RESUMO: O objetivo do presente artigo é analisar a figura do sindicato, avaliando o seu papel nos conflitos coletivos de trabalho, propondo, ao final, uma reflexão acerca da caracterização ou não dessa entidade como um aparelho ideológico do Estado. Para tanto, o artigo apresenta conceitos próprios da teoria marxista, passando a discorrer, posteriormente, sobre os aparelhos ideológicos do Estado, tal como propõe a obra de Louis Althusser. Por fim, pautando-se nos conceitos apresentados, o estudo examina a figura do sindicato, buscando identificar qual é o papel que a classe dos trabalhadores espera que a entidade exerça nos conflitos coletivos de trabalho e qual é o papel que, de fato, é exercido por essa entidade.
Palavras-chaves: Sindicato. Conflitos coletivos de trabalho. Aparelhos ideológicos do Estado. Louis Althusser.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. I. OS APARELHOS IDEOLÓGICOS DO ESTADO. II. O SINDICATO E O SEU PAPEL NOS CONFLITOS COLETIVOS DE TRABALHO. III. A ENTIDADE SINDICAL COMO APARELHO IDEOLÓGICO DO ESTADO. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Os sindicatos são organizações sociais criadas para defender os interesses trabalhistas daqueles que a entidade representa, nas relações coletivas de trabalho.
Diante do surgimento de um conflito coletivo trabalhista, entende-se que o papel do sindicato é o de utilizar a sua força coletiva para o fim de buscar pactuar normas e condições de labor que sejam mais favoráveis aos trabalhadores, componentes da respectiva categoria. Essa compreensão, a rigor, independe do momento histórico e das circunstâncias que levam a figura sindical, dentro de um determinado contexto social, ser considerada mais ou menos importante, mais ou menos atuante.
Não obstante esses fatores, analisado o conflito coletivo trabalhista sob a ótica da ciência da ideologia, tal como propugna a teoria marxista e os autores que, posteriormente, a utilizaram como substrato argumentativo, constata-se que o sindicato tem uma função bem mais importante que a mera função negocial, acima citada. À luz do que expõe essa vertente filosófica, é possível afirmar que o sindicato tem a função de exercer efetiva oposição à pretensão do empregador, manifestando de forma explícita o direito de resistência dos trabalhadores, diante das pretensões da denominada classe dominante.
Segundo o que expõe Louis Althusser, na sociedade capitalista, a classe dominante tende a se utilizar dos aparelhos ideológicos do Estado, para o fim de reproduzir, de forma perpétua, as relações de produção vigentes em um determinado contexto social. Entre esses aparelhos ideológicos, ainda segundo o filósofo francês, encontra-se o aparelho ideológico sindical.
O presente artigo tem o escopo justamente de analisar se a entidade sindical, nos conflitos coletivos de trabalho, cumpre o papel de exercer o seu poder-dever de resistir à pretensão do empregador, atua como um aparelho ideológico do Estado, tal como propõe a obra de Louis Althusser, ou realiza, de forma concomitante, ambas as funções.
A fim de alcançar conclusão satisfatória quanto ao tema, o artigo apresenta conceitos próprios da teoria marxista, discorre sobre a teoria dos aparelhos ideológicos do Estado, segundo os ensinamentos de Althusser e traz exposições acerca do modo como se desenvolve os conflitos coletivos de trabalho, notadamente na sociedade contemporânea.
I. OS APARELHOS IDEOLÓGICOS DO ESTADO
A teoria marxista apresenta a ideia de que as relações econômicas da sociedade, também denominadas infraestrutura, constituem a base do Estado e condicionam a sua forma e o modo como se dará a consciência social, interferindo, portanto, na formação da superestrutura.
Segundo essa concepção, entende-se que os homens desenvolvem relações de produção a partir da evolução das forças produtivas existentes em determinada época. A somatória dessas relações origina a estrutura econômica da sociedade, constituindo esta a efetiva base em que se sustenta a superestrutura, em seus níveis jurídico/político e ideológico.
Essa compreensão, dentre outras obras, pode ser extraída do Prefácio Para crítica da Economia Política, onde Marx define a concepção de estrutura:
“Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, política e espiritual” (MARX, 1974, p. 135).
Vê-se, assim, que a obra de Marx aponta que as condições existentes no campo da infraestrutura caracterizam o principal fator de determinação para a formação dos fatores existentes no campo da superestrutura. Ou, em outras palavras, verifica-se que para a teoria marxista tradicional o modo de produção é capaz de determinar, em última instância, o modo de a sociedade humana se estabelecer.
Ao tratar desse tema, Louis Althusser busca a evolução das premissas trazidas pela teoria tradicional, de caráter nitidamente economicista, pelas quais se propugnava fosse efetivada a ruptura necessária à alteração do modelo social então vigente unicamente mediante a conquista dos meios de produção pela classe proletariada. Segundo o autor francês, faz-se necessário reanalisar a ideia de que as alterações na economia possuem, por si só, exacerbada relevância no aspecto de possibilitar a promoção de modificações na superestrutura, sendo que, para alcançar esse raciocínio, o filósofo trabalha em duas frentes.
Na primeira, Althusser aborda o conceito de sobredeterminação, consistente na análise multifatorial pela qual o autor entende que se dá a ruptura necessária à revolução de determinada sociedade, em dado momento histórico. Ao explicar a tese, o autor recorre ao exemplo dado por Lênim e discorre a respeito das diversas contradições internas não econômicas existentes na Rússia, as quais, justamente por atuarem simultaneamente e estarem em constante interação entre si e com a estrutura econômica, fizeram desse país o cenário ideal para uma revolução possível e vitoriosa (ALTHUSSER, 2015, p. 74-92). [1]
A segunda frente tratada pelo autor francês procura, de certo modo, inverter o postulado de que o econômico determina a superestrutura e, portanto, influencia nas crenças ideológicas de uma sociedade. Assim, para o filósofo, apenas provocar mudanças no campo econômico não causaria alterações na superestrutura como crêem os marxistas tradicionais.
Para o filósofo, já era possível extrair da própria obra de Marx que há uma autonomia relativa das superestruturas. Destarte, o modo de produção de uma sociedade não poderia ser considerado como o único determinante existente. Nesse sentido, na sua obra atualmente denominada “Por Marx” (antiga “A Favor de Marx”), Althusser cita as palavras de Engels, que, ao tratar do tema, asseverou:
“A situação econômica é a base, mas os diversos elementos da superestrutura - as formas políticas da luta das classes e os seus resultados - as constituições estabelecidas uma vez ganha a batalha pela classe vitoriosa, etc., as formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, conceitos religiosos e o seu desenvolvimento posterior em sistemas dogmáticos, exercem igualmente a sua ação nas lutas históricas, e, em muitos casos, determinam-lhes de modo preponderante a forma...” (ENGELS, 1890 in ALTHUSSER, 2015, p. 88).
Em síntese, em sua obra, Althusser afirma que há uma relação de constante influência e interligação entre a infraestrutura e a superestrutura. Assevera que essa influência é recíproca, afetando, infraestrutura e superestrutura, uma a outra, constantemente e de forma acentuada, porém, jamais de maneira totalmente determinista (ALTHUSSER, 2015, p. 74-92).
Ao elucidar a relevância que as determinações advindas da superestrutura possuem para a composição da sociedade em um momento histórico, Althusser evidencia a importância da ideologia como influente meio de formação de um modo de produção. Mais do que isso, o autor consegue demonstrar o quão imprescindível é o modo de proceder ideológico, para o fim de que um certo sistema econômico possa ser constantemente reproduzido, adquirindo, portanto, um caráter perpétuo.
Da análise da obra do filósofo francês, é possível verificar como ele busca superar a ideia, existente na obra “A ideologia alemã”, de Marx (MARX, 2002, pp. 34-55) e posteriormente reproduzida por Lukács, de ideologia como falsa consciência ou alheamento (SAMPEDRO, 2010, p. 41).
Com efeito, conforme expõe Francisco Sampedro, para o filósofo francês, a ideologia, na realidade, se introjeta na consciência independentemente da vontade humana, sendo indispensável em qualquer sociedade, constituindo, em seu cerne, uma instância necessária para formar os homens e transformá-los, levando-os ao reconhecimento como sujeitos integrantes de um determinado complexo social (SAMPEDRO, 2010, p. 41-52). A ideologia dominante, portanto, seria capaz de influenciar inclusive a própria classe social dominante.
Ainda nesse cenário, também segundo a concepção de Althusser, a ideologia poderia ser vista como o sistema que produz um modo subjetivo de proceder, sendo formado por valores e ideias considerados como sendo naturais em um sociedade (apesar de não o serem). Seria a representação imaginária das relações humanas com suas condições reais, necessárias para que haja, como dito, a reprodução do sistema econômico (SAMPEDRO, 2010, p. 41-52).
No seu texto denominado “Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado”, Althusser aduz que toda formação social que pretenda se sustentar deve reproduzir as suas condições de produção ao mesmo tempo que a produz, sem o que deixaria de existir em um curto período. Deve, portanto, a formação social reproduzir: (i) as forças produtivas e (ii) as relações de produção existentes.
Segundo o referido texto, a reprodução da força de trabalho pode ser alcançada mediante o pagamento de salário, mecanismo material utilizado pelos detentores dos meios de produção, que o disponibiliza ao trabalhador em razão do serviço prestado. A partir da concessão do salário, o trabalhador adquire vestuário, abrigo, alimentos, enfim, todos os instrumentos necessários para que se encontre de pé, frente à fábrica, no dia seguinte. Mais do que isso, mediante o pagamento de salário, possibilita-se ao empregado o pagamento de escola e de todos os itens já citados aos seus filhos, sendo essas futuras gerações aquelas que garantirão a existência da mão-de-obra (força produtiva) necessária à manutenção do sistema de exploração capitalista (ALTHUSSER, 1996, p. 41-52).
Já a reprodução das relações de produção, por sua vez, deve, ainda segundo Althusser, observar a qualificação diversificada da força de trabalho que assegura o regime capitalista. Deve, outrossim, se dar na realidade à margem do complexo produtivo, ou seja, se efetivar nos elementos que antecedem e circundam de alguma forma o complexo industrial e fabril.
A reprodução das relações de produção deve ocorrer, portanto, segundo o referido texto do filósofo francês, por meio da atuação do poder estatal nos aparelhos ideológicos do Estado – AIE`s, conceito criado pelo filósofo italiano Antonio Gramsci, posteriormente aprofundado por Althusser.
Por meio da detenção dos AIE`s, assegura-se que a ideologia cumpra a sua função material, qual seja a de fazer com que os dominados se submetem de forma consentida à ideologia dominante.
Ao tratar do conceito dos AIE`s, o filósofo francês primeiramente retoma a ideia existente na teoria clássica de Marx, que compreende o conceito dos “aparelhos do estado”. Por essa concepção, o conjunto de “aparelhos do estado” é formado por instituições que atuam de forma repressiva junto à sociedade, com o escopo de manter a ordem social, a exemplo do exército, da polícia, dos tribunais e das prisões. Para Althusser, contudo, dada a incompletude desse conceito, faz-se imprescindível uma outra denominação e uma outra classificação para esses aparelhos. Nesse sentido, seguem as palavras do próprio autor:
Convém lembrar que, na teoria marxista, o Aparelho de Estado (AE) contém o governo, os ministérios, o exército, a polícia, os tribunais, os presídios, etc., que constituem o que doravante denominaremos de Aparelho Repressivo de Estado. O "repressivo" sugere que o Aparelho de Estado em questão "funciona pela violência" - pelo menos no limite (pois a repressão, por exemplo, a repressão administrativa, pode assumir formas não físicas).
Daremos o nome de Aparelhos Ideológicos de Estado a um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas (ALTHUSSER, 1996, p. 114).
Como se vê, para Althusser, o conceito dos “aparelhos de estado” tal como existia na teoria marxista clássica não conseguia explicar o modo como se dava a dominação de uma determinada classe social pela outra, pelo que foi necessário renomeá-lo para “aparelho repressor de estado”, acrescentando ainda ao gênero a espécie dos “aparelhos ideológicos do Estado”. Dessa forma, ao relacionar as diferenças entre essas duas espécies de aparelho, o autor francês esclareceu com notória clareza o mecanismo de reprodução das relações de produção na sociedade capitalista.
Conforme expõe o texto de que ora se trata, os aparelhos repressivos do estado funcionam por meio da prevalência da repressão, notadamente a física, embora possam funcionar também pela ideologia, já que, segundo as palavras do próprio autor, não há aparelho que possa ser caracterizado como puramente repressivo. Já os AIE`s funcionam de forma prevalecente pela ideologia, ainda que atuem, de forma secundária, pela repressão.
Ao tratar dessas diferenças, o texto aborda o exemplo da escola, aparelho ideológico mais trabalhado por Althusser, e onde ocorre, segundo o autor, o ensino de técnicas, conhecimentos e normas de bom comportamento, mas sempre com o propósito velado de que já sejam aprendidos, por cada agente (aluno), conteúdos em conformidade com a posição que ocuparão na divisão do trabalho (posição essa já pré-determinada pela classe dominante).
Afirma o filósofo francês que no aparelho ideológico escolar é visível a presença de mecanismos ideológicos, consistentes em “uma certa quantidade de “saberes" embrulhados pela ideologia dominante (francês, aritmética, história natural, ciências, literatura), ou simplesmente a ideologia dominante em estado puro (ética, orientação cívica, filosofia)” (ALTHUSSER, 1996, p. 121). Contudo, segundo o autor, também é possível constatar a presença, ainda que tênue, de elementos repressivos, como as penalidades de suspensão ou expulsão.
Althusser ainda faz uma abordagem acerca das duas outras relevantes diferenças existentes entre as duas espécies de aparelhos, quais sejam:
2. Enquanto o Aparelho (Repressivo) de Estado constitui um todo organizado, cujas diferentes partes centralizam-se abaixo de uma unidade de comando - a da política da luta de classes aplicada pelos representantes políticos das classes dominantes que detêm o poder estatal -, os Aparelhos Ideológicos do Estado são múltiplos, distintos, “relativamente autônomos" e capazes de proporcionar um campo objetivo para as contradições, que expressam, sob formas limitadas ou extremadas, os efeitos dos choques entre a luta de classes capitalista e a luta de classes proletária, bem como suas formas subordinadas.
3. Enquanto a unidade do Aparelho (Repressivo) de Estado é garantida por sua organização, unificada e centralizada sob a liderança dos representantes das classes ocupantes do poder, que executam a política da luta de classes das classes que estão no poder, a unidade dos diferentes Aparelhos Ideológicos de Estado é garantida, em geral sob formas contraditórias, pela ideologia dominante, a ideologia da classe dominante.
Ao discorrer sobre o tema, o autor relaciona - de forma exemplificativa (segundo as suas próprias palavras) – uma série de outros aparelhos ideológicos, dentre os quais se destacam: o aparelho ideológico familiar, o aparelho ideológico da igreja, o aparelho ideológico jurídico, o aparelho ideológico político (incluindo os diversos partidos), o aparelho ideológico da informação (imprensa, televisão), o aparelho cultural (literatura, artes, esporte, etc.) e, por fim, o principal objeto desse estudo, o aparelho ideológico sindical.
Segundo Althusser, independentemente do poder de influência que cada um desses aparelhos ideológicos possui em determinada sociedade capitalista e em determinado período, certo é que eles contribuem para um mesmo resultado, qual seja: a reprodução das relações de produção, isto é, das relações capitalistas de exploração.
Passa-se, então, a tecer alguns esclarecimentos sobre a atuação dos sindicatos e o seu papel nos conflitos coletivos de trabalho, para que, posteriormente, possa ser analisada a sua atuação como um aparelho ideológico do estado, caso existente.
II. O SINDICATO E O SEU PAPEL NOS CONFLITOS COLETIVOS DE TRABALHO
Como é sabido, as formas de resolução dos conflitos trabalhistas, assim como as dos demais conflitos sociais, dividem-se em três espécies, denominadas autodefesa, autocomposição e heterocomposição.
Nas formas inseridas dentro da espécie denominada autodefesa, as próprias partes procedem à guarida de seus interesses, tendo por característica o fato de que uma impõe a sua vontade à outra. Na espécie denominada autocomposição, o conflito também é levado a cabo pelas próprias partes, sem a intervenção de um terceiro, diferenciando-se da autodefesa pelo fato de que a resolução se dá de forma acordada, e não imposta. Na heterocomposição, por fim, a solução é imposta por terceiro, independentemente da aceitação das partes.
No âmbito dos conflitos coletivos trabalhistas, contudo, há um tratamento peculiar acerca dessas formas de resolução.
Os conflitos coletivos trabalhistas são aqueles que têm por objeto a busca por melhores condições laborais de uma coletividade e que envolvem os trabalhadores e o empregador, ou os entes coletivos que os representem (NASCIMENTO, 2011, p.1355-1356). Em outras palavras, são aqueles em que as partes discutem interesses abstratos de toda uma categoria (GIGLIO, 1994, p.193).
Esses confrontos envolvem o interesse de determinado grupo, podendo ser assim considerado uma categoria econômica ou profissional inteira, ou mesmo apenas parte delas. Na relação advinda dessa espécie de embate, quer seja ela judicial ou não, os sujeitos ostensivos são entidades representativas, mas os titulares dos interesses são todos os componentes da categoria ou parte deles, compondo, não raras vezes, um número indeterminado de pessoas (RUSSOMANO, 1994, p.227-228).
Quando se fala, na seara dos conflitos coletivos do trabalho, em entidade representativa dos trabalhadores, estar-se-á, inevitavelmente, falando nas entidades sindicais.
Os sindicatos podem ser conceituados como “uma organização social constituída para, segundo um princípio de autonomia privada coletiva, defender os interesses trabalhistas e econômicos nas relações coletivas entre os grupos sociais.”(NASCIMENTO, 2011, p. 1302).
Em que pese o reconhecimento da relevância do tema, não se entrará aqui nos aspectos históricos referentes à criação dos sindicatos, haja vista não ser esse o propósito do presente trabalho. Assim, embora não se desconheçam, não se procurará detalhar as fases históricas e jurídicas que condicionaram os sindicatos, em maior ou menor grau, à ingerência do Estado, seja em nosso país, seja em âmbito internacional (período de proibição ou severa regulamentação, período de tolerância e período de plena liberdade).
Da mesma forma, não se adentrará aqui nas questões relacionadas ao desenvolvimento das espécies de sindicatos de trabalhadores e tampouco das espécies de liberdade sindical e ao modo como essas se desenvolveram, limitando-se o artigo a fazer referência à matéria quando relevante ao tema em questão.
No que concerne aos sindicatos no âmbito do presente estudo, cumpre-se na verdade apurar qual é o seu papel real enquanto entidade representante dos trabalhadores nos conflitos coletivos.
Pois bem, sabe-se que o estudo dos conflitos coletivos de trabalho, acima conceituados, é regido por princípios que, de certo, emanam efeitos para todos os institutos do Direito Coletivo de Trabalho, ramo jurídico no qual essa espécie de desavença é analisada. Dessa forma, pode-se se entender que os princípios da adequação setorial negociada e princípio da equivalência dos entes contratantes influem de forma significativa também nos conflitos coletivos de trabalho.
Pelo princípio da adequação setorial negociada, permite-se que as partes convencionem acerca de direitos de indisponibilidade relativa, vedando-se apenas a transação que se refere a direitos de indisponibilidade absoluta, assim considerados aqueles imantados por caráter de interesse público, por constituírem um patamar civilizatório mínimo. Como exemplo desse direito de indisponibilidade absoluta, infenso à convenção coletiva, cita-se aquele que deriva das normas constitucionais, das normas dos tratados internacionais e das que asseguram um nível adequado de cidadania ao trabalhador (DELGADO, 2012, p. 1342-1343).
Já pelo princípio da equivalência dos contratantes coletivos, as partes dessa espécie de conflito são consideradas seres coletivos, portadores de força supostamente equivalente. Logo, possuem, em tese, igual poder de barganha, razão pela qual o princípio tuitivo, que rege o Direito Individual do Trabalho, já não necessita ser aplicado nessas relações conflituosas (DELGADO, 2012, p. 1336-1337).
Considerando esses postulados, poder-se-ia afirmar, a princípio, que o papel do sindicato, enquanto sujeito do conflito coletivo de trabalho, é justa e tão somente um: utilizar a sua força coletiva para o fim de defender os interesses da categoria, chegando, invariavelmente, ao final do conflito, a um consenso com a entidade empregadora. Esse consenso, por sua vez, consiste na pactuação de normas e condições de labor que regerão as relações de trabalho dos empregados componentes da respectiva categoria, sendo, o limite dessa atuação, aquele estipulado pelo ordenamento jurídico, ou seja, as alterações que de alguma forma versem acerca de direitos dos trabalhadores de indisponibilidade absoluta.
Trata-se essa função do sindicato, como bem se vê, do próprio propósito final do Direito Coletivo de Trabalho, enquanto ramo jurídico que visa, assim como todos os outros, à pacificação social.
Ocorre que essa visão pacifista do papel do sindicato, embora não seja incorreta, acaba por não evidenciar o aspecto mais genuíno que reveste a atuação dessa entidade. Com efeito, ao se conceituar o papel do sindicato dessa forma simplória estar-se-á olvidando que, na realidade, a entidade sindical tem, como sua função social, o poder-dever de resistir à pretensão do empregador. Trata-se, em última análise, da obrigação que o sindicato possui de enfrentar a condição imposta pelo ente representante do sistema econômico capitalista e, por consequência, da classe social dominante.
O sindicato, portanto, tem a incumbência primária de exercer, frente à pretensão do empregador, um efetivo direito de resistência: resistência contra o mais forte, resistência contra a miséria, resistência contra a mais-valia, resistência contra a opressão, resistência contra o direito posto ou imposto, resistência contra o intervencionismo privado ou estatal, resistência contra a indignidade, resistência contra a morte e, hodiernamente, resistência contra a redução de direitos baseada na teoria da flexibilização (HAZAN, 2004, p.232).
Toda essa exposição traz a compreensão que o sindicato, nos conflitos coletivos de trabalho, tem, de fato, uma função bem mais relevante do que representar os empregados, na busca por formas jurídicas válidas e consensuais, para a solução das desavenças.
A fundamentação exposta traz o convencimento que o verdadeiro papel do sindicato, na nossa ordem social, é o de coletivizar a resistência dos trabalhadores contra os anseios dos detentores dos meios de produção, promovendo o embate em face dos seus propósitos de exploração da força de trabalho de forma desmesurada, tornando-se, assim, quiça, a última barreira de contenção à efetivação do desiderato burguês.
A fim de elucidar a relevância da atividade sindical acima relatada, torna-se oportuno transcrever as palavras de Tarso Genro, ao tratar sobre os óbices (“muralhas”) que impedem os trabalhadores de exercer os seus direitos de forma individualizada, frente aos empregadores, nos conflitos trabalhistas. Vejam:
A primeira grande muralha de resistência patronal não está nas mãos do empresário singular que se bate com um grupo de trabalhadores num conflito coletivo. Não é a polícia e nem o elenco de faltas graves que cada legislação ordinariamente arrola. Não é, em particular, o temor ao desemprego e nem o poder de comando que o empregador distribui estrategicamente na pirâmide administrativa que a produção social exige. A primeira grande muralha de resistência está instalada na mente do homem trabalhador: é o domínio ideológico, porque as ideias dominantes são as ideias das classes dominantes. O operário comum “socializado” no processo produtivo como uma peça a mais, pensa, normalmente como burguês. Seu primeiro ato de liberdade é compreender, na greve, que ele só significa algo, que ele só tem força, se romper com o individualismo burguês que a ideologia das classes dominantes lhe impõe, se ele sentir como um ser coletivo, cujo destino, em geral, é o destino da classe.
De tempos em tempos esta compreensão de destino coletivo irradia-se, penetra no cérebro dos trabalhadores, rompe o domínio ideológico secular e eclode como rebelião. E de repente o indivíduo tomado, moral e politicamente pelas ideias das classes dominantes, pensa como classe e vê seu destino ligado ao destino da classe e revela, sobre todas as deformidades que a ideologia burguesa lhe impõe, a sua essência histórica proletária.
Mas, nos conflitos particulares que se desencadeiam no âmbito da empresa, existem formas de resistência patronal que têm sempre o objetivo de enfrentar coletivamente os trabalhadores. Tais formas de resistência empresarial partem sempre da constatação explícita ou implícita de que, na mente dos operários estão, em potência, os fantasmas da dominação: é preciso acordá-los, mostrar a sua força e estimular o individualismo burguês e a submissão à autoridade do capital. (GENRO, 1980, p 56).
Como se vê, a resistência individualizada do trabalhador, já imbuído da ideologia dominante capitalista, sucumbiria facilmente ao poderio burguês. Somente a coletivização da resistência, consubstanciada na figura do sindicato, é capaz de produzir faticamente um embate às pretensões exploratórias dos detentores do capital.
Enfim, pelo exposto, analisando-se a questão sob um aspecto pragmático, verifica-se que a celebração de acordos e convenções coletivas de trabalho em conformidade com o ordenamento jurídico ao final dos conflitos coletivos trabalhistas, a representação jurídica dos trabalhadores nesses conflitos, a participação em órgãos colegiados que visam discutir os interesses trabalhistas, tudo isso, de fato, ainda que relevante, não é a principal função do sindicato. Aliás, todas essas atividades poderiam ser efetuadas até mesmo por outras associações ou grupos de trabalhadores legalmente constituídos.
A efetiva e contínua prática da resistência coletiva em face das pretensões exploratórias dos detentores do capital, representantes da ideologia dominante, essa sim é a atividade inerente e mais relevante que desenvolve o sindicato no âmbito dos conflitos coletivos trabalhistas, sejam eles judicializados ou não.
Dessa forma, analisado o efetivo papel do sindicato no âmbito do conflito coletivo de trabalho, passa-se a avaliar o modo como se dá o desenvolvimento do sindicato como aparelho ideológico do Estado, em total contradição com a função aqui exposta.
III. A ENTIDADE SINDICAL COMO APARELHO IDEOLÓGICO DO ESTADO
Como visto, os aparelhos ideológicos do estado são os instrumentos pelos quais o capitalismo reproduz as suas relações de produção, fazendo com que os dominados se submetem de forma consentida à ideologia dominante, perpetuando, dessa maneira, as condições necessárias para que os meios de produção mantenham-se com a classe burguesa.
Já o sindicato, conforme analisado, tem, no conflito coletivo de trabalho, justamente o propósito de se contrapor às pretensões exploratórias dos detentores do capital.
Nesse cenário, como se pode imaginar que o sindicato seja conceituado com um aparelho ideológico do Estado, tal como propõe Althusser? Em outras palavras, como se pode entender que o sindicato, ao invés de exercer o seu papel de exercer o direito de resistência dos trabalhadores que representa, acaba por atuar como mais um instrumento pelo qual os detentores do capital exercem e divulgam a sua ideologia?
Passa-se, então, à análise dos fundamentos pelos quais se entende que a ideia é plausível, ou seja, pelos quais se constata que sim, a entidade sindical pode ser considerada como um aparelho ideológico do Estado, nos moldes propostos por Althusser.
Para tanto, parte-se da premissa marxista que o ordenamento jurídico e, na realidade, o próprio Direito como um todo, é uma ferramenta utilizada pela burguesia para a imposição de regras que visam à manutenção das condições sociais necessárias à reprodução da força de trabalho e das relações de produção que alimentam o capitalismo. Vale dizer, o direito, na realidade, compõe a superestrutura social, dialogando com os demais elementos desse nível, influenciando a infraestrutura, sendo, outrossim, influenciado pelos elementos desta (da infraestrutura). Esse movimento se dá numa nuance constante, dada pela dialeticidade e pela sobredeterminação, acima analisadas, que, em última análise, contribuem para a perpetuação da ideologia então dominante.
Toda essa compreensão pode ser retirada da obra de Pachukanis, que ao citar Stucka afirma que “o Direito não mais figura como uma relação social específica, mas como o conjunto de relações em geral, como um sistema de relações que correspondem aos interesses das classes dominantes e salvaguarda tais interesses pela violência organizada.”(PACHUKANIS, 1988, p.46).
Sob essa perspectiva, a entidade sindical, logo quando aceita se submeter ao ordenamento jurídico, mesmo que seja tão somente para adquirir o seu reconhecimento formal como entidade representante dos trabalhadores, já perde o seu caráter revolucionário, analisado no tópico anterior, e, por consequência, perde o seu caráter de contraposição ao sistema capitalisma vigente.
Verifica-se, aliás, que essa operação tem um caráter eminentemente lógico e a até mesmo inevitável, pois o ordenamento jurídico jamais atribuiria legalidade (reconheceria) a um agrupamento social cujo principal escopo é justamente a eliminação do sistema jurídico-político então vigente e dominante. Trata-se, em última análise, de uma verdadeira estratégia de auto-defesa.
Nesse exato sentido, Lênim, citado por Tarso Genro, afirmou que os sindicatos, como instituições jamais são revolucionários. Não há sistema legal que confira personalidade jurídica a uma instituição que tenha por finalidade precisamente derrubar o regime-jurídico-político que lhe confere legalidade. Afirmou, ainda, que é ingenuidade acreditar em sindicatos revolucionários, pois eles são essencialmente reformistas, já que participam de um sistema legal nos marcos da legalidade e a legalidade – por si só – jamais levou à transformação revolucionária e sim, ocasionalmente, a reformas (GENRO, 1980, p.42).
O que ocorre é que o sindicato, ao acatar as normas de reconhecimento impostas pelo ordenamento jurídico, aceitando a sua função de representante dos interesses dos trabalhadores e de entidade cujo consentimento deve ser obtido pelo empregador, caso queira ele estipular novas condições de trabalho, acaba sendo invariavelmente englobado pelo sistema imposto pelo capitalismo. Esse complexo ideológico dominante, além de neutralizar a função revolucionária e de resistência sindical, acima analisada, acaba utilizando o sindicato como o seu canal de comunicação, de divulgação de suas pretensões e de verdadeira entidade avalizadora dos anseios da classe burguesa.
O desenvolvimento do processo é claro e, de certa forma, até óbvio. Tomando-se também por base os elementos expostos no tópico anterior, verifica-se que a classe proletária, com o propósito de se fortalecer e fazer frente ao poderio dos detentores dos meios de produção, adquire um grau de irresignação (inconformismo) apto a constituir – de maneira ainda extraformal – um ente pujante, a quem os trabalhadores depositam a sua esperança e o seu direito, bem como a sua força de resistência.
A criação desse ente, entretanto, não é sequer combatida pelo sistema capitalista. Muito pelo contrário, a entidade é recepcionada pelo sistema. É formalizada, ganha relevância, poder e, por fim, atribuições. Tem, então, a entidade sindical, o poder-dever de negociar, de representar os empregados, de constituir, de forma conjunta com o empregador, as regras que regulamentarão os contratos individuais dos trabalhadores, conforme também analisado no tópico anterior. Tudo nos termos das normas constantes no ordenamento jurídico burguês, que, justamente por ser instituído pela burguesia, somente possui regras que convém a essa classe social.
A conclusão de todo esse processo é que a função de negociação do sindicato, imposta pelo ordenamento jurídico, acaba invariavelmente prevalecendo em detrimento da sua função de resistência aos anseios da burguesia. Ainda que reticente no início, é inevitável. A entidade sindical chega ao cabo do conflito coletivo celebrando o acordo com o empregador. Este, por certo, amparado por um alto poder de barganha (poder econômico e jurídico) jamais avalizará os termos da avença caso esses lhe sejam realmente prejudiciais. O trabalhador, por fim, tem a sensação de que foi representado, de que foi protegido, possuindo a falsa percepção de que a sua “entidade defensora” jamais permitiria a celebração de um acordo, colocando fim a um conflito coletivo, caso o pacto celebrado não fosse favorável à classe proletariada.
Enfim, o que se vê de todo esse cenário é que a ideologia dominante capitalista acaba prevalecendo. Há a proposta do patrão (tentativa de estipulação de novas condições de trabalho ou manutenção das existentes), a resistência da classe operária (formulada mediante a deflagração do conflito coletivo) e, por fim, o deslinde do embate, seja de forma judicial ou não, mas sempre amparado em regras pertencentes a um ordenamento jurídico burguês.
Ao tratar do tema, Edelman analisou com brilhantismo o desenvolvimento de todo esse processo, notadamente no que se refere à formalização do sindicato e ao interesse da burguesia nesse fato, inclusive para fins de atribuir-lhe funções no sistema capitalista e responsabilizá-lo pelos atos dos trabalhadores. Seguem, nesse sentido, alguns trechos da obra do autor, selecionados e transcritos com o propósito de elucidar o modo como ocorrem as etapas de dominação ideológica da entidade sindical pelo sistema capitalista:
A “participação” nunca esteve ausente da estratégia da burguesia, e há venenos em seus “presentes”.
A luta de classes não é simples, como bem se presume; ela é menos simples na medida em que tudo concorre para embaralhar as coisas; e, quando digo “tudo”, refiro-me, é claro, à ideologia “dominante”; e, quando digo ideologia “dominante”, com certeza não me refiro a uma “falsa consciência, a uma visão “invertida” que deveríamos colocar em pé, mas mais precisamente a um complexo de aparelhos (sindicatos, partidos, escola...), isso a que Althusser chamava, não faz muito tempo, de “aparelhos ideológicos de Estado”.
[...]
Por exemplo, se por um lado podemos nos orgulhar do “poder” jurídico que a classe operária conquistou, por outro podemos perguntar de que natureza é esse poder, visto que é jurídico. [...]
Concordamos prontamente que só pode se tratar de poder burguês, outorgado por um direito burguês; porque concordamos facilmente que o direito burguês não pode dar nada além do “poder burguês”.
[...] a burguesia contaminou a organização operária; intimou-a a transformar-se em burocracia, funcionando segundo o modelo de poder burguês, intimou-a “a representar” a classe operária segundo o esquema burguês da representação; impôs-lhe uma língua, um direito, uma ideologia do comando da hierarquia que fariam das massas um sujeito submisso, sensato e “responsável” (EDELMAN, 2015, p. 111).
A seguir, o autor discorre acerca da razão pela qual a formação e a atuação da entidade sindical nos conflitos coletivos trabalhistas, mormente nos da modalidade de autodefesa (greve) e de autocomposição (negociação coletiva), é condizente com os anseios do empregador:
Uma coisa é certa: devemos apreender o inapreensível, isto é, os grevistas, do contrário todas as regras do direito fracassarão. De fato, o direito só apreende pessoas, sejam “físicas” – você ou eu-, sejam “morais” – uma sociedade comercial, uma associação, enfim, uma estrutura representada por órgãos habilitados. [...]
Como fazer? Como apreender essa massa, como torná-la apresentável, portanto, representável e homogênea? Como transformar a “horda selvagem” em tropa disciplinada, conduzida por chefes responsáveis?
Os juristas trabalharão em três direções, e todas terão um denominador comum: a representação sindical.
[...]
Os juristas vão “inventar” uma solução: agem como se as greves só pudessem ser realizadas por “líderes”, e agem como se os líderes fossem os dirigentes sindicais (EDELMAN, 2015, p. 112-113).
[...]
O poder sindical tornou-se, portanto, um poder de discussão, e os sindicatos um estado-maior, um corpo de oficiais encarregados de enquadrar a tropa, “uma direção qualificada, que manterá a ordem no movimento, com a qual se negociará, a qual se poderá responsabilizar”
E, como nas grandes manobras em que o soldado ignora todos os desígnios dos generais, o operário é intimado a seguir cegamente as estratégias elaboradas pelos chefes responsáveis. Há os que sabem e os que não sabem. O “saber econômico” substitui a luta de classes, portanto a política; melhor ainda: ele serve de instrumento de represália contra a “espontaneidade” das massas” (EDELMAN, 2015, p. 139-140).
Por fim, Edelman faz interessante análise acerca da situação da classe operária em si, quando finalizado esse processo de dominação ideológica:
Reduzida a um sindicalismo forte, pagando o preço desse sindicalismo: respeito à propriedade, respeito à liberdade individual de trabalho, respeito à regulação, e a classe operária?
Sem voz ou, quando toma a palavra, acusada de anacronismo – ao lado de Lênin e Marx, o que não é tão mal-, acusada de espontaneísmo – ao lado de Mao -, “presa”, capturada nas categorias jurídicas, esmagada pela ideologia, pela tecnicidade, pelo economicismo, ela é obrigada a negociar, a exprimir-se na linguagem do “comedimento”, da ordem e do direito. Em suma, exige-se dela a mais bela das qualidades burguesas: a passividade. (EDELMAN, 2015, p. 139).
Todo o cenário exposto traz o convencimento que os sindicatos não alcançam êxito naquilo que é o seu propósito mais genuíno, o seu papel principal. Ao invés de funcionarem como instrumentos aptos à manifestação da resistência coletiva em prol do alcance da pretendida “ditadura do proletariado”, as entidades sindicais se viram abarcadas pelo sistema capitalista, tendo se transformado em ferramenta propícia à reprodução das relações de produção e das forças de trabalho, necessárias, como dito, à manutenção do sistema social de interesse da burguesia.
Essa constatação já havia sido feita por Gramsci, que, em sua obra, afirmou que o sindicalismo revelou-se nada mais do que uma forma da sociedade capitalista, não uma potencial superação da sociedade capitalista. O sindicato, segundo o autor, organiza os operários não como produtores, mas como assalariados, isso é, como criaturas do regime capitalista de propriedade privada, como verdadeiros vendedores da mercadoria do trabalho (GRAMSCI, 1981, p.62).
Em outro trecho da sua obra, Gramsci retoma a ideia acerca da principal função do sindicato, a de resistência ao capitalismo, alcançando, ao final, exemplos práticos que demonstram a inaptidão da entidade para o alcance desse desiderato. Mais do que isso, nesse pequeno trecho do um artigo publicado ainda em 1919, o autor é capaz de revelar, inclusive, a razão pela qual ocorre esse fracasso:
Os sindicatos organizaram os operários de acordo com os princípios da luta de classes e foram, eles mesmos, as primeiras formas orgânicas desta luta. Os organizadores sempre disseram que somente a luta de classes pode levar o proletariado à sua emancipação, e que a organização sindical tem exatamente a finalidade de suprimir o proveito individual e a exploração do homem pelo homem, pois sua finalidade é eliminar o capitalista (o proprietário particular) do processo industrial de produção [...].
Mas os sindicatos não puderam alcançar imediatamente essa finalidade e para isso dirigiram todos os seus esforços à finalidade imediata de melhorar as condições de vida do proletariado, pedindo salários mais altos, menos horas de trabalho, legislação social. Os movimentos sucederam-se aos movimentos, as greves às greves, a condição de vida dos trabalhadores tornou-se relativamente melhor. Mas todos os resultados, todas as vitórias da ação sindical têm suas bases em origens antigas: o princípio da propriedade particular permanece intacto e forte, a ordem da produção capitalista e a exploração do homem pelo homem permanecem intactos e, aliás, complicam-se em novas formas. [...].
Assim, a ação sindical revela-se absolutamente incapaz de superar, no seu domínio e com os seus meios, a sociedade capitalista, revela-se incapaz de conduzir o proletariado à atuação da finalidade elevada e universal a que inicialmente tinha se proposto (GRAMSCI, 1981, p.62).
Diante de todo esse cenário, surgem algumas convicções. Verifica-se que, de fato, não se pode olvidar que a atuação sindical assegurou, nesse último século, a elevação do padrão social dos trabalhadores, que, por certo, passaram a possuir mais direitos. Todavia, é inarredável, outrossim, o reconhecimento de que essa evolução se deu no interior e conforme os parâmetros impostos pela ideologia dominante burguesa, que, ao invés de se contrapor a entidade sindical então composta pela classe proletariada, conseguiu se apropriar da sua estrutura, formalizando-a, enquadrando-a conforme as suas regras e lhe atribuindo a responsabilidade pelos atos dos membros dessa classe.
Todo esse contexto demonstra o modo como as ferramentas pertencentes à burguesia conseguem invariavelmente atuar no seio da classe dominada, neutralizando as pretensões que originam os conflitos coletivos trabalhistas, acarretando a perpetuação das relações de produção conforme os moldes necessários à manutenção do sistema capitalista. Demonstra, em última análise, como os sindicatos desempenham, de fato, um papel de aparelho ideológico do Estado, tal como propunha Althusser.
CONCLUSÃO
Os aparelhos ideológicos do estado são os meios pelos quais a ideologia cumpre a sua função material de fazer com que os dominados se submetam de forma consentida à ideologia dominante, imposta, no sistema capitalista, pela burguesia.
A entidade sindical tem o poder-dever de resistir à pretensão do empregador. Assim, em síntese, o sindicato tem a obrigação de enfrentar a condição imposta pelo ente representante do sistema econômico capitalista e, por consequência, tem justamente o papel de apresentar uma contraposição aos interesses da classe burguesa.
Ocorre que ao aceitar a sua função de representante formal dos interesses dos trabalhadores e de entidade negociadora, pautando a sua atuação conforme os ditames legais existentes em um ordenamento jurídico burguês, o sindicato acaba sendo invariavelmente englobado pelo sistema imposto pelo capitalismo.
Com efeito, a entidade sindical, ao ser recepcionada pelo sistema burguês, recebe atribuições formais nesse complexo. Passa, então, a entidade sindical, a ter o poder-dever de negociar, de representar os empregados, de constituir as regras que regulamentarão os contratos individuais dos trabalhadores, mas sempre segundo as leis criadas pelos detentores da ideologia então dominante.
Dessa forma, constata-se que o sindicato, na realidade, não logra êxito no desempenho da sua função genuinamente revolucionária. Bem ao contrário, o que se vê é que o sindicato acaba atuando de maneira condizente com o interesse da ideologia dominante capitalista, chegando, ao cabo do conflito coletivo, a um acordo com o empregador ou ao cumprimento de uma sentença normativa que, por certo, jamais serão realmente desfavoráveis a entidade patronal. Afinal, como visto, a solução da desavença, seja aquela alcançada de forma judicial, seja de forma extrajudicial, será sempre pautada em um ordenamento jurídico burguês.
Em razão disso, é possível concluir que o sindicato atua como verdadeiro aparelho ideológico do Estado, haja vista que desenvolve as suas atividades conforme o sistema ideológico imposto pela classe dominante, auxiliando na reprodução das relações de produção capitalistas, de maneira a perpetuar a manutenção da dominação da classe burguesa sobre a classe proletariada.
REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, Louis. Por Marx . Ed. Unicamp: São Paulo, 2015.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 11ª ed., São Paulo: LTR, 2012.
EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.
GENRO, Tarso Fernando. Contribuição à crítica do Direito Coletivo do Trabalho. Porto Alegre: Editora Síntese, 1980.
GIGLIO, Wagner. Direito Processual do Trabalho. São Paulo:LTR, 1994.
GRAMSCI, Antônio; BORDIGA, Amadeo. Conselhos de Fábrica. São Paulo: Brasiliense, 1981.
HAZAN, Ellen Mara Ferraz. Os Sindicatos e a Negociação Coletiva – Aperfeiçoando o Direito do Trabalho.In: PIMENTA, José Roberto Freire (et. al.). Direito do Trabalho. Revolução, Crise e Perspectivas. São Paulo: LTR, 2004.
MARX, Karl. Os Pensadores. vol. XXXV. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho : relações individuais e coletivas do trabalho. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
PASUKANIS, Eugeny Bronislanovich. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989.
RUSSOMANO, Mozart Victor. Princípios gerais de direito sindical. 2.ed. amp. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1994.
SANPEDRO, Francisco. A teoria da ideologia de Althusser. In: NAVES, Márcio Bilharinho (org.). Presença de Althusser. Ed. Unicamp: São Paulo, 2010.
[1] Dentre os fatores mencionados pelo autor, estão: as contradições do regime de exploração feudal, da exploração capitalista e imperialista de larga escala, nas cidades e nas regiões mineiras e petrolíferas; o exílio e desenvolvimento intelectual da elite revolucionária russa; a herança cultural da experiência política operária européia; os sovietes, como nova forma de organização política de massas; as duas guerras mundiais, incluindo o intervalo entre elas, e também o conseqüente abalo temporário às nações imperialistas; o apoio involuntário da burguesia franco-inglesa à revolução, em sua oposição ao Czar Russo.
Mestrando do programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Procurador da Universidade de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Mauricio Evandro Campos. Atuação sindical nos conflitos coletivos de trabalho à luz da teoria dos aparelhos ideológicos do Estado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jun 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51908/atuacao-sindical-nos-conflitos-coletivos-de-trabalho-a-luz-da-teoria-dos-aparelhos-ideologicos-do-estado. Acesso em: 02 nov 2024.
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