente artigo objetiva analisar, sob ótica crítica, o posicionamento firmado pelo STJ acerca da impossibilidade de saneamento do vício de ausência de comprovação de feriado local. Para tanto, parte da análise do princípio da primazia do mérito, consagrado no CPC/15, delineando as margens interpretativas da tese jurisprudencial e concluindo pela ausência de amparo normativo. Assim, conclui-se pelo exercício de postura restritiva ao conhecimento de recursos pelo STJ, prática conhecida sob vigência do CPC/73 como jurisprudência defensiva.
PALAVRAS-CHAVE: Vício insanável. Princípio da primazia do mérito. Código de Processo Civil. Jurisprudência defensiva.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A primazia da solução de mérito no CPC/15. 3. A impossibilidade de correção do vício de ausência de comprovação de feriado local. 4 O conceito de jurisprudência defensiva. 5 A impossibilidade de saneamento do vício de ausência de comprovação de feriado local como manifestação da jurisprudência defensiva. 6 Conclusão. 7 Referências.
1. INTRODUÇÃO
Na vigência do CPC/73, a jurisprudência se consolidou no sentido de considerar a ausência de comprovação de feriado local vício sanável, não sendo declarada a intempestividade recursal antes de se oportunizar ao recorrente a correção.
Por seu turno, o CPC/15 trouxe disposição específica sobre o assunto, a qual foi objeto de análise pelo Tribunal da Cidadania, que, em sentido contrário ao que vinha sendo decidido pela iterativa jurisprudência, decidiu pela impossibilidade de correção do referido vício.
Nesse contexto, exsurge a necessidade de uma análise crítica da posição firmada pela Corte da Cidadania, a qual colide com a principiologia que embasa o Novel Codex e com o direito fundamental de acesso à justiça, rememorando a famigerada jurisprudência defensiva.
2. A PRIMAZIA PELA SOLUÇÃO DE MÉRITO NO CPC/2015
À evidência, uma das mais importantes e elogiadas inovações do Código de Processo Civil de 2015, foi a previsão contida no parágrafo único do art. 932, a qual concretiza dois princípios do processo civil brasileiro: primazia da decisão de mérito (art. 40, CPC) e cooperação (art. 6°, CPC). In verbis:
Art. 932. Incumbe ao relator:
[...]
Parágrafo único. Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível.
De acordo com o referido dispositivo, o relator não poderá considerar inadmissível o recurso quando se estiver diante de vícios sanáveis ou de documentos que possam ser complementados, devendo, em tais casos, intimar o recorrente para que corrija as referidas falhas formais.
Com efeito, trata-se da consagração de um dever imposto ao relator, na medida em que o recurso defeituoso não pode deixar de ser conhecido, sem que antes seja determinada a correção do defeito, exsurgindo, em contrapartida, o direito do recorrente à emenda do recurso.
A esse respeito, confira-se o teor do enunciado 82 do Fórum Permanente de Processualistas Civis:
Enunciado 82: É dever do relator, e não faculdade, conceder o prazo ao recorrente para sanar o vício ou complementar a documentação exigível, antes de inadmitir qualquer recurso, inclusive os excepcionais. (grifo nosso)
3. A IMPOSSIBILIDADE DE CORREÇÃO DO VÍCIO DE AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE FERIADO LOCAL
Com efeito, sob a vigência do CPC/73, o STJ considerava possível a comprovação posterior da existência de feriado local, porquanto inexistente regra expressa que impusesse esse ônus ao recorrente, cuja boa-fé merecia proteção.
Contudo, o CPC/15, contém regra específica, uma vez que, ao disciplinar a tempestividade recursal, o §6º do art. 1.003 do CPC prevê que “o recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso”.
Desse modo, considerando a literalidade da previsão transcrita, surgiram vozes na doutrina afirmando a impossibilidade de aplicação do parágrafo único do art. 932 do CPC/15 à comprovação da ocorrência de feriado local.
A questão parecia restar solucionada a partir do teor do enunciado 66 da I Jornada de Direito Processual Civil do CJF, consoante o qual “admite-se a correção da falta de comprovação do feriado local ou da suspensão do expediente forense, posteriormente à interposição do recurso, com fundamento no art. 932, parágrafo único, do CPC” (grifo nosso).
Nada obstante, ao analisar o assunto no bojo do AREsp 957821, a Corte Especial do STJ, por maioria de votos, entendeu que, consoante o § 3º do art. 1.029 do CPC/15, “o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça poderá desconsiderar vício formal de recurso tempestivo ou determinar sua correção, desde que não o repute grave”, o que, interpretado em conjunto com a previsão contida no art. 1.003, §6º, do CPC/15, revela que a intempestividade é tida pelo novo Código de Processo Civil como vício grave e insanável.
Assim, o Tribunal da Cidadania firmou o entendimento de que, embora o CPC/15 possibilite, como regra geral, a correção de vícios formais que não se considerem graves, o próprio Codex excluiu a referida possibilidade em se tratando da comprovação da ocorrência de feriado local, exigindo que seja feita no ato da interposição do recurso (artigo 1.003, § 6º, CPC/15), de modo que ou se comprova o feriado local no ato da interposição da irresignação recursal, ou se considera intempestivo o recurso.
4. O CONCEITO DE JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA
A partir do conceito de jurisprudência, cunhou-se a expressão “jurisprudência autodefensiva”[1], sugerida por André Batista Neves (HIRSCH, 2007), a qual ganhou destaque na vigência do CPC/73[2].
Flávio Cheim Jorge (2013, p.13-40) define a aludida expressão como a “interpretação inadequada dos requisitos de admissibilidade, por intermédio da imposição de restrições ilegítimas, indevidas e ilegais ao conhecimento dos recursos”.
Com efeito, embora existam em âmbito doutrinário diversas conceituações, o termo é utilizado sempre, em pleno consenso, para se referir à forma de decidir dos tribunais que objetiva protegê-los contra um excessivo número de demandas judiciais a eles oferecidas.[3]
Logo, a jurisprudência defensiva se cria e se desenvolve dentro da margem interpretativa dos Tribunais Superiores, uma vez que se cuida de óbice recursal não previsto em lei, o qual não impede a análise de determinado processo, mas extirpa do mundo uma alternativa possível de incitação do Judiciário à solução de conflitos.
5. A IMPOSSIBILIDADE DE SANEAMENTO DO VÍCIO DE AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE FERIADO LOCAL COMO MANIFESTAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA
Com efeito, o entendimento firmado pelo STJ no sentido de impossibilidade de correção do vício de ausência de comprovação de feriado local, nada mais é do que uma interpretação que restringe a aplicação do parágrafo único do art. 932 e §3º do art. 1.029, ambos do CPC/15, valorizando a literalidade do art. 1.003, §6º, do CPC/15, em detrimento de uma análise sistemática e instrumentalista.
Nesse cenário, depreende-se que, a despeito a inovação legislativa operada com o CPC/15, mantém o STJ a postura defensiva já conhecida sob a égide do Código revogado, sustentando o hábito de criação de entraves e empecilhos para impedir a admissibilidade dos recursos como mecanismo para reduzir o número excessivo de processos à espera de julgamento.
6. CONCLUSÃO
Ao firmar o entendimento de que o CPC/15 possibilite excluiu a possibilidade de saneamento do vício recursal em se tratando da comprovação da ocorrência de feriado local, exigindo que seja feita no ato da interposição do recurso (artigo 1.003, § 6º, CPC/15), sob pena de intempestividade, o STJ adotou interpretação restritiva em relação à aplicação do parágrafo único do art. 932 e §3º do art. 1.029, ambos do CPC/15.
Assim, em detrimento de uma interpretação sistemática e instrumentalista, consectária com a primazia da solução do mérito, a Corte valoriza a literalidade do art. 1.003, §6º, do CPC/15, mantendo a postura defensiva já conhecida sob a égide do Código revogado.
Desse modo, a Corte da Cidadania demonstra manter o hábito combatido pelo Novel Codex de criação de entraves e empecilhos para impedir a admissibilidade dos recursos, nos trazendo à memória a “jurisprudência defensiva”, a qual acreditava-se superada.
7. REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Discurso de posse do Ministro Humberto Gomes de Barros . Disponível em: . Acesso em 09 fev. 2014.
HIRSCH, Fábio Periandro de Almeida. Crise de funcionalidade do Supremo Tribunal Federal brasileiro. In Revista do curso de direito da UNIFACS. v. 132, Salvador, jun. 2011. Disponível em: . Acesso em 13 mai. 2014.
JORGE, Flávio Cheim. Requisitos de admissibilidade dos recursos: entre a relativização e as restrições indevidas (jurisprudência defensiva). In: Repro n. 217. São Paulo: RT, 2013, p. 13-40.
SANTARÉM, Paulo Rená da Silva. “A observação da jurisprudência defensiva na diferenciação do subsistema do direito”. In: XI Congresso de Iniciação Científica da UnB e do 2º Congresso de Iniciação Científica do DF. Brasília: Universidade de Brasília, 23 a 26 ago. 2005.
[1] As expressões “jurisprudência autodefensiva” e “jurisprudência defensiva” são equivalentes.
[2] O termo “jurisprudência defensiva” foi utilizado, inclusive, no discurso de posse do Ministro Humberto Gomes de Barros como Presidente do Superior Tribunal de Justiça, conforme o seguinte trecho: “Às vésperas de completar vinte anos, o tribunal adolescente enfrenta crise de identidade. Preso a infernal dilema, vê-se na iminência de fazer uma de duas opções: – consolidar-se como líder e fiador da segurança jurídica, ou – transformar-se em reles terceira instância, com a única serventia de alongar o curso dos processos e dificultar ainda mais a prestação jurisdicional. Intoxicado pelos vícios do processualismo e fragilizado pela ineficácia de suas decisões, o STJ mergulha em direção a essa última hipótese. Para fugir a tão aviltante destino, adotou a denominada ‘jurisprudência defensiva’, consistente na criação de entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Discurso de posse do Ministro Humberto Gomes de Barros. Disponível em: . Acesso em 09 fev. 2014.
[3] “Essa concepção, por si só, traz, portanto, uma carga conceitual evidente, que se evidencia aqui em uma acusação: acusam-se os tribunais de vislumbrarem os processos como adversários, de quem se devam defender. A palavra “defensiva” deve ser vista como significante de que os tribunais visam se esquivar de um número crescente de processos, como se eles representassem um mal a ser evitado. A ideia é de que a jurisprudência possa lhes servir como barreira para o crescente número das demandas”. SANTARÉM, 2005.
Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo. Pós-graduada pela Escola Superior do Ministério Público do Espírito Santo. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Espírito Santo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARCHESI, Makena. STJ define que a ausência de comprovação de feriado local é vício insanável: seria o retorno da jurisprudência defensiva? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 maio 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51647/stj-define-que-a-ausencia-de-comprovacao-de-feriado-local-e-vicio-insanavel-seria-o-retorno-da-jurisprudencia-defensiva. Acesso em: 05 nov 2024.
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