A Constituição Federal de 1988 (CF) garantiu no artigo 5º, inciso XXXV, que todos têm direito ao acesso à Justiça. Já no inciso LXXIV estipulou que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. E, em arremate, no inciso LXXVIII prescreveu que a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Isto sem se mencionar as garantias do devido processo legal (LIV), da ampla defesa e do contraditório (LV).
Como se sabe estas normas definidoras de direitos fundamentais têm aplicação imediata (artigo 5º, § 1º, da CF), cabendo ao Estado garantir a efetividade dos comandos emanados da Constituição. Não por outra razão, a Carta Magna prevê:
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.
Quanto à relevância institucional da Defensoria Pública (DP) no cenário nacional, colhem-se os seguintes excertos de julgamentos da Suprema Corte:
A relação entre a atuação da Defensoria Pública e a defesa do Estado Democrático de Direito, ademais, deflui da interpretação sistemático-teleológica das cláusulas da inafastabilidade da jurisdição e do devido processo legal em sua acepção substancial, eis que, por meio da Defensoria Pública, reafirma-se a centralidade da pessoa humana na ordem jurídico-constitucional contemporânea, deixando-se claro que todo ser humano é digno de obter o amparo do ordenamento jurídico brasileiro. [ADO 2, rel. min. Luiz Fux, j. 15-4-2020, P, DJE de 30-4-2020]
A Defensoria Pública, enquanto instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, qualifica-se como instrumento de concretização dos direitos e das liberdades de que são titulares as pessoas carentes e necessitadas. É por essa razão que a Defensoria Pública não pode (e não deve) ser tratada de modo inconsequente pelo poder público, pois a proteção jurisdicional de milhões de pessoas – carentes e desassistidas –, que sofrem inaceitável processo de exclusão jurídica e social, depende da adequada organização e da efetiva institucionalização desse órgão do Estado. De nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apoiam – além de desrespeitados pelo poder público ou transgredidos por particulares – também deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública, cuja função precípua, por efeito de sua própria vocação constitucional (...), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive mediante acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados por pessoas necessitadas, que são as reais destinatárias tanto da norma inscrita no art. 5º, LXXIV, quanto do preceito consubstanciado no art. 134, ambos da Constituição da República. Direito a ter direitos: uma prerrogativa básica, que se qualifica como fator de viabilização dos demais direitos e liberdades. Direito essencial que assiste a qualquer pessoa, especialmente àquelas que nada têm e de que tudo necessitam. Prerrogativa fundamental que põe em evidência. Cuidando-se de pessoas necessitadas (...). A significativa importância jurídico-institucional e político-social da Defensoria Pública. [ADI 2.903, rel. min. Celso de Mello, j. 1º-12-2005, P, DJE de 19-9-2008]
O mesmo tratamento jurídico acima se vê no Código de Processo Civil (CPC) ao dispor que:
Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.
Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.
Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
Art. 7º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.
No entanto, não obstante o inegável avanço que a Defensoria Pública (DP) obteve nas últimas décadas, o acesso à Justiça nem sempre é possível a todos os cidadãos. Os recursos públicos direcionados a esta Função Essencial à Justiça são insuficientes para todo o dispêndio necessário para mantê-la. Há carência de Defensores Públicos e servidores de assessoramento em todos os Estados da Federação, seja na Defensoria Pública Estadual (DPE), seja na Defensoria Pública da União (DPU). Existe carência de infraestrutura também.
Enfim, um cenário muito longe do ideal previsto na Carta Cidadã de 1988, como bem lembrado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em diversos julgados, a saber:
Defensoria Pública. Implantação. Omissão estatal que compromete e frustra direitos fundamentais de pessoas necessitadas. Situação constitucionalmente intolerável. O reconhecimento, em favor de populações carentes e desassistidas, postas à margem do sistema jurídico, do "direito a ter direitos" como pressuposto de acesso aos demais direitos, liberdades e garantias. Intervenção jurisdicional concretizadora de programa constitucional destinado a viabilizar o acesso dos necessitados à orientação jurídica integral e à assistência judiciária gratuitas (CF, art. 5º, LXXIV, e art. 134). Legitimidade dessa atuação dos juízes e tribunais. O papel do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas instituídas pela Constituição e não efetivadas pelo poder público. A fórmula da reserva do possível na perspectiva da teoria dos custos dos direitos: impossibilidade de sua invocação para legitimar o injusto inadimplemento de deveres estatais de prestação constitucionalmente impostos ao Estado. A teoria das "restrições das restrições" (ou da "limitação das limitações"). Controle jurisdicional de legitimidade sobre a omissão do Estado: atividade de fiscalização judicial que se justifica pela necessidade de observância de certos parâmetros constitucionais (proibição de retrocesso social, proteção ao mínimo existencial, vedação da proibição insuficiente e proibição de excesso). Doutrina. Precedentes. A função constitucional da Defensoria Pública e a essencialidade dessa instituição da República. Thema decidendum que se restringe ao pleito deduzido na inicial, cujo objeto consiste, unicamente, na "criação, implantação e estruturação da Defensoria Pública da Comarca de Apucarana”. [AI 598.212 ED, rel. min. Celso de Mello, j. 25-3-2014, 2ª T, DJE de 24-4-2014]
Em razão desta lamentável realidade, muitos magistrados brasileiros têm suprido a carência momentânea da Defensoria Pública (DP) por meio das nomeações de advogados dativos, notadamente em processos de índole criminal onde há o envolvimento de questões de direito à liberdade dos cidadãos, a exemplo das audiências de custódia exigidas e fiscalizadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Nesse toar, além dos dispositivos constitucionais acima, é bastante comum que os magistrados utilizem em sua decisão o fundamento legal a seguir:
Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência.
§ 1º O advogado, quando indicado para patrocinar causa de juridicamente necessitado, no caso de impossibilidade da Defensoria Pública no local da prestação de serviço, tem direito aos honorários fixados pelo juiz, segundo tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB, e pagos pelo Estado.
Deste ponto de partida, em muitos casos, iniciam-se os problemas jurídico-processuais e até mesmo administrativos para o Estado.
Primeiramente, não é incomum que haja uma completa arbitrariedade do juízo ao escolher quais advogados poderão ser indicados como dativos. Confere-se, assim, um poder imenso ao juiz para escolher quem poderá ser o escolhido na missão de defesa de determinado caso concreto.
É que na maioria das comarcas brasileiras não há um procedimento formal de habilitação destes advogados dativos, cabendo ao juiz escolhê-los sem qualquer critério objetivo, impessoal e isonômico. Quanto a isto, pontualmente, há Tribunais que ainda buscam formar uma espécie de credenciamento dos advogados dativos, exigindo até habilitações específicas, porém na prática brasileira isto é uma realidade distante, ao menos na maioria do país.
Outro ponto a se considerar é a ausência constante de fundamentação para a nomeação de advogados dativos. Em muitos casos, apenas porque o magistrado escolheu ao seu bel prazer a data da pauta de audiências para determinado dia da semana e o Defensor Público se encontra na Comarca apenas em outro dia, o juízo entende ser motivo justo para designar um advogado dativo. Algo que poderia ser resolvido mediante um simples diálogo institucional.
Ainda, há problemas quanto ao valor dos honorários para os advogados dativos, pois, não raro, há magistrados fixando quantias muito acima da Tabela da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ou daqueles praticados no mercado advocatício. Casos onde juízes fixam quantias elevadíssimas e estes advogados dativos acabam recebendo, mensalmente, muito mais que o teto do funcionalismo público brasileiro.
Também há uma preocupação bastante significativa com a perda da qualidade da defesa praticada pelo advogado dativo, haja vista que, em muitas situações, o nomeado mal conhece o caso narrado e somente é designado para um ato processual específico (júri ou audiência de instrução, por exemplo). Ao contrário, o Defensor Público teria melhores condições para realizar esta defesa, pois desde o princípio da ação estaria acompanhando a situação do cidadão assistido.
E as contendas não se resumem a isto.
Os juízes, não raro, expedem determinações de pagamento destes honorários de advogados dativos e estipulam um prazo completamente aleatório e desconectado da realidade constitucional e legal. Prazos de 5 dias, 10 dias ou 15 dias, por exemplo.
Ora, primeiramente, a decisão que nomeia o advogado dativo é passível de recurso pela Fazenda Pública a quem competirá o pagamento dos honorários advocatícios do advogado dativo, até porque pode não ser o caso de nomeá-lo, mas sim de simples remarcação de ato processual ou mesmo de comprovação da possibilidade de custeio dos honorários pelo suposto assistido.
Imagine-se que o juízo tenha nomeado advogado dativo para uma grande empresa detentora de ótimas condições financeiras. É óbvio que a Fazenda Pública, uma vez intimada desta designação e da fixação de honorários para aquele profissional e em favor da empresa, poderá interpor recurso.
De outro lado, somente após o trânsito em julgado da decisão judicial (decisão, sentença ou acórdão) que nomeou o advogado dativo e fixou os seus honorários, obviamente com a necessária intimação da Fazenda Pública, é que deverá haver a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor (RPV), a depender da legislação que fixa os limites de pagamento do ente federativo, nos termos do artigo 100 da Constituição Federal.
Nesse sentido, diz a Carta Política:
Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
[...]
§ 3º O disposto no caput deste artigo relativamente à expedição de precatórios não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em leis como de pequeno valor que as Fazendas referidas devam fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado.
Portanto, descabe essa intimação da Fazenda Pública para pagar honorários de advogados dativos à revelia do regime constitucional de precatório e RPV, inclusive mediante insustentáveis ameaças de prisão por descumprimento de ordem judicial, penhoras on line ou imposição de astreintes. O pagamento de dívidas estatais tem regras constitucionais que precisam ser observadas, não podendo o juiz entender que tem a autorização para determinar a quitação de quantias como bem entender.
Enfim, estas são apenas algumas reflexões sobre a necessidade de uma reestruturação maciça da Defensoria Pública (DP) em todo o Brasil, pois embora os advogados dativos sejam, em momentos pontuais de urgência, uma via possível para garantir o acesso dos cidadãos à Justiça, também vêm ocorrendo diversos problemas jurídicos, processuais e administrativos que poderiam ser evitados se estas designações sequer viessem a ocorrer.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. Os equívocos do poder Judiciário na tramitação da nomeação de advogado dativo e seu respectivo pagamento de honorários Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 fev 2021, 05:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/56151/os-equvocos-do-poder-judicirio-na-tramitao-da-nomeao-de-advogado-dativo-e-seu-respectivo-pagamento-de-honorrios. Acesso em: 23 dez 2024.
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