Resumo: A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem ampla aplicação no ordenamento jurídico nacional. Todavia, há divergência no que tange à possibilidade de aplicação do instituto na forma inversa. O presente trabalho objetiva demonstrar que malgrado não esteja o instituto da disregard na forma inversa regulamentado na legislação pátria, possível é sua aplicação em casos concretos. Com este objetivo, analisa-se a teoria de desconsideração da personalidade jurídica direta, bem como a inversa, demonstrando a possibilidade de sua aplicação. Outrossim, defende-se que a não obrigatoriedade de regulamentação permitiu que o Código de Processo Civil de 2015 dispusesse que os dispositivos relacionados ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica fossem também aplicados aos casos de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Palavras-chave: Personalidade Jurídica; Teoria da desconsideração da personalidade jurídica; Desconsideração Inversa; Direito Empresarial; Direito de família.
Sumário: 1. Introdução; 2. Da personalidade jurídica; 2.1. Pessoa jurídica; 2.2. O início da personalidade jurídica; 2.3. Efeitos da personalidade jurídica; 3. Desconsideração da personalidade jurídica; 3.1. Histórico; 3.2. A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica; 3.2.1. Teoria maior da desconsideração; 3.2.2. Teoria menor da desconsideração; 4. Desconsideração inversa da personalidade jurídica; 4.1. Conceito; 4.2. Aplicabilidade; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O ordenamento pátrio contemplou à pessoa jurídica autonomia e independência em relação aos seus sócios.
Por meio da personalidade jurídica, adquire a pessoa jurídica autonomia para, em nome próprio celebrar negócios jurídicos, titularizar patrimônio próprio, bem como defender seus interesses em juízo.
Dessa forma, em regra, não se deve imputar aos sócios obrigações da pessoa jurídica.
Outrossim, não pode a pessoa jurídica ser responsabilizada por obrigações pessoais dos sócios.
Decerto, embora seja importante para o desenvolvimento da atividade da pessoa jurídica, não é a personalidade jurídica um elemento absoluto.
Excepcionalmente poderá ser desconsiderada, sob pena de ser utilizada indiscriminadamente para a realização de fraudes.
A desconsideração da personalidade jurídica encontra-se positivada no ordenamento pátrio nos artigos 28 do Código de Defesa do Consumidor, 34 da Lei 12.529/2011, 4º da legislação protetora do meio ambiente (Lei 9.605/98) e 50 do Código Civil de 2002.
Por meio da aplicação da referida legislação, pode-se ignorar episodicamente a autonomia patrimonial da sociedade, quando utilizada para realização de fraude, responsabilizando-se direta, pessoal e ilimitadamente, o sócio por obrigação que, originariamente, cabia à sociedade.
A jurisprudência e a doutrina postam-se indubitavelmente a favor da aplicação da disregard em sua forma convencional para sancionar o abuso da personalidade jurídica.
Todavia, há divergência quanto à possibilidade de aplicação do instituto de forma inversa, de modo a permitir que a pessoa jurídica, eventualmente, responda por obrigações pessoais de um ou mais de seus integrantes.
O presente trabalho almeja analisar a teoria de desconsideração da personalidade jurídica direta, bem como a inversa, defendendo-se a possibilidade de sua aplicação.
2. DA PERSONALIDADE JURÍDICA
O conceito de personalidade está diretamente relacionado ao conceito de pessoa.
Para Maria Helena Diniz:
[...] pessoa é o ente físico ou coletivo suscetível de direitos e obrigações, sendo sinônimo de sujeito de direito. Sujeito de direito é aquele que é sujeito de um dever jurídico, de uma pretensão ou titularidade jurídica, que é o poder de fazer valer, através de uma ação, o não cumprimento do dever jurídico, ou melhor, o poder de intervir na produção da decisão judicial. (DINIZ, 2012, p. 129).
É pessoa todo aquele que nasce com vida, ou seja, adquire-se personalidade desde o nascimento. Trata-se de verdadeira qualidade ou atributo do ser humano.
Caio Mário da Silva Pereira define a personalidade como “a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair deveres”. (PEREIRA, 2011a, p. 179).
Referida aptidão hoje é reconhecida a todos. Todavia, no direito romano o escravo era desprovido da faculdade de titularizar direitos, ocupando na relação jurídica o papel de objeto, e não de seu sujeito.
Os atributos da personalidade no sentido de universalidade estão estampados no artigo 1º do Código Civil de 2002, que reconhece que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”.
Todavia, não só ao ser humano o direito reconhece a personalidade. Também a reconhece a certas entidades morais, denominadas pessoas jurídicas, compostas de pessoas físicas ou naturais. Estas pessoas se agrupam para a realização de uma finalidade econômica ou social (sociedades e associações) ou para destinar um patrimônio para um fim determinado (fundações). Ao adquirirem referida aptidão, tornam-se as pessoas jurídicas autônomas e independentes em relação às pessoas físicas de seus componentes ou dirigentes.
O homem usualmente se une a outros para atingir objetivos que dificilmente conseguiria atingir sozinho. Para tanto, se vale frequentemente de pessoas jurídicas.
Francisco Amaral, explanando sobre a pessoa jurídica, aduz que:
Sua razão de ser está na necessidade ou conveniência de as pessoas singulares combinarem recursos de ordem pessoal ou material para a realização de objetivos comuns, que transcendem as possibilidades de cada um dos interessados por ultrapassarem o limite moral de sua existência ou exigirem a prática de atividades não exercitáveis por eles. (AMARAL, 2000, p. 271-272).
2.1. Pessoa jurídica
A conceituação de pessoa jurídica, bem como a definição de sua natureza foram alvos de constante discussão no mundo jurídico. Incontáveis teorias trabalhando o tema foram criadas.
Sob pena de afastarmos do objeto do presente trabalho, não nos proporemos a buscar a definição de pessoa jurídica, todavia, a elucidação do tema se mostra de grande valia para a compreensão da disregard.
Dentre as posições doutrinárias que abordam o tema se destacam as chamadas teorias da ficção e a realista.
Segundo Savigny, o conceito de pessoa coincidiria com o conceito de homem. Ademais, somente o ser humano seria originalmente dotado de capacidade de direito. Constatando-se que o Direito não poderia ignorar a existência de agrupamentos humanos que agem em sociedade com autonomia, não os dotando de capacidade de direito, desenvolveu o jurista alemão a teoria da ficção. Por meio desta, entendia-se que a pessoa jurídica seria uma extensão do conceito de pessoa efetuada pela lei.
Entendia-se que da mesma forma que a lei poderia abolir a personalidade naturalmente detida pelo ser humano, como ocorreria com os escravos, poderia também estender a personalidade a certos agrupamentos humanos. A capacidade jurídica, dessa forma, seria estendida a sujeitos artificiais criados por simples ficção. Justamente estes sujeitos artificiais seriam as pessoas jurídicas.
Por ser mera ficção, o Direito teria dotado a pessoa jurídica de autonomia patrimonial, todavia não possuiriam tais entes vontade própria, elemento que continuaria restrito ao ser humano.
A teoria realista, por sua vez, teve como grande expoente Otto von Gierke. O também jurista alemão defendia que as associações seriam entidades dotadas de realidade, que possuiriam o elemento volitivo negado pela teoria da ficção.
Neste sentido, ensina Rodrigo Xavier Leonardo:
Gierke sustentava que as associações seriam entidades vivas, dotadas de realidade, independência e de uma vontade consciente que justificaria a capacidade para agir distinta de seus membros. Mais do que o produto de uma simples soma de seus integrantes, essas organizações conformariam uma realidade autônoma supra-individual. (LEONARDO, 2004, p. 124).
Estudando as distintas teorias, J. Lamartine Corrêa de Oliveira desenvolveu importante trabalho acerca do estudo da pessoa jurídica. Como se verá adiante, o pensamento do autor foi de grande valia para o estudo da desconsideração da personalidade jurídica no país.
Segundo o autor, estaria na substância a sensível diferença entre a pessoa humana e a pessoa jurídica. Os seres existentes poderiam ser distinguidos entre os que eram dotados de forma substancial e aqueles dotados de forma acidental.
Aqueles dotados de forma substancial existiriam por si mesmos, não necessitando de fundamentos extrínsecos para se fundamentarem. No escólio de Lamartine, “o ser humano é reconhecido como indivíduo, mas não apenas indivíduo: substância também, isto é, ser que existe por si mesmo; e de natureza racional” (CORRÊA DE OLIVEIRA; MUNIZ, 1980, p. 17).
Os seres de forma acidental, de outra forma, não teriam existência em si mesmos, vez que seriam dependentes de outros seres de substância. Nesta classificação estaria inserida a pessoa jurídica, que apesar de possuir independência externa, dependeria dos seres humanos para existir.
Dessa forma, o mencionado autor conceitua a pessoa jurídica como “realidade análoga à pessoa humana, porque idêntica em inúmeros aspectos e distinta no mais importante: a substancialidade, que esta possui e aquela não. É pessoa, portanto. Mas não no sentido pleno da palavra e sim por analogia”. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1962, p. 165).
Faz-se mister ressaltar que as espécies de pessoas jurídicas admitidas no ordenamento pátrio são taxativamente elencadas nos artigos 40 a 44 do Código Civil de 2002.
Destarte, o presente estudo cingir-se-á à análise das sociedades empresárias.
2.2. O início da personalidade jurídica
Decerto, das sociedades regidas pelo direito pátrio, duas não possuem personalidade jurídica.
Tratam-se da sociedade em comum e da sociedade em conta de participação.
Desta feita, não se pode considerar a personalidade como elemento essencial de todas as sociedades.
Outrossim, da leitura do artigo 45 do Código Civil de 2002 se constata que “começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro[...]”.
Depreende-se que o registro do ato constitutivo da sociedade empresária opera como verdadeiro marco inicial para a aquisição da personalidade jurídica, devendo ser realizado na Junta Comercial.
Neste sentido estão os artigos 985 e 1.150 do Código Civil de 2002:
Art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150).
Art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária.
Para Marlon Tomazette, a constituição da sociedade pressupõe os seguintes elementos: “(a) vontade humana criadora; (b) a finalidade específica; (c) o substrato representado por um conjunto de bens ou de pessoas; (d) a presença do estatuto e respectivo registro”. (TOMAZETTE, 2011, p.219-220).
Desta feita, constata-se que o supramencionado registro do ato constitutivo na Junta Comercial efetiva a constituição da sociedade iniciada com a vontade humana criadora, adquirindo assim a sociedade personalidade jurídica.
2.3. Efeitos da personalidade jurídica
Por meio da personalidade jurídica, adquirida a partir do registro dos atos constitutivos no órgão competente, adquire a sociedade autonomia para, em nome próprio celebrar negócios jurídicos, defender seus interesses em juízo, bem como titularizar patrimônio próprio.
Fábio Ulhoa Coelho (2010, p.113-114) explicita serem três as consequências da personalização da sociedade empresária: a titularidade negocial, a titularidade processual e a responsabilidade patrimonial.
O efeito mais importante advindo da aquisição da personalidade jurídica indubitavelmente é a característica esposada pelo autor como responsabilidade patrimonial.
A sociedade personificada possui patrimônio próprio, que não se confunde com o patrimônio individual de cada um de seus sócios. Dessa forma, responde a pessoa jurídica com seu próprio patrimônio pelas obrigações que assumir. A priori, os sócios não respondem pelas obrigações da sociedade.
Desta feita, em regra, não possuem os credores pretensão sobre bens dos sócios.
Da mesma forma, via de regra, o patrimônio social não pode ser atingido por débitos particulares dos sócios.
A titularidade negocial, por seu turno, diz respeito à capacidade da sociedade para, em nome próprio, celebrar negócios jurídicos necessários ao desenvolvimento da atividade empresarial.
Embora referidos negócios jurídicos sejam realizados pelas mãos do representante legal da sociedade, não é este parte do negócio, mas sim a própria sociedade.
Outrossim, possui a sociedade titularidade processual, ou seja, tem capacidade para ser parte em processos.
Destarte, a pretensão referente a negócio da sociedade deve ser dirigida em juízo em face da própria pessoa jurídica e não de seus sócios ou representantes legais.
Marlon Tomazette (2011, p.227-228) acrescenta que por meio da personificação a sociedade empresária adquire ainda nome, nacionalidade e domicílio.
O nome empresarial é o traço identificador do empresário utilizado no exercício da atividade empresarial.
Quanto à nacionalidade, dispõe o artigo 1.126 do Código Civil de 2002 ser nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua administração.
Já o domicílio da sociedade, conforme artigo 75, inciso IV do Código Civil de 2002, é o local onde funcionam as respectivas diretorias e administrações, ou onde elegerem domicílio especial no seu estatuto ou atos constitutivos.
Destaca-se que na existência de distintos estabelecimentos, cada um é considerado domicílio para os atos nele praticados.
Em se tratando de pessoas jurídicas cujos órgãos da administração estejam situados fora do país, considerar-se-á domicílio o local de cada estabelecimento em relação aos atos praticados por cada um.
3. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
O artigo 1.024 do Código Civil de 2002 consagra o princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas.
Referido princípio se apresenta como importantíssima ferramenta para incentivar o empreendedorismo, ao passo que consagra a algumas sociedades empresárias a limitação de responsabilidade.
O ensinamento do jurista alemão Ottmar Kuhn, citado por J. Lamartine Corrêa de Oliveira na obra “A dupla crise da pessoa jurídica”, traduz bem a função da pessoa jurídica em sociedades empresárias em que há limitação de responsabilidade:
[...] o mesmo autor debruçou-se sobre a busca da determinação da função da pessoa jurídica de Direito Privado, e entendeu que a necessidade básica a que tal instituto procura dar resposta é a de conciliação entre dois interesses opostos – o dos membros, que desejam uma vinculação tão frouxa quanto possível, de modo a assegurar fácil dissolução de seu vínculo com a entidade, e limitação de seu risco individual, e o interesse de manutenção de uma continuidade do grupo, de sua base financeira, e de sua mobilidade econômica, pois tudo isso é necessário à consecução dos fins coletivos do grupo, considerados relevantes pela ordem jurídica. O caminho adequado para essa conciliação de necessidades opostas foi encontrado em uma autonomização (Verselbständigung) do grupo em face de seus membros, autonomização que se concretiza tecnicamente pelo caráter autônomo reconhecido à organização e ao patrimônio, que são destinados ao serviço das finalidades do grupo. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1979, p.259-260).
A limitação de prejuízos se apresenta como verdadeiro instrumento para incentivar o desenvolvimento de atividades econômicas produtivas, culminando na produção de empregos, aumento na arrecadação de tributos, bem como o desenvolvimento sócio-econômico pátrio.
Conforme bem explana Domingos Afonso Kriger Filho:
[...] a atribuição da personalidade corresponde assim a uma sanção positiva ou premial, no sentido de um benefício assegurado pelo direito – que seria afastado caso a atividade fosse realizada individualmente – a quem adotar a conduta desejada. (KRIGER FILHO, 1995, p.80).
A mitigação de prejuízo àquelas pessoas que comprometem parte do seu patrimônio para realização de empreendimentos mostra-se, assim, de grande valia ao desenvolvimento nacional.
De certo, revestidas pelo manto do véu da personalidade jurídica, devem as sociedades empresárias ser utilizadas para a persecução de fins acolhidos pelo direito, agindo em conformidade com o ordenamento jurídico e, sobretudo, sob os ditames da boa-fé.
Entretanto, observa-se que frequentemente tem o manto societário sido utilizado de maneira abusiva, como verdadeira forma de fraudar credores.
Desta feita, indispensável se mostrou a criação de um instrumento capaz de coibir artimanhas utilizadas sob o benefício da separação patrimonial.
Segundo o escólio de Arruda Alvim, “é justamente a desconsideração que leva a que – em casos especiais e conceituados na lei – se possa transpor o âmbito da pessoa jurídica para se chegar aos que a compõem.” (ALVIM, 2007, p.15).
3.1. Histórico
Diante da má utilização da pessoa jurídica por meio do dogma da autonomia patrimonial, buscou-se a partir do século XIX desenvolver meios idôneos para reprimir a prática de fraudes.
Embora haja discussão doutrinária sobre a origem do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, de certo, teve referido mecanismo de repressão ao abuso da personalidade jurídica origem nos países da Common Law.
A maior parte da doutrina aponta o Caso Salomon x Salomon Co. Ltd., julgado em 1897, na Inglaterra, como o primeiro caso de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.
Aaron Salomon era um comerciante individual que atuava no ramo de peles e botas. Com o passar do tempo, resolveu constituir a sociedade Salomon Co. Ltd. juntamente com seis de seus familiares, transferindo seu fundo de comércio a tal sociedade.
Ao passo que cada um de seus familiares era sócio detentor de apenas uma ação cada, Aaron Salomon detinha vinte mil ações.
Levando-se em consideração que o valor do fundo de comércio transferido à companhia superava o valor das ações subscritas por Aaron Salomon, este se tornou credor da Salomon & Co. Ltd., constituindo garantia real em seu favor.
Ocorre que após apenas um ano de funcionamento entrou a sociedade em liquidação. Como forma de proteger os interesses de credores sem garantia, pretendeu o liquidante indenização do sócio Aaron Salomon, vez que a sociedade seria na verdade a sua atividade pessoal, sendo os demais sócios fictícios.
Em sede de 1º grau, constatado que o Sr. Salomon tinha total controle societário, entendeu-se pela possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica de Salomon & Co. Ltd., impondo ao sócio majoritário a responsabilidade pelos débitos da sociedade.
Malgrado a Câmara dos Lordes tenha posteriormente reformado a decisão, entendendo pela impossibilidade da desconsideração, foi ela considerada por grande parte da doutrina a grande percussora do instituto ora estudado.
Todavia, autores como Suzy Elisabeth Cavalcante Koury (2003, p.64) entendem ser o caso Bank of United States vs Deveaux, julgado nos Estados Unidos, em 1809, o primeiro caso de aplicação de desconsideração da personalidade jurídica.
Tomazette citando Wormser, por seu turno, afirma que referido caso:
Não se trata propriamente de um leading case a respeito da desconsideração da pessoa jurídica, mas apenas de uma primeira manifestação, que olhou além da pessoa jurídica e considerou as características individuais dos sócios.
Tratava-se não de uma discussão sobre responsabilidade, autonomia patrimonial, mas de uma discussão sobre a competência da justiça federal norte-americana, a qual só abrangia controvérsias entre cidadãos de diferentes Estados. Não se podia considerar a sociedade um cidadão, então, levaram-se em conta os diversos membros da pessoa jurídica, para conhecer da questão no âmbito da justiça federal. (TOMAZETTE, 2011, p.236).
Zannoni citado por Madaleno (2013, p.39) relata que a recepção da disregard no direito continental se deveu aos estudos de Rolf Serick da jurisprudência norte-americana.
Segundo o referido autor alemão, constatado o abuso da pessoa coletiva deve o juiz abstrair da estrita separação entre os membros e a corporação. Abuso este que ocorreria quando, com o recurso à pessoa coletiva, se contorne uma lei, se viole deveres contratuais ou se prejudique fraudulentamente terceiros.
Obras que tratavam sobre o tema também foram produzidas na Itália por autores como Piero Verrúcoli, bem como na Espanha por Frederico de Castro.
No Brasil, segundo André Luiz Santa Cruz Ramos (2012, p.403), a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi introduzida por Rubens Requião, na década de 60, que a despeito da ausência de previsão legislativa, já defendia a sua aplicação.
3.2. A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica
Conforme já aludido, o ordenamento pátrio consagrou a autonomia da pessoa jurídica em relação aos seus sócios.
Malgrado referida autonomia tenha sido reconhecida de molde a satisfazer legítimas necessidades humanas, se constatou verdadeiro desvio na finalidade do ente moral, que muitas vezes passou a ser utilizado para fins fraudulentos.
Este desvio de finalidade levou a doutrina a defender que a pessoa jurídica estaria passando por crise.
O importante jurista J. Lamartine Corrêa de Oliveira defendeu que estaria a pessoa jurídica enfrentando uma dupla crise.
A primeira seria a crise do sistema, crise esta estrutural, evidenciada pela deficiência dos sistemas em reconhecer as entidades sociais como pessoas de direito.
Já a crise de função está diretamente relacionada a este desvio da finalidade da pessoa jurídica, que passa a ser utilizada para fins que não merecem ser protegidos pelo direito.
No escólio do autor:
A pessoa jurídica, realidade acidental e subordinada a esses valores reitores da ordem jurídica, existe em função de determinados fins, considerados humana e socialmente relevantes. Se um agrupamento se organiza para fins imorais (como no exemplo clássico da quadrilha de bandidos), o limite axiológico da ordem jurídica passa a ser ao mesmo tempo limite ontológico: não é possível admitir-se que a quadrilha seja pessoa jurídica. A pessoa jurídica é uma realidade que tem funções - função de tornar possível a soma de esforços e recursos econômicos para a realização de atividades produtivas impossíveis com os meios isolados de um ser humano; função de limitação de riscos empresariais; função de agrupamento entre os homens para fins religiosos, políticos, educacionais; função de vinculação de determinados bens ao serviço de determinadas finalidades socialmente relevantes. À medida, porém, que as estruturas sociais e econômicas evoluem, tipos legais previstos para determinadas funções vão sendo utilizados para outras – não previstas pelo legislador – funções. Se tais funções novas entram em contraste com os valores reitores da ordem jurídica, há uma crise da função do instituto. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1979, p.608).
Diante de mencionada crise, defende o renomado jurista ter surgido uma reação jurisprudencial e doutrinária para impedir que a pessoa jurídica seja utilizada com sucesso para finalidades antijurídicas ou imorais.
Essa reação é justamente o instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
Suzy Elisabeth Cavalcante Koury assim conceitua o instituto:
[...] a Diregard Doctrine consiste em subestimar os efeitos da personificação jurídica, em casos concretos, mas ao mesmo tempo, penetrar na sua estrutura formal, verificando-lhe o substrato, a fim de impedir que, delas se utilizando, simulações e fraudes alcancem suas finalidades, como também para solucionar todos os outros casos em que o respeito à forma societária levaria a soluções contrárias à sua função e aos princípios consagrados pelo ordenamento jurídico. (KOURY, 2003, p.86).
Da mesma forma, ensina Ana Caroline Santos Ceolin:
Representa a teoria da desconsideração remédio jurídico que possibilita aos magistrados prescindirem da estrutura formal da pessoa jurídica para tornar a sua existência autônoma, como sujeito de direitos, ineficaz em uma situação particular. A criação de tal remédio fez-se necessária dado que, com acentuada frequência, observa-se nos tribunais de vários países, o mau uso da pessoa jurídica. Consiste a desconsideração, destarte, em um instrumento jurídico usado pelos magistrados com o escopo de coibir abusos e fraudes cometidos através da pessoa jurídica pelas pessoas naturais que a constituem. (CEOLIN, 2002, p. 2).
Faz-se mister ressaltar que a decisão que mitiga a autonomia da sociedade por meio da desconsideração da personalidade jurídica é episódica, não culminando na invalidação do ato constitutivo da sociedade ou na sua dissolução. A personalidade jurídica é desconsiderada apenas no caso em julgamento.
Nas palavras de Rubens Requião, “não se trata, é bom esclarecer, de considerar ou declarar nula a personificação, mas de torná-la ineficaz para determinados atos”. (REQUIÃO, 2010, p.440).
Fábio Ulhoa Coelho elucidando o caráter episódico do instituto afirma:
Esse traço é a fundamental diferença entre a teoria da desconsideração e os demais instrumentos desenvolvidos pelo direito para a coibição de fraudes viabilizadas através de pessoas jurídicas. Antes da elaboração, sistematização e difusão da teoria, a repressão às irregularidades e abusos de forma significava, via de regra, a dissolução da pessoa jurídica. Isso, no caso de sociedades empresárias, importa o sacrifício da atividade econômica por ela explorada, o fim de postos de emprego, da geração de riquezas e tributos etc. A partir da teoria da desconsideração, podem-se reprimir as fraudes e os atos abusivos sem prejudicar interesses de trabalhadores, consumidores, fisco e outros que gravitam em torno da continuidade da empresa. (COELHO, 1994, p. 218-221).
Destarte, como bem explana Paulo Lôbo, “não se pode perder de vista que a doutrina da desconsideração da pessoa jurídica nasceu sob o prisma da excepcionalidade. Apenas em caráter excepcional é que deve ser decidida” (LÔBO, 2009, p.184)
Como salientado, a decisão judicial que aplica a disregard em um caso concreto não invalida o ato constitutivo da pessoa jurídica, apenas suspende episodicamente a eficácia desse ato.
O instituto, portanto, atua no plano da eficácia, de modo que a constituição da pessoa jurídica não produz efeitos apenas no caso em julgamento. Trata-se de verdadeiro mecanismo para se mitigar a separação patrimonial entre sociedades e sócios.
Conforme ensina J. Lamartine Corrêa de Oliveira, trata-se a disregard
da reação que os tribunais desenvolveram através de um conjunto de julgados que tiveram por ponto comum uma espécie de suspensão de vigência – para o caso concreto em julgamento – do princípio da separação entre pessoa jurídica e pessoa-membro. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1979, p.262).
É justamente o caráter episódico que diferencia a despersonalização e a desconsideração da personalidade jurídica.
Neste sentido leciona Suzy Elisabeth Cavalcante Koury:
Realmente, é apropriado deixar bem clara a distinção entre despersonalização e desconsideração da personalidade jurídica. Na primeira, visa-se à anulação da personalidade jurídica, fazendo-se desaparecer a pessoa jurídica como sujeito autônomo por lhe faltarem condições de existência, como nos casos de invalidade do contrato social ou de dissolução de sociedades. Na segunda, o que se pretende é desconsiderar a forma da pessoa jurídica, no caso particular, sem negar sua personalidade de maneira geral. (KOURY, 2003, p.88).
Constata-se que ao lecionarem sobre a disregard, alguns juristas têm confundido o instituto com as hipóteses de responsabilidade pessoal dos sócios e administradores. Quando estes extrapolam seus poderes, ao violar a lei ou o contrato social, lhes impõe a lei a responsabilidade por tais atos, o que não significa a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.
Lamartine ensina sobre os casos em que se impõe a responsabilidade pessoal de sócios e administradores:
Em tal caso, há simplesmente uma questão de imputação. Quando o diretor ou gerente agiu com desobediência a determinadas normas legais ou estatutárias, pode seu ato, em determinadas circunstâncias, ser inimputável à pessoa jurídica, pois não agiu como órgão (salvo problema de aparência) – a responsabilidade será sua, por ato seu. Da mesma forma, quando pratique ato ilícito, doloso ou culposo: responderá por ato ilícito seu, por fato próprio. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1979, p.520).
Nestes casos não se suspende a eficácia da autonomia patrimonial, posto que inexiste a manipulação da personalidade jurídica.
No escólio de Marlon Tomazette:
Nos casos dos artigos 10 e 16 do Decreto 3.708/19, 117 e 158 da Lei 6.404/76, 135 da Lei 5,175/66 (CTN) e dos artigos 1.009, 1.016 e 1.080 do Código Civil de 2002, não tratamos da desconsideração da desconsideração, nem de suas origens, como pretendem alguns. Estamos diante de hipóteses de responsabilidade civil simples dos sócios, ou administradores. Não foi a pessoa jurídica que teve sua finalidade desvirtuada, foram as pessoas físicas que agiram de forma ilícita e, por isso, têm responsabilidade pessoal. (TOMAZETTE, 2011, p. 250).
Ao diferenciar os institutos, Vinícius José Marques Gontijo defende a responsabilização indiscriminada de todos os sócios quando da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica:
Ainda extremando os institutos, a responsabilização, conforme dissemos, atinge apenas e tão somente aquele ou aqueles agentes do ilícito passíveis de serem responsabilizados (a sanção não passa do agente infrator da norma). No entanto, a desconsideração da personalidade jurídica, por ser decorrente da decretação da ineficácia da personalidade, atinge a todos: tanto o sócio majoritário quanto o minoritário; tanto o que tem poder de gestão quanto aquele que não o tenha, em suma: todos que estavam protegidos pela personalidade da sociedade. (GONTIJO, 2006, p. 50).
O entendimento do autor não nos parece ser o mais adequado. Afinal, estar-se-ia sancionando inclusive o sócio íntegro, que em muitos casos sequer conhecia do mau uso da pessoa jurídica.
Assim defende Ana Caroline Santos Ceolin:
Esse efeito, que muitos intentam atribuir à desconsideração, deve ser cabalmente censurado, eis que sujeitar alguém a uma sanção, sem que para o ato abusivo tenha concorrido, além de contrário aos ditames legais, acarretará o completo desestímulo daqueles que investem em ações sociais, comprometendo a constituição e o regular desenvolvimento de pessoas jurídicas no País.
[...]
Com essa observação, pode-se apontar um limite de ordem subjetiva à aplicação da teoria da desconsideração: nem todos os membros da pessoa jurídica, em caso de seu mau uso, terão seu patrimônio atingido, visto que apenas aqueles que concorreram para a prática do ato abusivo ou fraudulento serão responsabilizados. (CEOLIN, 2002, p. 5-6).
À luz do artigo 50 do Código Civil de 2002 depreende-se que “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
Há no direito pátrio duas formulações jurídicas acerca da desconsideração da personalidade jurídica, quais sejam a teoria maior da desconsideração e a teoria menor da desconsideração.
3.2.1. Teoria maior da desconsideração
Para a teoria maior, o simples descumprimento de uma obrigação por parte da pessoa jurídica é insuficiente para a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Condiciona-se o afastamento da autonomia patrimonial apenas quando da ocorrência de manipulação fraudulenta ou abusiva da pessoa jurídica.
Neste sentido encontra-se o seguinte julgado proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
Agravo de Instrumento - Exceção de Pré-Executividade - Redirecionamento da Execução contra os sócios por inadimplemento -Inadmissibilidade - Mero inadimplemento não tem o condão de permitir o redirecionamento da execução aos sócios - Necessidade de atendimento aos requisitos do caput do art. 135, do CTN - Não basta a mera inexistência de bens a garantir o pagamento dos débitos para se aplicar a “disregard of legal entity” - Distinção entre as Teoria Maior e Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Agravo provido.” (SÃO PAULO, 2011, grifo nosso).
Todavia, há na doutrina duas vertentes quanto aos fundamentos para se aplicar a teoria maior da desconsideração, quais sejam a vertente subjetiva e a objetiva.
A vertente conhecida como teoria subjetiva aponta o desvio da função da pessoa jurídica como pressuposto fundamental da desconsideração da personalidade. Referido desvio é constatado na fraude ou abuso de direito relativos à autonomia patrimonial.
No escólio de Fábio Ulhoa Coelho:
A teoria da desconsideração elegeu como pressuposto para o afastamento da autonomia patrimonial da sociedade empresária o uso fraudulento ou abusivo do instituto. Cuida-se, desse modo, de uma formulação subjetiva, que dá destaque ao intuito do sócio ou administrador, voltado à frustração de legítimo interesse de credor. (COELHO, 2013, p. 66-67).
Todavia, há divergência doutrinária quanto à exigência de que o intuito fraudulento do sócio ou administrador seja considerado pressuposto fundamental para aplicação do instituto.
Por outro lado, Fábio Konder Comparato é o principal expoente da teoria conhecida como maior objetiva. Segundo o autor, é a confusão patrimonial o requisito primordial da desconsideração da personalidade jurídica.
Referida confusão está ligada à ideia da inobservância de separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e o patrimônio dos sócios ou administradores.
Decerto, a demonstração da confusão patrimonial facilita a comprovação probatória do demandante se comparada às provas exigidas para se demonstrar o animus fraudulento de sócios e administradores.
Todavia, não se deve limitar a possibilidade de aplicação do instituto à referida confusão patrimonial, vez que em certos casos tal confusão pode até mesmo não significar desvio na utilização da pessoa jurídica.
Caracterizada a fraude, não se deve deixar de aplicar o instituto pelo simples fato de não se demonstrar a confusão entre o patrimônio dos sócios e da sociedade.
Neste sentido bem leciona Marlon Tomazette:
Sem sombra de dúvida, a confusão patrimonial é um sinal que pode servir, sobretudo, de meio de prova, para se chegar à desconsideração, mas não é o seu fundamento primordial. A confusão patrimonial não é por si só suficiente para coibir todos os casos de desvio da função da pessoa jurídica, pois há casos nos quais não há confusão de patrimônios, mas há o desvio da função da pessoa jurídica, autorizando a superação da autonomia patrimonial. Outrossim, há casos em que a confusão patrimonial provém de uma necessidade decorrente da atividade, sem que haja um desvio na utilização da pessoa jurídica. (TOMAZETTE, 2011, p. 241).
Também defendendo a adoção da acepção subjetiva para a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade explana Fábio Ulhoa Coelho:
Em suma, entendo que a formulação subjetiva da teoria da desconsideração deve ser adotada como o critério para circunscrever a moldura de situações em que cabe aplicá-la, ou seja, ela é a mais ajustada à teoria da desconsideração. A formulação objetiva, por sua vez, deve auxiliar na facilitação de prova pelo demandante. Quer dizer, deve-se presumir a fraude na manipulação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica se demonstrada a confusão entre os patrimônios dela e de um ou mais de seus dirigentes, mas não se deve deixar de desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, somente porque o demandado demonstrou ser inexistente qualquer tipo de confusão patrimonial, se caracterizada, por outro modo, a fraude. (COELHO, 2013, p. 66-67).
3.2.2. Teoria menor da desconsideração
Segundo a teoria menor, tão somente a demonstração da insolvência da sociedade empresária e a não satisfação do crédito é suficiente para aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
Torna-se despicienda a comprovação de elementos subjetivos de fraude ou abuso de direito, bem como do elemento objetivo da confusão entre os patrimônios da sociedade e de um ou mais de seus sócios ou administradores.
Em decorrência da constatação de hipossuficiência em algumas relações jurídicas, como relações de trabalho e consumo, tem sido aplicada a referida teoria.
O próprio Superior Tribunal de Justiça já se posicionou pela excepcionalidade da aplicação da teoria menor.
No Recurso Especial de nº 279.273/SP, por exemplo, decidiu-se que no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide o instituto da desconsideração da personalidade jurídica com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial:
Responsabilidade civil e Direito do consumidor. Recurso especial. Shopping Center de Osasco-SP. Explosão. Consumidores. Danos materiais e morais. Ministério Público. Legitimidade ativa. Pessoa jurídica. Desconsideração. Teoria maior e teoria menor. Limite de responsabilização dos sócios. Código de Defesa do Consumidor. Requisitos. Obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Art. 28, § 5º.
- Considerada a proteção do consumidor um dos pilares da ordem econômica, e incumbindo ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, possui o Órgão Ministerial legitimidade para atuar em defesa de interesses individuais homogêneos de consumidores, decorrentes de origem comum.
- A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).
- A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.
- Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica.
- A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. - Recursos especiais não conhecidos. (BRASIL, 2003, grifo nosso).
Decerto, temerária seria a aplicação da teoria menor indiscriminadamente. O princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, além de já consagrado, mostra-se indispensável para incentivar o exercício da atividade de empresa, que como já se viu, traz grandes benefícios à sociedade.
Desta feita, prevalece a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica. Devendo a teoria menor ser excepcionalmente aplicada em situações pertencentes ao ramo do Direito do Consumidor e do Direito Ambiental.
4. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Conforme já elucidado, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica consiste na técnica que permite que episodicamente se possa ignorar os efeitos da personificação jurídica em um caso concreto, de molde a evitar que a personalidade jurídica seja utilizada de forma a prejudicar o interesse de credores.
A doutrina e nossos Tribunais postam-se indubitavelmente a favor da aplicação da disregard em sua forma convencional.
Entretanto, não se encontra positivada a possibilidade de aplicação do instituto de forma inversa, de modo a permitir que a pessoa jurídica, eventualmente, responda por obrigações pessoais de um ou mais de seus integrantes.
Desta feita, constata-se verdadeira divergência na doutrina e nos tribunais quanto à possibilidade da aplicação do instituto.
4.1. Conceito
A Ministra Nancy Andrighi, no julgamento do Recurso Especial 948.117/MS, bem definiu o instituto:
[...] a desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio. (BRASIL, 2010).
Ana Caroline Santos Ceolin, por seu turno, define o instituto como:
[...]o instrumento jurídico que permite prescindir da personalidade e da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, para responsabilizá-la por obrigação pessoal do sócio. Enquanto a teoria da desconsideração da pessoa jurídica propriamente dita aplica-se às hipóteses em que se pretende responsabilizar pessoalmente os sócios por atos praticados em nome da sociedade, a denominada ‘desconsideração inversa’ busca atingir o ente coletivo, onerando o seu patrimônio por dívidas pessoais de seus membros. (CEOLIN, 2002, p. 127).
Tal técnica tenta combater atitudes do sócio que se vale da sociedade para esconder patrimônio próprio, bem como utiliza o ente personificado para gerir sua própria vida.
Constata-se que a razão de ser da técnica é a mesma da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, qual seja combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, sancionando, dessa forma, o abuso da personalidade jurídica.
Neste sentido encontra-se o julgado proferido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO - DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA - IMPOSSIBILIDADE - REQUISITOS DO ARTIGO 50 DO CC - NÃO CUMPRIMENTO - AUSÊNCIA DE PROVA - DECISÃO REFORMADA.
1) - PARA A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA SÃO APLICADOS OS MESMOS PRINCÍPIOS DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA PROPRIAMENTE DITA.
2) - NÃO FICANDO DEMONSTRADO QUE PRESENTES OS REQUISITOS PREVISTOS NO ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL, INCABÍVEL A PLEITEADA MEDIDA.
3) - A AUSÊNCIA DE BENS PASSÍVEIS DE CONSTRIÇÃO NÃO É SUFICIENTE, POR SI SÓ, PARA A ADOÇÃO DA RETIRADA MOMENTÂNEA E EPISÓDICA DA AUTONOMIA PATRIMONIAL EMPRESA DA QUAL É SÓCIA A DEVEDORA.
4) - AGRAVO CONHECIDO E PROVIDO. (DISTRITO FEDERAL, 2014, grifo nosso).
4.2. Aplicabilidade
Como salientado, não há unanimidade quanto à possibilidade de aplicação da desconsideração inversa.
Fábio Ulhoa Coelho defende ser possível aplicar o instituto:
A teoria da desconsideração visa coibir fraudes perpetradas através do uso da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Sua aplicação é especialmente indicada na hipótese em que a obrigação imputada à sociedade oculta uma ilicitude. Abstraída, assim, a pessoa da sociedade, pode-se atribuir a mesma obrigação ao sócio ou administrador (que, por assim dizer, se escondiam atrás dela), e, em decorrência, caracteriza-se o ilícito. Em síntese, a desconsideração é utilizada como instrumento para responsabilizar sócio por dívida formalmente imputada à sociedade. Também é possível, contudo, o inverso: desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação de sócio (Bastid-David-Luchaire, 1960:47). (COELHO, 2006, p. 44).
Diversamente desse ponto de vista, Ana Caroline Santos Ceolin entende não ser cabível a utilização da desconsideração inversa:
É incorreto aplicar a teoria da desconsideração da pessoa jurídica aos casos de transferência de bens pessoais do sócio para a sociedade. Não é preciso desconsiderar a personalidade do ente social, para se obter a restituição dos bens fraudulentamente alienados, de modo a recompor o acervo patrimonial do sócio sujeito a processo executório. Deve-se atacar, através da ação pauliana, o ato negocial que possibilitou a sua transferência e não a sociedade, que, embora tenha agido como terceiro, não teve sua finalidade desviada para obtenção de fins escusos. (CEOLIN, 2002, pg. 153).
Decerto, na situação esposada pela autora inegavelmente seria possível a propositura de uma ação pauliana.
Como se sabe, da fraude contra credores decorre a anulabilidade do negócio jurídico. A procedência da ação pauliana, no caso apresentado, possuiria natureza desconstitutiva do negócio jurídico, de forma que a fraudulenta transferência de bens seria anulada, determinando-se o retorno do bem, maliciosamente alienado, ao patrimônio do sócio.
Todavia, o simples fato de existir mecanismo positivado para combater a fraude supramencionada não refuta a possibilidade de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica em sua forma inversa.
A não positivação no ordenamento pátrio não pode ser vista como óbice à aplicação do instituto. Afinal, é notório que a própria desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita prescinde de fundamentos legais. A simples usurpação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica possibilita a aplicação do instituto.
A autonomia da pessoa jurídica está diretamente ligada à sua personalidade jurídica. Posto que possuem necessária relação de causa e efeito, ambas indispensavelmente devem existir concomitantemente.
Desta feita, nada mais justo do que ao se deparar com uma pessoa jurídica que não seja autônoma em relação a seus sócios, que se desconsidere sua própria personalidade, posto que não há de se falar em personalidade jurídica sem autonomia.
O ensinamento da jurista Suzy Elisabeth Cavalcante Koury para defender a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica em momento anterior à disposição do instituto no Código Civil de 2002, se mostra de grande valia para se compreender a possibilidade de aplicar o instituto na modalidade inversa.
Valendo-se da noção aristotélica de equidade, leciona a autora que quando a autonomia da pessoa jurídica em relação aos seus sócios é utilizada de forma a produzir efeitos distintos das valorações que inspiraram a criação da norma, ou que inspiram em geral o ordenamento jurídico positivo, não deve o aplicador do Direito se valer da norma que consagrou a autonomia:
Assim, sempre que surgirem novos casos, em relação aos quais a aplicação de uma determinada norma geral produziria efeitos diversos e, até mesmo, contrários aos efeitos previstos pelo legislador ao elaborá-la, não há por que aplicar a norma em questão, sob pena de chegar-se a um resultado contrário ao direito. (KOURY, 2003, p.75).
Desta feita, constata-se que a simples usurpação da norma que consagra a autonomia da pessoa jurídica possibilita o afastamento de sua aplicação, a fim de atender à exigência da justiça que direciona o Direito.
Ademais, defende a autora que a aplicação da disregard sem previsão expressa não levaria o judiciário a cometer arbitrariedades, posto que o juiz deve sempre decidir com base na Constituição, nos princípios fundamentais do ordenamento jurídico ou buscando sua correspondência em regulamentações legais efetivamente existentes.
Assim conclui Suzy Elisabeth Cavalcante Koury:
Assim, no caso do emprego da Disregard Doctrine, ao decidir que os resultados práticos da aplicação da norma, que considera a pessoa jurídica distinta da pessoa dos seus membros, produziriam, em uma determinada situação real, efeitos que estariam em contradição com os valores segundo os quais foi modelado o ordenamento jurídico positivo e, por esse motivo, afastar a sua utilização, o juiz não age arbitrariamente e nem compromete os valores de certeza e segurança. (KOURY, 2003, p.78).
O fato de que muito antes de qualquer positivação o instituto já vinha sendo aplicado pelos tribunais pátrios comprova a prescindibilidade de fundamentação legal. Um exemplo disso foi o julgado proferido pelo Juízo da 11ª Vara Cível do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, em 25 de fevereiro de 1960:
ABUSO DE DIREITO POR MEIO DE SOCIEDADE ANÔNIMA — DIRETOR OU ACIONISTA QUE SE SERVE DA SOCIEDADE PARA BURLAR A LEI, VIOLAR OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS OU PREJUDICAR FRAUDULENTAMENTE TERCEIROS — NESSES CASOS, PODE-SE, OU NÃO, PRESCINDIR DA EXISTÊNCIA DA SOCIEDADE E CONSIDERAR O ATO COMO SE FOSSE PRATICADO DIRETAMENTE PELO ACIONISTA SOBERANO INTERESSADO.
— É pacífico, assim na doutrina como na jurisprudência estrangeiras, que se deve, se o diretor ou acionista se serve fraudulentamente da sociedade para fins pessoais, prescindir da existência da sociedade e considerar o ato como se fosse praticado diretamente pelo acionista soberano interessado. Isso porque, se uma pessoa natural contraiu determinada obrigação de fazer ou não-fazer, não pode subtrair-se ao seu cumprimento por via de sua ocultação atrás de uma sociedade anônima, pois, se tal ocorrer, o juiz, entendendo que a estrutura formal da pessoa jurídica foi utilizada de maneira abusiva, prescindirá da regra fundamental que estabelece a separação radical entre a sociedade e os sócios, a fim de que não vingue o resultado contrário ao direito que se tem em vista. Existe um abuso quando se trata, com a ajuda da pessoa jurídica, de burlar a lei, violar obrigações contratuais ou prejudicar fraudulentamente terceiros. Supera-se, daquele modo, a forma externa da pessoa jurídica, para alcançar as pessoas e bens que sob seu manto se escondera. A investigação se situa, portanto, dentro da chamada concepção «realista» da pessoa jurídica, a qual entende que é possível e até obrigatório «atravessar a cortina daquele conceito formal», que estabelece uma radical separação entre a pessoa jurídica e os membros que a integram, para julgar os fatos mais de acordo com a realidade, de maneira que permita evitar ou corrigir perigosos desvios na sua utilização. Em face da exaltação da pessoa jurídica como pura forma de organização, ganha terreno hoje em dia a idéia de que é necessário impor-lhe limitações de ordem moral e ética, como freio ante possíveis desvios em sua utilização. Já se começa a afirmar que não basta o frio e externo respeito aos pressupostos assinalados pela lei, para permitir que se oculte alguém sob a máscara da pessoa jurídica e desfrute de seus inegáveis benefícios. Acredita-se ter sido encontrado pelos autores e pela jurisprudência o remédio, para esses desvios no uso da pessoa jurídica, na possibilidade de prescindir da sua estrutura formal para nela «penetrar» até descobrir seu substrato pessoal e patrimonial, pondo assim a descoberto os verdadeiros propósitos dos que se amparam sob aquela armadura legal. (DISTRITO FEDERAL, 1960).
Neste sentido, afirma Coelho:
[...] é pacífico na doutrina e na jurisprudência que a desconsideração da personalidade jurídica não depende de qualquer alteração legislativa para ser aplicada, na medida em que se trata de instrumento de repressão a atos fraudulentos. Quer dizer, deixar de aplicá-la, a pretexto de inexistência de dispositivo legal expresso, significaria o mesmo que amparar a fraude. (COELHO, 2013, p. 60).
Do mesmo modo, não se deve negar a possibilidade de aplicação da desconsideração na modalidade inversa sob o fundamento de inexistência de regulamentação para tal. Afinal, quando o sócio se vale da pessoa jurídica para fraudar credores particulares está da mesma forma usurpando da autonomia patrimonial da sociedade empresária.
Outrossim, ainda que se cogite da indispensabilidade de previsão legal do instituto, por uma simples interpretação teleológica do artigo 50 do Código Civil de 2002 se conclui pela possibilidade de aplicá-lo em um caso concreto.
Como se sabe, o artigo 5º da Lei de Introdução de 1942 determina que na aplicação da lei, o juiz deve atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
Por meio de tal dispositivo, consagrou-se a aplicação do método teleológico na interpretação do direito pátrio.
A partir de tal método deve o intérprete examinar os fins que a lei vai realizar, devendo tais fins atender aos interesses da coletividade.
De certo, a finalidade do artigo 50 do Código Civil de 2002 foi justamente coibir que o ente moral autônomo seja utilizado para lesar credores.
Desta feita, a partir do instante que a sociedade empresária deixa de ser autônoma no campo fático, posto que utilizada para gerir a vida dos sócios, fraudando credores particulares destes, possível se torna aplicar a desconsideração inversa para salvaguardar direitos dos credores.
Neste sentido tem se posicionado o Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL. ART. 50 DO CC/02. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. POSSIBILIDADE.
[...]
IV – Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma. (BRASIL, 2010).
A prova de que a não positivação no ordenamento pátrio não pode ser vista como óbice à aplicação da desconsideração inversa ocorreu com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil.
Embora não haja norma regulamentando os requisitos para a aplicação do instituto, o Código de Processo Civil de 2015 consolidou o entendimento da jurisprudência pátria, permitindo que os dispositivos relacionados ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica sejam também aplicados aos casos de desconsideração inversa da personalidade jurídica:
Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
§ 1o O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
§ 2o Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Vale ressaltar que a aplicação da desconsideração inversa tem sido, por exemplo, indispensável no combate de fraudes em lides familiaristas.
Neste ramo do direito, diversas são as condutas utilizadas para se desviar bens com o fito de fraudar a meação do cônjuge ou companheiro, bem como de se evitar medidas de constrição na realização do crédito alimentar, a partir do uso indevido do véu societário.
Arnaldo Rizzardo bem elenca usuais expedientes do mau uso societário:
a) a aparente retirada de um cônjuge da sociedade da qual faz parte, às vésperas da separação conjugal; b) a transferência da participação societária a outro sócio, ou mesmo a estranho, com o retorno depois da separação; c) a alteração do estatuto social, com a redução das quotas ou patrimônio da sociedade; d) transformação de um tipo de sociedade em outro, como de sociedade por quotas em anônima; e) a redução do valor das ações ou das quotas, para uma estimativa acentuadamente menor que a dos bens levados à sociedade, quando da constituição ou do ingresso em seu quadro; f) a transferência de bens particulares ou do casal para a sociedade, como de veículos, escritórios, apartamentos; g) a cisão da sociedade, dando-se a transferência de parte do patrimônio para outra sociedade; h) a extinção da sociedade através da dissolução parcial ou total, seja judicialmente ou meramente de fato; i) a repentina redução do pro labore dos sócios; j) a sonegação dos rendimentos, através de omissões nos lançamentos contábeis, ou o aumento injustificado e sem elementos comprovados de obrigações sociais; k) a reduzida participação social do alimentante, em contrapartida à absorção da maioria do capital por outros sócios, embora a sua notória importância no funcionamento da sociedade; l) a sua presença na sociedade como procurador ou mandatário com plenos poderes, sem participar de quotas, exercendo o comando geral, e constando ínfimo pagamento pela atividade que exerce. (RIZZARDO, 2004, p. 56).
Nas relações familiares deve sempre prevalecer o dever de respeito e estima.
A fraude à meação patrimonial perpetrada por um cônjuge ou companheiro em prejuízo do outro fere gravemente este dever. Do mesmo modo, atenta contra este dever aquele que tenta burlar os alimentos de seus dependentes, ao falsear uma realidade financeira para fazê-la parecer diminuta, ou se valer da pessoa jurídica para desviar bens possíveis de serem atingidos para adimplir o crédito alimentar.
Vez que no Direito de Família prevalece uma constante relação de confiança, o patrimônio comum de cônjuges e conviventes se torna um alvo fácil para a prática de fraudes. Assim, indispensável a existência de um mecanismo eficiente e simplificado para coibir a maléfica prática.
Da mesma forma, a imprescindibilidade dos alimentos exige uma rápida solução do Estado para coibir fraudes, sem que se precise recorrer às vias jurídicas da simulação, revogação, bem como ações que visem à anulação de atos jurídicos decorrentes do uso abusivo do véu societário.
O instituto da disregard na modalidade inversa se mostra como uma descomplicada e importante técnica para impedir que a sociedade empresária, de indiscutível valia à comunidade, seja utilizada para a prática de fraudes.
Constata-se um crescente número de julgados aplicando o instituto não só no Direito de Família quanto nos distintos ramos do Direito.
Desta feita, conclui-se pela possibilidade de aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica. Referida técnica deve ser aplicada, tal qual ocorre na desconsideração direta, quando constado o abuso do direito à personificação.
5. CONCLUSÃO
Constata-se embate doutrinário quanto à possibilidade de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica na modalidade inversa.
Neste âmbito, ao contrário do que defende parte da doutrina, filio-me à corrente que aponta a possibilidade da aplicação do instituto.
A inexistência de regulamentação no ordenamento pátrio de requisitos de aplicação não pode ser vista como óbice à utilização da técnica, posto que por uma simples interpretação teleológica do artigo 50 do Código Civil de 2002 se conclui pela possibilidade de aplicá-la em um caso concreto.
É justamente essa não obrigatoriedade de regulamentação que permitiu que o Código de Processo Civil de 2015 consolidasse o entendimento da jurisprudência pátria, dispondo explicitamente que os dispositivos relacionados ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica sejam também aplicados nos casos de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Referida técnica possui importância sobretudo em lides familiaristas.
É indispensável a existência de um mecanismo eficiente e simplificado para coibir fraudes à meação patrimonial e ao dever de prestar alimentos.
O instituto da disregard na modalidade inversa se mostra como uma descomplicada e importante técnica para impedir que a sociedade empresária, de indiscutível valia à comunidade, seja utilizada de maneira fraudulenta.
Diante do exposto, conclui-se pela possibilidade de se aplicar a desconsideração inversa nas situações em que se use indevidamente das sociedades empresárias para a prática de fraudes.
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Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DRUMMOND, Filipe Rocha. A possibilidade de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica inversa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51661/a-possibilidade-de-aplicacao-da-desconsideracao-da-personalidade-juridica-inversa. Acesso em: 05 nov 2024.
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