Resumo: O objetivo do presente artigo é analisar os problemas decorrentes da publicação irrestrita de informações oriundas de demandas trabalhistas na internet. O principal enfoque é voltado para as repercussões geradas no acesso ao emprego, bem como o estudo dessa situação à luz do aparente conflito de valores constitucionais como o direito ao trabalho, o direito à privacidade e o direito público à informação.
Palavras-chave: Acesso ao emprego. Direito à privacidade. Direito ao trabalho. Direito à informação.
Sumário: 1. Introdução; 2. O direito fundamental ao trabalho; 3. Discriminação no acesso ao trabalho: o direito à privacidade do trabalhador ameaçado pela publicação de informações de processos judiciais na internet; 4. A possibilidade de harmonização dos direitos fundamentais em aparente conflito; 5. Conclusão; Referências.
1. Introdução
A revolução digital proporcionou inúmeros avanços à humanidade em praticamente todas as áreas do conhecimento, modificando radicalmente o modo de vida ao redor do planeta. Vivemos a chamada “era da informação”, em que a comunicação ocorre de forma remota e instantânea e proporciona infinitas possibilidades a todos aqueles que possuem instrumentos digitais – que são cada vez mais acessíveis.
Essa nova realidade trouxe grandes impactos às relações de emprego, seja através da automação do trabalho e extinção de profissões outrora relevantes à sociedade, seja pelo surgimento de novas profissões ou, ainda, pela verdadeira transformação verificada na forma de execução do trabalho humano.
Sem muitos esforços, percebe-se que essa nova realidade irresistível trouxe aspectos positivos e negativos à seara trabalhista, de forma que o único caminho aos atores das relações laborais é a adaptação. Também o Direito do Trabalho deve se adaptar através da reformulação de antigos institutos e da criação de novas fórmulas necessárias à tutela do empregado hipossuficiente – seu principal escopo.
Diante desse panorama, tem-se percebido que recentemente vêm surgindo sítios eletrônicos que possibilitam pesquisas exaustivas acerca da vida pessoal de qualquer indivíduo. Através de uma simples busca pelo nome, consegue-se consultar endereços, currículo, histórico profissional e até mesmo os processos judiciais vinculados àquela pessoa.
Surge-se, então um problema: através de um clique, é possível ao empregador verificar se determinado candidato a uma vaga de emprego possui reclamações trabalhistas ajuizadas em face de seus antigos patrões.
Em razão disso, buscar-se-á analisar esse patente conflito entre o direito ao trabalho e à privacidade do empregado em conflito com a necessária publicidade do processo judicial e o direito público à informação, para, ao final, propor uma solução razoável, a fim de conciliar esses bens jurídicos e proteger o trabalhador de discriminações pré-contratuais.
2. O direito fundamental ao trabalho
A ideia de direito ao trabalho fui constituída no seio da sociedade liberal, em contraposição à estática fórmula de labor vivenciada nas corporações de ofício durante os regimes absolutistas. Surgiu, portanto, como um direito à abstenção estatal na autodeterminação do indivíduo quanto à utilização de sua força de trabalho. Nesse momento, estava intrinsicamente ligado ao direito de liberdade.
Foi com esse sentido, inclusive, que ele foi garantido pela primeira Constituição brasileira, a imperial, de 1821:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
(...)
XXIV. Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou commercio póde ser prohibido, uma vez que não se opponha aos costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos.
No entanto, em razão da grave crise social gerada pela desigualdade decorrente do liberalismo clássico, esse direito ganhou uma nova roupagem no início do século XX e com o advento dos direitos fundamentais de segunda dimensão.
Na busca pela igualdade material, o Estado passou a assumir o papel de provedor de ações afirmativas, como a prestação de serviços de saúde e educação. Foi nesse panorama que o direito ao trabalho passou a ser visto como um direito social, diante da necessidade de intervenção estatal para garantir o acesso dos mais carentes ao labor em condições dignas.
Sob esse viés, debutou no ordenamento jurídico pátrio através da Constituição de 1934, que, em seu art. 113, 34, estabelecia que a todos cabe o direito de prover à própria subsistência e à de sua família, mediante trabalho honesto, devendo o Poder Público amparar os que estivessem em situação de indigência.
Dentro desse caráter social, o direito ao trabalho é analisado sob o enfoque do direito de acesso a uma relação de emprego ou de trabalho em sentido amplo e o direito à necessária formação profissional.
Portanto, atualmente, entende-se o direito ao trabalho como direito fundamental amplo, compreendendo tanto seu aspecto de liberdade negativa, como sua natureza de direito social. Ressalte-se que a Constituição da República de 1988 encampou esses dois sentidos, conforme se vislumbra do art. 5º, XIII, e do caput do art. 6º.
Além disso, a nova ordem constitucional, que possui o princípio da dignidade humana como seu vetor axiológico, admite o valor social do trabalho como um dos seus fundamentos e como condicionante – sob os ditames da justiça social – do exercício da ordem econômica (art. 170, caput).
3. Discriminação no acesso ao trabalho: o direito à privacidade do trabalhador ameaçado pela publicação de informações de processos judiciais na internet
O gozo do direito fundamental ao trabalho, em seu aspecto social, deve ser garantido pelo Estado. Para tanto, são necessárias políticas públicas com a finalidade de incentivar a formação profissional e a criação de postos de trabalho, no âmbito do Poder Executivo; ao tempo em que o Legislativo deve editar Leis que as facilitem o exercício desse direito; e, por fim, cabe ao Poder Judiciário coibir eventuais abusos ou ilicitudes que dificultem o acesso ao labor.
Dentre essas dificuldades, o direito ao trabalho é fortemente afetado por um sério problema social: a discriminação. Essa odiosa prática, enraizada na humanidade desde tempos remotos, é um obstáculo ao acesso ao trabalho de grupos sociais e de pessoas em situações específicas. Sobre a discriminação, assim leciona Gustavo Felipe Barbosa Garcia:
A discriminação, ao contrariar o princípio da igualdade, significa o tratamento desigual, sem razoabilidade, nem justificativa lógica, isto é, a diferenciação prejudicial e sem parâmetros legítimos.
Não há, portanto, como se garantir o direito ao trabalho sem proporcionar a isonomia entre os trabalhadores, o que inclui a garantia de vedação a práticas discriminatórias. Diante do potencial lesivo destas, a ordem jurídica atual foi estruturada para combater veementemente esse comportamento.
Note-se que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme se infere do inciso IV do art. 3º da Constituição. Além disso, nossa Lei Maior veda qualquer tipo de preconceito de forma geral (art. 5, XLI) e de forma específica nas relações de emprego (art. 7, XXX, XXXI e XXXII).
Na esfera infraconstitucional, destaca-se a Lei n. 9.029/95, que estabelece ser proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros.
Internacionalmente, a Convenção 111 da OIT, internalizada através do Decreto n. 62.150/68, rechaça qualquer discriminação em matéria de emprego e ocupação.
Pois bem, para proporcionar essa igualdade e evitar possíveis discriminações, sustenta-se que o trabalhador deve ter outro direito fundamental respeitado, o da privacidade (art. 5º, X, da CRFB/88), a fim de evitar que o empregador tenha acesso a informações relativas à sua vida privada, que geralmente são irrelevantes ao exercício do labor, mas que possam suscitar estigma ou preconceito – preferências políticas e religiosas, opção sexual, histórico criminal etc.
Dentre essas informações, uma, infelizmente, está ligada à cidadania do trabalhador: o exercício do seu direito constitucional de ação. Isso ocorre porque alguns empregadores, ao tomarem ciência de que o trabalhador acionou seu antigo patrão perante a Justiça do Trabalho, tendem a optar pela não contratação.
É por esse motivo que os distribuidores trabalhistas não fornecem certidões com a relação de processos ajuizados por determinado trabalhador, e porque se evita fazer qualquer referência à reclamação trabalhista em anotações de CTPS realizadas pela Secretaria das Varas do Trabalho (art. 39 da CLT).
Esse problema, contudo, tem-se evidenciado por uma situação nova, decorrente do atual estágio de desenvolvimento da tecnologia, especificamente da internet. Alguns sites eletrônicos, a exemplo do Escavador (http://www.escavador.com) e do Jusbrasil (http://www.jusbrasil.com.br). Os avançados sistemas de buscas dessas ferramentas possibilitam consultas amplas em nome de qualquer pessoa, e utilizam como banco de dados os diários eletrônicos do Poder Judiciário.
Por conseguinte, qualquer empregador consegue verificar instantaneamente a existência de demandas trabalhistas ajuizadas pelos pretensos candidatos à vaga oferecida, bastando, para isso, que tenham acesso à rede mundial de computadores. Perceba-se: não é mais necessário possuir o número do processo, tampouco realizar uma consulta geralmente restrita nos sítios dos Tribunais.
Essa situação, evidentemente, prejudica o acesso ao mercado de trabalho daqueles que apenas exerceram um direito constitucionalmente garantido e cria notória discriminação.
Todavia, a rigor, esses sites não estão cometendo qualquer ilicitude, tendo em vista que apenas facilitam o acesso a informações públicas, que o Estado possui o dever de fornecer (a publicidade é um dos princípios que regem as relações processuais, art. 93, IX, da CRFB/88 c/c art. 8 do NCPC) e cujo acesso também é um direito fundamental (art. 5º, XIV, da CRFB/88)
Tem-se, assim, uma delicada situação de aparente conflito entre direitos fundamentais, que necessita de uma solução ponderada.
4. A possibilidade de harmonização dos direitos fundamentais em aparente conflito
Não se pretende aqui analisar medidas que podem ser tomadas em razão de possível constatação de ato discriminatório, mas uma possível solução para o problema.
Um dos cânones da teoria moderna da interpretação constitucional é o princípio da unidade da Constituição, que impõe ao intérprete o afastamento de aparentes contradições entre as normas constitucionais, tendo em vista que elas devem ser consideradas como partes de um sistema íntegro. A partir desse princípio, o Supremo Tribunal Federal entendeu que não existe hierarquia entre as normas da Constituição da República.
Ressalta-se, também, no princípio da máxima efetividade da Constituição, que propõe a atribuição da maior eficácia possível às normas constitucionais.
Ainda, merece destaque o princípio da concordância prática, que tem aplicabilidade quando se constata o conflito entre normas constitucionais. Sobre a aplicação desse princípio, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco ensinam o seguinte:
O critério recomenda que o alcance das normas seja comprimido até que se encontre o ponto de ajuste de cada qual segundo a importância que elas possuem no caso concreto. Se é esperado do intérprete que extraia o máximo efeito de uma norma constitucional, esse exercício pode vir a provocar choque com idêntica pretensão de outras normas constitucionais. Devem, então, ser conciliadas as pretensões de efetividade dessas normas, mediante o estabelecimento de limites ajustados aos casos concretos em que são chamadas a incidir. Os problemas de concordância prática surgem, sobretudo, em casos de colisão de princípios, especialmente de direitos fundamentais, em que o intérprete se vê desafiado a encontrar um desfecho de harmonização máxima entre os direitos em atrito, buscando sempre que a medida de sacrifício de um deles, para uma solução justa e proporcional do caso concreto, não exceda o estritamente necessário.
Percebe-se, a partir dessas técnicas de interpretação constitucional, que a resposta para o problema constatado deve ser obtida através da harmonização dos direitos fundamentais em conflito, de forma que se obtenha deles a máxima eficácia possível e não se afete seus núcleos principais.
Logo, considerando-se a impossibilidade de negar publicidade a informações de demandas que não tramitem com a restrição do segredo de justiça, uma solução que parece adequada é a utilização das iniciais para a identificação do trabalhador nas publicações processuais.
Com isso, ao se realizar a pesquisa nos Diários Oficiais, não seria possível, de imediato, localizar determinado trabalhador que for parte em uma reclamação trabalhista, frustrando a utilização das referidas ferramentas digitais com essa finalidade.
Preserva-se, dessa forma, o direito público à informação, a publicidade do processo e, ao mesmo tempo, prestigia-se o direito ao trabalho, à privacidade e à não discriminação, obtendo-se a plena concordância prática desses valores constitucionais. Ressalte-se que o processo continua sendo público, passível de consulta através do sítio do Tribunal por quem possua seu número de identificação.
Essa medida já é utilizada, com sucesso, em outros ramos do Poder Judiciário, como para a identificação de vítimas de crimes, crianças e adolescentes.
A rigor, não se vislumbra qualquer óbice à realização dessa medida administrativamente, pelos próprios Tribunais Regionais do Trabalho ou mesmo em âmbito nacional, através de ato da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho ou do Conselho Superior da Justiça do Trabalho.
5. Conclusão
Conforme se expôs, identifica-se o surgimento de um novo problema que pode obstar o direito fundamental ao trabalho: a facilitação da consulta de publicações processuais trabalhistas através da internet. Trata-se de uma consequência da evolução tecnológica, que é possível em razão da utilização sistemas de buscas otimizados e especializados nos Diários Oficiais de Justiça.
Essa situação, apesar de, a rigor, ter se mostrado útil aos profissionais que trabalham no Poder Judiciário, pois proporciona, por exemplo, a rápida localização de entendimentos jurisprudenciais, também tem seu aspecto negativo.
Muitos empregadores têm utilizado a ferramenta para verificar a existência de demandas trabalhistas ajuizadas pelos candidatos a vagas oferecidas, consulta que ocorre de forma instantânea e que tem o potencial de gerar situações de discriminação quanto o acesso ao emprego.
Infelizmente, o exercício do direito constitucional de ação, principalmente perante a Justiça do Trabalho, ainda não é visto por alguns empregadores com a naturalidade que lhe é inerente. Há notório estigma quando o empregado é identificado como reclamante, causando-lhe, muitas vezes, a perda de oportunidades de trabalho.
É por essa razão que a situação deve ser analisada não só a partir do direito fundamental ao trabalho, mas também pelo enfoque do direito à privacidade do trabalhador e à não discriminação – também previstos na Constituição da República.
Ocorre que, por outro lado, que a divulgação dessas informações não é ilícita, pelo contrário, a publicidade é uma regra inerente às relações processuais e a Lex Mater também garante o direito público à informação.
Há, pois, um aparente choque de normas constitucionais, que reclama um trabalho interpretativo no sentido de se obter uma solução adequada, considerando-se a unidade da constituição, sua máxima efetividade e a necessidade de concordância prática entre seus princípios e regras.
Ressalta-se que, nessa empreitada, não se pode afastar totalmente de uma das normas, o que requer a busca por uma alternativa ponderada, através da proporcionalidade em sentido estrito.
A fim de se obter esse resultado, propõe-se, então, que sejam utilizadas as iniciais dos nomes dos trabalhadores nas publicações relativas às reclamações trabalhistas, medida que, ao mesmo tempo em que observa a publicidade processual, preserva a privacidade daqueles e protege o acesso ao trabalho.
Referências
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 10 ed. – São Paulo: LTr, 2016.
DELGADO, Gabriela Neves...[et al.]. Direito Constitucional do Trabalho: princípios e jurisdição constitucional do TST. – São Paulo : LTr, 2015.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 17ª Edição. São Paulo: LTr, 2018
GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 11ª ed., rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017.
MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2017.
WANDELI, Leonardo Vieira. O direito ao trabalho como direito humano e fundamental: elementos para sua fundamentação e concretização. Tese (Doutorado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2009.
Bacharel em Direito. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Juiz do Trabalho Substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Emanuel Holanda. Problemas relacionados à publicação irrestrita de informações relacionadas a reclamações trabalhistas na internet Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 maio 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51770/problemas-relacionados-a-publicacao-irrestrita-de-informacoes-relacionadas-a-reclamacoes-trabalhistas-na-internet. Acesso em: 02 nov 2024.
Por: Maria D'Ajuda Pereira dos Santos
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