INTRODUÇÃO
Vistos como um dos pilares que contribuem significativamente para o desenvolvimento da sociedade, os direitos sociais, tão bem expressos na nossa Carta Magna, mais precisamente em seu art. 6º, como espécie de Direitos Fundamentais, devem ser efetivados pela Administração Pública através do desenvolvimento e da prática de politicas públicas. Estas políticas nada mais são do que um conjunto de metas e diretrizes estabelecidos pelo poder público para garantir a população o acesso à saúde, educação, moradia, trabalho, segurança, lazer, previdência social, bem como proteção à maternidade e à infância e também assistência aos desamparados.
O que na teoria se mostra muito bem distribuído, na prática tem causado um verdadeiro caos social, uma vez que a execução e administração dessas políticas por parte da gestão pública, tem sido ineficientes e ineficazes, diminuindo cada vez mais o acesso da população a estas tão importantes garantias constitucionais.
A prestação indevida destes serviços públicos, é muitas vezes identificada em função da ilegalidade na forma com que os atos discricionários são praticados pelos agentes públicos, uma vez que tais atos em sua natureza, não gozam de uma liberdade plena de atuação, deveriam cumprir as determinações legais e deveriam também serem condicionados à uma finalidade pública, ao interesse coletivo e ao bem comum. Tal prestação aliada à insatisfação da população que sofre consequências negativas diretas no que diz respeito a deficiência dos serviços públicos a ela direcionados, tem gerado um crescimento bastante considerável de ações no Poder Judiciário a fim de que este possa em sede de poder, garantir o cumprimento da legislação, bem como a efetivação de tal cumprimento pela Administração Pública.
Este apelo da população traz à tona a necessidade de se considerar um princípio bastante importante e presente à luz da interpretação do nosso ordenamento jurídico que é o Princípio da Separação dos Poderes, uma vez que, ao ser provocado, o judiciário passa a intervir de forma direta, controlando as atribuições discricionárias do executivo, sendo esta intervenção considerada por muitos juristas e por parte da doutrina, como uma redistribuição de poderes em que se destaca um desequilíbrio em função da sobreposição do judiciário em relação aos demais.
A partir da análise das considerações acima citadas, vem à baila os seguintes questionamentos: O judiciário pode impor limites à discricionariedade da administração pública? Se pode, até que ponto isto ocorre? Pensando nisso, se faz necessário rememorar conceitos atribuídos à discricionariedade dos atos administrativos, bem como discorrer acerca do controle judicial do ato administrativo discricionário e, por fim, tratar a respeito da reação a esse controle judicial conhecido como efeito backlash.
1- ATOS ADMINISTRATIVOS
Antes de tratar sobre discricionariedade, faz-se necessário conhecer alguns conceitos atribuídos por importantes doutrinadores a respeito do que venha a ser um ato administrativo atualmente considerado como sendo toda manifestação de vontade da administração pública que, de forma unilateral, tenha a finalidade de adquirir, resguardar, modificar, extinguir e declarar direitos ou impor obrigações aos seus administrados ou a ela própria.
Di Pietro (2012, p. 203), conceitua ato administrativo como sendo:
“(…) a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário.”
O mestre Bandeira de Mello (2007, p. 368-369), assevera que o ato administrativo é a:
“Declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional.”
Portanto, de acordo com o entendimento da doutrina majoritária, ato administrativo nada mais é do que a manifestação de vontade do Estado constituído de elementos, requisitos ou condições de validade.
Dentre os elementos que constituem os atos administrativos em consonância com a definição legal, Cretella Júnior (1977, p.22) os define como “o conjunto dos cinco elementos básicos constitutivos da manifestação da vontade da administração, ou seja, o agente, o objeto, a forma, o motivo e o fim”.
Por sua vez, Bandeira de Mello (2010, p.391), conceitua-os como se segue:
“Sujeito é o autor do ato, quem detém os poderes jurídico-administrativos necessários para produzi-lo; forma é o revestimento externo do ato: sua exteriorização; objeto é a disposição jurídica expressada pelo ato: o que ele estabelece...; motivo é a situação objetiva que autoriza ou exige a prática do ato; finalidade é o bem jurídico que o ato deve atender”.
Também discorrendo sobre a conceituação dos elementos constitutivos do ato administrativo, Meirelles (2007, p.151-152) nos ensina e defende que:
“O exame do ato administrativo revela nitidamente a existência de cinco requisitos necessários à sua formação, à saber: competência, finalidade, forma, motivo e objeto. Tais componentes, pode-se dizer, constituem a infra-estrutura do ato administrativo, seja ele vinculado ou discricionário, simples ou complexo, de império ou de gestão. (…) sem a convergência desses elementos não se aperfeiçoa o ato e, consequentemente, não terá condições de eficácia para produzir efeitos válidos”.
Dessa forma, todo ato administrativo deve ser dotado obrigatoriamente de competência, finalidade, forma, motivo e objeto, para que venha a ser considerado “perfeito” e “apto” à correta aplicação por parte da administração pública.
2- DISCRICIONARIEDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS
O ordenamento jurídico brasileiro dispõe ao administrador público, dentre as normas de Direito Público, de possibilidade para optar pelo meio mais conveniente e oportuno no desempenho de ações que satisfaçam o interesse público. É o que conhecemos como discricionariedade dos atos administrativos, ou seja, um grau de liberdade atribuído ao Estado a fim de expandir o leque de ações do administrador, em diversas áreas de atuação das políticas públicas, com vistas a satisfazer de forma legal, os interesses da população.
O renomado Bandeira de Mello(2007, p.416), define discricionariedade como:
“A margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que se cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal”.
Para o professor Juarez Freitas(2007, p.22), é possível definir discricionariedade como:
“(...)a competência administrativa (não mera faculdade) de avaliar e de escolher, no plano concreto, as melhores soluções, mediante justificativas válidas, coerentes e consistentes de conveniência e oportunidade (com razões juridicamente aceitáveis), respeitados os requisitos formais e substanciais da efetividade do direito fundamental à boa administração pública.”
É possível verificar nas definições citadas a concessão de uma margem de liberdade, dada ao agente público para que este escolha as melhores e mais coerentes soluções, com as reais situações de conveniência e oportunidade, privilegiando princípios de razoabilidade e proporcionalidade, no exercício de suas funções administrativas.
Porém, esta discricionariedade tem sido confundida com arbitrariedade por muitos agentes públicos, onde estes se utilizam da liberdade que lhes é concedida no ordenamento jurídico para praticar atos administrativos que estão fora dos limites da Lei ou simplesmente se omitirem da prática de tais atos, quando estes se apresentam fundamentais à boa e coerente administração pública.
A aplicabilidade de atos administrativos arbitrários por parte do agente público acaba por extrapolar os limites da discricionariedade administrativa, fazendo-se necessária uma intervenção judicial, que enfrenta uma resistência por parte de alguns doutrinadores, por considerarem que tal intervenção fere o princípio da Separação de Poderes, como relata Freire Júnior (2005, p.73) em uma de suas obras:
“Admitirmos o controle judicial de políticas públicas significaria colocar o judiciário como um superpoder, visto que poderia sempre controlar, mesmo que por razões não tão confessáveis, os atos dos demais poderes. Implicando na quebra de igualdade e Separação dos Poderes. A constituição exige que as escolhas de aplicação de recursos públicos sejam feitas pelos representantes do povo, eleitos democraticamente e não por juízes. A Judicialização da política pode trazer graves prejuízos, especialmente no que tange a imparcialidade dos juízes, visto que o jogo político é incompatível com posições neutras ou imparciais.” (JUNIOR, 2005, p.73)
Por outro lado, o entendimento das cortes superiores a respeito deste assunto é pela legitimidade do Poder Judiciário no controle das políticas públicas, como relata recente decisão de Recurso Extraordinário proferida pelo iminente Ministro Luiz Fux:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. DEFESA DO MEIO AMBIENTE. DANOS DECORRENTES DO LANÇAMENTO DE EFLUENTES NO LEITO DOS CÓRREGOS LAMBARI E ABAJÁ NA CIDADE DE GOIÂNIA – GO. OCUPAÇÃO IRREGULAR DE ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE ÀS MARGENS DOS REFERIDOS CÓRREGOS. DETERMINAÇÃO DE EXECUÇÃO DE PROJETOS DE REDE COLETORA DE ESGOTOS E DESOCUPAÇÃO DA ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. CONTROLE JURISDICIONAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. INOCORRÊNCIA. PRECEDENTES. NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 279 DO STF. RECURSO DESPROVIDO. (…) A jurisprudência desta Corte está sedimentada no sentido de que o Poder Judiciário, em casos excepcionais e configurada a inércia ou morosidade da Administração, pode determinar a implementação pelo Estado de políticas públicas para assegurar o exercício de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação ao princípio da separação dos poderes (artigo 2º da Constituição da República).(...) Sem préstimos a objeção recursal no que diz à suposta ingerência do Poder Judiciário no mérito administrativo; porque cabe ao Judiciário garantir o respeito ao meio ambiente equilibrado, direito fundamental previsto na Constituição Federal, artigo 225, sem que isso signifique usurpar a competência dos poderes executivos.(...)Portanto, o Poder Judiciário, ao impor à Administração Pública o cumprimento de obrigação de fazer tendente à supressão de omissão estatal, apenas dá cumprimento à execução de obrigações públicas já previstas na legislação protetiva do meio ambiente. (RE 957.214, Rel. Min. Luiz Fux DJe-077 23/04/2018 )
Portanto, dando seguimento ao entendimento dos tribunais superiores, passou a ser aceitável a interferência do Poder Judiciário na administração pública, a fim de que esta possa efetivamente cumprir o exercício legal de suas atribuições.
3- CONTROLE JUDICIAL
A administração pública no exercício de sua atuação está submetida ao controle exercido pelos Poderes Legislativo, Judiciário e por si mesma, através do controle administrativo. Estas formas de controle são imprescindíveis para limitar, de forma legal, a atuação do ente público, evitando que este aja arbitrariamente e na contramão dos princípios aos quais se encontra inserido, bem como do interesse público, o que pode acarretar verdadeira desorganização administrativa e, por conseguinte, lesões irreparáveis aos direitos de seus administrados.
Dentre as formas de controle existentes, destaca-se nesse estudo o controle judicial que é a interferência do Poder Judiciário de forma direta na administração pública. O controle judicial, como o próprio nome já sinaliza, é exercido de maneira exclusiva pelos órgãos do Poder Judiciário, em virtude da adoção do sistema de jurisdição una e tem atuação sobre qualquer tipo de ato administrativo e tem ainda, a finalidade de assegurar a atuação administrativa idônea seguindo os princípios apregoados na Constituição Federal de 1988, uma vez que o diploma constitucional, em seu art 5º, inciso XXXV, sinaliza que não será excluída da apreciação judicial a lesão ou ameaça a direito.
Neste sentido, Bandeira de Mello ( Curso de Direito Administrativo. 24. Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.117) afirma que o Poder Judiciário:
“Neste mister, tanto anulará os atos inválidos, como imporá à Administração os comportamentos a que esteja de direito obrigada, como proferirá e imporá as condenações pecuniárias cabíveis”.
Já Cretella Júnior(1998, p. 329.), aduz que:
"Obedecendo ao princípio da legalidade, é necessário, pois, que todo o aparelhamento do Estado, localizado nos órgãos dos três Poderes, lhe controle os atos, efetivamente, na prática, mediante uma série de mecanismos, de ‘freios e contrapesos’, que se reduzem, na realidade, a três tipos de controles: o controle administrativo (ou autocontrole), o controle legislativo e o controle jurisdicional. Dos três, o mais eficiente é o controle jurisdicional dos atos da Administração, mediante uma série de ações utilizadas pelo interessado, na ‘via judicial’. Desse modo a Administração é submetida à ordem judicial." (CRETELLA JÚNIOR, J. Controle Jurisdicional do Ato Administrativo, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 329.)
Num primeiro momento este controle judicial se dá especialmente no que se refere à parte vinculada do ato administrativo (competência, finalidade e forma), onde não se pode questionar o mérito (oportunidade e conveniência), e permite-se ao magistrado analisar os pressupostos de fato justificadores do ato, ou seja, se os motivos justificadores da ação são existentes e válidos, desde que o juíz não substitua o administrador na escolha das opções previstas em lei sob pena de violação do mérito do ato.
Porém, no entendimento da doutrina dominante o controle judicial constitui, sobretudo, um meio de preservação de direitos individuais, porque visa impor a observância da lei em cada caso concreto, quando reclamada por seus beneficiários. Esses direitos podem ser públicos ou privados – não importa - mas sempre subjetivos e próprios de quem pede a correção judicial do ato administrativo, salvo na ação popular e na ação civil pública, em que o autor defende o patrimônio da comunidade lesado pela Administração.
Vejamos o que aponta Di Pietro, (2013, p. 150)
“a finalidade do controle é a de assegurar que a Administração atue em consonância com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico, como os da legalidade, moralidade, finalidade pública, publicidade, motivação, impessoalidade; em determinadas circunstâncias, abrange também o chamado controle de mérito e que diz respeito aos aspectos discricionários da atuação administrativa ”
Ou seja, muitas vezes, para a análise da motivação, da causa e da finalidade do ato administrativo atacado, o juiz necessita adentrar ao seu mérito. Surge então a controvérsia de que, ao adentrar nessa tarefa, estaria o Poder Judiciário usurpando da Administração Pública a análise sobre o mérito do ato administrativo (razões de oportunidade e conveniência).
Entende-se, todavia, que não há invasão do mérito quando o Judiciário aprecia os motivos ou a ausência ou falsidade do motivo apresentado que venha eventualmente a caracterizar ilegalidade, posto que essa é suscetível de invalidação pelo Poder Judiciário. Neste sentido a manifestação do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 429570/GO, da lavra da eminente Ministra Eliana Calmon, a seguir transcrito:
"ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO.
1. Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo.
2. Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la.
3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade.
4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la.
5. Recurso especial provido."
Muito embora seja admitida a interferência do Poder Judiciário no controle de atos administrativos discricionários, muitas das decisões proferidas, principalmente aquelas oriundas de casos considerados polêmicos e de elevada repercussão social acabam por causar reações por parte das correntes mais conservadoras da sociedade. É o que chamamos de efeito backlash.
4- EFEITO BACKLASH
Backlash, ou, numa tradução livre, rejeição das decisões judiciais, foi inicialmente estudado no direito constitucional americano, tendo como origem o caso Roe versus Wade, julgado em 1973, onde se discutiu a legalização do aborto. Não obstante a decisão ter permitido o aborto, ela causou forte reação na sociedade americana de grupos pró-vida que se mobilizaram e acabaram por anos depois, fazer aprovar leis estaduais que, na prática, restringiam o aborto em situações em que antes o admitiam. Esse julgamento da Suprema Corte é até hoje estudado e teorias buscam explicar como o Poder Judiciário deve se comportar diante de casos polêmicos, com grande repercussão social ou moral.
Em outras palavras, pode-se resumir o efeito backlash como uma forma de reação a uma decisão judicial, a qual, além de dispor de forte teor político, envolve temas considerados polêmicos, que não usufruem de uma opinião política consolidada entre a população. Em decorrência desta divisão ideológica presente de forma marcante, a parte “desfavorecida” pela decisão judicial faz uso de outros meios para deslegitimar o estabelecido ou tentar contorná-lo.
Em suma, backlash relaciona-se com alguma forma de mudança de uma norma imposta, pode ser visto como uma ferramenta de ampliação da legitimidade democrática do sistema jurídico, na medida em que representa a possibilidade de participação do povo na leitura dos significados do texto constitucional.
Com o escopo de melhor compreender o efeito backlash, é fundamental destacar um breve resumo feito por Marmelstein, o qual descreve, de forma sucinta, como ocorre o fenômeno, vejamos:
“O processo segue uma lógica que pode assim ser resumida. (1) Em uma matéria que divide a opinião pública, o Judiciário profere uma decisão liberal, assumindo uma posição de vanguarda na defesa dos direitos fundamentais. (2) Como a consciência social ainda não está bem consolidada, a decisão judicial é bombardeada com discursos conservadores inflamados, recheados de falácias com forte apelo emocional. (3) A crítica massiva e politicamente orquestrada à decisão judicial acarreta uma mudança na opinião pública, capaz de influenciar as escolhas eleitorais de grande parcela da população. (4) Com isso, os candidatos que aderem ao discurso conservador costumam conquistar maior espaço político, sendo, muitas vezes, campeões de votos. (5) Ao vencer as eleições e assumir o controle do poder político, o grupo conservador consegue aprovar leis e outras medidas que correspondam à sua visão de mundo. (6) Como o poder político também influencia a composição do Judiciário, já que os membros dos órgãos de cúpula são indicados politicamente, abre-se um espaço para mudança de entendimento dentro do próprio poder judicial. (7) Ao fim e ao cabo, pode haver um retrocesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que a que havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos que, supostamente, seriam beneficiados com aquela decisão”.
No Brasil os estudos sobre o tema são recentes e a produção teórica ainda é insipiente, porém na prática, especialmente ante a postura adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e a crescente judicialização de temas complexos referentes a direitos fundamentais o tema ganha relevância e pode-se verificar a ocorrência do backlash.
A análise de questões polêmicas pelo STF (como por exemplo, o casamento homoafetivo e a Lei da Ficha Limpa) favorece outras indagações: a questão da legitimidade da decisão sem deliberação legislativa, a necessidade de discussão ou debate democrático, o enfraquecimento do legislativo e a transferência de funções atípicas para o judiciário, entre outras.
Cabe aqui discorrer sobre a decisão do STF que, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº4277 (BRASIL, 2011a) e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº132 (BRASIL, 2011b), proferiu decisão histórica, na qual reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, com todos os direitos e deveres que emanam da união estável entre homem e mulher, consagrados no art. 226, §3º , da CRFB e no art. 1.723 do Código Civil .
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº4277 foi protocolada na corte inicialmente como ADPF nº178, e buscou a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Visava, também, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem estendidos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. Já na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº132, o governo do Estado do Rio de Janeiro (RJ) alegou que o não reconhecimento da união homoafetiva contraria preceitos fundamentais como igualdade, liberdade (da qual decorre a autonomia da vontade) e o princípio da dignidade da pessoa humana, todos da Constituição Federal. Com esse argumento, pediu que a Suprema Corte aplicasse o regime jurídico das uniões estáveis, previsto no art. 1.723 do Código Civil, às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis do Rio de Janeiro.
O Ministro relator das ações Ayres Britto, seguido pelos demais Ministros do Supremo, proferiu seu voto no sentido de interpretar a norma do art. 1.723 do Código Civil Brasileiro conforme a Constituição de 1988, a fim de excluir qualquer significado do dispositivo legal que pudesse impedir que houvesse reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
Tal decisão acabou por desencadear reações contrárias tanto na esfera política, com o crescimento de vozes favoráveis ao chamado Estatuto da Família, que pretendia exluir as relações homoafetivas da proteção estatal, quanto na esfera social através de pesquisas e enquetes realizadas pelo Congresso, como por exemplo a enquete que foi realizada pela Câmara dos Deputados, de Fevereiro de 2014 a Agosto de 2015 na qual questionava se a população concordava com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto em que se discutia o Estatuto da Família, tendo como maioria concordando com a proposta e também através de manifestações nas redes sociais, contrárias à decisão do Supremo Tribunal Federal, negando veementemente o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, sem falar nas inúmeras manifestações realizadas através de protestos nas ruas contra o movimento LGBT.
O backlash à decisão da Suprema Corte não se restringiu ao mero inconformismo da população, por meio de discursos de intolerância, mas desencadeou, também, a atuação do Poder Legislativo, por intermédio do mencionado Estatuto da Família (PL 6583/13). Abriu-se espaço, por assim dizer, a uma eventual vitória dos políticos conservadores, com a possibilidade de aprovação de uma lei que visa piorar a situação dos casais homossexuais.
Este efeito mostra-se bastante importante e consistente no fortalecimento de correntes políticas no sentido de promover a solidariedade constitucional e revigorar a legitimidade democrática da interpretação constitucional. As correntes conservadoras passam a ter a necessidade de expressar com clareza seus posicionamentos e a questão se abre à sociedade de intérpretes. Assim, se por um lado posicionamentos liberais resultantes do Judiciário podem ocasionar um efeito reverso, por outro, podem auxiliar na consolidação do debate e definir os rumos que a sociedade irá optar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do presente estudo, procuramos tecer algumas considerações acerca dos atos administrativos a partir de conceitos atribuidos pela doutrina e entendendo-os como sendo manifestação de vontade da Administração Pública para com seus administrados em prol da sociedade, podendo ser vinculados ou discricionários. Em seguida tratamos da discricionariedade dos atos administrativos, bem como do controle judicial exercido pelo poder judiciário a fim de intervir de forma direta no funcionamento da Administração Pública e por fim, da reação a esse controle chamado de efeito Backlash.
Foram levantados dois questionamentos que se seguem: O judiciário pode impor limites à discricionariedade da administração pública? Se pode, até que ponto isto ocorre?
Baseando-se no estudo da doutrina e nas considerações apontadas neste trabalho, entende-se ser, não só possível, quanto necessária a imposição de limites por parte do judiciário principalmente no que diz respeito a implementação de políticas públicas, vez que se entende que, ao se eximir da prestação de tais políticas, o poder Executivo está violando a Constituição Federal, além disso, as políticas públicas visam a concretização de um rol de Direitos Fundamentais que estão previstos na própria Constituição, ou seja, se o Poder Público insiste em desconsiderar a norma, fazendo dessa previsão letra morta e acobertando-se na discricionariedade dos atos administrativos, caberá controle e intervenção do Judiciário, uma vez que, nestes casos, deixa-se o critério da razoabilidade para adentrar-se a seara da arbitrariedade, fato que, em último grau, caracteriza a omissão como ilegal. A partir do momento em que opta pela inércia não autorizada legalmente, a Administração Pública se sujeita ao controle do Judiciário da mesma forma que estão sujeitas todas as demais omissões ilegais do Poder Público, tais como aquelas que dizem respeito à consecução de políticas públicas.
Por outro lado, a postura liberal que o STF tem adotado em casos polêmicos como por exemplo, o reconhecimento da validade jurídica das uniões homoafetivas, bem como a decisão de não criminalizar a antecipação terapêutica do parto, em casos de anencefalia do feto, vem gerando fortes reações políticas contrárias às decisões, caracterizando-se na prática o efeito backlash. Em verdade, a mudança jurídica decorrente da decisão judicial obriga que os conservadores explicitem seus pontos de vista claramente e, nesse processo, um sentimento de intolerância que até então era encoberto pela conveniência do status quo opressivo tende a surgir de modo menos dissimulado.
Tome-se a situação dos homossexuais. Diante de um sistema jurídico excludente, o discurso de intolerância não precisa vir à tona, já que o status quo é conveniente ao pensamento reacionário. Ou seja, a discriminação é praticada “com discrição”, inclusive de forma oficial e institucionalizada, de modo que o preconceito fica latente, oculto e submerso na hipocrisia da sociedade. Nesse caso, como a situação é cômoda para aqueles que não fazem parte do grupo oprimido, não há como dimensionar a força numérica do conservadorismo. As decisões judiciais que afrontam esse status quo certamente acarretam uma reação contrária, o que pode gerar uma maior adesão ao discurso discriminatório explícito. É nesse contexto que o efeito backlash pode gerar, de forma indesejada e imprevista, a vitória política dos conservadores, com a possibilidade de aprovação de leis que podem piorar a situação dos grupos oprimidos.
O problema é que, sem a decisão judicial, dificilmente se conseguiria a necessária mobilização social para que a situação fosse abertamente discutida. Nessa situação, inverte-se o ônus do constrangimento, pois quem tem que sair da situação de comodidade é o grupo reacionário que precisará assumir seus preconceitos sem subterfúgios. Desse modo, a decisão judicial exigirá, para o grupo reacionário, a necessidade de sair do esconderijo e defender abertamente a situação odiosa que era encoberta por um discurso dissimulado.
É preciso ter consciência de que o efeito backlash, mesmo gerando resultados indesejados, faz parte do jogo democrático, o que não deve impedir, obviamente, uma análise jurídica sobre a validade constitucional de qualquer lei aprovada pelo parlamento, seja ela gerada ou não pelo efeito backlash. Também é preciso ter consciência de que o efeito backlash não é um mero processo de medição de forças, em que os juízes disputam com os políticos a prerrogativa de dar a “última palavra” sobre questões sensíveis. Há muito mais em jogo. Se não tivermos uma compreensão clara sobre os fatores que influenciam a legitimidade do poder, sobre o tipo de soluções institucionais que desejamos, sobre o papel da legislação e da jurisdição, com todos os seus defeitos e virtudes, dificilmente conseguiremos resolver os conflitos que surgem da constante tensão que existe entre o direito e a política.
REFERÊNCIAS
- BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado, 1988.
- ________. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n. 429.570/GO, julgado em 11/11/2003, Rel. Eliana Calmon, Goiás.
- CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 23. Ed. Rio de
Janeiro: Lumens Juris, 2010.
- CRETELLA JÚNIOR, J. Controle Jurisdicional do Ato Administrativo, Rio de Janeiro: Forense, 1998.
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo . São Paulo: Editora Atlas, 2011.
- FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle Judicial de políticas Públicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
- FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Malheiros, 2007.
- MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 2012.
- MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 16. Ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
- MARMELSTEIN, George. Efeito Backlash da Jurisdição Constitucional: reações políticas ao ativismo judicial. Texto-base de palestra proferida durante o Terceiro Seminário Ítalo-Brasileiro, proferida em outubro de 2016, em Bolonha-Itália.
- VALLE,Vanice Regina Lírio do. Backlash à decisão do Supremo Tribunal Federal:pela naturalização do dissenso como possibilidade democrática. Disponível em:. Acesso em: 13 mai. 2018.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, André Ricardo Andrade. Limitação da discricionariedade da Administração Pública pelo Poder Judiciário e o efeito backlash Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jul 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51980/limitacao-da-discricionariedade-da-administracao-publica-pelo-poder-judiciario-e-o-efeito-backlash. Acesso em: 02 nov 2024.
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