Resumo: O presente trabalho tem por finalidade uma análise singela e objetiva da origem, do conceito e das principais características da jurisdição, a fim de defini-la como uma função do Estado e diferencia-la do instituto da arbitragem, regulado pela Lei nº 9.307/96. A temática sob estudo requer a compreensão da Teoria Geral do Processo e objetiva propor uma reflexão acerca do princípio da inafastabilidade da jurisdição, com vistas à conclusão de que a arbitragem, embora muito bem-vinda como forma alternativa de solucionar conflitos, acaba por exclui-los do controle jurisdicional.
Palavras-chave: Teoria Geral do Processo. Processo Civil. Jurisdição. Arbitragem.
Antes da concepção do Estado Moderno, ou seja, quando ainda não havia separação entre os poderes, a jurisdição não era vista como uma atividade a ser desempenhada pelo Estado.
As próprias partes envolvidas num conflito o resolviam através da força ou submetiam-no ao exame de um cidadão comum, o qual não possuía vínculo funcional com o Estado, para que propusesse uma solução para o impasse. A tal cenário deu-se o nome de ordem jurídica privada.
Após o advento do Estado Moderno, mais precisamente o Estado Constitucional, este tomou para si o poder-dever de compor os litígios, aplicando a lei – de aplicabilidade geral e abstrata – aos casos concretos. Esta incumbência, atribuição ou função estatal denomina-se jurisdição.
A jurisdição, do latim jurisdictio (dizer o direito), compreende a responsabilidade assumida pelo Estado de solucionar os conflitos sociais. É expressão do princípio do acesso à justiça, também conhecido como princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, esculpido no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
Referido princípio garante a qualquer pessoa o direito de provocar o Poder Judiciário, a fim de que este atue na defesa de direitos violados ou ameaçados. Uma vez ajuizada a ação, instaurado o processo, nasce para o Estado o dever da prestação jurisdicional.
Segundo Marcus Vinicius Rios Gonçalves, “o poder jurisdicional foi atribuído ao Estado-juiz, que tem capacidade de impor as suas decisões, com força obrigatória. A lei atribuiu ao julgador poderes para fazer valer as suas decisões, em caráter coativo”.
Renomado doutrinador ensina que a jurisdição se distingue das outras funções do Estado pela peculiaridade de suas características, quais sejam, a substitutividade, a imperatividade, a inafastabilidade e a indelegabilidade.
Por substitutividade entende-se que a decisão imposta pelo Estado-juiz se sobrepõe à vontade das partes, estabelecendo qual interesse deve prevalecer. A decisão judicial, portanto, decorre da necessidade vislumbrada pelos particulares de recorrer à ajuda de um terceiro imparcial que, de forma unilateral e impositiva, colocará fim ao litígio, substituindo a vontade daqueles que, sozinhos, não conseguem resolver suas diferenças através do consenso.
Da imperatividade infere-se que as decisões judiciais têm força, são obrigatórias, de modo que o Poder Judiciário detém mecanismos e instrumentos coativos para fazer valer suas decisões, isto é, para que estas sejam cumpridas pelos particulares.
A inafastabilidade decorre do comando expresso no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, aqui já mencionado, o qual determina que nenhuma lesão, ofensa ou ameaça a direito poderá ser excluída da apreciação do Poder Judiciário.
Ora, a função jurisdicional só pode ser exercida pelo Poder Judiciário e dele não poderá ser usurpada. Da mesma maneira, tal função não pode ser delegada a outro órgão, motivo pelo qual se fala em indelegabilidade da jurisdição.
Diante dessas considerações, importante se faz o estudo do instituto da arbitragem, a fim de esclarecer se este tem natureza jurídica jurisdicional e se insere no conceito de jurisdição ora analisado.
Em primeiro lugar, cumpre dizer que a arbitragem se trata de um meio alternativo de solução de conflitos, regulamentado pela Lei nº 9.306/97, sem qualquer intervenção estatal. Os particulares, em comum acordo, elegem um terceiro, a quem se dá o nome de árbitro, para que este promova o julgamento de eventuais litígios sobre direitos disponíveis.
Como se vê, a arbitragem tem origem contratual, decorre de uma convenção privada, sendo extrajudicial e, por tal razão, remete à ordem jurídica privada mencionada no início deste texto.
Embora a sentença arbitral tenha a mesma eficácia de uma sentença judicial, pois constitui titulo executivo judicial (art. 515, VII, do CPC), certo é que, em caso de descumprimento, a parte prejudicada se valerá do procedimento de execução previsto no Código de Processo Civil e, portanto, lançará mão da máquina judiciária.
Isto significa dizer que o juízo arbitral não tem como característica a imperatividade, pois não possui mecanismos próprios para garantir o cumprimento de suas decisões, devendo recorrer ao Poder Judiciário, este sim munido de ferramentas coercitivas.
Outra diferença flagrante entre a arbitragem e a função jurisdicional é que, nesta, vige o princípio da publicidade, enquanto naquela o procedimento é revestido pelo princípio da confidencialidade.
Neste sentido, a arbitragem não pode ser considerada uma forma de inafastabilidade do controle jurisdicional, haja vista que a solução dos conflitos se opera de forma privada, sem a intervenção do Estado-juiz.
Dessa forma, a função de aplicar o direito ao caso concreto acaba sendo usurpada pelo árbitro, a quem foi conferida legitimidade pelas partes em comum acordo, sendo certo que o mérito de sua decisão não poderá ser revisto pelo Poder Judiciário (art. 18 da Lei nº 9.307/96).
Ademais, o artigo 3º do Código de Processo Civil prevê a inafastabilidade do controle jurisdicional, com exceção da arbitragem, assentando o entendimento de que esta não tem natureza jurisdicional e não se insere no conceito de jurisdição.
O aludido artigo também admite a existência de métodos alternativos de solução de conflitos como a conciliação e a mediação. Confira-se:
Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
§ 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.
§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.
§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
Na mesma toada, o artigo 42 da legislação processual civil estabelece que “as causas cíveis serão processadas e decididas pelo juiz nos limites de sua competência, ressalvado às partes o direito de instituir juízo arbitral, na forma da lei”, enfatizando que a instituição do juízo arbitral exclui a possibilidade de apreciação do caso pelo Poder Judiciário.
Portanto, a opção pelo juízo arbitral é faculdade das partes, assegurada por lei, a qual, por via de consequência, implica na renúncia ao controle jurisdicional.
Desse modo, embora acertadamente aceita como meio alternativo de solução de conflitos, a arbitragem não se enquadra no conceito de jurisdição e, inclusive, afasta o controle jurisdicional exercido pelo Estado de suas decisões.
Precisa estar logado para fazer comentários.