Com a eliminação da seleção canarinho na Copa de 2018, ficou nítida a indiferença do povo brasileiro em relação às tragédias anunciadas no mundo do futebol. Aquele estado de choque que tomou o estádio do Maracanã em 1950, após a derrota de virada para o Uruguai, assim como o pranto pela eliminação no jogo contra a Itália, em 1982, estão longe de serem vistos novamente.
O fenômeno não se deve apenas ao agravamento progressivo da crise econômica, que, sem sombra de dúvida, atrapalha significativamente os planos pseudonacionalista de uma mídia obstinada em vender alegria, mas, principalmente, em razão de ninguém mais cultivar tamanho otimismo ao ponto de acreditar na capacidade de jovens milionários desenvolverem tanta habilidade com a bola. Bem diferente disso, aprendemos a rir de nós mesmos, embora o sorriso seja daqueles sem brilho, bem amarelados, como o de quem se arrependeu de ter desdenhado prematuramente de seus irmãos americanos.
É cedo ainda para afirmar com segurança, mas é possível que tenha sido a participação mais medíocre do nosso país em um mundial de futebol. De qualquer modo, certamente, dentro de alguns anos, poucas lembranças restarão na memória coletiva sobre mais um fracasso dentro das quatro linhas. Porém, de um fato o povo brasileiro jamais irá esquecer: o que aconteceu nos bastidores do Poder Judiciário concomitantemente à realização dos jogos.
Enquanto a imprensa explicava as probabilidades do Brasil encerrar a fase de grupos na liderança, o Supremo Tribunal Federal determinava a soltura de mais um réu. Algo tão inusitado, que, em homenagem ao momento esportivo pelo qual estávamos passando, merecia ser noticiado com a eloquência das narrativas dos grandes locutores: “SABE DE QUEM?”. Sim, ninguém mais do que o “homem forte” do governo Lula, o Ex-ministro da Casa Civil José Dirceu! Tão logo restaurada a sua liberdade, partiu para assistir ao jogo entre Brasil e Sérvia, sem ao menos precisar suportar o incômodo da tornozeleira eletrônica. Talvez por se tratar da fase de grupo, também foi concedida a liminar para o Deputado Eduardo Cunha, seguido do arquivamento do inquérito policial instaurado para investigar o Senador Aécio Neves no caso de Furnas. E para fechar a “rodada”, a Senadora Gleice Hoffman foi absolvida das acusações que lhe foram feitas. Esse sim foi um golaço! Deve ter gente querendo assistir ao video tape para ter certeza de que tudo isso ocorreu em tão curto espaço de tempo.
Contudo, o fato mais emblemático só veio a ocorrer algumas horas após nossos atletas deixarem a Rússia, mais precisamente em 8 de julho, dia que ficou longe de entrar para a história como um domingo qualquer. O Desembargador Rogério Favreto, que estava em regime de plantão do TRF da 4.ª Região, concedeu a ordem em habeas corpus determinando a imediata soltura do Presidente Luiz Ignácio Lula da Silva, suspendendo assim o cumprimento provisório da sentença condenatória confirmada em segunda instância. Em um primeiro momento, a notícia foi recebida pela população com um certo grau de desconfiança, até porque a quantidade de memes circulando diariamente nas redes sociais é tão grande que a maioria preferiu esperar a segunda parte da notícia para tentar entender o que parecia ser uma piada. Aliás, a sátira já começou, e tudo indica que se prolongará até o mês que vem, quando, oportunamente, alguém postará a foto do Rubinho Barrichelo dizendo: “A Justiça mandou soltar o Lula!”. Realmente, motivo não faltava para tanta cautela. Se nem os doze meninos tailandeses estavam conseguindo se livrar da clausura, o que dizer do Presidente Lula, confinado em cela da Polícia Federal por decisão da maioria do Supremo Tribunal Federal.
O fundamento jurídico exarado na decisão em habeas corpus baseia-se no fato de o paciente manifestar interesse em concorrer às eleições presidenciais que serão realizadas em outubro deste ano. Para o desembargador Rogério Favreto, e somente para ele, trata-se de fato novo, e como tal deveria ser apreciado (vide comentário acima a respeito do piloto Rubinho Barrichelo). Entretanto, deve-se atentar para três aspectos no mínimo intrigantes. Em primeiro lugar, ainda que a pré-candidatura pudesse ser considerado fato novo, não passaria de um dado totalmente irrelevante ao processo de habeas corpus. Cabe aqui dizer, que é preciso manter a esperança de que este entendimento perdure ad eternum, pois se uma jurisprudência em sentido contrário for consolidada, com certeza os mais de 700 mil presos que atualmente se encontram no sistema prisional irão encontrar uma justa causa para levantar qualquer bandeira partidária. Em segundo lugar, o referido desembargador atuava na condição de plantonista, sendo competente apenas para analisar conflitos considerados urgentes. E se competente fosse, em hipótese alguma, seu julgamento poderia contrariar decisão já consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal. Por fim, também é de se estranhar que não tenha se declarado suspeito em razão de seu estreito e notório envolvimento com o Partido dos Trabalhadores e muitas de suas lideranças, inclusive o próprio paciente. Seria muito interessante se a seleção brasileira estivesse jogando naquela tarde dramática de domingo. A notícia da expedição do alvará de soltura poderia ter sido dada pelo locutor esportivo Galvão Bueno no decorrer da partida com a mesma emoção de quem narra um gol de mão. O famoso jargão cairia como uma luva: “PODE ISSO, ARNALDO?”. E a resposta não seria outra: “A lei é clara! Ele estava totalmente impedido (suspeito)!”. Realmente, não precisa ser um gênio para chegar a esta conclusão, basta abrir o Código de Processo Penal e examinar as regras contidas nos incisos do art. 254.
Como se não bastasse a estarrecedora decisão monocrática do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, o juiz Sergio Moro surgia para roubar a cena mais uma vez. Mesmo não sendo a autoridade coatora, visto sua atividade jurisdicional ter se esgotado no processo que tramitou pela 13.ª Vara Criminal, e estando no gozo de suas férias em país estrangeiro, diga-se de passagem, decidiu, ex officio, intervir na causa, determinando que a Polícia Federal não acatasse a decisão proferida em instância superior. Mais uma vez fomos tentados a pensar se a Copa do Mundo não estava influenciando os tribunais pátrios, pois a atitude de rever uma decisão proferida por um juiz de segundo grau muito se assemelha ao expediente do recém-criado VAR (sigla em Inglês para se referir ao video assistant referee ou árbitro assistente de vídeo), embora totalmente estranho ao ordenamento jurídico vigente.
Em que pese ser defeso ao agente público fazer juízo de conveniência ou oportunidade em relação às ordens a ele dirigidas, uma vez que a avaliação do mérito diz respeito tão somente ao seu superior hierárquico, o mesmo procedimento não se estende quanto ao exame da legalidade. A ordem quando manifestamente ilegal, isto é, contaminada pelo flagrante desrespeito ao ordenamento jurídico, não deve ser cumprida de maneira alguma, ainda que tenha sido emanada da Presidência da República. É o que se pode extrair, inclusive, da norma contida no art. 22 do Código Penal Brasileiro. Entretanto, se tinha alguém em condições de se recusar a cumprir a ordem de soltura do paciente com base no fundamento acima exposto, esse indivíduo era o Delegado da Polícia Federal. Isso porque, em primeiro lugar, era ele que tinha o paciente sob custódia; e, em segundo, porque a ordem havia sido a ele endereçada, e não ao juiz Sergio Moro.
O impasse criado entre os magistrados Rogério Favreto e Sergio Moro é condizente e proporcional ao caos instaurado na Justiça brasileira, onde não temos onze ministros compondo a Suprema Corte, mas sim onze supremas cortes. Se bate-bocas recheado de ofensas são frequentemente travados no plenário do Supremo Tribunal Federal, e exibidos ao vivo e a cores para todo o país, então o que se poderia esperar das instâncias inferiores? Uma mistura do mal com atraso e umas pitadas de psicopatia? Sergio Moro, juiz de primeiro grau, declara a incompetência de um dos seus pares no segundo grau de jurisdição, mesmo sendo igualmente incompetente para apreciar a matéria, e para completar, estando no gozo de suas férias (fora do exercício de suas funções) e em outro país, sobrepondo-se ao juiz substituto da 13.ª Vara Criminal. A imprensa procurou amenizar o incidente classificando-o como conflito positivo de competência, quando seria mais conveniente criar uma nova denominação: conflito esquisito de incompetência.
Não podemos esquecer que o clima de Copa acirrou ainda mais a tendência do povo brasileiro de a todo instante se projetar na arquibancada. E assim deixamos de ser cidadãos e passamos a agir como verdadeiras torcidas organizadas. Quem tem simpatia pelo Presidente Lula, aplaude de pé o desembargador Rogério Favreto, como um camisa dez, futuro mártir; quem se posiciona em sentido contrário, acolhe o juiz Sergio Moro como se este fosse um membro da Liga da Justiça, um benfeitor das histórias em quadrinhos, um Pelé de toga. Entretanto, a ciência jurídica não pode ser reduzida a uma espécie de pornochanchada de terceira categoria para ser debatido por ébrios e mentecaptos do submundo dos bares maus frequentados, como costumam fazer por ocasião das partidas de futebol. O Direito Processual Penal possui princípios informativos muito claros, alguns deles de natureza constitucional, calcados na lógica e na razão. A aplicação precisa dos seus institutos não pode, nem deve ser visto como um luxo ou privilégio, mas sim como o método que nos garante a preservação dos bens mais sagrados para a sociedade, como a vida, a liberdade e a dignidade. Se todo esse episódio tivesse ocorrido durante a apresentação de um trabalho de grupo realizado por estudantes da Faculdade de Direito, no estilo daquelas simulações do Tribunal do Júri, seria muito simples e fácil de resolver. Bataria o professor aplicar nota zero para todo mundo e agendar uma prova de recuperação para a semana seguinte.
Há quem pense não terem sido cometidos equívocos jurídicos por nenhum dos lados envolvidos no conflito em análise. Alguns acreditam ter se tratado de uma estratégia muito bem articulada por aqueles que apoiam e lutam pela sedimentação da candidatura do Presidente Luiz Ignácio Lula da Silva, no sentido de deflagrar um verdadeiro “Putsch” jurídico capaz de viabilizá-la. Em contrapartida, outros acham que a batalha judicial travada foi apenas pano de fundo para uma manobra política premeditada e meticulosamente orquestrada, na qual o desembargador Rogério Favreto acabaria sendo afastado da magistratura, e, por conseguinte, aposentado compulsoriamente, para, em breve, se candidatar a um cargo público pelo Partido dos Trabalhadores. Em paralelo, o constrangimento comprometeria ainda mais a imagem que o juiz Sergio Moro procura ostentar como um julgador imparcial nos processos relativos à Lava Jato. Se porventura nenhuma dessas teses puramente especulativas não guardasse ao menos algum grau de probabilidade, então não haveria razão para o Conselho Nacional de Justiça deflagrar uma investigação destinada a apurar a conduta dos magistrados supracitados. Pela primeira vez o comentário da Presidente Dilma Youssef em um dos seus antológicos discursos parece fazer sentido: “Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar, nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.”.
SERGIO RICARDO DO AMARAL GURGEL é sócio em COSTA, MELO & GURGEL Advogados; autor da Editora Impetus; professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GURGEL, Sergio Ricardo do Amaral. Justiça em jogo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jul 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/52070/justica-em-jogo. Acesso em: 23 dez 2024.
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