RESUMO: O infanticídio indígena está na cultura de algumas tribos. Tal instituto consiste no assassinato de crianças, por causa de crenças culturais. No presente trabalho, será feita uma análise sobre esse fenômeno, buscando entender as causas e motivações para que esses povos tenham tais práticas. Outra questão relevante que será abordada é sobre o Direito a vida e o relativismo cultural, se aprofundando na incongruência e dilema que há, pois por um lado deve ser respeitada a cultura alheia, mas por outro o Estado tem o dever de dar proteção às crianças, pois, apesar da Constituição Federal amparar e garantir aos índios a proteção de seus costumes e tradições, a constituição também garante o direito à vida, e o presente trabalho tem por objeto descobrir qual ordem deve prevalecer, além de outras questões problemáticas dessa temática.
Palavras-chave: infanticídio indígena; direitos humanos; relativismo cultural.
ABSTRACT: Indigenous infanticide is in the culture of some tribes. Such an institute consists in the murder of children, because of cultural beliefs. In the present work, an analysis will be made on this phenomenon, seeking to understand the causes and motivations for these peoples to have such practices. Another relevant issue that will be addressed is the right to life and cultural relativism, going deeper into the incongruity and dilemma that exists, because on the one hand must respect the culture of others, but on the other, the State has a duty to provide protection to children , because although the Federal Constitution guarantees the Indians the protection of their customs and traditions, the constitution also guarantees the right to life, and the present work aims to discover which order should prevail, as well as other problematic issues of this theme.
Keywords: indigenous infanticide; human rights; cultural relativism.
1. INTRODUÇÃO
Os indígenas brasileiros são grupos sociais independentes e autônomos, que têm as suas próprias leis e regras internas, com práticas e costumes próprios e sabe-que que cada povo tem uma visão do mundo. Cada um destes grupos possui um conceito diferente sobre a vida, a religião, a morte do ser humano. Ocorre que muitas vezes essa visão pode opor-se fortemente ao que conhecemos como os direitos humanos.
O infanticídio indígena consiste no assassinado de crianças índias, em razão de alguma crença cultural do seu povo. Essa temática abordada está caracterizada principalmente pelo embate entre dois direitos essencialmente fundamentais: o direito à vida de um lado, e do outro o direito à liberdade de expressão e diversidade cultural.
Este conflito geradores de valores nos leva a pensar até que ponto se deve preservar determinadas culturas, que legitimam práticas que se contrapõem aos direitos mais básicos e à própria dignidade da pessoa humana.
2. METODOLOGIA
A princípio será analisada a história da cultura indígena, originada na colonização até a aquisição de direitos que atribuem cidadania para o povo indígena. Será analisado os aspectos dos atuais povos indígenas brasileiros passando por uma investigação da síntese antropológica geral, sobre a perspectiva relativista, onde se conquista uma tolerância e respeito em relação aos costumes, crenças e traços culturais diferentes dos nossos, e a perspectiva universalista ética, que defende que o homem, por mais distinto que seja suas crenças e costumes, detêm características inerentes.
Será abordado também o relativismo cultural e universalismo ético, e sobre como o “infanticídio indígena” tem despertado diversas opiniões nas pessoas: para alguns, este exercício fere diretamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e um povo que age dessa forma tem que sofrer com a intervenção estatal, cabendo ao Estado tomar alguma postura diante de tal prática. Enquanto isso, há muitos que entendem que faz parte da cultura e das crenças desses povos, e que deve prevalecer o respeito a diversidade cultural e a autonomia desses povos, sendo respeitadas as suas crenças e costumes.
O cerne deste trabalho é a discussão sobre as duas principais posições que há sobre o infanticídio indígena: a liberdade cultural e a proteção dos direitos humanos. Por meio de dialética entre as principais teorias e doutrinadores que defendem cada uma dessas duas posições.
3. RESULTADOS DE PESQUISA
Os povos indígenas do Brasil possuem uma diversidade numérica absurda e habitam/habitaram o país desde antes da chegada dos europeus no continente, antes de ano de 1500. Muitas tribos foram dizimadas com a chegada dos colonizadores e com o passar dos tempos. Mais da metade da população indígena está localizado nas regiões Norte e Centro Oeste do Brasil, principalmente na área da Amazônia Legal, mas há índios vivendo, em maiores e menores quantidades, em todas regiões brasileiras.
Para início do presente trabalho, deve-se entender brevemente sobre o que é cultura, para melhor compreensão do assunto discutido, pois será visto que o Infanticídio indígena não pode ser analisado fora de contexto, pois se não aparentará apenas ser um crime bárbaro; para a sua compreensão deve ser entendida toda a cultura dos povos e todas as suas crenças, que os levam à tais hábitos.
Laraia declara que “culturas são sistemas de padrões de comportamento que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos. ” (LARAIA, 1986. p. 59). A cultura compreende a arte, as leis, as crenças, os costumes adquiridos pelo ser humano, é aquilo que ele traz consigo e que adquiriu no seu convívio em sociedade.
O infanticídio ainda é praticado por algumas tribos brasileiras, levando à morte não apenas gêmeos (pois um seria a parte boa e o outro a parte má), também filhos de mães solteiras, crianças com problema mental ou físico (pois indígenas têm crença de que se trata de uma manifestação do mal qualquer tipo de demência ou distorção), ou doença não identificada pela tribo. Há quem argumente que o infanticídio é parte da cultura indígena.
Para nós, que fazemos parte de outra cultura, ler que crianças gêmeas são assassinadas pelo simples fato de serem gêmeas, parece altamente bárbaro e despropositado tal prática, gerando certo horror. Mas há de se entender que faz parte da cultura desses povos e está enraizado no cerne de suas crenças, e que tais práticas derivam de anos e anos, gerações e gerações.
RELATIVISMO E UNIVERSALISMO CULTURAL
Nessa ceara entra o relativismo cultural e ético, onde tais conceitos baseiam-se no estudo que existe uma ampla diversidade cultural e cada cultura deve ser protegida e respeitada, pois cada um tem sua coerência interna. Desta forma criamos, um mecanismo metodológico que visa a realização de pesquisas que ampara a percepção dos antropólogos, de que os traços culturais possuem um significado para a sociedade. Assim, essa teoria não permite que um indivíduo proponha mudanças em seu ambiente cultural, pois a cultura é imutável. O elemento cultural seria relevante e absoluto, o costume como algo natural e a pratica como algo justificável. Ou seja, a análise de uma cultura, ao constatar a diferença, não se pode fazer hierarquização em superiores e inferiores ou em bem ou mal, mas reconhecer a vasta riqueza que existe nas diferenças.
De acordo com Lidório:
O relativismo cultural, inicialmente desenvolvido por Franz Boas e com base no historicismo de Herder, defende que bem e mal são elementos definidos em cada cultura. E que não há verdades culturais visto que não há padrões para se pesar o comportamento humano e compará-lo a outro. Cada cultura pesa a si mesma e julga a si mesma. (2008, p. 02)
A troca de experiências culturais em sociedades diferentes é comum e importante para que os membros pensem no modo de sua organização social, nos seus preconceitos, para que posso viver em harmonia, e este contato intelectual está relacionado ao relativismo ético.
Em entrevista realizada pelo Fantástico, em 2014, foi exposta à população essas práticas adotadas pelas tribos, no Brasil, e gerou grande comoção da população, justamente por ser algo extremamente estranho à nossa cultura:
O filho de uma mulher ianomâmi vai fazer parte da próxima estatística de crianças mortas logo após o nascimento. Há duas semanas, ela começou a sentir as dores do parto, entrou na floresta sozinha e horas depois saiu de lá sem a barriga de grávida e sem a criança.
Os agentes de saúde que trabalham lá disseram, sem gravar, que naquela noite aconteceu mais um homicídio infantil, o infanticídio.
O infanticídio indígena é um ato sem testemunha. As mulheres vão sozinhas para a floresta. Lá, depois do parto, examinam a criança. Se ela tiver alguma deficiência, a mãe volta sozinha para a aldeia.
A prática acontece em pelos menos 13 etnias indígenas do Brasil, principalmente nas tribos isoladas, como os suruwahas, ianomâmis e kamaiurás. Cada etnia tem uma crença que leva a mãe a matar o bebê recém-nascido. (Tradição indígena faz pais tirarem a vida de crianças com deficiência física, 2014)
A questão do Infanticídio Indígena chocou, e em repercussão a isso foi criado o Projeto de Lei da Câmara n° 119, de 2015, que tem o intuito de alterar o Estatuto do Índio, a fim de tentar coibir os índices de infanticídio nas tribos, não proibindo tal prática, mas tentando impedi-la por outros meios, como por exemplo, programas indigenistas que protejam as crianças recém nascidas ou adolescentes rejeitados por suas famílias, a retirada de grávidas que possam estar em risco (desde que ela concorde), além de poder retirar as crianças que estão em aparente perigo, da tribo, e retorná-la somente quando o risco cessar.
É interessante observar que o projeta não visa proibir diretamente que os pais matem seus filhos, mas busca encontrar métodos de fazer com que tais mortes não ocorram. Nesse assunto, é interessante analisar a questão de maneira objetiva, de maneira antropológica, visando entender a cultura indígena.
Nessa ceara, que o relativismo cultural é necessário e essencial. O relativismo cultural requer que a cultura seja analisada por si só, sem comparações com outras culturas, que a cultura seja entendida e analisada sem parcialidades. Para o relativismo cultural onde cada comunidade cria as suas próprias regras a serem seguidas, de acordo com suas culturas e valores, sendo que cada uma delas determina o bem e o mal, o certo e o errado. Obviamente que surgiram inúmeras críticas à teoria relativista, de modo que essa radicalização cultural impede um diálogo entre culturas.
Existe a teoria do universalismo cultural, que entende que apesar das diferenças culturais, todos os seres humanos têm valores universais, que se aplicam a todos, independentemente de sua crença, cor, sexo. A intenção é proteger cada indivíduo, independentemente da sua cultura. Apesar das diferentes culturas de cada pessoa cada povo, há o respeito à dignidade da pessoa humana, que é valor supremo entre os seres humanos, e deve ser inerente a cada pessoa, independentemente de seus costumes.
Partindo-se dessa ideia, foi que, após a Segunda Guerra Mundial e todas as atrocidades que foram cometidas, foi iniciada a criação dos documentos internacionais que têm a função de proteger os todos os indivíduos. O primeiro documento com esse teor foi criado pela ONU, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhecendo que todos os seres humanos eram titulares de direitos, considerados inalienáveis. Logo após foi elaborada a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, que reafirmava que “Todos os Direitos do homem são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional tem de considerar globalmente os Direitos do homem, de forma justa e equitativa e com igual ênfase” (Declaração dos Direitos Humanos, 1948).
Entre esses Direitos Humanos há aqueles que se entende que são inalienáveis e, nem mesmo que a pessoa queira, ela pode abrir mão deles, por serem inerentes ao ser humano. Ocorre que essas cartas de direitos que são supostamente inerentes foram criadas a partir da visão da cultura ocidental, e muitas das coisas que essas cartas defendem, não estão de acordo com algumas culturas do mundo. Isso quer dizer que é quase impossível querer impor valores à culturas completamente distintas das ocidentais, é o chamado egocentrismo cultural, onde um indivíduo de uma cultura crê que a sua cultura seja melhor ou mais adequada que a do outro.
Pode ser observado que há uma dicotomia entre as duas ideias expostas acima: o relativismo cultural e o universalismo cultural. Ambas buscam formas e argumentos para se sobressair sobre a outra. Uma possível solução, que poderia ser como um meio termo para as teorias é o diálogo cultural, onde, há literalmente um diálogo entre os indivíduos de culturas diferentes, um estudando e entendendo mais sore a cultura do outro, pois há no mundo miscigenado um multiculturalismo amplíssimo, é necessário entender a cultura do outro, a acima de tudo, respeitar.
Portanto, respeitar a cultura do outro se faz necessário, mas na temática do presente artigo surge um problema muito maior, que é o Direito a Vida, é o direito mais importante que a Carta Magna garante, além do todos os tratados internacionais que o Brasil é signatário, tratados esse que garantem a todos o Direito à Vida. De um lado está o direito à preservação de da cultura dos indígenas e do outro lado, o Direito à vida, ambos garantidos pela Constituição Federal.
CRIME DE INFANTICÍDIO
O infanticídio está criminalizado no artigo 123 do Código Penal, veja-se in verbis: “Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena - detenção, de dois a seis anos. ”
Estado puerperal é o momento pós-parto, onde a mãe encontra-se com o psicológico abalado, há muitas transformações físicas e psicológicas, tornado a mãe mais sensível e propensa à depressão. Nesse período a mãe pode chegar a nem entender as suas atitudes, por estar transtornada, em razão disso o estado puerperal é considerado como uma semi-imputabilidade.
Vale ressaltar que é um crime próprio, ou seja, somente a mãe pode praticar, e a vítima é o filho. Esse homicídio deve ser cometido depois que a criança nasceu, pois, se praticado antes, configura aborto.
Apesar da semelhança dos nomes, há uma diferença muito grande entre os motivos do infanticídio e do infanticídio indígena, pois enquanto aquele tem como motivo principal a instabilidade emocional da mãe, este tem as mais diversas motivações e não necessita que tenha haver com o estado pós-parto da mãe. Ademais, o infanticídio indígena não necessariamente é cometido pela mãe, pode haver a participação de outros membros da tribo, sendo que por vezes a mãe pode nem sequer participar.
No geral, os motivos das tribos para os homicídios são decorrentes do fato dos bebês serem frutos de relações extraconjugais ou incestuosas, ou até mesmo por serem filhos de mães solteiras, ou pelo simples fator da criança apresentar sinais de ser portadoras de deformações físicas, retardamentos psicoativos e outras deficiências e, também, diante do fruto da gestação for provimento do nascimento de gêmeos (as).
DIREITO A DIVERSIDADE CULTURAL
Sobre o direito à diversidade cultural, expõe Paulo Bonavides:
O direito à diversidade cultural é uma garantia concedida a determinados grupos culturalmente diferenciados de que suas tradições, crenças, e costumes possam ser preservados e protegidos frente a movimentos de interculturalidade, ou seja, ninguém pode ser obrigado a abster-se de possuir suas próprias tradições, crenças e costumes, ou mesmo de ser obrigado a aderir às tradições, crenças e costumes de outros grupos. (1999. P, 488)
Em âmbito internacional, os Direitos Culturais estão previstos em vários documentos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais de 1966, no qual previa a obrigação dos Estados protegerem a diversidade cultural e garantirem o seu pleno exercício. Em 2001, foi criada a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. No Brasil, a CF de 1988 foi a primeira a prever direitos culturais, há também alei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973 que dispõe o estatuto do índio e, por fim, entendimentos que o Supremo Tribunal Federal dá sobre as práticas culturais dos índios.
Considerando que a Infanticídio Indígena faz parte da cultura de muitos povos no Brasil, deve ser analisado se há possibilidade de haver penalidades pela sua prática. A princípio, o infanticídio não era considerado como crime, conforme expõe Vicente de Paula Rodrigues Maggio:
Verifica-se que entre os povos primitivos da humanidade, a morte dos filhos e das crianças não constituía crime, nem atentava contra a moral ou os costumes, pois, as mais antigas legislações penais conhecidas, não fazem qualquer referência a esse tipo de crime, concluindo ser, então, permitida a conduta hoje delituosa. (2004. P, 40)
O infanticídio somente é punível quando é praticado com dolo, ou seja, é necessário que haja a vontade de matar, pois não existe a ocorrência desse crime na modalidade culposa. Damásio de Jesus entende que se a mão matar seu próprio filho, sob o estado pós-parto agindo culposamente, ela não responderá nem por infanticídio, tampouco por homicídio. Entretanto, entende também que, se a mãe matar a criança sem estar sob efeito do estado puerperal, e agindo culposamente, haverá homicídio culposo, descrito no artigo 121, §3º, do Código Penal.
É um meio nebuloso para alguns qual é a condição do índio, a sua capacidade civil e penal. Da leitura do artigo 12 da Constituição Federal, extrai-se que o índio é considerado brasileiro nato, no que se refere a sua nacionalidade. Entretanto, a regulamentação da forma de exercer os direitos civis e políticos está na Lei 6001/73, em seu artigo 5º.
É sabido que a personalidade civil é adquirida no nascimento com vida, de acordo com as nossas leis. A partir desse momento do nascimento com vida, todas as pessoas passam automaticamente a serem capazes, detentores de direitos e deveres na vida civil. Quanto a isso, o Código Civil não distinções entre índios e “homens brancos”, logo, entende-se que ambos tendo nascido com vida já são detentores de personalidade e capacidade.
Tendo em vista que não há lei especial que disponha sobre a questão da capacidade civil do índio após o Novo Código Civil, e com baseamento no princípio “Lex Posterior generalis non derogat priori speciali”, entende-se que o Estatuto do Índio está apto a disciplinar tal matéria.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos editada pela ONU em 1948, determina no seu artigo primeiro que: “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, declara ainda, em seu artigo terceiro, que: “toda pessoa tem direito a vida, a liberdade e segurança pessoal”. Veja que a posição da ONU com relação à universalidade dos direitos humanos é clara, deixando indubitável que estes direitos são para todos sem qualquer distinção. No Brasil, nesse caso do infanticídio indígena, o Estado está adotando uma posição de não intervenção, permitindo que, algo que aparentemente viola os direitos humanos permaneça acontecendo sem nenhum tipo de represálias. Antropólogos justificam com esse ocorrido, com a noção do relativismo jurídico a posição de que os direitos humanos para o relativismo cultural, seriam relativos e não universais.
O Supremo Tribunal Federal ao se manifestar sobre os limites da expressão cultural, nas ações que questionavam o Festival da Farra do Boi e a Lei que autorizava a Briga de Galo, reconheceu que o direito às práticas culturais não é absoluto, pois limites devem ser impostos. Nos casos em análise, o STF esclareceu que os animais não poderiam ser machucados, torturados e expostos a situações enervantes, pelo simples argumento de expressão cultural.
A Constituição Federal, no art. 231, dispõe sobre os direitos reconhecidos aos índios, destacam-se os costumes e as tradições, in verbis:
CAPÍTULO VIII
DOS ÍNDIOS
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
De outro lado, a Constituição Federal, em seu artigo 1°, inc. III, institui como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana e, logo no art. 5º, caput, garante aos brasileiros e estrangeiros a inviolabilidade de direito à vida, à liberdade e à igualdade. A Carta Magna, ao estabelecer esses direitos humanos fundamentais, não estabeleceu exceção em sua aplicação, ou seja, deixa-se de aplicá-los em alguma situação.
Não se pode desprezar os costumes e tradições das tribos indígenas, que se organizam conforme os ensinamentos que lhe foram passados de gerações em gerações; merecem também proteção dos órgãos públicos. Nessas questões culturais, quando envolve infanticídio, muitos índios já não aceitam mais a prática de tal ato por considerarem um sofrimento, tanto para a criança quanto para a família.
O Estatuto do Índio de 1973 traz em si a questão do regime tutelar em relação aos indígenas, que envolve a tutela incapacidade e a tutela proteção. Com o advento da Constituição/88, fica controvertido o entendimento quanto à recepção dos dois aspectos do regime tutelar.
Barreto afirma que:
[...] a CF/88 que reconhece o índio como diferente, sem que essa diferença possa ser confundida com incapacidade e que reconhece a capacidade do índio para ingressar em juízo na defesa de seus direitos sem depender da intermediação – alterou substancialmente a natureza do regime tutelar indígena: primeiro, esse regime passou a ter natureza exclusivamente protetiva; segundo, passou a ter estatura constitucional. Portanto, esta proteção constitucional está protegida de ataques pela via do processo legislativo ordinário. (2009, p. 43)
[...] que seria o cúmulo da contradição invocar a tutela indígena como base de entendimentos que coloquem em risco, ou não protejam, o direito mais importante de qualquer ser humano: o direito à vida. A CF/88, numa proposta de interação, reconheceu aos indígenas direitos e também impôs à União o dever-poder de “proteger e fazer respeitar” esses direitos. (2009, p.43)
Vale considerar também o posicionamento de Robert Aléxy:
Para que princípios, juntamente com as regras, são espécies do gênero norma, e possuem o caráter de mandato de otimização, em que toda realização deve ser na maior medida possível, sugerindo a ideia de avaliação das possibilidades jurídicas e
reais existentes. (2002, p. 82/87)
[...] O conflito entre regras pode ser solucionado, segundo o ordenamento normativo do direito, de duas maneiras: ou através de uma cláusula de exceção que uma das regras teria, o que eliminaria o conflito ao estabelecer uma solução específica para o caso, ou então, uma delas estaria a lesar o ordenamento jurídico o que a tornaria inválida, e, portanto, deveria tal regra ser expelida do mesmo ordenamento”. (Aléxy, 2002, p. 87/89).
Conforme pode ser visto, Alexy dá duas possíveis soluções para o caso de conflito entre regras: expelir ela do ordenamento ou criar uma clausula de exceção. No presente caso deve ser criada a cláusula de exceção, pois os povos indígenas estão no continente a muito tempo, foram os verdadeiros descobridores, conforme dito alhures e assim como outras nações, eles possuem suas próprias crenças, dogmas e regras, e isso deve ser respeitado.
4. CONCLUSÃO
Destarte, restou claro a existência da colisão entre os Direitos Fundamentais do homem e o direito a preservação cultural, neste caso representado pela prática do infanticídio indígena no Brasil. Há colisão entre o direito à prática cultural dos índios, costumes, tradições e o direito à vida do ser humano, ambos estabelecidos e determinados na Carta Magna.
Apesar de muitos doutrinadores e estudiosos verem tal prática como verdadeiro atentado à dignidade humana e muitos outros institutos norteadores dos nossos princípios, deve restar na mente de quem analisa o Direito à Preservação Cultural, o multiculturalismo e a relativização cultural. Veja-se que é egocentrismo cultural julgar a cultura alheia sob o olhar da nossa, vendo apenas a cultura do nosso ponto de vista. Deve se ter em mente que os povos indígenas, assim como outras nações têm a sua soberania, e não podem ser subjugados ou obrigados a acatar regras que são contrárias as suas crenças.
Logo, o diálogo cultural se faz necessário nesses casos, para que seja analisada a situação como um todo. O projeto de lei nº 119/2015 tem boas ideias, pois não proibi o infanticídio, mas tenta criar mecanismos que ajudam a evitar que ocorram mais mortes. Assim, conclui-se que há necessidade de elaboração de uma lei que melhor atenda aos interesses dos índios, tendo sempre em mente o respeito ao próximo e se distanciando o egocentrismo cultural, sendo que a cultura deve ser analisada como um todo e mantida, uma vez que a cultura de um ser humano é uma parte inerente de si mesmo e constitui grande parte de seus valores, algo de tão suma importância não pode ser afrontado e arrancado deles. Para eles que creem no que fazem seria extremamente violentador obriga-los conviver com a proibição. Por fim, a solução é a criação de projetos educacionais, para explicar as doenças, os motivos porque elas ocorrem, e as causas de outros males que espantam as tribos, mas jamais força-los a aceitar as ideias da cultura ocidental.
REFERÊNCIAS
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BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 488.
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[1] Advogado, Professor Mestre da Universidade Brasil.
Bacharelando curso de Direito na Universidade Brasil - UNIBRASIL Campus de Fernandópolis-SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REBESCHINI, Thiago Cotes de Oliveira. Infanticídio indígena: limite entre direitos humanos e a cultura indígena Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jun 2018, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51808/infanticidio-indigena-limite-entre-direitos-humanos-e-a-cultura-indigena. Acesso em: 04 nov 2024.
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