RESUMO: Com a vigência do Código de Processo Civil de 2015, o instituto jurídico do precedente judicial, com a sua força expansiva e vinculante, ganhou papel de destaque no pensamento jurídico brasileiro. A rigor, o Novo Sistema Processual tem por objetivo a garantia de organicidade, coerência e coesão entre as decisões judiciais, seus órgãos prolatores e a própria sociedade, garantindo sintonia fina com a Constituição Federal. Conhecer, ainda que de modo singelo, a Teoria do Precedente e suas principais implicações é de suma importância. Esse estudo se destina aos principais pontos doutrinários dessa teoria, sem maiores considerações sobre o direito positivo.
PALAVRAS-CHAVE: Precedente judicial. Força expansiva. Eficácia Vinculante. Racionalização orgânica. Superação e diferenciação.
SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Eficácia Jurídica do Precedente 3 Confronto, Interpretação e Aplicação do Precedente: o distinguishing 4 Superação do Precedente 5 Súmula Vinculante 6 Considerações Finais 7 Referências Bibliográficas
1. INTRODUÇÃO
Fruto do pensamento jurídico do common law – mas a ele não limitado –, tem por base a teoria do stare decisis, pela qual o precedente judicial possui eficácia vinculante não só para a Corte que o proferiu, mas, também, para os juízos hierarquicamente inferiores – o que se denomina de eficácia vertical do precedente.
Stare decisis é uma expressão latina que indica uma espécie de ordem no sentido de manter, efetivamente a decisão e não desvirtuar os fundamentos daquela norma jurídica. É típica do constitucionalismo estadunidense, significando que os julgados de um tribunal superior vinculam todos os órgãos judiciais inferiores, no âmbito da mesma jurisdição.
Precedente é fato jurídico manifestado pela decisão tomada à luz de um caso concreto, composto pelas circunstâncias de fato que fundamentam a controvérsia e pela tese ou princípio assentado na motivação (fundamentação), cujo núcleo essencial – a ratio decidendi – pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos. É a chamada eficácia obrigatória (ou persuasiva) do precedente.
Ratio decidendi são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão, composta pela indicação dos fatos relevantes para a causa, pelo raciocínio lógico-jurídico da decisão e pelo juízo decisório. É a tese jurídica, exposta na fundamentação do julgado – não se confundindo com essa, mas nela se encontrando –, sendo base para a conclusão a que se chegará no dispositivo. É norma geral, criada a partir da análise do caso concreto, que pode servir de indicativo a demandas semelhantes.
Isto é, são os motivos determinantes da decisão; que, no âmbito do Supremo Tribunal Federal – Corte Constitucional e órgão de cúpula do Judiciário brasileiro, a quem compete, precipuamente, a guarda e efetividade da Constituição, bem como a uniformização da jurisprudência nacional em matéria constitucional –, desenvolvem natural eficácia vinculante e expansiva, seja em controle abstrato-principal, seja em controle concreto-incidental de constitucionalidade (SARLET, 2012, p. 861).
Incumbe reforçar, de modo que se esclareça adequadamente a compreensão da razão de decidir, que seu propósito fundamental ultrapassa a segurança jurídica das partes – não se esgotando, puramente, com a formação da coisa julgada material. Vai além. À razão de decidir, importa, da mesma forma, a segurança dos jurisdicionados, entendida de modo abstrato. O grau de previsibilidade e confiança que se deposita – ou deveria – na instituição judiciária, nas decisões do Poder Judiciário.
Em resumo, ainda sobre a força vinculativa do "precedente" – que, rigorosamente, é da ratio decidendi –, só se pode considerar ratio decidendi a opção hermenêutica que, a despeito de elaborada para um caso concreto, tem aptidão para ser universalizada – o que, no direito comparado, denomina-se holding.
O precedente pode ser declarativo, quando reconhece e aplica norma previamente existente, ou criativo, quando inova, criando e aplicando norma jurídica.
2. EFICÁCIA JURÍDICA DO PRECEDENTE
A despeito de sua natureza, vista acima, o precedente é instituto jurídico afeto ao direito positivo.
Desta feita, identificam-se, no ordenamento jurídico brasileiro, três tipos de eficácia: a) a vinculante ou obrigatória; b) a obstativa de revisão de decisões, que obstaculiza a apreciação de recursos ou a remessa necessária; e c) a persuasiva, que, sem conter força vinculante, indica uma solução adequada.
Por eficácia vinculante ou obrigatória – no direito comparado, denominada binding effect –, entende-se aquela que submete, que vincula julgados outros que, em situações análogas, forem-lhe supervenientes. Trata-se da manutenção de coerência lógico-estrutural entre as decisões e os próprios órgãos jurisdicionais, em face de demandas que contenham a mesma relação (ou questão) jurídica. Servem de exemplo a técnica da súmula vinculante, bem como os precedentes do STF em controle difuso de constitucionalidade e a decisão que fixa a tese para os recursos excepcionais (Extraordinário e Especial) repetitivos.
Alertando-nos da falta de tradição dos precedentes nos ordenamentos do civil Law – sobretudo, quando se percebe um reconhecimento induvidoso de eficácia obrigatória aos precedentes –, Luiz Guilherme MARINONI expõe as razões da necessidade de extensão do dever de fundamentar também à fundamentação das decisões (SARLET et. al. 2012, p. 852-854).
A técnica da eficácia vinculante da fundamentação se funda na ideia de que, na decisão, não só o dispositivo, mas também os fundamentos devem adquirir estabilidade, devendo, por isto, ser realçados e externados com eficácia vinculante. A eficácia vinculante da fundamentação, indiscutivelmente essencial para o tribunal constitucional cumprir o seu papel, é uma técnica jurídico-processual que tem como premissa a importância de respeito aos precedentes e aos seus fundamentos
E arremata o respeitado jurista brasileiro:
Aliás, não haveria sentido que, em um sistema fundado no direito à igualdade das decisões, na segurança jurídica e na previsibilidade das decisões judiciais, os precedentes constitucionais não fossem respeitados
3. CONFRONTO, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO PRECEDENTE: DISTINGUISHING
Na análise de um caso concreto, o juiz pode se deparar com situação em que o caso em julgamento e o respectivo paradigma (precedente) são distintos, diferentes. Entende-se por distinguishing a existência de uma distinção fática ou jurídica entre determinado caso em análise e o case que originou o precedente utilizado como paradigma.
Em uma situação como essa, poderá o juiz: a) dar à ratio uma interpretação restritiva, por entender que as peculiaridades do caso concreto impedem a incidência do precedente (restrictive distinguishing); ou b) estender ao caso concreto a solução do precedente (ampliative distinguishing), como nos ensina, em suas brilhantes lições, o ilustre professor Fredie Didier (DIDIER et al, 2012, p. 350).
Logo, distinguishing é tanto método de comparação caso concreto-paradigma quanto solução, resultado. É o que, nos Estados Unidos da América do Norte – ordenamento em que a teoria do precedente encontra sólido desenvolvimento –, se denomina de interpretação do precedente. Indica, em verdade, técnica por meio de que o juiz verifica a aplicação do precedente ao caso em que se debruça. Isto é, “mais do que interpretar, raciocina por analogia” (SARLET, 2012, p. 855).
Contudo, se, nessa apreciação do caso concreto, a questão está sendo enfrentada pela primeira vez, há o que se conhece por hard case (caso difícil). Ante essa circunstância inédita, o mérito deverá ser julgado, necessariamente. Pouco importa se há, ou não, o uso de precedentes judiciais.
Interessa-nos, sobretudo, a compreensão de que o adequado uso da comentada técnica do distinguishing serve de conformação a um dos mais importantes princípios constitucionais: o do devido processo legal – no particular, ao contraditório.
Quer-se dizer, em que pesem respeitadas teses no sentido de que, com a garantia de eficácia vinculativa e geral às decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, estar-se-ia ferindo – ou mesmo eliminando – o exercício do contraditório, entendemos que, justamente, por meio do distinguishing, se existente qualquer elemento que desnature e impossibilite a aplicação do precedente-paradigma ao caso concreto, o órgão jurisdicional pode – antes, deve – afastar a incidência do precedente, fixando, ao caso concreto, a norma jurídica que melhor resolve a demanda.
Portanto, longe de representar qualquer agressão ao devido processo, as conclusões aqui sustentadas servem de tutela ao próprio contraditório, reforçando, efetivamente, o due process of Law. Dá força normativa em bloco à Constituição.
Vejam-se, ainda, outras técnicas que permitem e conformam o exercício amplo e adequado do princípio constitucional do devido processo.
4. SUPERAÇÃO DO PRECEDENTE
O Neoconstitucionalismo trouxe ferramentas interessantes quanto à necessidade de se evitar o engessamento do ordenamento jurídico; adequando-o ao evoluir do tempo e da sociedade.
A superação do precedente, nesse cotejo, indica técnicas por meio das quais se evita a petrificação do Direito, complementando e ajustando o ordenamento. Dessarte, evidencia-se que a força vinculante do precedente não impede que determinada tese dominante possa ser superada pela normatização pretoriana.
Inicialmente, a técnica conhecida por overruling, que permite a substituição de um precedente que perdeu sua força vinculante, de modo expresso (express overruling) ou tácito (implied overruling).
Em relação à eficácia das decisões que se utilizam do overruling para superar determinado precedente, poderá ser ex tunc ou retroativa (retrospective overruling), caso em que o precedente substituído não poderá embasar nem mesmo situações anteriores à substituição, desde que ainda não decididas.
Há, também, a antecipatory overruling, espécie de não aplicação preventiva, por órgãos inferiores, do precedente firmado por Corte superior, no caso de alteração (ainda que não expressa) de entendimento quanto a precedente anterior.
Em outros termos, “não há revogação antecipada, mas uma antecipação dos efeitos da revogação, por juízo de probabilidade” (DIDIER, 2012, p. 367). Não se confunde, porém, a denominada reversal, que indica a reforma de uma decisão de órgão inferior pela Corte superior.
Há também o overriding, espécie de revogação parcial do precedente, em que o tribunal apenas limita o âmbito de incidência da ratio, em função da superveniência de uma regra ou um princípio.
Natural que, em virtude da substituição de um precedente, essa decisão exige uma carga maior de motivação e justificação da superação, em conformidade à Constituição de 1988.
O Judiciário sujeita-se ao princípio da não-surpresa – corolário do princípio da confiança – por meio de que o jurisdicionado, agindo de boa fé, deposita na conduta da Administração – bem como do próprio Judiciário –, donde extrai legítimas expectativas.
Portanto, fala-se em irretroatividade do Direito (em que se incluem os precedentes), e não somente da lei. Desse modo, se a alteração jurisprudencial puder afetar a estabilidade das relações jurídicas formadas e construídas sob a égide de um velho posicionamento – em relação com o princípio da segurança jurídica –, é perfeitamente possível que o tribunal adote, para o caso concreto, bem como para os pendentes de julgamento que se relacionem a fatos pretéritos, o entendimento já consolidado; anunciando, porém, para as situações futuras, a mudança de entendimento, ou paradigmática.
É o que se conhece por técnica da sinalização ou aviso (signaling ou caveat).
5. SÚMULA VINCULANTE
Enunciado sumular, previsto no Art. 103-A da CF/88, caracterizado, principalmente, pelo efeito vinculante em relação ao próprio STF, órgão constitucionalmente competente à edição, e demais órgãos do Judiciário e à Administração Pública direta e indireta das três esferas, a partir da publicação em seção especial do DJ e do DOU.
O objeto da Súmula Vinculante é restrito: somente matéria constitucional, quanto à interpretação ou verificação da validade ou da eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários, ou entre esses e a Administração, que acarrete grave inseguraça jurídica e relevante multiplicação de processos.
A competência para elaborá-la é, sem embargos, do STF. Em relação à edição, revisão ou cancelamento, contudo, há mais legitimados à iniciativa: a) os tribunais brasileiros; b) os legitimados à propositura de Ação Direita de Inconstitucionalidade.
O Min. Gilmar Mendes, em seu Curso, é enfático (MENDES, 2009, p. 1.139):
Não resta dúvida de que a adoção de súmula vinculante em situação que envolva a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo enfraquecerá ainda mais o já debilitado instituto da suspensão de execução pelo Senado. É que essa súmula conferirá interpretação vinculante à decisão que declara a inconstitucionalidade sem que a lei declarada inconstitucional tenha sido eliminada formalmente do ordenamento jurídico (falta de eficácia geral da decisão declaratória de inconstitucionalidade). Tem-se efeito vinculante da súmula, que obrigará a Administração a não mais aplicar a lei objeto da declaração de inconstitucionalidade (nem a orientação que dela se dessume), sem eficácia erga omnes da declaração de inconstitucionalidade
Convém, nesse instante, um alerta. Antes de indicar qualquer resistência ao reconhecimento da natural vocação expansiva e vinculante da eficácia das decisões do STF, a previsão da súmula vinculante indica mais um reforço a essa tese.
No mesmo sentido, Luiz Guilherme MARINONI, para quem (SARLET et al, 2012, p. 850):
O sistema de súmulas, como única e indispensável forma para a vinculação dos juízes, é contraditório com o fundamento que, embora não explícito, justifica o respeito obrigatório aos precedentes constitucionais. O que impõe o respeito aos precedentes é a igualdade, a segurança jurídica e a previsibilidade.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sustentamos, dessa forma, e com arrimo nas próprias concretizações do legislador brasileiro, a necessidade de observância obrigatória aos precedentes dos STF, ainda que em controle incidental-difuso de constitucionalidade, como decorrência lógica da força normativa em bloco da Constituição e da racionalização orgânica do Judiciário brasileiro.
Inclusive, deve-se observar, que o procedimento para a declaração de inconstitucionalidade perante o Pleno do STF é, praticamente, o mesmo para os modelos principal e incidental, de modo que a doutrina indica ser impossível estabelecer qualquer discrepância em relação aos efeitos que deles advêm (SARLET, 2012, p. 849)
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TORQUATO, Ricardo Kaneko. Estudos sobre a teoria do precedente judicial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 ago 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/52129/estudos-sobre-a-teoria-do-precedente-judicial. Acesso em: 01 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
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