RESUMO:Dada a relevância histórica e financeira do imposto sobre a renda, com expressiva arrecadação para os cofres públicos e grande impacto sobre a capacidade contributiva dos sujeitos passivos, este trabalho se propõe especificamente ao exame do critério espacial da hipótese de incidência do imposto de renda sobre a pessoa jurídica, notadamente sobre o regime de tributação dos lucros auferidos no exterior por controladas e coligadas de pessoas jurídicas domiciliadas no país. Para tanto, o estudo se centra na relação do critério espacial com o âmbito territorial de aplicação da lei tributária, isto é, com a vigência da lei tributária no espaço. Após uma reflexão crítica, a conclusão defendida neste artigo é a de que a nova legislação sobre o tema (Lei n. 12.973/2014) não pode ser considerada propriamente uma legislação “CFC” (Controlled Foreign Corporation), pois não visa sua aplicação apenas em caráter excepcional, de forma a evitar específicos casos de abuso por parte de pessoas jurídicas sediadas no exterior, tributando de forma indistinta as controladas independentemente de estarem situadas em “paraísos fiscais” ou não. Em relação às coligadas, também não há outros testes que permitam identificar se existe um abuso a justificar a tributação da totalidade dos lucros antes da efetiva distribuição, disponibilização. Em suma, não há justificativa para a ficção de distribuição de lucros, optando o legislador brasileiro pela eficácia da arrecadação em detrimento de princípios como capacidade contributiva e dos acordos internacionais contra a bitributação mantidos pelo Brasil.
Palavras-chave: Imposto. Renda. Pessoa Jurídica. Critério espacial. Extraterritorialidade. Universalidade. Vigência. Controladas. Coligadas.
ABSTRACT: Given the historical and financial relevance of income tax, with significant collection for public safes and a great impact on taxpayers' ability to contribute, this paper specifically proposes to examine the spatial criteria of the hypothesis of income tax incidence on legal entities, notably on the regime of taxation of profits earned abroad by subsidiaries and affiliates of legal entities domiciled in the country. For this, the study focuses on the relationship of the spatial criteria with the territorial scope of application of the tax law, that is, with a validity of the tax law in space. After a critical reflection, the conclusion defended in this article is that the recent legislation on the subject (Law 12.973 / 2014) cannot be properly considered a "CFC" (Controlled Foreign Corporation) legislation, since it does not aim at its application only on an exceptional basis, in order to avoid specific cases of abuse by legal entities based abroad, regardless of whether they are in "tax heavens" or not. In relation to affiliates, there are also no other tests to identify if there is an abuse justifying the taxation of all profits before the effective distribution, availability. In short, there is no justification for the fiction of distribution of profits, opting the Brazilian legislature for the effectiveness of tax collection rather than principles such as contributory capacity and international agreements against double taxation maintained by Brazil.
Keywords: Tax. Income. Legal person. Spatial criteria. Extraterritoriality. Universality. Validity. Subsidiaries. Affiliates.
1 INTRODUÇÃO
O imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza sempre ocupou espaço importante no sistema tributário em razão de sua dimensão histórica, dos amplos recursos econômicos, políticos e jurídicos, com expressiva arrecadação para os cofres públicos, além do impacto sobre a capacidade contributiva dos sujeitos passivos.
Não obstante a inegável relevância desse imposto, foi somente recentemente que surgiram estudos com uma análise científica mais refinada. O grande desafio sempre foi conciliar os preceitos constitucionais com os desdobramentos infraconstitucionais previstos na farta legislação a ele relativa, havendo interpretações pouco elaboradas que dificultam a boa aplicação dos recursos dele obtidos e impedem que tanto Fisco como contribuinte possam usufruir dessa forma de tributação.
Ante a intensa velocidade da produção normativa em seara tributária, a doutrina nacional vem proporcionalmente aumentando sua contribuição científica, porém especificamente em relação ao imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, a complexidade de seu regime de incidência ainda tem espantado os especialistas.
Tendo em mente tais ponderações críticas, o presente trabalho propõe um exame que parte do texto constitucional em um caminho epistemológico até alcançar as normas infraconstitucionais, desde as gerais e abstratas, no sentido do ciclo de positivação do direito positivo, até que se possa alcançar a região material das condutas intersubjetivas.
Apenas o estudo mais aprofundado sobre esse imposto revela violações a princípios como o da capacidade contributiva, por não se preservar o mínimo vital à subsistência digna do ser humano, em desrespeito ao sobrevalor da “justiça tributária”.
Este trabalho se debruça especificamente sobre o exame do critério espacial da hipótese de incidência do imposto de renda sobre a pessoa jurídica, em especial sobre o regime de tributação dos lucros auferidos no exterior por controladas e coligadas de pessoas jurídicas domiciliadas no país. O estudo se ocupará da relação do critério espacial com o âmbito de aplicação da lei tributária, isto é, com a vigência da lei tributária no espaço.
Nessa análise se constatará que a lei tributária federal não se limita ao respectivo território, sendo possível contemplar situações ocorridas no exterior. Daí o art. 43, §2º, do CTN ter previsto a extraterritorialidade do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, permitindo que alcance rendimento ou receita proveniente do exterior. Essa extraterritorialidade depende do aspecto a que se der relevância nesse fato ocorrido no exterior, apoiando-se nos elementos de conexão da nacionalidade, residência, ou fonte da renda, na fixação do aspecto espacial da hipótese tributária.
Para lograr êxito na definição do critério espacial do IRPJ, o trabalho reconhece a necessidade de construção da regra-matriz de incidência do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, como instrumento de trabalho, com destaque para o suposto normativo, no qual é descrita a hipótese de incidência tributária, caracterizada por seus vários critérios. Ao critério espacial da hipótese de incidência ainda é contraposta a noção de vigência da lei tributária no espaço, relacionando-se os conceitos.
A conclusão deste trabalho a respeito da tributação dos lucros auferidos no exterior por coligadas e controladas somente se faz possível mediante compreensão e precisão do critério espacial do IPRJ, em uma abordagem teórica que parte da adoção da premissa do Direito como fenômeno comunicacional em uma perspectiva lógico-constructivista, até se obter os elementos da hipótese normativa que servem de base para a solução das discussões relativas à extraterritorialidade desse tributo.
2 O DIREITO POSITIVO COMO FUNDAMENTO PARA O IRPJ
2.1 O direito positivo como fenômeno comunicacional
A perspectiva de direito positivo adotada neste trabalho parte da teoria geral dos objetos, preconizada por Edmund Husserl, e posteriormente retomada e explicitada por Carlos Cossio. Tomando-se o ser humano como ponto de referência (visão antropocêntrica) nas relações com o meio circundante podemos obter quatro ontologias regionais ou regiões ônticas, a saber: a i) dos objetos naturais, ii) dos objetos ideais, iii) dos objetos culturais e iv) dos objetos metafísicos. Os objetos naturais são reais e podem ser colhidos na experiência, têm existência no tempo e no espaço e são neutros de valor; os objetos ideais são irreais, inocorrendo em condições de espaço e tempo, e tendem à neutralidade axiológica; os objetos metafísicos, por sua vez, são reais, têm existência no tempo e no espaço mas é desconhecido o seu acesso pela experiência, justificando-se somente pela via da crença e podendo ser valorados, positiva ou negativamente; por fim, os objetos culturais são reais, têm existência no tempo e no espaço e são suscetíveis à experiência, sendo objeto de compreensão e tendo alta carga valorativa.
Especificamente quanto ao objeto do conhecimento jurídico, o direito, cuida-se de objeto eminentemente cultural, na medida em que tem uma existência física, e pode ser apreendido a partir da experiência fenomênica, mas difere dos objetos naturais por ser altamente impregnado de valor: justo, injusto, lícito, ilícito, etc. No magistério do Professor Paulo de Barros Carvalho:
o direito posto, enquanto conjunto de prescrições jurídicas, num determinado espaço territorial e num preciso intervalo de tempo, será tomado como objeto da cultura, criado pelo homem para organizar os comportamentos intersubjetivos, canalizando-os em direção aos valores que a sociedade quer ver realizados[1].
Na realidade, a rigor, “direito” é termo ambíguo, que pode ser conceituado e analisado sob duas perspectivas diferenciadas pela doutrina, a saber, como direito positivo e como ciência do Direito, cada um constituindo linguagens e sistemas distintos, que devem ser adequadamente separados, sob pena de instabilidade semântica.
Sob a óptica de “direito positivo”, o Direito significa o complexo de normas jurídicas válidas numa dada ordem social, que têm por função a disciplina do comportamento humano (inter-subjetividade), que constitui o seu objeto. Estruturalmente, o direito positivo contempla um plexo de proposições, com linguagem prescritiva, isto é, voltada a prescrever e ordenar comportamentos, baseando-se em uma lógica deôntica (do dever-ser), em que as normas se classificam segundo uma dicotomia entre válidas e não válidas. Como as normas do direito positivo disciplinam comportamentos humanos, direcionam-se ao campo material da conduta, sendo capazes de modificá-la.
Por sua vez, sob a óptica de “ciência do Direito”, o Direito se apresenta como sistema social, jurídico, que se debruça a descrever o enredo normativo, e não a prescrever condutas, recaindo sobre um feixe de proposições (conteúdo normativo), que constitui o seu objeto. Nesse mister, a ciência do Direito assume linguagem eminentemente descritiva (sobrelinguagem, por se referir à linguagem de direito positivo) e adota uma lógica apofântica, pela qual suas proposições se classificam por critérios de verdade e falsidade, e não de validade e invalidade, diferenciando-se do direito positivo também por não interferir em seu próprio objeto, isto é, por não modificar o direito positivo que lhe serve de objeto, limitando-se a descrevê-lo.
Sendo assim, conclui-se que há nítida diferença entre os dois sistemas jurídicos, de direito positivo e ciência do Direito, que acabou sendo reforçada pela linguística, tanto em relação ao tipo de linguagem (prescritiva x descritiva), quanto em relação ao objeto, versando o primeiro sobre textos legislativos (linguagem objeto) e o segundo sobre textos da doutrina (linguagem de sobrenível), apresentando um linguagem técnica e o outro, linguagem científica, baseados na lógica deôntica (dever-ser) e apofântica, respectivamente. Ademais, o sistema de direito positivo convive com a possibilidade de haver contradições internas, e a ciência do Direito, por sua vez, não admite sua ocorrência[2].
Tecidas essas considerações, impõe-se analisar o IRPJ como uma construção do Direito positivo, introduzido por linguagem com função prescritiva e baseado numa lógica deôntica (do dever-ser), irrompendo-se a fenomenologia de sua incidência a partir da constituição do fato jurídico descrito hipoteticamente no antecedente de uma norma jurídica tributária em sentido estrito, essencial, e que deve ser compreendida na sequência.
2.2 A regra-matriz de incidência ou a norma jurídica tributária em sentido estrito
O conceito de regra-matriz de incidência em geral pode ser definido como um instrumento metódico concebido pela Teoria Geral e Filosofia do Direito para organizar o texto de direito positivo confeccionado pelo legislador, propiciando a compreensão da mensagem legislada sob uma estrutura comunicacional, formada, basicamente, de um juízo hipotético, em que se associa uma consequência jurídica desde que ocorrido o fato previsto no antecedente, falando-se em hipótese e tese, descritor e prescritor, vinculados entre si por uma imputação deôntica, que pode variar sob os modais lógicos “permitido” (Pp), “proibido” (Php) e “obrigatório” (Op).
Trata-se de uma estrutura padrão comum a todas as normas jurídicas, o que fica evidenciado a partir do seguinte conceito apresentado por Lourival Vilanova[3] ao discorrer sobre a norma jurídica:
(...) é uma estrutura lógica. Estrutura sintático-gramatical é a ‘sentença ou oração’, modo expressional frástico (de frase) da síntese conceptual que é a norma. A norma não é a oralidade ou a escritura da ‘linguagem’, nem é o ‘ato-de-querer ou pensar’ ocorrente no sujeito emitente da norma, ou no sujeito receptor da norma, nem é, tampouco, a ‘situação objetiva’ que ela denota. A norma jurídica é uma estrutura lógico-sintática de significação (...).
Por simbolizar a norma-padrão de incidência, em matéria tributária a regra-matriz de incidência é conhecida como norma jurídica tributária em sentido estrito, distinguindo-se da norma jurídica tributária em acepção ampla, que também contribui para compor a disciplina do tributo, porém não cuida propriamente do fenômeno da incidência. Ante o princípio da homogeneidade sintática das regras de direito positivo, as normas jurídicas em matéria tributária têm a mesma estrutura formal, permanecendo estável o esquema lógico ou sintático, o que não se verifica no plano semântico.
Quanto à estrutura da regra-matriz de incidência tributária, pode-se dizer resumidamente que na hipótese ou descritor da norma jurídica o legislador prevê a ocorrência de um evento selecionando traços e características para identificá-lo, elementos estes indicativos de riqueza econômica, representados pelo critério material, espacial e temporal da hipótese tributária. Afinal, a regra-matriz de incidência incide sobre determinada parcela dos fatos sociais, aquela marcada por fatos economicamente apreciáveis e que criam prestações pecuniárias para o Estado tributante.
Por sua vez, já na proposição-tese, ou consequente normativo, o legislador prescreve um vínculo abstrato, uma relação deôntica, entre o sujeito ativo e o sujeito passivo da obrigação tributária, de modo que o consequente ou prescritor da regra-matriz de incidência é definido por dois critérios: o pessoal (sujeito ativo e passivo) e o quantitativo (base de cálculo e alíquota).
A regra-matriz de incidência pode ser mais bem visualizada após sintetizada por Paulo de Barros Carvalho no seguinte esquema:
D [cm(v.c).ct.ce] --- [cp(Sa.Sp).cq(bc.al)]
no qual “D” é dever-ser neutro que juridiciza o vínculo deôntico entre hipótese e consequência, apresentando-se o antecedente (descritor) com os seus critérios e conectado com o consequente normativo (prescritor), também composto por seus próprios componentes[4].
Tal fórmula é capaz de transmitir em uma expressão mínima e irredutível de manifestação do deôntico o sentido completo da mensagem legislada.
Ressalve-se, no entanto, que a incidência instrumentalizada pela regra-matriz de incidência não é automática logo a partir do acontecimento do evento previsto na hipótese (antecedente), pois para irradiar os efeitos previstos no consequente normativo é necessária a atuação do ser humano, que a partir da regra-matriz de incidência, norma geral e abstrata, constrói norma jurídica individual e concreta, vertendo-a na linguagem competente, o que sucede por meio do ato de lançamento a constituir o crédito tributário e requer absoluta identidade entre o fato jurídico tributário ocorrido no mundo social e o desenho normativo da hipótese, em uma operação lógica de subsunção, o que decorre da tipicidade tributária.
Também importa distinguir os textos legislativos produzidos a cargo dos legisladores, no sentido amplo, das proposições normativas, que não são exclusividade dos responsáveis pela produção dos veículos introdutores de normas jurídicas, mas são produzidas por todo aquele que se coloca na posição de intérprete da mensagem legislada e cria significações por meio de sua atividade construtiva.
Conforme se percebe, a funcionalidade operacional da regra-matriz de incidência tributária se deve à estruturação mais racional do texto legislativo, em uma forma comunicacional, vertida em linguagem, que permite o adequado ponto de partida e o consequente trabalho do intérprete de construção de sentido nos planos semântico e pragmático. Assim, a virtude da regra-matriz reside em introduzir um padrão metodológico para definir o sistema jurídico-prescritivo, servindo como critério seguro para nortear o pensamento do intérprete e do cientista do Direito, elevando o rigor científico no estudo e compreensão do sistema de direito positivo, que passa a ser mais independente de proposições de outras áreas[5].
Especificamente quanto à hipótese de incidência tributária, ou suposto normativo, pode ser definida como a descrição contida no antecedente da regra-matriz de incidência tributária ou norma jurídica tributária em sentido estrito. Na hipótese, ou descritor da norma jurídica, o legislador prevê a ocorrência de um evento selecionando traços e características para identificá-lo, elementos estes indicativos de riqueza econômica e representados pelo critério material, espacial e temporal da hipótese tributária. Afinal, a hipótese traz uma descrição abstrata de apenas determinada parcela dos fatos sociais, aquela marcada por fatos economicamente apreciáveis e que criarão prestações pecuniárias em favor do Estado tributante.
A partir da hipótese tributária extrai-se a completude do chamado “fato gerador”, ou suposto da norma primária tributária, identificados pelo aspecto material do antecedente tributário, no qual se encontra a descrição objetiva do fato; aspecto espacial, que apresenta as condições territoriais de ocorrência do evento; e aspecto temporal, que apresenta o momento em que se tem por ocorrido o fato.
Por outro lado, a importância do consequente da regra-matriz de incidência reside em encontrarmos nela os elementos identificadores da relação jurídica tributária, tais como o aspecto quantitativo e os seus sujeitos, ativo e passivo, respectivamente o titular do direito subjetivo de exigir a prestação e a pessoa física ou jurídica de quem se exige o cumprimento da prestação pecuniária.
Destarte, a hipótese de incidência apresenta a descrição de um fato por intermédio dos elementos suficientes e capazes para identificá-lo, e que, uma vez ocorrido no mundo social e relatado na linguagem competente, irromperá o vínculo deôntico prescrito no consequente da regra-matriz, exsurgindo a obrigação tributária de recolhimento, no caso deste trabalho o IRPJ, mediante um ato humano de sua aplicação, a saber, a produção de uma norma individual e concreta (lançamento).
2.3 Os critérios espacial e temporal da hipótese de incidência, e a vigência territorial e temporal da lei tributária
Consoante exposto, o critério espacial da hipótese de incidência tributária, objeto do presente estudo, aponta as condições territoriais em que se considera efetivamente ocorrido o evento descrito como fato gerador da obrigação tributária (fato jurídico tributário), como mais uma forma de identificá-lo e caracterizá-lo, ao lado do critério material e temporal.
Por sua vez, embora possa suscitar confusão com o conceito de vigência territorial da lei ou vigência da lei no espaço, este se refere a atributo da lei, da norma jurídica tributária, e que no geral é definido pela doutrina como força para reger as condutas, disciplinar comportamentos, isto é, prontidão para propagar os efeitos prescritos, o que não é obtido simplesmente a partir da ocorrência do fato jurídico previsto em seu antecedente, pois a norma jurídica tributária apenas propagará os seus efeitos dentro de seu âmbito territorial de aplicação, já delimitado. E definido previamente esse limite territorial, o fato jurídico tributário somente se reputará ocorrido se, ainda, verificado no lugar determinado como critério espacial da hipótese. Em regra, fala-se no princípio da territorialidade da norma jurídica tributária.
O mesmo raciocínio se aplica em relação às condições de tempo. Ao passo que o critério temporal indica as condições de tempo, isto é, o momento em que se considera efetivamente ocorrido o evento descrito hipoteticamente como ensejador da obrigação tributária, outro é o conceito de vigência temporal, tido como o intervalo de tempo durante o qual a norma tem força, falando-se em retroatividade ou ultratividade, isto é, na aplicação da regra a fatos passados ou futuros à sua vigência.
Em suma, tanto nas circunstâncias de espaço quanto de tempo, percebe-se que os critérios da regra-matriz de incidência guardam relação com o fato jurídico tributário que se subsumirá à hipótese de incidência, ao passo que a vigência se refere ao alcance da norma jurídica tributária, âmbito no qual ela apresenta capacidade para gerar efeitos. Critério é atributo do fato jurídico, e vigência é atributo da norma.
3 A CONSTRUÇÃO DA NORMA JURÍDICA TRIBUTÁRIA EM SENTIDO ESTRITO: O CRITÉRIO ESPACIAL DO IRPJ
3.1 A hipótese de incidência do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza
A Ciência do Direito em sentido estrito dedica-se a falar em tom descritivo sobre o ordenamento jurídico, mas exige um trabalho interpretativo, de cunho subjetivo, de atribuição de sentido, para a constituição do direito positivo em linguagem, pois a participação do agente é fundamental no aparecimento da mensagem científica.
Ao pensarmos num texto crítico sobre o imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, não devemos olvidar que ao descrever o evento hipotético a ser tributado, o legislador o seleciona com base em aspectos de ordem material, temporal e espacial, de modo que não podemos nos distanciar do modelo proposto pela regra-matriz de incidência, norma geral e abstrata, que apresenta em seu antecedente a hipótese de incidência tributária.
O IR – imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, de competência da União Federal, é previsto no art. 153, III, da Constituição Federal e a partir dele podemos construir uma regra-matriz de incidência geral, nos seguintes moldes:
“Dado o fato de auferir ‘renda’, compreendida esta no sentido de acréscimo patrimonial, que implique aumento líquido de patrimônio (critério material), durante certo período de tempo, qual seja, no último instante do exercício financeiro (critério temporal), independentemente do local de produção da renda, desde que presente um dos critérios de conexão – residência, domicílio e nacionalidade - (critério espacial) (ANTECEDENTE) deve ser o dever jurídico de tais contribuintes, pessoas físicas ou jurídicas titulares da renda adquirida (critério pessoal), de pagamento do “imposto de renda e proventos de qualquer natureza”, que tem como base de cálculo o montante real, arbitrado ou presumido desse acréscimo, sobre ele incidentes alíquotas a serem aplicadas de forma progressiva em função do aumento da base de cálculo (critério quantitativo) (CONSEQUENTE)”.
Para o fim de bem delimitar a materialidade do imposto, inicialmente deve-se compreender adequadamente o conceito de “renda”, bastante controvertido na doutrina pátria. Pode-se mencionar a “teoria da fonte”, pela qual corresponderia aos rendimentos periódicos de uma fonte produtiva necessariamente estável e durável, a “teoria legalista”, que obtém o conceito simplesmente a partir da lei, e por fim, a “teoria do acréscimo patrimonial”, adotada neste estudo por preconizar a existência de um conceito pressuposto na Constituição Federal, pelo qual somente é considerado como renda o ingresso líquido em bens materiais, imateriais, ou serviços, apreciável em moeda e que implique efetivo aumento líquido do patrimônio de contribuinte, consistente no saldo positivo obtido após o confronto entre certas e entradas e saídas durante determinado período examinado, a despeito do conceito trazido no art. 43 do CTN. A expressão “proventos de qualquer natureza” também pode ser tomada como espécie do gênero “renda”.
Em verdade, não se pode depreender o conceito de renda diretamente da Constituição Federal, mas apenas de forma indireta. Em princípio, a hipótese de incidência do imposto de renda vem prevista no art. 153, III, da Constituição Federal, que no contexto da discriminação das competências tributárias entre os entes federativos estabelece que “Compete à União instituir impostos sobre: III – renda e proventos de qualquer natureza.”
Examinando-se os impostos afetos à competência tributária da União, têm-se impostos que oneram o patrimônio de forma estática, como índice de capacidade econômica (ex: ITR); impostos que tributam parcela do patrimônio de forma dinâmica, independentemente da ocorrência de acréscimo patrimonial (ex: impostos de importação e exportação); e, por fim, o imposto de renda, que também onera o patrimônio a partir de uma perspectiva dinâmica, porém exigindo-se acréscimo de patrimônio, de modo que ostentará capacidade econômica o contribuinte que obtiver um acréscimo ao conjunto de bens e direitos de sua propriedade, em um determinado intervalo de tempo. Essa é a exegese que deve ser feita da expressão “renda e proventos de qualquer natureza” a partir do texto constitucional, que deve ser associado ao verbo “auferir”, além da imposição também constitucional de que tenha caráter pessoal, geral, universal e progressivo, e atenda ao princípio da capacidade contributiva.
Em outras palavras, deve-se interpretar tal expressão como acréscimo de patrimônio (conjunto de bens e direitos) pertencente a uma pessoa (física ou jurídica), dentro de lapso temporal em que se possam cotejar certos ingressos e desembolsos. Na definição de José Arthur Lima Gonçalves, o conteúdo semântico mínimo do “conceito constitucionalmente pressuposto” de renda pode ser resumido como um saldo positivo resultante do cotejo entre certas entradas e saídas, ocorridas ao longo de um dado período[6].
Assim, evidenciado que o texto constitucional traça os contornos gerais do conceito de renda para fins de incidência do imposto federal, cumpre ressalvar, no entanto, que o conceito não é construído de forma completa diretamente a partir da Constituição Federal. Afinal, o conceito ainda deve ser integrado com o disposto no Código Tributário Nacional, que no exercício de competência de legislador complementar, no art. 43, não desbordou dos traços gerais do conceito constitucional de renda, ao prever:
Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica:
I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior. (grifo nosso)
Conforme se percebe, apesar de o conceito de renda não ser diretamente obtido a partir da Constituição Federal, não pode a lei complementar fixar um conceito totalmente livre, devendo respeitar as balizas já delineadas no texto constitucional, no exercício da competência para disciplinar normas gerais em matéria tributária, estatuída no art. 146, inciso III, da Constituição Federal[7]. De modo semelhante, não pode o legislador ordinário ultrapassar os limites delineados pela Constituição Federal, ainda que receba autorização da legislação complementar para a fixação do conceito de renda.
Outro não é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer que o conceito de renda não é construído diretamente a partir do texto constitucional, mas também com o auxílio da legislação infraconstitucional, que deve ser interpretada, contudo, de modo a não implicar ofensa reflexa ou indireta à Carta Magna (RE n. 607.826 AgR/RJ, DJ 17.03.2014).
Para melhor definição do conceito de renda, diga-se, outrossim, que dado o seu caráter dinâmico, ela não se confunde com capital, fortuna ou patrimônio do contribuinte, o que acabaria por permitir a tributação de uma situação estática. Tampouco se confunde com lucro, que se refere ao saldo positivo obtido pela pessoa jurídica em sua atividade durante determinado período e que, nessa conformidade, apresenta-se como uma das espécies do gênero renda.
Conclui-se, enfim, que a expressão “renda e proventos de qualquer natureza”, que constitui objeto da tributação, deve ser compreendida como acréscimo patrimonial.
Quanto às noções de aquisição de disponibilidade jurídica e aquisição de disponibilidade econômica mencionados no art. 43 do CTN, vale-se o dispositivo do permissivo previsto no art. 146, III, da CF, que exige o instrumento da lei complementar para veicular normas gerais de direito tributário, no que estão compreendidos os fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes.
A disponibilidade econômica diz respeito ao efetivo recebimento da renda por seu titular em seu caixa (cash basis), ao passo que a disponibilidade jurídica refere-se à simples produção da renda, independentemente de recebimento em dinheiro pelo titular (accrual basis). Tal distinção perde relevância, contudo, se considerado que ao permitir a instituição do imposto sobre a renda, a Constituição Federal nada diz se incidirá sobre a renda produzida e ainda não recebida, ou não, de modo que o legislador complementar elegeu como fato jurídico tributário tanto a aquisição da disponibilidade econômica quanto da simples disponibilidade jurídica. Daí a jurisprudência ter admitido a incidência do IR nos casos em que o contrato social prevê a disponibilidade econômica ou jurídica imediata, pelos sócios, do lucro líquido apurado, na data do encerramento do período-base (STF - RE 172.058, Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, DJ de 13.10.1995).
Note-se que na distinção conceitual acima apontada pouco importa a origem da renda disponibilizada ao contribuinte, que constituirá fato jurídico tributário se lícita ou ilícita, bastando a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica, mas não simples provisões de créditos ainda insuscetíveis de disposição e por isso não caracterizadoras de acréscimo patrimonial. A partir do art. 43 do CTN evidencia-se que constituirá fato jurídico tributário a conduta de adquirir renda disponível. Fica excluída, por conseguinte, a tributação de valores provisionados, juridicamente e economicamente insuscetíveis de disposição, que configuram mera aparência de acréscimo patrimonial e acabam indevidamente por transformar o imposto sobre a renda em um imposto sobre patrimônio, que não alcança simplesmente o resultado dos rendimentos.
Afinal, evidente que o importe tributado deve ser limitado, e não por aspectos econômicos extrajurídicos, mas sim por dados já juridicizados por normas de direito positivo, inseridos no universo dos signos do direito. Porém, não é a capacidade contributiva absoluta que desperta os maiores problemas e sim a capacidade contributiva relativa. O prof. Paulo de Barros Carvalho[8] conclui que o princípio da capacidade contributiva absoluta retrata a realização do conceito jurídico de renda, ao passo que o princípio da capacidade contributiva relativa é contemplado no art. 146 da Constituição Federal (“segundo a capacidade econômica do contribuinte”) e implica realizar a igualdade tributária, de modo que cada participante contribua de acordo com o tamanho econômico do evento.
Como o imposto sobre a renda tem forte índole de pessoalidade, permite a perfeita concretização do princípio da capacidade contributiva relativa, desde que a edição da norma jurídica geral e abstrata atenda ao preceito constitucional, sob pena de se exigir riqueza indevida (confisco). Isso significa que, inexistindo disponibilidade jurídica ou econômica, não terá ocorrido o factum tributário e, portanto, os elementos para a sua composição material.
Ante o exposto, definido o critério material da hipótese de incidência, passa-se à análise dos critérios temporal e espacial. Afinal, segundo o prof. Paulo de Barros Carvalho[9], é inconcebível identificar-se um fato jurídico tributário sem precisá-lo em um setor do espaço e sem situá-lo em um ponto do tempo histórico. Nesse aspecto, todas as ocorrências factuais pareceriam “complexivas”, e não instantâneas, uma vez que a apuração das receitas e despesas deve ocorrer durante determinado período.
Ocorre que, na realidade, todos os fatos tributáveis ocorrem numa unidade de tempo, revelando-se como fatos instantâneos. No caso do imposto sobre a renda, no momento correspondente ao último instante do último dia relativo ao período de competência, isto é, ao final do exercício financeiro, de modo que apenas será considerado fato jurídico do IR o acréscimo patrimonial verificado nesse momento.
O critério espacial passa a ser estudado no item a seguir, com ênfase no imposto de renda devido pelas pessoas jurídicas, objeto deste trabalho.
3.2 O critério espacial no IRPJ (imposto de renda da pessoa jurídica) e consequente extraterritorialidade da lei tributária
De acordo com a premissa adotada neste trabalho, o Direito constrói sua própria realidade. Isso ocorre com as pessoas jurídicas, que são criação do Direito, existindo apenas em função do sistema jurídico, que constitui uma situação por intermédio da linguagem.
Nesse diapasão, também se justifica que o direito positivo eleja como critério de conexão para incidência de suas normas sobre IPRJ um vínculo de natureza pessoal, como residência, domicílio, nacionalidade, conceituando inclusive o que se entende por residência. Tais critérios de conexão propiciam uma ampliação do critério espacial do IRPJ, implicando a extraterritorialidade da exação, com a vigência de suas normas para além do território brasileiro, em situações específicas.
Especificamente em matéria de imposto sobre a renda, até dezembro de 1995 as pessoas físicas se submetiam ao princípio da universalidade, e as jurídicas ao princípio da territorialidade. Sucede que a partir do advento da Lei n. 9.249/95 o Brasil passou a adotar o princípio da universalidade (tributação em bases universais) também para as pessoas jurídicas, tributando, assim, as rendas produzidas no exterior, o que permaneceu sob a égide das Leis nºs 9.430/96 e 9.532/97. Com efeito, para o fim de alcançar os rendimentos produzidos pela pessoa jurídica extraterritorialmente, adotou-se a “tributação da renda mundial” (worldwide income taxation).
Não obstante, apesar do regime da universalidade atualmente vigente, o prof. Paulo de Barros Carvalho ressalva que não foi afastado o princípio da territorialidade, que naquele está abrangido e continua a fundamentar a tributação da renda auferida no interior do Estado brasileiro.
Por conseguinte, como decorrência dessa nova tributação em bases mundiais, deve-se considerar como fato jurídico tributário a produção de rendimentos também fora do território nacional (extraterritorialidade), mantendo-se intacta no território brasileiro a tributação pelo princípio da territorialidade.
Para alcançar a extraterritorialidade, o princípio da universalidade elege critério de conexão (pessoal: residência, domicílio, nacionalidade) independente da fonte dos rendimentos, isto é, de a produção se encontrar ou não nos limites territoriais do Estado. Daí o tributarista Alberto Xavier concluir oportunamente que o critério espacial da regra-matriz de incidência não necessariamente coincide com a ordem jurídica competente para a sua disciplina, de modo que apesar de a fonte de produção do rendimento ser externa, o Estado brasileiro se valerá do ato de lançamento pela autoridade fiscal para constituir norma individual e concreta, em um caso típico de vigência extraterritorial da lei federal competente para a instituição do imposto sobre a renda. Tendo em vista que a norma jurídica tributária alcançará fatos ocorridos também no exterior, fica clara a mitigação do princípio da territorialidade, ampliando-se, assim, a vigência territorial da norma, que em matéria de imposto sobre a renda passa a ter um caráter extraterritorial.
A extraterritorialidade da norma também está intimamente ligada ao critério espacial da hipótese de incidência, pois além de aplicada a norma fora dos limites territoriais do Estado brasileiro, também será reputado ocorrido o fato jurídico tributário na ação de auferir renda no exterior, justamente para fins de se tributar a universalidade da renda.
Tratando-se de pessoa jurídica domiciliada no exterior, não está sujeita aos efeitos da lei nacional, mesmo se considerada a vigência extraterritorial da lei federal sobre o imposto de renda. Disso decorre que o lucro auferido no exterior por pessoa jurídica ali domiciliada é irrelevante para o sistema jurídico nacional e inalcançável pela legislação brasileira, se ainda não foi disponibilizado em favor de domiciliado no país.
Diversamente, sendo o lucro auferido por pessoa jurídica domiciliada no país, é perfeitamente tributável pela lei brasileira ainda que a fonte esteja localizada no exterior. É nessa categoria que se enquadram os lucros auferidos no exterior por controladas ou coligadas, pois são computados na base de cálculo do IRPJ devido pela pessoa jurídica domiciliada no país. Consideram-se coligadas duas sociedades quando uma participa do capital social da outra com 10% ou mais, porém sem controlá-la; considera-se controlada a sociedade que tem como sócia a controladora, com direitos que lhe assegurem preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores.
Tal sistemática de tributação se encontra em consonância com o ordenamento jurídico, considerando-se o domicílio da controladora e coligada no território nacional, sob a vigência territorial da lei tributária federal. No entanto, o que se questiona é a validade da tributação dos lucros auferidos por essas coligadas e controladas antes mesmo da efetiva disponibilização de tais lucros, o que difere da situação das filiais e sucursais, simples extensões territoriais da pessoal jurídica aqui domiciliada.
Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o art. 35 da Lei n. 7.713/88, que considerava “automaticamente” distribuído aos sócios o lucro apurado em balanço na data do encerramento do período-base, para fins de incidência do IR, pois não se vislumbra qualquer das hipóteses de disponibilidade do art. 43 do CTN, já examinadas, em afronta à materialidade contida na regra-matriz de incidência do IR, que requer a aquisição de disponibilidade ‘econômica’ ou ‘jurídica’ de renda (RE nº 172.058-SC).
No entanto, segundo se abordará no próximo capítulo, a posterior Medida Provisória nº 2.158-34/2001, no seu art. 74, equiparou indevidamente as categorias de filiais, sucursais, coligadas e controladas, sujeitando todas à ficção relativa à disponibilização dos lucros na data do fechamento do balanço no qual foram apurados, independentemente de sua efetiva distribuição, em afronta ao conceito da disponibilidade da renda.
4 IMPLICAÇÕES DECORRENTES DA DEFINIÇÃO DO CRITÉRIO ESPACIAL DO IRPJ
4.1 O critério espacial do IRPJ e o regime de extraterritorialidade atualmente vigente na tributação dos lucros auferidos no exterior por sociedades coligadas e controladas
Em matéria de Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas, objeto deste trabalho, a extraterritorialidade da exação tem sofrido regulamentação desde a Lei n. 9.249/95, que instituiu a tributação em bases universais (world-wide-income), adotando o princípio da universalidade para que os lucros auferidos no exterior fossem computados no lucro real.
A tentativa de se tributar a renda das pessoas jurídicas em bases universais se tornou propícia a partir da introdução do §2º ao art. 43 do Código Tributário Nacional, pela LC n. 104/2001, que deixou a cargo da lei ordinária estabelecer as condições e o momento em que se dará a disponibilidade de receitas e rendimentos oriundos do exterior, para fins de incidência do IRPJ, ao dispor que: “na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto...”.
Não se deve olvidar, contudo, que o legislador ordinário está limitado ao conceito de renda, ou seja, de acréscimo patrimonial disponível ao titular, em conformidade com o caput do art. 43 do CTN.
Daí a alteração do CTN ter dado margem à edição da Medida Provisória n. 2.158-35/2001, seguida da Instrução Normativa da SRF nº 213/2002, e em seu art. 74 restabeleceu previsão já antiga, na Lei n. 9.249/95, permitindo a tributação de lucros auferidos por controladas e coligadas no exterior, porém independentemente de sua efetiva disponibilização, em afronta à materialidade do IRPJ, ao permitir que o imposto fosse calculado sobre resultado positivo de equivalência patrimonial (método de equivalência patrimonial).
Sucede que referida medida provisória foi impugnada na ADI n. 2.588/DF, ocasião em que o Supremo Tribunal Federal acabou por reconhecer a inconstitucionalidade do mencionado art. 74 na tributação de lucros de coligadas sediadas em países sem tributação favorecida ou paraísos fiscais e, de outro lado, a constitucionalidade da tributação de controladas sediadas em países com tributação favorecida ou que sejam paraísos fiscais (DJ 10.02.2014). Silenciou a Suprema Corte, contudo, quanto à tributação de investimentos em sociedades estrangeiras, ou mesmo em relação às controladas e coligadas situadas em países com os quais o Brasil tenha firmado Acordos contra Bitributação, não se posicionando também sobre o método de equivalência patrimonial.
Daí a recente edição da Lei n. 12.973/2004, que visou suprir tais lacunas. Tributa os lucros auferidos por coligadas sediadas no exterior, fora dos “paraísos fiscais”, mas apenas quando tiverem sido efetivamente disponibilizados para pessoa jurídica domiciliada no Brasil, além de exigir condições para que se considere que uma empresa coligada esteja fora de paraíso fiscal ou país de tributação favorecida. Caso descumpridas tais condições, os lucros serão considerados disponíveis já na data de apuração e alcançados pelo IRPJ.
Quanto às controladas, a nova lei impõe sejam computadas na determinação do lucro real e na base de cálculo da CSLL as parcelas do ajuste do valor do investimento em controlada, direta ou indireta, equivalente aos lucros auferidos no período, ou seja, tributando lucros ainda não disponibilizados. Na realidade, a legislação tenta induzir o intérprete ao entendimento de que não são os lucros das empresas controladas no exterior que são tributados, mas sim o seu reflexo no patrimônio da controladora[10], argumentação na tentativa de afastar a aplicação dos acordos contra a bitributação que, assim, não seriam violados. A legislação também diferenciaria a situação das controladas de estarem ou não sediadas em paraísos fiscais, o que permitiria ou não se considerar de forma consolidada os seus resultados para fins de apuração do IRPJ e da CSLL da controladora sediada no Brasil.
Sucede que, diante das disposições da nova legislação sobre lucros auferidos no exterior, não pode ela ser considerada propriamente uma legislação “CFC” (Controlled Foreign Corporation), pois não visa sua aplicação apenas em caráter excepcional, de forma a evitar específicos casos de abuso por parte de pessoas jurídicas sediadas no exterior, tributando de forma indistinta as controladas independentemente de estarem situadas em “paraísos fiscais” ou não. Em relação às coligadas, também não há outros testes que permitam identificar se existe um abuso a justificar a tributação da totalidade dos lucros antes da efetiva distribuição, disponibilização. Em suma, não há justificativa para a ficção de distribuição de lucros, pois a aplicação da lei não é somente para casos excepcionais ou abusivos. Nesse diapasão, o que se discute a partir do novo diploma legal é, no caso de coligada em país de tributação favorecida, a indevida ficção de distribuição de lucros à empresa sediada no Brasil, antes mesmo de ocorrer a efetiva disponibilização da renda que constitui materialidade do IRPJ.
Revela-se, portanto, o caráter nitidamente arrecadatório da Lei n. 12.973/2014, ao tributar os lucros logo a partir de sua apuração, antes da efetiva distribuição - à exceção apenas das coligadas situadas em países de tributação normal -, o que acarreta efeitos deletérios ao ordenamento nacional.
Ante o exposto, conclui-se que o legislador brasileiro optou pela simplicidade e eficácia da arrecadação em detrimento de princípios como isonomia dos contribuintes, capacidade contributiva, além de comprometer a competitividade das empresas nacionais no mercado internacional e não atrair riquezas do exterior, implicando até mesmo afronta aos acordos internacionais contra a bitributação firmados pelo Brasil, o que eterniza os debates no Poder Judiciário e traz retrocesso para a economia nacional[11].
5 CONCLUSÕES
1 – O imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza sempre ocupou espaço importante no sistema tributário principalmente em função de sua expressiva arrecadação para os cofres públicos. Não obstante a inegável relevância desse imposto, foi somente recentemente que surgiram estudos com uma análise científica mais refinada. O grande desafio sempre foi conciliar os preceitos constitucionais com os desdobramentos infraconstitucionais previstos na farta legislação a ele relativa, havendo interpretações pouco elaboradas que dificultam a boa aplicação desses recursos.
2 – Com o escopo de enfrentar tais óbices, o presente trabalho propôs um exame que parte do texto constitucional em um caminho epistemológico até alcançar as normas infraconstitucionais, desde as gerais e abstratas, no sentido do ciclo de positivação do direito positivo, até que se possa alcançar a região material das condutas intersubjetivas.
3 – O estudo dedicou-se ao exame do critério espacial da hipótese de incidência do imposto de renda sobre a pessoa jurídica, em especial ao regime de tributação dos lucros auferidos no exterior por controladas e coligadas de pessoas jurídicas domiciliadas no país, ressaltando-se a relação entre o critério espacial da hipótese de incidência com a vigência da lei tributária no espaço.
4 – Para tanto, o trabalho reconheceu a necessidade de construção da regra-matriz de incidência do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, com destaque para o suposto normativo, no qual é descrita a hipótese de incidência tributária. Ao critério espacial assim definido ainda se contrapôs a noção de vigência da lei tributária no espaço, relacionando-se os conceitos. A abordagem teórica partiu da adoção neste trabalho das premissas científicas do Direito como fenômeno comunicacional e constituído pela linguagem competente.
5 – À luz da abordagem teórica adotada, o imposto sobre a renda foi analisado como uma construção do Direito positivo, introduzido por linguagem com função prescritiva e baseado numa lógica deôntica (do dever-ser), irrompendo-se a fenomenologia de sua incidência a partir da constituição do fato jurídico previsto hipoteticamente no antecedente de uma norma jurídica tributária em sentido estrito.
6 – Concluiu-se pela utilização da regra-matriz de incidência como um mínimo irredutível de significação que serve de instrumento para a compreensão da obrigação tributária. A hipótese de incidência alberga a descrição de um fato por intermédio dos elementos suficientes e capazes para identificá-lo (critérios material, espacial e temporal) e que, uma vez ocorrido no mundo social e relatado na linguagem competente, irromperá o vínculo deôntico prescrito no consequente da regra-matriz, exsurgindo a obrigação tributária de recolhimento do IR, mediante um ato humano de aplicação da norma geral e abstrata, a saber, a produção de uma norma individual e concreta (lançamento).
7 – Transpondo-se a teoria da regra-matriz de incidência para o imposto de renda, pode-se concluir que o seu antecedente tem como critério material o fato de auferir renda, esta compreendida no sentido de acréscimo patrimonial, que implique aumento líquido de patrimônio, critério temporal coincidente com o último instante do exercício financeiro, e critério espacial correspondente ao princípio da universalidade, que independe da fonte da renda, bastando estar presente um dos critérios de conexão - residência, domicílio e nacionalidade; no consequente normativo encontramos como critério pessoal as pessoas físicas ou jurídicas titulares da renda adquirida e como critério quantitativo o montante real, arbitrado ou presumido do acréscimo patrimonial (base de cálculo), sobre ele incidentes percentuais progressivos em função do aumento da base de cálculo (alíquotas).
8 – Com apoio nos elementos característicos da regra-matriz de incidência do imposto sobre a renda, foi possível a definição do critério espacial do IRPJ, compreendido não apenas como a circunscrição territorial sujeita à competência da União Federal, admitindo-se a ampliação do critério espacial e a extraterritorialidade da exação caso presente um dos critérios de conexão de natureza pessoal: residência, domicílio ou nacionalidade.
9 - O estudo apurou que a partir do advento da Lei n. 9.249/95 o Brasil passou a adotar o princípio da universalidade (tributação em bases universais) também para as pessoas jurídicas, e não apenas pessoas físicas, tributando, assim, as rendas produzidas no exterior, o que permaneceu sob a égide das Leis nºs 9.430/96 e 9.532/97, adotou-se a “tributação da renda mundial” (worldwide income taxation).
10 – Uma vez bem definido o critério espacial do IRPJ, foi possível examinar uma importante repercussão, relativa ao regime de extraterritorialidade atualmente vigente na tributação dos lucros auferidos no exterior por sociedades controladas e coligadas de pessoa jurídica domiciliada no país.
11 - A tentativa de se tributar a renda das pessoas jurídicas em bases universais se tornou propícia a partir da introdução do §2º ao art. 43 do CTN, pela LC n. 104/2001, que deixou a cargo da lei ordinária estabelecer as condições e o momento em que se dará a disponibilidade de receitas e rendimentos oriundos do exterior, para fins de incidência do IRPJ. Todavia, o legislador ordinário permanece limitado ao conceito de renda, ou seja, de acréscimo patrimonial disponível ao titular, em conformidade com o caput do art. 43 do CTN.
12 - A alteração do CTN deu margem à edição da Medida Provisória n. 2.158-35/2001, seguida da Instrução Normativa da SRF nº 213/2002, e em seu art. 74 restabeleceu previsão já antiga, na Lei n. 9.249/95, permitindo a tributação de lucros auferidos por controladas e coligadas no exterior, porém independentemente de sua efetiva disponibilização, em afronta à materialidade do IRPJ, ao permitir que o imposto fosse calculado sobre resultado positivo de equivalência patrimonial (método de equivalência patrimonial). Por conseguinte, na ADI n. 2.588/DF o STF acabou por reconhecer a inconstitucionalidade do mencionado art. 74 na tributação de lucros de coligadas sediadas em países sem tributação favorecida ou paraísos fiscais; porém, de outro lado, julgou constitucional a tributação de controladas sediadas em países com tributação favorecida ou que sejam paraísos fiscais (DJ 10.02.2014).
13 – Como a Suprema Corte silenciou quanto à tributação de investimentos em sociedades estrangeiras, ou mesmo em relação às controladas e coligadas situadas em países com os quais o Brasil tenha firmado Acordos contra Bitributação, sobreveio a Lei n. 12.973/2004, visando suprir tais lacunas.
14 – A nova legislação tributa os lucros auferidos por coligadas sediadas no exterior, fora dos “paraísos fiscais”, mas apenas quando tiverem sido efetivamente disponibilizados para pessoa jurídica domiciliada no Brasil, além de exigir condições para que se considere que uma empresa coligada esteja fora de paraíso fiscal ou país de tributação favorecida. Caso descumpridas tais condições, os lucros serão considerados disponíveis já na data de apuração e alcançados pelo IRPJ. Quanto às controladas, a nova lei impõe sejam computadas na determinação do lucro real e na base de cálculo da CSLL as parcelas do ajuste do valor do investimento em controlada, direta ou indireta, equivalente aos lucros auferidos no período, ou seja, tributando lucros ainda não disponibilizados.
15 - Na realidade, a conclusão defendida neste trabalho após uma reflexão crítica é a de que a nova legislação não pode ser considerada propriamente uma legislação “CFC” (Controlled Foreign Corporation), pois não visa sua aplicação apenas em caráter excepcional, de forma a evitar específicos casos de abuso por parte de pessoas jurídicas sediadas no exterior, tributando de forma indistinta as controladas independentemente de estarem situadas em “paraísos fiscais” ou não. Em relação às coligadas, também não há outros testes que permitam identificar se existe um abuso a justificar a tributação da totalidade dos lucros antes da efetiva distribuição, disponibilização. Em suma, não há justificativa para a ficção de distribuição de lucros, pois a aplicação da lei não é somente para casos excepcionais ou abusivos.
16 - Ante o exposto, conclui-se que no atual regime de extraterritorialidade na tributação dos lucros auferidos no exterior por controladas e coligadas, o legislador brasileiro optou pela eficácia da arrecadação em detrimento de princípios como capacidade contributiva, além de comprometer a competitividade das empresas nacionais no mercado internacional e não atrair riquezas do exterior, implicando até mesmo afronta aos acordos internacionais contra a bitributação firmados pelo Brasil.
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-XAVIER, Alberto. A lei n. 12.973, de 13 de maio de 2014, em matéria de lucros no exterior: objetivos e características essenciais. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. v.18. São Paulo: Dialética, 2014, p. 11-23.
[1] Direito Tributário - Fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 26. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário – Linguagem e Método. São Paulo: Noeses, 2013, pp. 15-18.
[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 31-36. CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito (o constructivismo lógico-semântico). São Paulo: Noeses, 2013, pp. 85-112.
[3] Apud CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário – linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2013, p. 610.
[4] Ibid, p. 465.
[5] Ibid, pp. 146-150, 610-613 e 663-669; CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 254-257; Direito Tributário - Fundamentos Jurídicos da Incidência. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 131-134.
[6] Apud BARRETO, Paulo Ayres. O imposto sobre a renda e os preços de transferência. São Paulo: Dialética, 2001, p. 71.
[7] Ibid., pp. 65-72.
[8] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário – Linguagem e Método. São Paulo: Noeses, 2013, pp. 675-677.
[9] Ibid., pp. 677-682.
[10] BARRETO, Paulo Ayres; Caio Augusto Takano. Tributação do Resultado de Coligadas e Controladas no Exterior, em face da Lei n. 12.973/2014, pp. 358-364. In Grandes questões atuais do direito tributário, 18º vol., Valdir de Oliveira Rocha (Coord.).
[11] BARRETO, Paulo Ayres e Caio Augusto Takano. op. cit., pp. 355-364.
Mestranda em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP, sob orientação do Prof. Paulo de Barros Carvalho. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Heleno Taveira Tôrres, especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus e especialista em Direito Tributário pelo IBET - Instituto Brasileiro de Direito Tributário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Nathália Ayres Queiroz da. Critério espacial do IRPJ: universalidade na tributação dos lucros auferidos no exterior por coligadas e controladas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jul 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51993/criterio-espacial-do-irpj-universalidade-na-tributacao-dos-lucros-auferidos-no-exterior-por-coligadas-e-controladas. Acesso em: 01 nov 2024.
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