RESUMO: Este artigo busca trabalhar a ideia de vinculação paritária ao instrumento convocatório, bem como sobre a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário quando ultrapassada a barreira legal pela Administração Pública.
Palavras-chave: Ato administrativo; edital; princípio da vinculação ao edital; concurso público.
Abstract: This article seeks to work on the idea of the equal attachment to the summoning instrument, as well as on the possibility of intervention by the Judiciary when the legal barrier is overcome by the Public Administration.
Keywords: Administrative act; notice; principle of binding the notice; Public Tender.
Sumário: Introdução; 1. Da vinculação ao edital; 2. Do Concurso para o cargo de Escrivão da Polícia Civil de Minas Gerais. Exemplificando a violação ao edital; 3 – Da intervenção do Poder Judiciário – O protetor da legalidade; Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
A Administração Pública, por mandamento constitucional, possui critério diferenciado de seleção de pessoal, não se confundindo com a esfera privada. Os servidores que integram a pessoa jurídica pública necessitam, previamente, salvo algumas exceções pontuais, submeter-se a concurso público de provas ou de provas e títulos.
A seleção dos pretendentes é regulamentada por meio de edital expedido pelo Ente Contratante, que definirá as regras aplicáveis ao certame, determinando aos candidatos os deveres, obrigações, direitos, descrição do cargo, remuneração, provas a que serão submetidos, com detalhamento das condições de realização de cada uma delas, critério de análise dos resultados, recurso das decisões proferidas, critérios para ingresso no cargo, e outras exigências e especificidades relacionadas à contratação.
Dito isso, publicado o edital, temos então o norte que orientará o candidato em sua jornada, bem como o ente federal aplicador do exame público de admissão, sendo assente na jurisprudência pátria que o Edital é a lei interna do concurso.
Nessa seara, emerge a figura do princípio da vinculação ao instrumento convocatório, princípio este essencial ao tema concursos públicos e que deve ser aplicado em estrita convergência aos princípios constitucionais e à lei, sem possibilidade de mitigações arbitrárias e unilaterais pela Administração.
Por tal princípio temos que o edital deve ter suas disposições plenamente atendidas, estando as partes nele envolvidas obrigadas a cumprir os termos ali presentes, de aplicação bilateral, pois é bem verdade que os candidatos não podem se furtar às disposições contidas no Edital, mas tal afirmação, igualmente, deve ser aplicada à Administração, lhe competindo a execução de todas as etapas do Concurso Público com fiel observância dos ditames previamente estipulados no instrumento convocatório[1].
1. Da vinculação ao edital
Em tempos pretéritos, na França do antigo regime pré-revolução, em completa arbitrariedade, poderia o rei, por simples ordem direta impor absolutamente tudo aos cidadãos. Inclusive, através de documento intitulado “lettre de cachet”, poderia obrigar uma pessoa a se casar. Poderia ainda prende-la ou coagi-la sem qualquer justificativa, pois seu poder emanava da sua simples vontade.
Os tempos do “Le roi le veut” (o rei assim quer) encerraram. O Estado é gerido por políticos eleitos pelo povo. Vigora, atualmente, a ideia da impessoalidade, da supremacia do interesse público e da estrita obediência à lei.
A arbitrariedade de outros tempos foi afastada, restando ao Administrador uma discricionariedade mitigada e passível de controle em seus aspectos legais.
A gestão deve se dar em prol da coletividade, em atuação plenamente adstrita, vinculando-se o administrador às regras estipuladas.
Nesse ínterim, quando da contratação de pessoal, a Administração, salvo algumas exceções pontuadas pela lei, deve elaborar concursos públicos, estipulando, de acordo com o ordenamento e princípios vigentes, as regras da seleção em edital próprio.
Tais preceitos terão força de aplicação bilateral, vinculando não só os candidatos, mas também a própria Administração, conforme consolidado pelo STF no julgamento abaixo transcrito:
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CONTROLE JURISDICIONAL. VINCULAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA AO EDITAL. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. PRECEDENTES. AGRAVO IMPROVIDO. I – A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que, poderá o poder judiciário analisar a compatibilidade entre o conteúdo descrito no edital e as questões apresentadas na prova objeto do certame. II – Agravo regimental improvido. (AI 766710 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 31/05/2011, DJe-115 DIVULG 15-06-2011 PUBLIC 16-06-2011 EMENT VOL-02545-01 PP-00188)
Assim, em prol da impessoalidade, e objetivando a escolha meritocrática, a Administração vincula-se ao edital e à lei, e consubstanciado qualquer desvio, autoriza-se o candidato buscar sua correção.
O Poder público deve manter-se leal ao edital assim como Thomas More[2] às suas crenças, quando de seu julgamento pelo então Rei Henrique VIII, na Inglaterra.
Quando a Administração divulga um edital, gera expectativa quanto a seu comportamento segundo as regras ali previstas. Aqueles que decidem inscrever e participar do certame depositam confiança no Estado administrador[3]”. O edital de concurso , desde que consentâneo com a lei de regência em sentido formal e material, obriga candidatos e Administração Pública[4].
Neste mesmo sentido manifestou-se o Ministro AYRES BRITTO: “Um edital, uma vez publicado – norma regente, interna, da competição, na linguagem de Hely Lopes Meireles –, gera expectativas nos administrados; expectativas essas que hão de ser honradas pela Administração Pública. Ela também está vinculada aos termos do edital que redigiu e publicou”.
O Ministro Celso de Mello, em seu voto no Mandado de Segurança nº 31.695, publicado em 10 de abril de 2015, suscitou ainda importante consideração de que a atuação da Administração fora dos termos do edital configuraria verdadeiro comportamento contraditório, ferindo a máxima do “nemo potest venire contra factum próprio”, e consequentemente abalando a boa-fé objetiva.
A atuação pública deve estar adstrita a expectativa gerada, além dos princípios e regras existentes, sob pena de transformar-se em temida arbitrariedade, instituto descompassado ao vigente Estado Democrático de Direito.
Suprimida a segurança jurídica, desafinada somente esta corda e escutaremos a dissonância. Quando mascarada a arbitrariedade, o ato mais vil parece, debaixo da máscara, igual ao mais digno[5].
2. Do Concurso para o cargo de Escrivão da Polícia Civil de Minas Gerais. Exemplificando a violação ao edital
Foi elaborado, através da FUMARC, concurso para admissão ao cargo de Escrivão de Polícia I da Policia Civil do estado de Minas Gerais, objetivando ingresso no Curso de Formação Profissional para o ano de 2019, Edital Nº 02/2018 – PCMG.
No que tange a aplicação do exame psicotécnico, o Estado de Minas Gerais providenciou, por instrumento cabível, o credenciamento das clínicas, nos termos de edital próprio (Edital nº 04/2018), regulamentando os critérios determinantes para celebração do contrato administrativo.
O credenciamento é o meio pelo qual o poder público convoca os interessados em prestar serviços, desde que preenchidos os requisitos estipulados, em observância a Lei de Licitações e princípios que regem a Administração, de forma a impedir beneficiamentos e interferências prejudiciais.
Em razão do procedimento supramencionado, sagraram-se classificadas as seguintes clínicas, devidamente credenciadas à aplicação do exame através da portaria nº 162/DRS/ACADEPOL/PCMG/2018 c/c Portaria nº 037/DRS/ACADEPOL/PCMG/2019: 1) CLINESP – Clínica Especializada Ltda; 2) MEDWORK Serviços Médicos e Psicológicos Ltda; 3) SERCON – Sociedade Profissional de Saúde Ocupacional e Psicologia Empresarial; 4) DOCTOR Recursos Humanos Ltda; 5) PERFIL Ocupacional Ltda; 6) PERSPECTIVA Assessoria de recursos Humanos Ltda; 7) ÓTIMA Ocupacional Ltda; 8) APTA – Avaliação Psicológica, treinamento e Aperfeiçoamento Ltda.
No mês de novembro de 2018, quando da homologação do credenciamento, foram as clínicas submetidas a vistoria técnica, com fito de verificar o atendimento aos preceitos editalícios, sendo então atribuídos pontos em quesitos predeterminados, resultando em classificação geral, divulgada através de portaria em data de 31 de outubro de 2018 (portaria 156/DRS/ACADEPOL/PCMG/2018):
CLÍNICA |
PONTOS |
CLINESP (1º) |
36 |
MEDWORK (2º) |
35 |
SERCON (2º) |
35 |
DOCTOR (4º) |
34 |
PERFIL (4º) |
34 |
PERSPECTIVA (4º) |
34 |
ÓTIMA (7º) |
30 |
APTA (8º) |
27 |
O edital de credenciamento, em seu item 4.7.1.3 disciplinava as especificidades exigidas para as salas de aplicações dos testes, mencionado que tais locais não deveriam permitir ruídos externos, vejamos:
4.7.1.3 Salas de aplicação dos testes iluminadas, ventiladas, com acessibilidade, sem ruídos e/ou interferências etc., conforme as normas do Conselho Federal de Psicologia, e dos Manuais de testes psicológicos. |
Quando da vistoria técnica as clínicas MEDWORK, ÓTIMA, PERFIL e PERSPECTIVA, obtiveram nota 2, o que significava que ofertavam pouco isolamento acústico “médio barulho”, contrariando portanto o item 4.7.1.3 supracitado.
A despeito da notória violação ao edital, atestada pela própria organização do certame, foram elas credenciadas aos concursos para Delegado Civil e Escrivão da Polícia Civil de Minas Gerais, acarretando grave ofensa à legislação e aos princípios aplicáveis, já que foram habilitadas clínicas inaptas aos termos eleitos.
O aspecto da legalidade da avaliação psicológica cumpre-se com a sua previsão em lei em sentido formal, podendo a pormenorização disso, vale dizer, a descrição do seu "modus operandi" e dos seus critérios, ser feita em ato infralegal, como o edital do certame[6].
Nesse ínterim, apesar de determinados os requisitos mínimos para o credenciamento, estes não foram observados, sendo permitida a avaliação dos candidatos por clínicas que não atenderam aos requisitos mínimos estipulados no edital.
Neste caso concreto, atuou a Administração de forma contraditória, na medida em que expressamente descumpriu regra a qual estava vinculada, transgredindo o dever de confiança depositado pelos candidatos, e consequentemente ferindo a legalidade.
Aquele que negligencia não tem o direito de cobrar do outro o cumprimento, falta-lhe legitimidade. A aplicação do edital deve se dar nos termos do ali exposto, sem possibilidade do Estado desviar-se das regras que se comprometeu perante o cidadão.
3. Da intervenção do Poder Judiciário – O protetor da legalidade
O Estado, para que seja reconhecido como de Direito, tem por um de seus elementos a responsabilidade do governante. Antigamente o poder estava concentrado em uma única pessoa, normalmente o rei, que em regime monárquico guiava a nação arbitrariamente, sem espaço para questionamentos acerca das decisões por ele proferidas, pois seu poder emanava da divindade e hereditariedade.
Tal forma de governo, com o passar dos anos foi esvaindo-se, enfraquecendo, pois o povo já não sustentava influências imedidas e baseadas em intempéries casuais do detentor do poder. O racionalismo começava a quebrar correntes e revoltas surgiam.
O Estado deveria ser justo e a justiça pautava-se em uma melhor distribuição do poder. A revolução Gloriosa foi o grande marco do enfraquecimento da monarquia e do início da responsabilização do governante, pois o Estado não poderia ser a voz de um, este é a voz do povo, devendo ser gerido de forma impessoal, pautando seus atos na lei, prestigiando-se a segurança jurídica.
Em 1610, renomado advogado e jurista, na oportunidade alçado ao cargo mais prestigioso da Justiça Inglesa, Sir. Edward Coke, atuou em relevante processo conhecido como Dr. Bonham´s Case. “Nele, Coke fornece as bases para que o Poder Judiciário possa questionar e examinar os atos do Poder Executivo. Trata-se da origem do Judicial Review, ou seja, o conceito, fundamental ao Estado Moderno, de que os atos do Executivo se encontram sujeitos ao exame do Judiciário, tudo a fim de garantir a estabilidade[7]”.
Thomas Bonham, embora graduado em medicina pelas imponentes universidades de Cambridge e de Oxford, não obteve licença para exercer a profissão nos termos em que exigido por decreto real da época.
Apesar disso, inconformado com sua não aceitação e com os motivos apresentados, passou a clinicar, razão pela qual teve contra si iniciado processo administrativo, que seria julgado pelo Colégio dos Médicos, órgão público que ocupava a função de acusador e julgador de quem praticasse a medicina, conforme decreto real de 1553.
Ao mesmo tempo, Bonham levou o caso para o Judiciário, incumbindo à Coke analisa-lo. O nobre jurista entendeu que, embora houvesse ordem real dando ao Colégio de Médicos o poder de julgar, a situação era esdrúxula, contrária à razão e ao direito comum. Com isso reviu a regra determinada pelo Poder Executivo a fim de dar ganho de causa ao Dr. Bonham.
Ali tínhamos o Poder Judiciário declarando nula uma regra editada pelo Poder Executivo, por esta estar ferindo a ordem justa, sendo, portanto, declarada sua nulidade frente ao ordenamento comum.
Tal fato acabou por ter grande repercussão na Inglaterra, levando o rei Jaime I a confrontar os juízes da época, que no seu modo de pensar deveriam estar a ele submissos. Coke o enfrenta, pautando-se no princípio de que o rei é também um súdito da lei, e que o juiz deve buscar ser sempre justo e honesto quando do exercício de seu dever, estando desvinculado de qualquer ente autoritário.
Posteriormente, as derivações fáticas de tal evento foram ainda superiores, levando o Rei Carlos I, sucessor do rei Jaime I, a dissolver o parlamento britânico, visto os movimentos iniciados, pelo agora opositor Coke, em prol da limitação do poder real.
Tem início em 1642 uma guerra civil, liderada por Oliver Crownwel, um dos mais controvertidos personagens da história inglesa. De um lado, a maioria do Parlamento; do outro, o rei e seus seguidores. O rei Carlos I acabou derrotado e executado, o que se tornou o gatilho para a Revolução Gloriosa.
Nesta época afirmou John Locke que a ordem do príncipe apenas tem valor se estiver conforme a lei. O abuso começa onde a lei acaba.
Tal pensamento pode ser adaptado aos atos administrativos vigentes e despregados do ordenamento e do instrumento convocatório. Ao Executivo permite-se a edição dos atos, mas sempre em respeito ao teor da lei. E editados os atos não pode posteriormente atuar contra ou além do que determinou, pois a ele também está vinculado, sob pena de abuso.
A arbitrariedade tem início a partir do rompimento unilateral estatal. O príncipe (Estado) há de ser um súdito da lei. O ato prolatado tem efeito amplo obrigando aquele a quem é dirigido, bem como o seu editor.
Todas as ordens vigentes para se manterem justas devem ter contrapontos, possibilitando serem contrabalanceadas por outras, em prol de um equilíbrio consensual pleno, evitando-se excessos e abusos de poder.
Os Estados Unidos da América quando da revolução gloriosa ainda eram governados pelos ingleses em sistema colonial. Os ruídos libertadores do novo idealismo trataram de rumar ao Novo Mundo, que através de renomados juristas como John Adams, Thomas Paine, Benjamim Franklin, George Washington, Thomas Jefferson, dentre outros, os transforam em realidade, e devido às arbitrariedades cometidas pelos colonizadores trataram de elaborar um plano de independência, bem como a forma em que este novo governo seria regido.
Os Estados Unidos da América foram a primeira república moderna e podem ser definidos como a democracia mais estável da história da civilização. A Constituição publicada em julho de 1788 teve suas bases tão bem solidificadas que rege o país até os dias atuais, o que é uma rara exceção, visto que dois terços das constituições mundiais foram adotadas ou substancialmente revistas após 1970.
No início, quando de sua elaboração, a Carta Política americana possuía sete artigos. Atualmente é dotada de 26 emendas, sendo que dez delas foram elaboradas pelo primeiro Congresso dos Estados Unidos em 1789.
No mandato do terceiro presidente americano, Thomas Jefferson, que comandou os Estados Unidos de 1801 a 1809, foi dado outro grande passo no fortalecimento da democracia.
John Adams, presidente que antecedeu Thomas Jefferson, ciente da derrota nas eleições e antes de sair do cargo, acabou por aprovar no Congresso uma lei em que, dentre outras regras, “aumentava o número de distritos e de juízes, além de dar ao presidente o poder de nomear juízes de paz. Poucos dias antes de deixar a presidência, Adams indicou alguns juízes pra cargos federais, entre eles William Marbury, designado juiz de paz em Colúmbia[8]”.
O novo secretário de Estado, indicado por Thomas Jefferson, assim que assumiu o secretariado, negou-se a dar posse a Marbury. Este último, acreditando ser ilegal o ato do Estado de lhe negar a emissão dos documentos que lhe garantiam ingressar no cargo, ajuizou ação perante a Suprema Corte americana. “O célebre caso ficou conhecido como Marbury vs. Madison”.
Um dos temas debatidos foi de grande complexidade: Marbury poderia recorrer ao Judiciário em face de um ato editado pelo Poder Executivo? Consolidou-se no julgamento que plenamente possível, pois toda violação de direito deve ser examinada, ainda que essa violação tenha partido do Estado.
A partir do julgamento deste caso, definiu-se o conceito do judicial review, segundo o qual o Poder Judiciário tinha competência para analisar e rever os atos dos demais poderes. Pertence ao Judiciário a última palavra acerca da legalidade dos atos, pois é o maior guardião das garantias fundamentais dos cidadãos.
Um poder, para ser harmônico, deve ser por outro restringido quando atuar fora de seus percalços institucionais. Essa possibilidade de revisão nada mais é do que o sistema de freios e contrapesos idealizado para harmonizar a existência dos três poderes instituídos: Judiciário, Executivo e Legislativo.
O Poder Judiciário deve cumprir seu papel de freio constitucional aos avanços ilegais da Administração, em prol da segurança jurídica, Sendo assim, extrapolados os ditames principiológicos e legais ou o próprio edital, emerge a figura do Julgador, protetor do cidadão frente aos abusos estatais.
Aquele que promulgou as regras também não pode desrespeita-las, sob pena de não estarmos regidos por um Estado de Direito. O Estado deve obediência aos atos que ele editou e qualquer desvio disso deve ser combatido através do Poder Judiciário, órgão protetor da lei.
As regras dispostas aos concursos públicos são de aplicação bilateral, pois é bem verdade que os candidatos não podem se furtar às suas disposições, mas tal afirmação, igualmente, deve ser aplicada à Administração, lhe competindo a execução de todas as etapas do certame com fiel observância dos ditames previamente estipulados no instrumento convocatório[9].
Verificada a infringência à formalidade imposta pela própria Administração em flagrante desatenção às disposições expressas no Edital, de rigor, a intervenção judicial para se restabelecer a observância aos princípios da legalidade e da vinculação ao instrumento convocatório.
Agir fora dos ditames estipulados afronta a segurança jurídica, pois desestabilizado estará o ordenamento quando o Ente editor das normas não está disposto a cumpri-las. O ordenamento perderia a força e a cogência dele esperadas.
O tema da segurança jurídica é pedra angular do estado de direito sob a forma de proteção da confiança.
É o que destaca Karl Larenz, in verbis: “O ordenamento jurídico protege a confiança suscitada pelo comportamento do outro e não tem mais remédio que protegê-la, porque poder confiar (...) é condição fundamental para uma pacífica vida coletiva e uma conduta de cooperação entre os homens e, portanto, da paz jurídica[10]”.
E mais, não há que se falar em ofensa ao artigo 2º da Constituição Federal. O STF tem decidido que o controle jurisdicional do ato administrativo considerado ilegal ou abusivo não viola o princípio da separação dos Poderes, sendo permitido, inclusive, ao Judiciário sindicar os aspectos relacionados à proporcionalidade e à razoabilidade. (RE 1103448 AgR, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 11/10/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-230 DIVULG 22-10-2019 PUBLIC 23-10-2019).
Conclusão
Ante o exposto concluímos que a Administração, quando da elaboração do certame, está vinculada à lei e às regras por ela estipuladas no edital. Atuando além do caminho traçado pelas normas regentes estará configurada a arbitrariedade, danificando a segurança jurídica, os princípios constituídos e o ordenamento, cabendo ao Poder Judiciário a correção da ilegalidade, baseado no sistema de freios e contrapesos, instituído a partir de longo processo evolutivo institucional.
Referência Bibliográfica
1 - O edital de credenciamento pode ser consultado através do link: http://www.fumarc.com.br/imgDB/concursos/Edital%20Credenciamento%2011.10.2018-20181016-103516.pdf;
2 – Demais informações do concurso estão disponíveis em: http://www.fumarc.com.br/concursos/detalhe/cargo-para-escrivao-de-policia-civil/121;
3 – Neves, José Roberto de Castro, Como os advogados salvaram o mundo, 1ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
[1] (STJ - EDcl no AgRg no REsp: 1285589 CE 2011/0239774-5, Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 11/06/2013, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/07/2013)
[2] Thomas More foi um dos ingleses mais brilhantes. Em razão de suas crenças e entendimentos negou-se a jurar submissão ao Decreto de Sucessão, que buscava validar a anulação do casamento do Rei Henrique VIII com Catarina de Aragão para que este pudesse contrair novas núpcias com Ana Bolena. Em seu julgamento, em 1.535, invocou, além de outras leis, a Magna Carta, informando que o ato do Parlamento violava o sistema legal, além disso, mostrou-se contrário à nova posição da então majestade em relação à Igreja. O ordenamento não poderia ser violado em razão de interesses imediatos do Rei e caberia a Igreja cuidar dos assuntos religiosos. Acabou indo a julgamento e por manter-se firme em suas crenças foi condenado à morte em um julgamento extremamente parcial.
[3] (MS 33455, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 15/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-019 DIVULG 01-02-2016 PUBLIC 02-02-2016).
[4] (RE 480.129/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO)
[5] Trecho do discurso do personagem Ulisses, diante da tenda de Agamenon, líder dos gregos, na peça “The Tragedy of Troilus and Créssida”, de Shakespeare. No original, o personagem utiliza a expressão “hierarquia”, no lugar de “segurança jurídica”.
[6] (RMS 53.857/BA, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/09/2017, DJe 15/09/2017)
[7] Neves, José Roberto de Castro, Como os advogados salvaram o mundo, 1ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018 – Pag. 130.
[8] Neves, José Roberto de Castro, Como os advogados salvaram o mundo, 1ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018 – Pag. 183.
[9] (STJ - EDcl no AgRg no REsp: 1285589 CE 2011/0239774-5, Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 11/06/2013, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/07/2013)
[10] Derecho Justo Fundamentos de Ética Jurídica. Madri. Civitas, 1985, p. 91.
Advogado no escritório DMC Advogados Associados [www.dmcadvogadosassociados.com.br]; Pós-graduado em Direito Corporativo e Compliance pela Escola Paulista de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Rafael Bemfeito. Vinculação jurídica da Administração Pública ao edital e a impossibilidade de desvios unilaterais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jul 2020, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/54921/vinculao-jurdica-da-administrao-pblica-ao-edital-e-a-impossibilidade-de-desvios-unilaterais. Acesso em: 23 dez 2024.
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