1. Introdução
A Defensoria Pública é um órgão essencial à justiça, tendo por finalidade institucional prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados.
O princípio do defensor natural consiste em que o Defensor Público não poderá ser afastado arbitrariamente dos casos em que deva oficiar, de acordo com critérios legais estabelecidos anteriormente, de maneira que apenas os membros da Defensoria Pública que tiverem atribuições predeterminadas é que poderão atuar nos casos a que forem submetidos.
O assistido terá direito ao patrocínio de seus interesses pelo defensor natural, conforme artigo 4º-A da Lei complementar n 80/94.
Art. 4º-A. São direitos dos assistidos da Defensoria Pública, além daqueles previstos na legislação estadual ou em atos normativos internos: (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
I – a informação sobre: (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
a) localização e horário de funcionamento dos órgãos da Defensoria Pública; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
b) a tramitação dos processos e os procedimentos para a realização de exames, perícias e outras providências necessárias à defesa de seus interesses; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
II – a qualidade e a eficiência do atendimento; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
III – o direito de ter sua pretensão revista no caso de recusa de atuação pelo Defensor Público; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
IV – o patrocínio de seus direitos e interesses pelo defensor natural; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
V – a atuação de Defensores Públicos distintos, quando verificada a existência de interesses antagônicos ou colidentes entre destinatários de suas funções. (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
Nesta senda, segundo Sérgio Luiz Junkes[1], analogicamente ao Princípio do Promotor Natural, o Princípio do Defensor Natural veda que o Defensor Público seja afastado de casos em que, por critérios legais predeterminados, deveria oficiar. Tal como o do Promotor Natural, esse Princípio apresenta dupla garantia, uma vez que se dirige tanto aos membros da Defensoria Pública, como, para a Sociedade.
Ademais, trata-se de princípio relacionado, diretamente, com os princípios institucionais da Defensoria Pública, quais sejam, unidade, indivisibilidade e independência funcional, insculpidos no artigo 3º da Lei Complementar n 80/1994.
Nesse contexto, pretende-se avaliar, a um só tempo, o alcance do princípio do defensor natural, seja como direito dos assistidos ou, ainda, como ferramenta com vistas à consecução dos princípios a garantias da defensoria publica.
Consagrado expressamente na LC 80/94 como um direito do usuário, o princípio do defensor natural significa que o usuário do serviço será assistido pelo defensor público que, nos termos da lei e das normas de organização interna, tem atribuição para tanto. Trata-se de princípio dirigido não só ao assistido, mas também ao defensor público, tanto que é decorrência da inamovibilidade, pois também garante que este não seja removido arbitrariamente do exercício de suas funções.
O mencionado princípio traz consigo tanto uma garantia para o próprio defensor público quanto para o assistido da Defensoria Pública, possuindo, portanto, uma dupla destinação subjetiva. Para o defensor público, o princípio do defensor natural, conforme já dito anteriormente, o protege contra ingerências indevidas no seu trabalho pela Administração Superior da Defensoria Pública, estando a salvo, portanto, de remoções arbitrárias decorrentes do seu modo de atuar, razão pela qual o princípio em estudo protege diretamente duas garantias dos defensores públicos: a inamovibilidade e a independência funcional.
Frise-se, ademais, que tal princípio encontra guarida na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, consoante julgados abaixo colecionados.
EMENTA 01
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. NÃO CABIMENTO. NOMEAÇÃO DE ADVOGADO DATIVO. AUSÊNCIA DE CONSULTA AO RÉU. DEFENSOR PÚBLICO NATURAL. DEFENSORIA PÚBLICA. NOMEAÇÃO DE ADVOGADO AD HOC. VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. NULIDADE PROCESSUAL RECONHECIDA. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
I - A Terceira Seção desta Corte, seguindo entendimento firmado pela Primeira Turma do col. Pretório Excelso, firmou orientação no sentido de não admitir a impetração de habeas corpus em substituição ao recurso adequado, situação que implica o não-conhecimento da impetração, ressalvados casos excepcionais em que, configurada flagrante ilegalidade apta a gerar constrangimento ilegal, seja possível a concessão da ordem de ofício.
II - É direito de todo reu, mesmo revel, constituir advogado de sua preferência. A precipitada nomeação automática de defensor dativo, no lugar do advogado constituindo que não compareceu a audiência de instrução e julgamento, sem se tentar intimar o acusado, caracteriza nulidade, em principio, insanável (precedentes).
III - A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.
IV - São direitos dos assistidos da Defensoria Pública, além daqueles previstos na legislação estadual ou em atos normativos internos, o patrocínio de seus direitos e interesses pelo defensor natural (artigo 4º-A, IV, Lei Complementar nº 80/94).
V - No caso dos autos há violação dos princípios da ampla defesa, do contraditório e do defensor público natural, tendo em vista a nomeação de defensor ad hoc para realizar audiência de instrução e julgamento ao invés de tentar intimar o acusado para constituir novo advogado ou preterindo o Defensor Público Estadual com atribuição para atuar no juízo coator.
Habeas corpus não conhecido. Concedo, todavia, a ordem de ofício, para para anular o processo a partir da audiência realizada no dia 16 de outubro de 2014, para que se permita ao acusado constituir novo procurador e, em caso de inércia, seja intimada a Defensoria Pública Estadual para realizar a defesa do paciente.
(STJ. HC 332895 / SC. T5 - QUINTA TURMA. Ministro FELIX FISCHER).
EMENTA 2
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. DEFENSOR PÚBLICO NATURAL. DEFENSORIA PÚBLICA. NOMEAÇÃO DE ADVOGADO AD HOC. VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. NULIDADE PROCESSUAL RECONHECIDA. RECURSO PROVIDO.
I - A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.
II - São direitos dos assistidos da Defensoria Pública, além daqueles previstos na legislação estadual ou em atos normativos internos, o patrocínio de seus direitos e interesses pelo defensor natural (artigo 4º-A, IV, Lei Complementar nº 80/94).
III - Os Defensores Públicos não são advogados públicos, possuem regime disciplinar próprio e têm sua capacidade postulatória decorrente diretamente da Constituição Federal.
IV - Na linha da jurisprudência do eg. Supremo Tribunal Federal e desta eg. Corte, "O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que é nulo o processo quando há nomeação de defensor dativo em comarcas em que existe Defensoria Pública estruturada, só se admitindo a designação de advogado ad hoc para atuar no feito quando não há órgão de assistência judiciária na comarca, ou se este não está devidamente organizado na localidade, havendo desproporção entre os assistidos e os respectivos defensores. Precedente" (HC n. 337.754/SC, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe de 26/11/2015).
V - No caso dos autos há violação dos princípios da ampla defesa, do contraditório e do defensor público natural, tendo em vista a nomeação de defensor ad hoc para realizar audiência de instrução e julgamento ao invés do Defensor Público Federal que já patrocinava a causa.
VI - As pessoas assistidas pela Defensoria Pública são vulneráveis e deve ser assegurado seu direito de realizar a audiência prévia, a orientação para o interrogatório e as perguntas que serão feitas para as testemunhas (realizadas pela defesa técnica) com seu Defensor Público natural.
Recurso ordinário em habeas corpus provido.
(STJ. RHC 61848 / PA. T5 - QUINTA TURMA. Ministro FELIX FISCHER).
São princípios gerais institucionais da Defensoria Pública, conforme art. 3º da Lei Complementar nº 80/94: unidade, indivisibilidade e a independência funcional.
A unidade consiste em que a Defensoria Pública é um todo orgânico, de maneira que seus membros integram um só órgão, sob uma só direção. O art. 2º da Lei Complementar 80/94 pretende passar a idéia de unidade ao prescrever que “A Defensoria Pública abrange: I - a Defensoria Pública da União; II - a Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios; III - as Defensorias Públicas dos Estados.”
No que concerne à proteção da inamovibilidade, importante ressaltar que o princípio do defensor natural impede não apenas remoções territoriais arbitrárias, isto é, a retirada do defensor público da comarca X para a comarca Y, mas também remoções funcionais descabidas, que ocorreriam com a retirada do defensor público do seu ofício ou núcleo, por exemplo, de execução penal, para lotá-lo num ofício ou núcleo de atuação na área de família.
Veja-se, portanto, que a inamovibilidade não se dá apenas na localidade, estendendo-se também para o órgão funcional ocupado pelo defensor público. Para o assistido, o princípio do defensor natural age e o protege em dois momentos: no primeiro, garante que o defensor público responsável por acompanhar o seu caso foi escolhido por critérios objetivos previamente fixados, eliminando, portanto, qualquer chance de ser defendido por alguém cuja designação para atuar tenha decorrido de perseguição ou tenha natureza política. E, no segundo momento, garante que o defensor público com o qual já confidenciou os fatos e eventuais segredos sobre o caso, e com o qual já criou uma relação de confiança, não será arbitrariamente removido do processo.
Por fim, não há qualquer conflito ou incompatibilidade entre os princípios da indivisibilidade e do defensor natural. Na verdade, o princípio do defensor natural limita e condiciona o princípio da indivisibilidade, admitindo que as substituições dos membros ocorram, desde que observados os critérios legais ou de normatização interna.
Inicialmente, impende salientar que não há esse direito, já que o princípio do defensor natural limita e condiciona o princípio da indivisibilidade, proibindo somente as substituições arbitrárias do defensor natural. Neste sentido, já se posicionou o STF.
EMENTA 03
“A Defensoria Pública é regida pelos princípios da unidade e indivisibilidade, os quais autorizam aos seus membros substituir uns aos outros no exercício de determinado processo, sendo desnecessária prévia concordância do assistido, porque a atuação da Instituição está preservada, cabendo-lhe organizar a atividade de seus integrantes” (HC 111114, Rel. Min. Cármen Lúcia, 2a Turma, julgado em 24/09/2013).
Entendimento contrário a este, além de forçar uma compreensão equivocada do princípio do defensor natural, pessoalizando de forma excessiva a relação entre defensor e assistido, ainda colocaria em risco o direito fundamental à razoável duração do processo (art. 5o, LXXVIII, da CF), já que qualquer afastamento do defensor natural demandaria um imenso esforço da Defensoria Pública para notificar os respectivos assistidos e lhes conferir o direito de manifestação, algo definitivamente irrealizável com a estrutura precária da grande maioria das Defensorias Públicas.
Da mesma forma que o princípio do defensor natural limita e condiciona o princípio da indivisibilidade, a recíproca também ocorre, pois o caráter indivisível da Defensoria Pública fundamenta a estruturação da carreira em categorias ou níveis de atuação dos seus membros, implicando em divisão de atribuições que, em regra, acompanham o critério de competência do órgão jurisdicional a que está vinculado.
Assim sendo, pode ocorrer de o assistido ter mais de um defensor natural na tramitação do seu processo. Um exemplo extraído da prática penal: o assistido terá o seu defensor natural que irá atuar no caso em primeira instância e, havendo a interposição de recurso de apelação contra a sentença penal condenatória, o assistido terá outro defensor natural, conforme regras prévias de distribuição, que atuará perante o Tribunal. Caso mantida a condenação e interposto eventual recurso extraordinário ou recurso especial, o assistido poderá ter um terceiro defensor natural, responsável pela atuação perante Tribunais Superiores, nada impedindo, ainda, que, transitada em julgado a condenação, o assistido tenha um quarto defensor natural, com atribuição para atuar na fase de execução da pena.
Merece atenção o art. 128, XII, da LC 80/94, pois que prevê a prerrogativa de o Defensor Público deixar de patrocinar ação, quando manifestamente incabível ou inconveniente aos interesses da parte sob seu patrocínio, comunicando ao Defensor Público Geral as razões do seu proceder. Se houver discordância quanto às razões apresentadas, pode propor a ação ou designar outro Defensor Público para que o faça. Trata-se de uma prerrogativa, mas, ao mesmo tempo, é um reflexo da independência funcional.
Se o Defensor Público Geral entender que o defensor usou da independência funcional de forma equivocada, pode representá-lo na Corregedoria, mas não pode obrigar o defensor a atuar. Outro defensor tem que ser designado, que age como longa manus do Defensor Público Geral, consoante artigo 28 do CPP. Há autores, como Franklin Roger, que defendem que esse novo defensor designado pode se negar a atuar.
Pelo exposto, observa-se que o princípio do defensor natural encontra previsão, expressa, no artigo 4º-A, da Lei Complementar n 80/94.
Caracteriza-se, a um só tempo, como direito dos assistidos da defensoria pública e garantia de seus membros. No primeiro caso, há certeza de que os direitos dos assistidos serão defendidos pelo defensor público previamente estabelecido, em norma internas, de cunho administrativo. Na segunda hipótese, garante-se, aos defensores públicos, a observância das garantias de inamovibilidade e independência funcional, indispensáveis à atuação isenta de suas funções.
Infere-se, ademais, que o presente princípio encontra guarida na jurisprudência dos Tribunais Superiores. Decorre, em verdade, das garantias constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, previstos no artigo 5º, LIV e LV da Carta Maior. Caso violado o princípio do defensor natural, restará caracterizada a nulidade do processo.
Verifica-se, por fim, que o direito ao princípio do defensor natural não confere ao assistido a possibilidade de manifestação prévia à substituição entre defensores públicos – consectário do princípio da indivisibilidade – sob pena de restar inviabilizada a atuação da defensoria pública.
[1] JUNKES, Sérgio Luiz. Defensoria pública e o princípio da justiça social. Curitiba: Juruá, 2006.. p. 104.
Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RASKOVISCH, Silvia Primila Garcia. Especificidades do princípio do Defensor Natural Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 out 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/52278/especificidades-do-principio-do-defensor-natural. Acesso em: 01 nov 2024.
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