GABRIEL MURINELLI FRANCISCO[1]
LAÍS BERTI RESQUETI[2]
(coautores)
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo investigar a conceituação e identificação do contexto das famílias, formas de organizações familiares do mundo contemporâneo, relativismo cultural e proteção ao multiculturalismo. O Brasil possui organização de pessoas formada por influências externas de diversos continentes e, embora tenha sido colonizado pela cultura ocidental, tem a missão de enfrentar a proteção de culturas, consequentemente proteção aos novos moldes de família entendidos pela sociedade. Assim, a contextualização do princípio da dignidade da pessoa humana é primordial para o respeito das mais variadas formas de organizações familiares, devendo a sociedade buscar um parâmetro em comum entre a corrente universalista e relativista, não em contraponto de opiniões ou na formação de barreiras, mas em harmonia e em respeito a identidade e diversidade de valores das organizações familiares regulamentadas pelo ordenamento jurídico ou por suas próprias normas e costumes.
Palavras-chave: Família. Relativismo cultural. Dignidade da pessoa humana.
ABSTRACT: This article aims to discuss the conceptualization and identification of the context of families, new forms of family organizations, cultural relativism and protection of multiculturalism. Brazil has an organization of people formed by external influences from different continents and, although it was colonized by Western culture, with the imposition of Catholicism, I maintain its historical roots, it has the mission to face the protection of cultures, consequently protection to the new family molds understood by society. Thus, the contextualization of the principle of the dignity of the human person is essential for the respect of the most varied forms of contemporary family organizations, and modern society should seek a common parameter between the current of universalists and relativists, not in opposition to opinions, in the formation barriers, but in harmony and respect for the identity and diversity of values of family organizations regulated by the legal system or by their own norms and customs developed in conjunction with the evolution of humanity.
Keywords: Family. Cultural relativism. Dignity of human person.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Do relativismo cultural na formação dos valores humanos.3. Da diversidade familiar no Brasil à luz da Constituição Federal. 4. Contextualização da Dignidade da Pessoa Humana. 5. Conclusão. 6. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A regulamentação jurídica brasileira enfrenta difícil missão entre a positivação e efetividade do direito, com especial atenção às múltiplas formas de cultura que integram o patrimônio brasileiro, de dimensões continentais.
A evolução cultural é constante aceitável e incorre na necessidade de pacificar zonas de divergência e de conflito jurídico entre o que deve ser entendido como correto, tolerável ou intolerável por uma organização de pessoas.
Partindo da premissa de que há um pluralismo cultural no Estado Democrático de Direito adotado pela Constituição Federal de 1988, oportuno consignar que, embora o Brasil seja signatário de pactos de Direitos Humanos, a corrente universalista convive em constante conflito e interferência com a corrente relativista.
A investigação científica discorre sobre os principais conceitos de família e sobre a forma e sobre como deve ser contextualizado com o princípio da dignidade da pessoa humana em prol do relativismo cultural.
A Constituição Federal, prevê que no artigo 215 que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. Caberá ainda ao Estado proteger as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, bem como de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
Da mesma forma, o artigo art. 216 do texto constitucional positiva que o patrimônio cultural brasileiro é formado pelos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem os modos de criar, fazer e viver.
Assim, a noção de Direito do Estado enquanto formador de organização de pessoas e enquanto nação receptora de múltiplas culturas se inter-relaciona com o sistema político, que, por sua vez, deve observar às normas principiológicas do Estado Democrático de Direito e a miscigenação de culturas que formam o Estado nação.
O presente estudo também tem por objetivo investigar o que define a família no mundo contemporâneo sob o ponto de vista multicultural, a partir dos estudos realizados pelo raciocínio dedutivo, pautado na pesquisa doutrinária e legislação brasileira positivada, que se confronta com questões culturais e religiosas.
Assim, se busca problematizar o multiculturalismo, que enfrenta hoje o discurso da intolerância e resistência legal no seu confronto com os direitos humanos, enquanto, na verdade, os diversos tipos de cultura que respaldam a formação familiar devem se entrecruzar e não se sobrepor.
O tema é de grande relevância para a comunidade jurídica na medida em que vista contribuir com um olhar para a compreensão das novas relações familiares e também preservar as formações familiares preexistentes, oriundas de diversificadas formas culturais.
2. DO RELATIVISMO CULTURAL NA FORMAÇÃO DOS VALORES HUMANOS
Primeiramente, para discutir ideologia relativistas, é preciso reconhecer suas raízes históricas, evolução e influências externas para a concepção do termo contextualizado ao território brasileiro.
Assim, se rememora os ensinamentos do filósofo Protágoras de Abdera (480 - 411 a.C.) ao afirmar que "O Homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são." (ROMEYER-DHERBEY, 1988, p. 25).
Nessa linha de raciocínio, ele ensinava a aptidão de se fazer sobressair um ponto de vista sobre outro ponto de vista contrário, não havendo verdade absoluta, pois os homens fazem seus julgamentos conforme os preceitos de cada indivíduo.
É de suma importância o respeito aos valores éticos e morais de uma organização de pessoas. E, essa é a lógica que Protágoras visava alcançar.
O relativismo cultural interfere na noção de existência e provém de estudos antropológicos, se contraponto ao etnocentrismo como uma forma de ver a cultura, é uma forma de ramificação, onde o ser humano desenvolve suas significações.
Com origens no século XIX, o antropólogo Franz Boas construiu uma crítica a ideia de civilização das teorias evolutivas, sendo o primeiro a utilizar a cultura na antropologia.
A principal ideia era restabelecer as diferenças populacionais existentes no mundo com diferentes formas de cultura. Eis o surgimento do paradigma evolucionista e biologicista para o paradigma funcionalista e culturalista (CARDEL, 2013, p.80).
O relativismo cultural se aplica em prol de cada caso apresentado e é a negação de uma cultura universal. Essa ideia é interessante porque permite introduzir e ilustrar a ideologia do próprio desenvolvimento da humanidade.
“Como entender o Desenvolvimento de crianças e adolescentes reais, que tem lugar num dado contexto familiar, que se insere, por sua vez, numa dada formação sócio-cultural concreta? Antes de mais nada é preciso entender que as ditas formações e as famílias que nelas vicejam são permeadas por dois processos simultâneos de diferenciação: um processo de diferenciação social e um de diferenciação cultural. Em muitas sociedades, e na nossa em particular, a diferenciação cultural, falar de progresso em direção à humanização do Homem, coexiste com a diferenciação social, falar de retrocesso, o que dá lugar a um conflito desagregador no Sistema como um todo. Em uma formação sócio-cultural como a brasileira contemporânea, este conflito reveste-se de tons dramáticos na medida em que somos aguda e simultaneamente afetados pelos dois processos de diferenciação. Temos, com efeito, uma importante parcela da população vivenciando processos de diferenciação cultural: as mulheres, as minorias sexuais, as diversas subculturas religiosas, os grupos alternativos no campo das práticas de saúde, etc. Mas temos, ao mesmo tempo, uma outra e mais expressiva parcela da população não ou mal escolarizada, vivendo em condições subumanas de habitação, submetida a intenso processo de exploração nas fábricas ou serviços, etc.” (LEFÈVRE, 1994, p. 48)
Certo é que a unicidade de cada cultura é ponto relevante, onde se inicia e termina sua validade, não havendo moral universal de nenhuma natureza. (SPENGLER, 1982, p. 221).
O dilema permeia a seguinte zona de confronto: podem as normas de direitos humanos ter sentido universal ou devem ser relativizadas? (PIOVESAN, 2013, p. 221)
Há diversos fatores influenciadores na zona de conflito entre o relativismo e o universalismo cultural e a pesquisa científica partilha da premissa de buscar um consenso entre os valores e não tentar descobrir qual o valor maior ou menor atribuído a cada cultura.
Certo é que a Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993 adota a corrente do universalismo forte, contudo, segundo Jack Donnelly ao apreciar a ordem, se pode insistir em um relativismo cultural fraco “que é, por sua vez, um razoavelmente forte universalismo”. Ele entende a necessidade de ser permitir grau limitado nas variações culturais, no modo e na interpretação de direitos da humanidade, onde os direitos humanos são relativamente universais. (DONNELLY, 1989, p. 124)
Dentre eles, registra-se também a forte influência da religião na formação e imposição da cultura.
A colonização do território brasileiro em busca de mão de obra, domesticada e qualificada na indústria da colônia Brasil, é o ponto central da tentativa de imposição de uma cultura ocidental em massa aos nativos. (CUNHA, 1987, P. 104)
O catolicismo foi imposto abruptamente, com desrespeito e violência à culturas, origens, individualidades materiais e imateriais, especialmente no que tange à violência simbólica para reconfigurar o aspecto espiritual. (ALBUQUERQUE, 2008, p. 198)
Oportuno mencionar que o próprio Estatuto do Índio foi promulgado em plena ditadura militar deixando de positivar as tutelas do Código Civil de 1916, e não recepcionou o decreto de 1928. Enquanto, de um lado, se buscava garantir direitos aos núcleos indígenas, de outro, os ocupantes de cargos governamentais eram, em sua maioria, totalitarista, incorrendo na formação de regramento com ideologia centrada no Estado Totalitário.
Na perspectiva da sociologia cada ser humano deve ser dotado de humanidade, contudo, a soma dos homens resultou em injustiças na subtração social de valores e/ou da condição humana:
“[…] um indiozinho mexicano, cuja família foi destituída de suas terras e que virou um pequeno elo do tráfico de drogas na Cidade do México, ou uma pequena nordestina de 8 anos que abandonada pela família, virou prostituta em algum garimpo, não contribuem mais para uma soma que resulte em “Humanidade”; não, evidentemente, porque sejam seres “primitivos” mas porque foram obrigados a se transformarem em animais para sobreviverem à injustiça social. Considerar, por exemplo, o indiozinho-traficante como membro de uma suposta subcultura “indígeno-traficante” implica em criar um “frankenstein antropossociológico” sob todos os títulos inadmissíveis.” (LEFÈVRE, 1994, p. 48)
Trazer à tona a barbárie havida contra os povos indígenas faz lembrar a influência da religião não apenas nas organizações dessa cultura, mas a imposição dos moldes catolicistas a todos os habitantes do território brasileiro, embasado em uma tradição milenar europeia, inclusive, naquilo que era considerado como família.
Assim como a cultura evolui junto ao contexto histórico, uma das observações que se faz é que as injustiças sociais paralelamente se reproduzem.
Outro dado importante a ser ressaltado, é que o Brasil está entre os cinco países mais desiguais do Mundo, segundo dados apresentados pela Organização das Nações Unidas, publicado recentemente pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (ONU, 2018), o que está diretamente ligado com a Justiça Social brasileira, que ser inter-relaciona com a promoção de esforços para diminuir barreiras por motivos de gênero, raça, origem étnica, religião, cultura ou deficiência.
E, certo é que, dentre as abordagens culturais, não há um padrão a ser imposto por representatividade do povo brasileiro, que tem formação socialmente heterogênea, formada em pilares de sobrevivência da espécie.
Outro ponto que merece destaque é que a autonomia protegida pela Constituição Federal concede ao núcleo familiar a soberania para exercer seus próprios direitos, que desagua na autodeterminação.
Nesta linha de raciocínio, inexistem possibilidades de tratamento igual a culturas diferentes, que influencia também na posição de poder. Na tradição muçulmana, é possível um homem ter 4 esposas legais e um número aceitável de concubinas. Na tradição catolicista cada homem pode ter apenas uma esposa, constituindo o vínculo matrimonial a própria relação de aliança com a divindade.
Apesar da Declaração de Direitos Humanos ter previsões como a igualdade no casamento e ser basicamente ocidental, foi promulgada como universal, criticando-se, inclusive, a forma de sua imposição para a humanidade, que ainda vivenciava traços da cultura colonial e possuía culturas de origem primitivas em extinção. É a ideia de universalizar direitos que não são iguais para todos.
A consequência disso é a quebra de valores e perda da essencialidade das comunidades para valorizar um contexto individualista do ocidente, pois os grupos sociais se desenvolvem e devem manter sua originalidade como forma de preservar sua identidade. Se trata do reconhecimento do “nós” e do “outro”.
Assim, indaga-se: seria possível a formação conceitual de família com base na dignidade da pessoa humana preservando o multiculturalismo?
3. DA DIVERSIDADE FAMILIAR NO BRASIL À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
A Família durante muito tempo era entendida apenas como sendo o elo da figura do pai (marido), mãe (esposa) e filhos, oriundos do casamento, não se admitindo outras formas de organizações familiares.
Com a promulgação da Carta Magna de 1988, passaram a serem tuteladas pelo texto positivado as organizações familiares: a) oriundas do casamento; b) da união estável e c) monoparental (formada por qualquer dos pais e seus descendentes), e não mais a forma tida tradicional de família, onde havia um pai, uma mãe e filhos, sendo considerada uma revolução.
Deste modo, a Constituição Federal de 1988 foi grande marco divisor do direito de família, pois regulamentou a igualdade formal entre o homem e a mulher, ampliou o conceito de família, com a proteção de forma igualitária de todos os seus membros, embora os resquícios de ausência de igualdade material ainda permaneça nas organizações familiares contemporâneas.
Ademais, aplicou igual proteção à família constituída pelo casamento, bem como à união estável entre o homem e a mulher e à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, que recebeu o nome de família monoparental. Consagrou, ainda, a igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, garantindo-lhes os mesmos direitos e qualificações.
No entanto, com a evolução da sociedade, os modelos de família elencados na Carta Magna, não abrangem a diversidade familiar atual, mesmo tendo sido reconhecida outras formas pela Corte Máxima.
Atualmente não é necessária a celebração do casamento ou a diferença de sexo para identificar a família, bastando à presença de um vínculo afetivo, ou seja, de união entre as pessoas com projeto de vida e objetivos comuns e comprometimento mútuo. (DIAS, 2010, p. 43).
O vínculo afetivo, por sua vez, se caracteriza pela “…preservação do LAR no seu aspecto mais significativo: Lugar de Afeto e Respeito.” (DIAS, 2010, p. 43)
“…um afeto especial, representado pelo sentimento de duas pessoas que se afeiçoam pelo convívio diuturno, em virtude de uma origem comum ou em razão de um destino comum, que conjuga suas vidas tão intimamente, que as torna cônjuges quanto aos meios e aos fins de sua afeição, até mesmo gerando efeitos patrimoniais”. (BARROS, 2002, p. 7)
Explica ainda Sérgio Resende de Barros que a família se forma por afeto, que representa sentimento de duas pessoas, aprimorado pelo convívio diuturno, em razão de origem ou destino comum. A intimidade nos laços afetivos é o que as torna cônjuges quanto aos meios e aos fins de sua afeição, com consequências patrimoniais. (BARROS, 2002, p. 8)
Desta forma, a Constituição Federal de 1988 revolucionou quando abrangeu o conceito de família, permitindo o reconhecimento da união estável e à família monoparental como formas de instituto familiar.
No entanto, tal revolução não pode ser definida como taxativa, pois reconhecidamente como forma de evolução da própria humanidade, outras formas de família se organizam e um exemplo da afirmação é o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da união homoafetiva como entidade familiar, posteriormente sendo regulamentado, pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), o casamento entre pessoas do mesmo sexo por meio da Resolução n. 175/2013.
Deste modo, o conceito de família se adapta ao momento e a família contemporânea encontra sua realização no grupo e, dentro deste grupo familiar, cada um de seus integrantes encontra na convivência solidária e no afeto o valor social e jurídico que a família exerce no desenvolvimento da sociedade e do Estado. (MADALENO, 2018, p. 44)
Se trata da aplicação prática do relativismo cultural em respeito à dignidade da pessoa humana, que de uma concepção patriarcal, como a submissão feminina à autoridade masculina, deixou aos poucos a estrutura verticalizada, cedeu convívio à igualdade e também às diversidades, possibilitando a contextualização do princípio à realidade prática.
Dentre as formas de constituição familiar cita-se algumas de suas principais formas, dentre outras não reconhecidas no ordenamento jurídico:
A primeira é a família matrimonial, que envolve o casamento, um dos institutos mais antigos, protegido principalmente pela Igreja Católica, onde só se aceitava a família legítima, ou seja, aquela formada pelo casamento, obedecendo às regras Cristãs. (DIAS, 2010, p. 1)
Assim, as pessoas buscam no matrimônio alcançar a felicidade, através da procriação, do mútuo auxílio e de ter alguém para compartilhar suas alegrias e necessidades.
A segunda é família informal, conceitua-se como a União Estável, que se consubstancia na relação entre homem e mulher, que não possuem impedimento para o casamento, de forma duradoura, pública, informal e com objetivo de constituição unidade familiar, ou seja, tem que ter intenção de constituir uma família.
A Constituição Federal reconheceu a união estável, em seu artigo 226, §3º (BRASIL, 1988) como entidade familiar visando à proteção da família, bem como fora conceituada no artigo 1.723 do Código Civil, in verbis: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre homem e mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”
Em terceiro ponto tem-se a família monoparental, formada por quaisquer dos genitores com seus descendentes, ou seja, necessário apenas a presença de um dos pais com sua prole, sendo esta biológica ou socioafetiva.
Interessante citar que a Constituição Federal de 1988 tutela essa forma de família em seu artigo 226, §4º (BRASIL, 1988), mas não possui demais preceitos específicos, sendo aplicada nesse caso as regras pertinentes ao casamento.
A família anaparental é quarto tipo de família, constituída por uma relação de pessoas sem hierarquia de gerações, contendo um vínculo horizontal entre os membros, ou seja, quando ocorre de irmãos morarem juntos, tios e sobrinhos.
A respeito, esclarece Maria Berenice Dias que “A convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade de propósito, impõe o reconhecimento da existência de entidade familiar batizada com o nome de família anaparental. (DIAS, 2007, P. 46)
A família anaparental deve ter uma identidade de propósito, vale dizer, que seja efetivamente a de constituir uma família, que possua assistência mútua material e emocional e sem conotação sexual, mas que vivem como se família fossem.
O quinto tipo familiar se constitui pela família reconstituída, que ocorre entre uma pessoa que já tem uma família e leva seus filhos, oriundos desta família, para conviverem com a sua nova relação, que também já tem prole de uma outra família, trazendo a figura do padrasto/madrasta.
O efeito jurídico dessa forma de família é o parentesco por afinidade, consagrado no artigo 1.595 do Código Civil Brasileiro (BRASIL, 2002), excluindo-se direito a alimentos, herança, salvo se houver adoção pelo padrasto/madrasta.
Ademais, com o advento da Lei n. 11.924/2009 representou um bom avanço no âmbito da filiação socioafetiva, causando um respaldo a família reconstituída, especialmente quando a adoção do sobrenome do padrasto ou da madrasta advém de uma situação fática de completo abandono material e psicológico do genitor biológico, e o enteado se encontra totalmente integrado na nova comunidade familiar.
Por sua vez, a família paralela conceitua-se como a família decorrente de uma relação extraconjugal, ou seja, quando um dos envolvidos nessa relação ou ambos já possuem uma relação cerimonial (através do casamento), impedindo assim sua formalização.
A sétima forma se trata da família natural/extensa/substituta, formada pelos pais e seus descendentes, sendo que a família extensa é a consubstanciada no art. 25, parágrafo único do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). É aquela que é formada pela convivência da criança e/ou adolescente com parentes próximos, além da com os pais, com vínculos de afinidade e afetividade.
Ademais, a família substituta vem inserida no art. 28 do ECA (BRASIL, 1990), onde só será inserida a criança e/ou adolescente na família substituta quando for impossível de reinseri-la em sua família natural ou extensa, se materializando através da adoção, guarda ou tutela.
A família eudemonista é a oitava forma elencada utilizada para identificar aquele núcleo familiar que busca a felicidade individual e vive um processo de emancipação de seus membros (DIAS, 2010, p. 54), ou seja, é a busca pela realização pessoal.
A nona e última forma familiar, também é uma das mais atingidas na contemporaneidade, formada pela organização familiar homoafetiva.
Embora tenha rumores de práticas conhecidas desde a Grécia antiga, a ideia de universalismo cultural ocidental pugna pelo afastamento dessa forma familiar e muitas das crenças religiosas não aceitam esse tipo de formação.
Conceitualmente a família homoafetiva é aquela formada por pessoas de mesmo sexo, ligadas por um vínculo afetivo, com objetivo de manter uma relação duradoura, pública e contínua, com aparência de se casados fossem e com intuito de formarem família. (DIAS, 2010, p. 195)
No entanto, após longas discussões doutrinárias e nossos Tribunais, a união homoafetiva fora reconhecida como família homoafetiva, sendo-lhe atribuído os efeitos jurídicos constante na Lei Pátria, portanto sendo inaceitável o não reconhecimento da família de pessoas do mesmo sexo.
Imperioso destacar que há muitas outras formas de organizações familiares, inclusive, ainda não tuteladas pelo direito, que as formações aceitas pelo ordenamento jurídico brasileiro devem respeitar também outras formações familiares não regulamentadas pela lei jurídica, pois todas as organizações familiares possuem regras próprias e valores próprios, jurídicos ou não, devendo ser observadas em razão do pluralismo como um todo.
Entretanto, a pergunta que retoma preocupação, é sobre o que acontece quando o direito das minorias é materialmente incompatível com o direito nacional e/ou o direito internacional dos direitos humanos.
O reconhecimento de identidades familiares é ponto crítico, pois por um lado protege e por outro diferencia, gerenciando práticas discriminatórias culturais, uma das principais preocupações da presente investigação.
A consequência da não aceitação do outro incorre em barreiras levantadas entre as formações culturais e isso também incorre em problemas sociais e jurídicos, com antinomias legais e desrespeito a preceitos constitucionais.
Nesta toada, Norberto Bobbio apresenta esse tipo de incongruência do sistema jurídico como uma lacuna, e as divergências se solucionam pela própria completude que o ordenamento apresenta.
Contudo, segundo o autor, a presença de antinomias são independentes para o funcionamento do sistema, cabendo ao julgador dois papeis: julgar cada caso submisso ao seu exame e decidir com base em uma norma pertencente ao sistema. (BOBBIO, 2010. p. 117)
Portanto, o diálogo entre culturas e entre culturas jurídicas é importante para a compreensão das formações familiares, legais ou não, adotadas em outras tradições, independente se partilhadas.
4. CONTEXTUALIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A humanidade convive com a ideia de que a dignidade da pessoa humana é preceito basilar de todo e qualquer ordenamento jurídico, no entanto, continua lidando bem com a relativização e instrumentalização da dignidade do indivíduo, como ser fosse algo passível de valoração sob o viés universal.
Por outro norte, é interessante como diversas formações familiares convivem bem dentro de sua própria cultura. E, qual seria o motivo da não aceitação de um relativismo universal em prol da própria dignidade humana?
O ser humano é o único ser capaz de valorar atos e objetos, contudo não se reputa valores ao plano abstrato como mera criação lógico-mental, mas se valora conforme os fatos e as coisas que compõe a própria existência humana. (SANTOS/CAZAROTTO, 2016, p. 108)
“Tudo aquilo que o espírito humano projeta fora de si, modelando a natureza à sua imagem, é que vem a formar paulatinamente o cabedal da cultura” (REALE, 2012, p. 209)
Ademais, se por um lado a colonização sempre relativizou os direitos dos indígenas por meio de violências e imposições de cultura, a contrariu sensu, não deve haver oposição a qualquer prática cultural indígena que relativize o conceito de dignidade para a cultura ocidental.
Parte-se da premissa de que cada cultura é única, com seus valores, suas formas, princípios e normas e essa afirmativa tem validade no plano da abstração para todas as culturas existentes e que já existiram no mundo, assim, o que é digno para um, pode não ser digno para o outro.
Exemplifica-se na eleição da vida como um bem comum ou na instituição do casamento como a forma de atribuir valores afetivos entre pessoas, sejam heteroafetivas ou homoafetivas.
A aplicação do respeito e relativismo cultural vai além da existência de mundo que as famílias da contemporaneidade convivem, pois carrega consigo todo esse agregado de valores imateriais atribuídos pela cultura de um povo, seja na forma de pensar ou de agir, e não há ser humano apto a dizer qual o modelo cultural e familiar correto, basta entender a família como uma organização de pessoas originadas do próprio conceito antropológico de família.
Relembra-se que família é a primeira organização de indivíduos, independente de seus valores ou princípios, pois o ser humano necessita viver em sociedade. Possui relação com a natureza do ser em si.
Assim, a evolução da espécie não deve se sobrepor ou impor valores culturais, mas deve contextualizar esses valores conforme cada organização familiar.
Uma análise em profundidade da dignidade da pessoa humana, feitas essas considerações, é a aceitação de que a dignidade deve ser, então, contextualizada.
Conforme afirmava Protágoras, sempre haverá dois lados de uma sentença e a humanidade tenta impor dois lados (certo e errado) sob o prisma cultural, contudo, não há meios de submissão de valores formados pela existência humana na terra, para fazer a conjectura lógica do que é correto ou não.
Note, agora, o contexto nas organizações indígenas que enterram crianças entendidas como não aceitas e que na cultura jurídica contemporânea são as pessoas classificadas como especiais. Com a submissão da prática dessa organização familiar ao ordenamento jurídico, a norma penal classifica a conduta como infanticídio, contudo, do ponto de vista cultural, é preciso analisar há quantos anos a norma penal está vigente para tutelar esse tipo de conduta, muitas das vezes preexistentes à norma, bem como a qual tipo de cultura ela se aplica.
Ressalta-se que a análise supra não é feita pelos aplicadores do direito que já incorreram, inclusive, em denúncias às práticas culturais contra tribos não adaptadas e o contexto precisa ser mudado.
Não se está a afirmar pela total tolerância à culturas que relega a vida em segundo plano, mas o que se busca é harmonização e respeito cultural, em prol da diversidade e da vida.
O Brasil conta hoje com diversas formações familiares que não possuem, sequer, representatividade no Senado para exercício do direito de voz e expressão de seus valores. Não pode o Parlamento impor a formações jurídicas tuteladas desde 1940, como é o caso do Código Penal, a culturas preexistentes, sob o fito de incorrer na violação de preceito constitucional.
“A constatação de universos organizacionais como embebidos em lógicas socioculturais em nada desqualifica as análises quantitativas e objetivas dos mesmos. Ela apenas ajuda a iluminar a complexidade que perpassa as organizações, permitindo que sejam identificadas as hierarquias de valores e as lógicas que operam tanto no nível das representações como da operação prática desses sistemas. Ajuda a entender também os múltiplos sentidos que as organizações adquirem para os diferentes grupos sociais, como elas se relacionam e se justificam perante os princípios objetivos, pragmáticos e de custo e benefícios econômicos que fornecem a base dos princípios que ideologicamente devem instruir a vida organizacional.” (BARBOSA, 2009, p. 3)
Assim, correntes universalistas e relativistas devem, pois, ter comunicação entre si e não se contraporem, de modo que encontrem um ponto de consenso ao discutir direitos da humanidade, que interferem diretamente na dignidade humana contextualizada em cada organização familiar identificável.
A noção de Joaquim Herrera Flores ao tratar de um “universalismo de confluência” se apresenta como o primeiro passo para identificação desse ponto em comum com o relativismo cultural, com a racionalidade de não ser possível concluir uma fórmula universal para diferentes opções relativas de direito. Se trata de um entrecruzamento e não uma sobreposição. (FLORES, 2002, p. 227)
Percorrer o caminho da aceitação da evolução da espécie com o respeito a diversas formas culturais, contextualizando o reconhecimento do que vem a ser a dignidade humana para cada organização familiar, é a melhor forma de enfrentar as barreiras humanas criadas, priorizando a pacificação social no convívio da espécie.
Portanto, a abertura do diálogo entre as culturas, respeitada a diversidade e o reconhecimento de outrem, vem a ser o pleno exercício da dignidade e dos direitos, contribuindo para a complementação positivada, com normas abertas de uma cultura dos direitos humanos.
5. CONCLUSÃO
Conclui-se com o presente trabalho que a própria natureza humana pode ser transformada para satisfação dos desejos do indivíduo, no entanto, o contexto cultural no qual se insere diversificadas culturas de diversos períodos histórico deve ser respeitado.
O respeito se relaciona com a garantia de que os povos podem conviver pacificamente entre si, reconhecendo a presença da diversidade, aplicando-se a nível cultural de todos os tipos de famílias, reconhecidas ou não por ordenamentos jurídicos.
Investigar as variadas formas de famílias elencadas leva a reflexão de que o ser, enquanto vive, não permanece sozinho, independente da cultura e de seus conflitos de interesses, onde a dignidade humana sempre deverá prevalecer para garantir a integração dos povos.
Com a evolução da espécie, o ser humano tende a querer impor culturas específicas a determinadas organizações, contudo, a imposição cria barreiras e zonas de divergências conflituosas, que já gerou e ainda conduz ao caos existencial, culminando em atrocidades como o genocídio indígena havido no Brasil Colônia, como na vulnerabilidade de formas familiares, apenas por não se enquadrarem aos padrões exigidos pelas massas.
Certo é que não existe um padrão único e a relativização cultural deve estar presente em prol de garantir direitos culturais humanos.
A garantia de que os direitos humanos sejam entendidos sob o prisma contextual da dignidade é a melhor forma de caminhar para a pacífica convivência de culturas familiares distintas durante o desenvolvimento da humanidade.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Norte do Paraná.
[2] Advogada. Graduada em Direito na Universidade do Norte do Paraná, campus arapongas – Paraná, Brasil, Pós graduada em direito processual penal, pela Universidade Estadual de Londrina, Paraná, Brasil, Mestranda em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Advogado. Assessor Especial Chefe de Gabinete. Mestrando em Teoria Geral e Filosofia do Direito e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Direito pela PUCSP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Francisco Tadeu da Silva e. Das organizações familiares na contemporaneidade à luz do relativismo cultural Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 fev 2021, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/56153/das-organizaes-familiares-na-contemporaneidade-luz-do-relativismo-cultural. Acesso em: 23 dez 2024.
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