RESUMO: A cegueira deliberada é de origem inglesa e foi criada no final do século XIX adotando o sistema Commow Law e se perfaz quando o agente cria conscientemente uma barreira para evitar ter ciência de qualquer característica suspeita sobre a procedência de suas ações ou omissões. Com intuito de compreender os argumentos fáticos e jurídicos aplicados à esta teoria, foi realizado estudo através de documentação indireta - com observação sistemática, abrangendo a pesquisa bibliográfica de fontes primárias e secundárias, além de documentação oficial. A finalidade da pesquisa é abordar os aspectos doutrinários da teoria da cegueira deliberada, seu conceito, origem e evolução, bem como, analisar os casos emblemáticos na jurisprudência brasileira em que a Teoria foi empregada. Além disso, a análise crítica da teoria da cegueira deliberada frente ao ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista sua similitude com o dolo eventual. Outrossim, a análise dos requisitos que foram utilizados nas decisões do juízo para aplicar esta teoria e verificar sua compatibilidade com o dolo eventual. E por fim, demonstrar que há possibilidade de sua aplicação no direito brasileiro sem que haja desrespeito à essência da lei, visando reduzir o indíce de impunidade e confirmar a eficácia da lei penal.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria da cegueira deliberada. Dolo eventual. Lava-Jato.
ABSTRACT: Deliberate blindness is of English origin and was created in the late 19th century by adopting the Commow Law system and is achieved when the agent consciously creates a barrier to avoid being aware of any suspicious characteristics about the origin of his actions or omissions. In order to understand the factual and legal arguments applied to this theory, a study was carried out through indirect documentation - with systematic observation, including bibliographic research of primary and secondary sources, in addition to official documentation. The purpose of the research is to address the doctrinal aspects of the theory of deliberate blindness, its concept, origin and evolution, as well as to analyze the emblematic cases in Brazilian jurisprudence in which the theory was used. In addition, the critical analysis of the theory of deliberate blindness in the face of the Brazilian legal system, in view of its similarity with eventual intent. Also, the analysis of the requirements that were used in the court's decisions to apply this theory and verify its compatibility with the eventual intent. And finally, to demonstrate that there is a possibility of its application in Brazilian law without disregarding the essence of the law, aiming to reduce the rate of impunity and confirm the effectiveness of the criminal law.
KEYWORDS: Deliberate Blindness Theory. Possible fraud. Car wash.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Aspectos Doutrinários Do Instituto Da Cegueira Deliberada. 2.1. Conceito. 2.2. Origem e Evolução. 3. Casos Emblemáticos na Jurisprudência Brasileira. 3.1. No Direito Comparado. 4. Críticas a Teoria da Cegueira Deliberada Frente ao Ordenamento Jurídico Pátrio. 4.1. A Problemática Similitude entre o Dolo Eventual e a Teoria da Cegueira Deliberada. 5. A Análise da Aplicação da Cegueira Deliberada. 5.1. A Operação Lava Jato. 5.2. A Compatibilidade entre o Dolo Eventual e a Teoria da Cegueira Deliberada. 6. Considerações Finais. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A teoria da cegueira deliberada alude a situações em que o agente, de forma ignorante, se põe em situação de cegueira frente as circunstâncias fáticas penalmente relevantes, ou seja, nada mais é do que atribuir elementares do crime ao sujeito que age de forma intencional para não obter conhecimento de determinadas circunstâncias que demandem ações ou omissões, para sair impune e/ou obter vantagem ilícita.
Essa teoria é também conhecida por outros brocardos jurídicos como instruções do avestruz, evitação da consciência, Willful blindness e, tem origem no direito consuetudinário, utilizando-se o sistema Commow Law.
É um princípio conservador, com poucos precedentes no ordenamento jurídico brasileiro, mas que se tornou de grande relevância por ser o precursor em casos de extrema e significante importância para a mens legis, sendo um princípio muito utilizado em crimes de lavagem de capitais, como o furto no Banco Central do Brasil, a Operação Lava Jato (a qual foi responsável nacionalmente pela inserção desta teoria no direito brasileiro) e a Ação Penal 470 (popularmente conhecida como o Escândalo do Mensalão).
Neste diapasão, diante do interesse de alguns países como o Brasil, adepto ao sistema Civil Law, os debates acerca de sua (in)aplicabilidade tem se intensificado cada vez mais. Muito embora, essa tese tenha sua origem no Commow Law, diversos países adeptos à civil Law vêm aplicando-a.
Diante disso, o objetivo deste artigo, é demonstrar que há possibilidade da aplicação do princípio da cegueira deliberada na jurisprudência brasileira sem que haja desrespeito à essência da lei, não obstante sua origem no sistema de Commow Law. Utilizando-se para isso, metodologia bibliográfica, doutrinária e jurisprudencial.
2. ASPECTOS DOUTRINÁRIOS DO INSTITUTO DA CEGUEIRA DELIBERADA
2.1. Conceito
O princípio da cegueira deliberada tem o viés de punir aquele que se autocoloca deliberadamente em uma falsa situação de cegueira. É aplicado àquele que toma ciência da possível tipicidade de sua conduta.
Afirma VALLÈS (apud LUFER et al, 2009) que a jurisprudência dos Estados Unidos, ao longo do último século, aplica o raciocínio sobre a teoria da cegueira deliberada segundo o qual atua dolosamente o agente que preenche o tipo objetivo, ignorando algumas peculiaridades do caso concreto por ter se colocado voluntariamente em uma posição de alienação diante de situações suspeitas, procurando não se aprofundar no conhecimento das circunstâncias objetivas.
Segundo Carlos Edinger (2019, p.150) a teoria se caracteriza quando:
Acima de qualquer dúvida razoável, a pessoa evita, deliberadamente, conhecer, em maior grau, determinado fato pertinente à prática de determinada conduta penalmente relevante, a ela atribuível, mesmo se tendo acesso a elementos que tornariam esse maior e melhor conhecimento possível.
Corrobora com o exposto acima, o entendimento de Correia:
Esse princípio foi gerado para situações em que o sujeito, percebendo a tipicidade de sua ação, se autocoloca em episódios de ignorância deliberada, com a finalidade de sair livre por tal ato (CORREIA, et al, 2018, p. 432)
Em outras palavras, o agente repele-se de elementos que poderia conseguir, procede esquivando-se de dados penalmente relevantes, fruto de uma decisão consciente, com objetivo de justificar futuramente o total desconhecimento de qualquer ilegalidade.
Ainda, sobre a caracterização da teoria da cegueira deliberada, no entendimento doutrinário de Barros e Silva (2015, p. 231), a teoria da cegueira deliberada:
Institui um argumento jurídico por meio do qual se procura impor responsabilidade penal àquele que, muito embora se encontre perante uma conduta possivelmente antijurídica, se auto-mantém em episódios de constante ignorância, desviando-se de todo e qualquer mecanismo hábil a conceder-lhe maior grau de indubitabilidade quanto ao potencial ilícito.
Ante o exposto, é possível conceituar a teoria da cegueira deliberada na equiparação de uma conduta de um indivíduo que se coloca em situação de desconhecimento do ato ilícito que pretende realizar, criando obstáculos para ter reais noções do fato delituoso, como forma de alegar, em caso de possível punição imputável, que não sabia da ilicitude do ato que cometia, com a ação de um agente que tem conhecimento do resultado ilícito e ainda assim o realiza.
Desta forma, o que se observa é que há inúmeras formas de se mencionar este princípio, pois ele não se limita apenas aos delitos de lavagem de capitais, mas também aos delitos de contrabando, tráfico de drogas, entre outros.
2.2. Origem e Evolução
Historicamente, a Teoria da Cegueira Deliberada surgiu na Inglaterra, em sentença datada de 1861, no caso Regina v. Sleep. No entendimento de Ana Luiza Klein sobre o assunto em comento:
Sleep era um ferrageiro, que adentrou em navio de propriedade do Estado Inglês, onde havia contêineres com parafusos de cobre, alguns dos quais estavam identificados com sinal no modelo de uma flecha, que continham a marca da propriedade inglesa. Sleep foi considerado culpado pelo júri por desvio de bens públicos (para essa infração, era imprescindível o conhecimento por parte do agente). Ante as alegações da defesa do réu, de que o ferrageiro não detinha de conhecimento de que os bens pertenciam ao Estado, Sleep foi absolvido pelo juiz, sob o argumento de que não se constatou mediante as provas apontadas que o acusado tinha deveras ciência da origem dos bens, bem como não houve prova contundente de que Sleep se abstivera de obter tal conhecimento. Este julgamento levou a assimilar que, caso ficasse confirmado que o réu tivesse abnegado de captar algum conhecimento da origem de tais bens, a pena adequada poderia correlacionar-se àquela posta aos casos de conhecimento (KLEIN, 2012, p.2).
Dessa forma, o júri da primeira instância lhe condenou como autor do delito de malversação de bens públicos. Em grau de recurso, Sleep afirmou que não tinha conhecimento de tal circunstância, e o Magistrado concluiu que a decisão do júri deveria ser revogada ante a inexistência de provas de que o acusado sabia que os bens marcados eram de propriedade estatal, bem como por não haver elementos que atestassem que ele se absteve intencionalmente de obter tal conhecimento.
Sobre o tema, explicita Lima (2016, p. 326):
Por força dessa teoria, aquele que renuncia a adquirir um conhecimento hábil a subsidiar a imputação dolosa de um crime responde por ele como se tivesse tal conhecimento. Basta pensar no exemplo de comerciante de joias que suspeita que alguns clientes possam estar lhe entregando dinheiro sujo para a compra de pedras preciosas com o objetivo de ocultar a origem espúria do numerário, optando, mesmo assim, por criar barreiras para não tomar ciência de informações mais precisas acerca dos usuários de seus serviços.
O princípio da cegueira deliberada foi inserida na realidade jurídica americana com o caso Jewell v. United States, em 1976 na Califórnia, onde ganhou força e sofreu mutação, sendo aplicada de diversas formas, ou seja, conforme as circunstâncias do caso concreto, deixando de apresentar um fundamento sistêmico e passando a ser utilizada em outros países, como por exemplo, o Brasil, onde ela foi mencionada pela primeira vez no direito penal, especificamente no caso do Assalto ao Banco Central do Brasil em Fortaleza, no ano de 2005, segregando o pensamento de que teorias adotadas pelo sistema commow law não seriam compatíveis com o sistema civil law, o qual é adotado pelo nosso país.
A teoria ganhou destaque com a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre o caso “In re Aimster Copyright Litigation” (2003) que o acusado foi condenado por violação dos direitos autorais e sua defesa alegou o não conhecimento da antijuridicidade nos atos cometidos. Senão vejamos:
Nós também rejeitamos o argumento... Dessa forma, não pode prosperar a alegação de que ele não tinha o conhecimento da atividade ilícita, o que é uma exigência para a responsabilização pela conduta de contribuir para a infração de direitos autorais. Cegueira voluntária é o conhecimento [...] é a situação em que o agente, sabendo ou suspeitando fortemente que ele está envolvido em negócios escusos ou ilícitos, toma medidas para se certificar que ele não vai adquirir o pleno conhecimento ou a exata natureza das transações realizadas para um intuito criminoso [...].
Deste modo, como em todo princípio se requer requisitos para a sua aplicação, após os precedentes em nosso sistema, a teoria do avestruz evoluiu e passou-se a exigir alguns fatores relevantes, como bem assinala Gehr (2012, p. 07), com base nos pensamentos e ensinamentos de Husak e Callender:
Inicialmente, vale explorar a sabedoria de Husak e Callender em 1994, no qual estabelece que a cegueira deliberada se define em três fatores. Em primeiro lugar, o agente deve ter uma suposição fundamentada a respeito do concurso de elementos típicos em sua conduta. Os escritores, assim, limitam o princípio àqueles que tem compreensões objetivas para suspeitar, alongando os casos em que a desconfiança é injustificada, isto é, “sujeitos que padecem de delírios ou outras cismas”. Em segundo lugar, o conhecimento de que o agente prescinde deve estar disponível, podendo ele conectá-las por meios “viáveis, rápidos e ordinários”. Por último, Husak e Callender estabelecem um quesito estimulador, impondo que o agente tenha uma motivação para se ficar alienado: o interesse consciente de se dispor de uma razão de isentar de culpa ou responsabilidade caso seja descoberto. Restam ermos, os acontecimentos em que o desconhecimento é fruto de simples estupidez ou inexistência de curiosidade.
Para patentear com o exposto acima, o exímio doutrinador Sérgio Moro tem o seguinte entendimento:
Para caracterizar a cegueira deliberada a doutrina tem recepcionado a necessidade de dois requisitos, sendo, quando há evidências de que o agente tinha conhecimento de que os bens, direitos ou valores eram oriundos de fatos penalmente relevantes, e quando o sujeito se porta de modo apático a tal fato (MORO, 2007, p.95).
Acerca do assunto, leciona Nascimento (2010) que, valendo-se da teoria, é possível equiparar, a ação delituosa com a do agente que age com dolo eventual e exprime:
Para a teoria da cegueira deliberada o dolo aceito é o eventual. Como o agente procura evitar o conhecimento da origem ilícita dos valores que estão envolvidos na transação comercial, estaria ele incorrendo no dolo eventual, onde prevê o resultado lesivo de sua conduta, mas não se importa com este resultado. Não existe a possibilidade de se aplicar a teoria da cegueira deliberada nos delitos ditos culposos, pois a teoria tem como escopo o dolo eventual, onde o agente finge não enxergar a origem ilícita dos bens, direitos e valores com a intenção de levar vantagem. Tanto o é que, para ser supostamente aplicada a referida teoria aos delitos de lavagem de dinheiro “exige-se a prova de que o agente tenha conhecimento da elevada probabilidade de que os valores eram objeto de crime e que isso lhe seja indiferente.
Desta forma, o que se constata é que a formalidade exigida para a aplicação da evitação da consciência, os quais ora mencionados, devem estar presentes de modo paralelo e, explanam a similitude do instituto jurídico com o dolo eventual, insculpido na parte final do art. 18, inciso I do Código Penal Brasileiro.
3. CASOS EMBLEMÁTICOS NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA
No Brasil, a primeira vez que um tribunal tratou da Teoria da Cegueira Deliberada de maneira explícita foi no julgamento da Apelação Criminal ACR nº 5520/CE pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, cuja relatoria foi do Desembargador Rogério Fialho Moreira. Este caso emblemático ficou popularmente conhecido como “assalto ao Banco Central”, no ano de 2005 na cidade de Fortaleza, no Estado do Ceará.
Segundo Spencer Toth Sydow (2019), a exposição dos fatos apresentada na sentença, detalha que diversos indivíduos foram acusados pelo crime de furto qualificado pela subtração de R$ 164.755.150,00 (cento e sessenta e quatro milhões, setecentos e cinquenta e cinco mil, cento e cinquenta reais) do Banco Central na madrugada do dia 05 para o dia 06 de agosto de 2005, por meio de uma escavação de túnel que media mais de 75 (setenta e cinco) metros de extensão. No dia seguinte, os supostos furtadores deslocaram-se até uma concessionária de automóveis e contraíram 11 (onze) veículos, realizando o adimplemento em espécie, no valor equivalente à R$ 980.000,00 (novecentos e oitenta mil reais).
O objetivo principal dos criminosos era transportar para outros estados da federação, dentro dos carros comprados, os valores furtados para despistar as autoridades policiais.
Ao consentir com o pagamento, o juiz de primeira instância compreendeu que os responsáveis pela concessionária intencionalmente teriam se cegado a respeito do que estava diante de suas visões, isto é, os agentes deveriam presumir que aqueles valores eram de origem ilícita e ter empreendido alguma atitude, como noticiar a transação suspeita às autoridades competentes. Todavia, segundo o magistrado, eles preferiram se favorecerem daquela situação mantendo-se ignorantes acerca das condições que eram penalmente relevantes. Com isso, os responsáveis foram condenados pelo crime de lavagem de dinheiro. Em recurso, a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região reformou a decisão do juiz, entendendo que:
[...] a imputação do crime de lavagem em face da venda, por loja estabelecida em Fortaleza, de 11 veículos, mediante o pagamento em espécie: a transposição da doutrina americana da cegueira deliberada (willful blindness), nos moldes da sentença recorrida, beira, efetivamente, a responsabilidade penal objetiva.
Diante disso, não obstante a Segunda Turma registrou em sua decisão a inviabilidade de condenação dos agentes por crime de lavagem de dinheiro em virtude também da atipicidade formal, haja vista à época existir um rol taxativo de crimes precedentes na norma jurídica para a configuração deste delito, e o furto não fazia parte deste rol.
Além disso, fundamentou-se, ainda, que a conduta narrada no tipo penal a qual se intencionava imputar aos responsáveis pela concessionária, não admitia o dolo eventual.
Posteriormente, a teoria foi utilizada na denominada “Operação Lava Jato” que transitou na 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, na seção judiciária do Paraná, na qual o magistrado Sérgio Fernando Moro, condenou os réus pela prática de corrupção e lavagem de dinheiro tipificadas, respectivamente, nos artigos 317 e 333 do Código Penal, e no artigo 1º, caput, inciso V, da Lei 9.613/98, cuja sentença teve o seguinte argumento:
Entendo que agiu dolosamente ao ceder sua conta para que Pedro Correa pudesse receber valores decorrentes do esquema criminoso da Petrobrás. Era um assessor de confiança de Pedro Correa. É possível que não tivesse conhecimento de detalhes do esquema criminoso da Petrobrás. Entretanto, o recebimento em sua conta de depósitos, em seu conjunto vultosos, sem origem identificada e estruturados, era suficiente para alertá-lo da origem criminosa dos recursos recebidos. Isso especialmente quando tornado notório a partir de 2006 que Pedro Correa, com a cassação de seu mandato parlamentar, estava envolvido em atividades criminais. (BRASIL. 13º Vara Federal da Comarca de Curitiba. Ação Penal nº 5023135-31.2015.4.04.7000).
Complementou o magistrado, ainda, invocando a cegueira deliberada:
São aqui pertinentes as construções do Direito anglo-saxão para o crime de lavagem de dinheiro em torno da 'cegueira deliberada' ou 'willful blindness' e que é equiparável ao dolo eventual da tradição do Direito Continental europeu [...]. Em síntese, aquele que realiza condutas típicas à lavagem, de ocultação ou dissimulação, não elide o agir doloso e a sua responsabilidade criminal se escolhe permanecer ignorante quando a natureza dos bens, direitos ou valores envolvidos na transação, quando tinha condições de aprofundar o seu conhecimento sobre os fatos. (BRASIL. 13ª Vara Federal da Comarca de Curitiba. Ação Penal nº 5023135-31.2015.4.04.7000).
Observa-se, portanto, o terreno enlameado deste princípio no ordenamento jurídico e a luta para aplicá-lo, pois esta teoria tem sido alvo de debates, sobretudo acerca de suas exigências e da atual tendência jurisprudencial de equipará-la ao dolo eventual.
3.1. No Direito Comparado
Tendo sua fonte histórica-jurídica no Direito Norte-Americano, inócuo vislumbrar o tratamento no sistema Commow Law.
O autor Bruno Fontenele Cabral assegura em seu artigo que:
Segundo os autores ABRAMOWITZ & BOHRER (2007), a doutrina da conscious avoidance, permite que haja uma condenação criminal nos casos em que o Estado falha na produção de provas acerca do real conhecimento do réu sobre uma situação fática suspeita. Tal doutrina afirma que apesar do acusado não ter conhecimento dos fatos, essa falta de conhecimento deve-se a prática de atos afirmativos de sua parte para evitar a descoberta de uma situação suspeita. (CABRAL, 2012).
Desta forma, o que se depreende é que a doutrina da cegueira deliberada permite que seja provável o conhecimento do acusado nas situações em que não há prova concreta de sua real envoltura com o caso suspeito. Por este motivo, o réu pode vir a ser condenado, apesar de não ter a real ciência da conduta criminosa.
Diante disso, os autores avisam que “a doutrina da conscious avoidance gera o risco de que o júri sentencie o réu unicamente porque espera que o acusado não tenha se esforçado suficientemente para saber a verdade sobre os fatos”. (CABRAL, 2012).
Ainda para patentear com o exposto acima, o mesmo autor ainda esclarece que a Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso In re Aimster Copyright Litigation (2003), expressou-se no seguinte sentido:
Nós também recusamos a alegação de Aimster no intento de que o recurso de criptografia do serviço disponibilizado por Aimster o impossibilitava de conhecer quais músicas estavam sendo copiadas pelos utilizadores de seu sistema. Dessa forma, não pode progredir o argumento de que ele não tinha ciência da atividade ilícita, o que é uma condição para a responsabilização pela conduta de ajudar para a infração de direitos autorais. Cegueira voluntária é o conhecimento (...) é a situação em que o sujeito, entendendo ou suspeitando fortemente que ele está incluído em negócios escusos ou ilícitos, toma medidas para se averiguar que ele não vai alcançar a plena ciência ou a exata natureza das transações realizadas para um intuito criminoso. Em United States v. Giovannetti (1990) ficou determinado que o empenho deliberado para evitar o conhecimento da ilicitude é tudo que a lei demanda para designar a culpa do acusado. Em United States v. Josefik (1985), restou esclarecido que não querer saber porque se suspeita, pode ser, se não for o mesmo estado de espírito, o mesmo que a prática de uma conduta culposa. Em United States v. Diaz, o agente deliberadamente isola-se da transação de drogas real para que soubesse rejeitar o conhecimento da transação ilícita, o que fez, por vezes, ao se retirar da entrega efetiva da droga (...) O acusado não pode escapar das suas responsabilidades pela manobra, não pode aguentar o fundamento de que o software de criptografia o impossibilita de ter ciência da violação de direitos autorais, que ele fortemente desconfia que ocorre (...) desconfiança essa de que todos os usuários do seu serviço são, de fato, infratores de direitos autorais. (CABRAL, 2012).
Diante disso, nos casos mencionados acima, os tribunais norte-americanos identificaram que essas cegueiras eram espontâneas, e condenaram os autores por considerá-los culpados pelas violações.
Nota-se que a aplicabilidade do princípio da cegueira deliberada no direito norte-americano tem sido utilizada em grandes proporções, não apenas para aquelas situações de lavagem de dinheiro, como também inúmeros outros, dentre os quais englobam-se a violação de direitos autorais, retirando os argumentos dos sujeitos de que não tinham ciência da ilicitude da conduta ou que não teriam controle sobre as violações decorrentes; e para o tráfico de entorpecentes, nos quais o agente que transportava pacotes com drogas ilegais argumentava não conhecer seu conteúdo. (MONTEIRO, 2009).
Apesar de surgir no âmbito da Common Law, o Supremo Tribunal Espanhol (STE), corte da tradição da Civil Law, se valeu da teoria da cegueira deliberada para a condenação de réus pelo delito de lavagem de dinheiro, como, segundo Callegari e Weber (APUD BELARMINO, 2018, s. p.), se extrai do caso STS 4.934, 2012, julgado em 9 de julho de 2012, como se vê:
Se entiende que el sujeto actúa con dolo eventual cuando ‘consideró seriamente y aceptó como altamente probable que el dinero tenía su origen en um delito’. Dentro del dolo eventual, ordinariamente se incluirá aquellos comportamentos de ‘ignorancia deliberada’ a los que se refiere la recurrida y sobre los que esta Sala se ha pronunciado en diversas ocasiones (entre otras SSTS 1637/99 de 10 de enero-2000; 946/2002 de 22 de mayo; 236/2003 de 17 de febrero; 420/2003 de 20 de mayo; 628/2003 de 30 de abril; 785/2003 de 29 de mayo; 16/2009 de 27 de enero etc.)
Já no caso STS 5.288, julgado em 2005, que se referia à lavagem de dinheiro, destaca Callegari e Weber (APUD BELARMINO, 2018, s. p.):
En los tipos previstos en nuestro Código incurre en responsabilidad, incluso quien actúa con ignorancia deliberada (willful blindness), respondiendo en unos casos a título de dolo eventual, y em otros a título de culpa. Y ello, tanto si hay representación, considerando el sujeto posible la procedencia delictiva de los bienes, y pese a ello actúa, confiando en que no se producirá la actuación o encubrimiento de su origen, como cuando no lo hay, no previendo la posibilidad de que se produzca un delito de blanqueo, pero debiendo haber apreciado la existencia de indicios reveladores del origen ilegal del dinero. Existe un deber de conocer que impide cerrar los ojos ante las circunstancias sospechosas.
A aplicação da cegueira deliberada no Direito Espanhol, tem lições imprescindíveis do autor argentino Ramón Ragués I Vallés (APUD GARCIA, 2016, s. p.), que, em artigo específico sobre o assunto em comento, assim demonstrou:
En España, al igual que en Alemania, el texto amplio del artículo 301 del CPE parece hacer conveniente, en principio, adaptarse a todos aquellos comportamientos mediante los cuales un agente adquiere o recibe bienes provenientes de un delito grave., Siempre que actúa con conocimiento de la marcha de la mercancía en cuestión (modo fraudulento) o ignorancia flagrante del origen de la contraprestación que está recibiendo (modo imprudente). Según la redacción legal, en principio, toda conducta de adquisición de bienes con conocimiento de que tienen su origen en un delito grave debe ser considerada penal. (VALLÉS; 2001, p. 623).
Nesse espeque, se vislumbra que o princípio da cegueira deliberada é suscetível de aplicação no direito norte-americano apenas quando há mens rea (mente culpada, em uma tradução literal), na modalidade knowledge (aplicável em casos em que o agente está ciente de suas ações e de seus resultados, mas não se importa).
Assim como, se mostra possível a aplicação da teoria em países adeptos da civil law, a partir da admissão do dolo eventual no crime de lavagem e em impor parâmetros à imputação e aos requisitos que autorizem o uso da teoria no Direito Penal pátrio.
4. CRÍTICAS A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA FRENTE AO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO
4.1. A Problemática Similitude entre o Dolo Eventual e a Teoria da Cegueira Deliberada
Os críticos da teoria da cegueira deliberada apregoam que o seu uso decorre da busca social por maior segurança e combate aos crimes que ferem bens jurídicos coletivos, frente aos repetidos esquemas de corrupção incessantemente noticiados nos veículos midiáticos, termina por conspurcar todo o sistema penal, chegando a dimensões inacreditáveis na deformação do Estado, ao empenhar-se contra a defesa e garantia da liberdade e da justiça.
Complementam que nesta seara de procurar de modo deturpante ao ordenamento jurídico, especialmente ao código penal, corresponder ao clamor punitivista da sociedade, pode-se mencionar a tentativa do Estado de implementar a teoria da cegueira deliberada ao passo em que amplia a conceituação de dolo e restringe os standards de provas imprescindíveis à condenação.
Ocorre que esse crescimento conceitual de dolo tencionando abranger a possibilidade de aplicação do princípio da cegueira deliberada abraça consideráveis críticas doutrinárias, vez que incorre em hostilidade aos princípios da legalidade e da culpabilidade, bem como envolve visivelmente a violação ao direito de imputação subjetiva e enfraquecimento do erro de tipo.
Lecionando acerca da incompatibilidade da teoria da cegueira deliberada com as bases de direito penal inspiradas na Civil Law, argui Prado (2019, p. 459) que ao penalizar o sujeito que se colocou em posição de ignorância, “há, de certa forma, um adiantamento do momento intencional” e conclui afirmando:
A sua recepção implica a criação de elemento estranho ao ordenamento jurídico brasileiro, de base continental, com sério risco à segurança jurídica e à legalidade penal. Aliás, tal evidência vem ressaltada com o seu emprego, como modalidade de imputação subjetiva (no delito de lavagem de capitais, em substituição ao dolo eventual), o que pode ensejar o agasalho de inadmissível responsabilidade penal objetiva. Isso porque é absolutamente impositivo ter-se em conta que o ordenamento jurídico brasileiro está assentado sobre o princípio da responsabilidade penal subjetiva, de previsão legal expressa (art. 18 do CP), sem nenhuma espécie de substitutivo, distorção ou menoscabo. Neste último caso, sua aplicação dá lugar a uma normatização judicial indevida, e ao arrepio da Constituição (art. 5º, XXXIX, da CF).
Na mesma seara Lucchesi (2017, p. 79) argui de forma crítica acerca da adoção da teoria pelos Tribunais brasileiros, senão vejamos:
A jurisprudência, fascinada pela aplicação da cegueira deliberada, pareceu desenvolver certo fetiche pela nova categoria de imputação subjetiva, trazendo alusões à cegueira deliberada até mesmo quando dispensável ou impertinente, diante da condenação baseada em dolo direto, como se para reforçar ou salvaguardar o dispositivo da decisão, ou mesmo para dar à decisão uma aparência de maior cientificidade, utilizando-se um adorno retórico de base estrangeira como evidência de suposta pesquisa e erudição. [...] A jurisprudência é capaz de captar o direito em movimento, podendo coletar o que há de mais avançado na doutrina ou mesmo no direito comparado, propondo, com isso, soluções criativas e inovadoras para a solução de casos e problemas jurídicos. No entanto, é necessário que essa atividade criativa pela jurisprudência seja feita de forma cuidadosa e criteriosa, comprometida com a Constituição e com os fundamentos do ordenamento jurídico.
Outra corrente doutrinária, a qual se adequa a hipótese norteadora do presente estudo, entende que é possível equiparar a cegueira deliberada ao dolo eventual, como será demonstrado na sequência do trabalho.
5. A ANÁLISE DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA
5.1. A Operação Lava Jato
A Teoria da Cegueira Deliberada foi frequentemente utilizada nas fundamentações dos julgados referentes à Operação Lava Jato. Trata-se na verdade, de um instrumento propulsor para resoluções frente à investigação contra a corrupção de maior expressividade já observada neste cenário brasileiro, captando sob investigação do Ministério Público Federal um imensurável esquema criminoso que envolve organizações criminosas coordenadas por doleiros e até mesmo a maior empresa de economia mista do país, a Petrobrás. (CORREIA; PÁDUA, 2018).
Segundo afirmação do Ministério Público Federal publicada em seu site oficial: a definição dada ao caso “Lava Jato”, decorre do fato de ser utilizada por uma rede de postos de combustíveis e lava a jato de automóveis para estimular os recursos ilegais inerentes a uma das organizações criminosas, a princípio, investigadas.
Diante das investigações apuradas, fora subsidiada para a construção da refinaria através de contratos inflados um montante de R$ 25 milhões de reais em propina, no qual houve o pagamento aos dirigentes da Petrobrás. O montante era de origem de fraude à licitação.
Sérgio Fernando Moro, nos autos da ação penal nº 5013405-59.2016.4.04.7000(2017), também no caso da Operação Lava Jato, condenou Mônica Regina Cunha Moura e João Cerqueira de Santana Filho pelo delito de lavagem de capitais, amparando sua decisão segundo os critérios da Teoria da Cegueira Deliberada:
Sem embargo do que mais se poderia escrever, é possível concluir que, desde que se tenha prova de que o agente tinha conhecimento da elevada probabilidade da natureza e origem criminosas dos bens, direitos e valores envolvidos nas condutas de ocultação e de dissimulação e de que ele escolheu agir e permanecer alheio ao conhecimento pleno desses fatos, mesmo tendo condições de aprofundar seu conhecimento, ou seja, desde que presentes os elementos cognoscitivo e volitivo, é possível e necessário reconhecer a prática do crime de lavagem por dolo eventual diante da previsão geral do art. 18, I, do CP e considerando a sua progressiva admissão pelas Cortes brasileiras.
Ainda em sua argumentação, Moro nos autos da ação penal nº 501340559.2016.4.04.7000 (2017), proferiu as seguintes palavras:
A postura de não querer saber e de não querer perguntar caracterizam ignorância deliberada e revelam a representação da elevada probabilidade de que os valores tinham origem criminosa e a vontade realizar a conduta de ocultação e dissimulação a despeito disso. Encontram-se, portanto, presentes os elementos necessários ao reconhecimento do agir com dolo, ainda que eventual, na conduta de Mônica Regina Cunha Moura e de João Cerqueira de Santana Filho.
Segundo, tinham Mônica Regina Cunha Moura e de João Cerqueira de Santana Filho presentes os riscos concretos, de que se tratava de valores oriundos de crimes de corrupção, não só pelas circunstâncias ilícitas da transação, com adoção de expedientes sofisticados de ocultação e dissimulação, mas também pelo exemplo da Ação Penal 470. Mesmo tendo eles presentes esses riscos, persistiram na conduta delitiva, ou seja, receberam os valores, com ocultação e dissimulação. Tinha ainda condições não só de recusar o pagamento na forma feita, mas de aprofundar o seu conhecimento sobre as circunstâncias e a origem do dinheiro, tendo preferido não realizar qualquer indagação a esse respeito.
Desta maneira, o Sérgio Moro (2017) compreendeu que os referidos réus agiram com dolo ao comemorarem um contrato de prestação de serviços falso a fim de proteger fraudulentamente os depósitos, além de não terem aprofundado seus conhecimentos sobre a origem do dinheiro recebido.
Nesse diapasão, cabe ao magistrado fundamentar adequadamente as suas decisões, de modo a provar que coube ao agente uma escolha em permanecer em situação de ignorância, sob pena de violar o princípio constitucional da presunção de inocência (art.5, LVII da CF).
Seguindo esse sentido, sob a proteção da Lei nº 12.683/12, as decisões emanadas da 13.ª Vara Criminal Federal do Paraná, em relação à Operação Lava Jato, é considerada ampla reverberação frente à incidência da teoria da cegueira deliberada, visto que “... verificam-se as colocações na Sentença da AP 5026212- 82.2014.4.04.7000/PR, as quais são repetidas, a seu modo em diversas outras decisões relativas à mesma Operação” (SILVEIRA, 2016, p. 2).
Desta forma, comprova-se evidente a utilidade essencial para a justiça criminal quando da punição direcionada à conduta investida de dolo eventual. Com efeito, a norma jurídica brasileira corrobora agora, acerca da tipicidade da lavagem de dinheiro, uma totalidade crucial à reprovação da conduta, o que não ocorre quanto à receptação na sua modalidade culposa, o que força o tipo a abarcar aqueles que influem não só por culpa, mas pela consciente assunção do risco.
5.2. A Compatibilidade entre o Dolo Eventual e a Teoria da Cegueira Deliberada
Não se pode olvidar que a teoria da cegueira deliberada é um grande marco evolutivo no ordenamento pátrio em razão de sua evidente indubitabilidade e contraposição às ações moralmente contestáveis de desconhecimento intencional por parte do sujeito, que, por vezes, apenas tenciona se desobrigar de uma eventual responsabilidade criminal.
Sabe-se que diante do avanço e do aprimoramento da criminalidade, os meios de pesquisa de prova e teorias mais conservadoras acerca do dolo têm se apresentado cada vez mais ineficientes para combater a criminalidade moderna. Evidencia-se tal ineficiência sobretudo em relação à chamada criminalidade organizada, que normalmente se vale do aparelhamento estatal ou de grandes complexos empresariais para a realização do delito.
Nesse viés de criminalidade, é normal que aqueles que detêm o poder de comando sistematizem terceiros com o objetivo de efetivar o ilícito e, por isso, transforma-se em algo tão difícil de comprovação do dolo desses agentes. Do mesmo modo, como normalmente não são os mesmos sujeitos que comandam e praticam diretamente as condutas típicas, há uma grande dificuldade na individualização e comprovação de suas condutas. Pois bem, o Princípio da Cegueira Deliberada seria de grande relevância na contribuição para o ordenamento jurídico, uma vez que tais problemas inegavelmente seriam reduzidos com sua implementação, atuando a toda evidência como simplificadora para o jus puniendi estatal ou para a acusação latu sensu.
Destarte, inevitável à propensão de equiparação entre os institutos do dolo eventual e teoria da cegueira deliberada para fim de incidência penal, uma vez que no dolo eventual, o agente, com sua conduta, assume o risco pela produção do resultado típico, ilícito e culpável, tendo como estudo de aplicação o elemento cognitivo, ou seja, o conhecimento e consciência de fato constitutivos de ação típica e, elemento volitivo, onde há a aceitação de risco ao realizar uma conduta.
Nas palavras de Cezar Bitencourt (2012, p. 775): “No dolo eventual o agente prevê o resultado como provável ou, ao menos, como possível, mas, apesar de prevê-lo, age aceitando o risco de produzi-lo”.
Já na ostrich instructions, o agente com a omissão, se abstém, de forma voluntária e intencional, de obter conhecimento de algum atributo ou vetor penalmente relevante, para posteriormente trivializar o instituto da justiça, alegando “não saber ser crime”, mantendo-se no estado de iminente ignorância quanto à origem de bens, valores, entre outros para obter vantagem ilícita ou ilibação.
Deste modo, o que se verifica é que esta teoria serve como apoio ao dolo eventual para viabilizar uma maneira de diminuição de impunidades de criminosos que banalizam o Poder Judiciário. Nesse sentido, Zacarquim Siqueira e Rezende (2017, p. 06) ensinam:
Por esta razão, é compreensível que o melhor caminho seria assimilar a teoria da cegueira deliberada ao dolo eventual (quando o agente assume o risco de produzir o resultado), ou seja, o sujeito busca esquivar-se de obter conhecimento da origem dos bens ou valores que estão compreendidos no negócio, sendo que pode pressentir o resultado lesivo de sua ação, mas não dá causa. Tendo como exemplo o crime de lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/98), o qual requer uma infração penal antecedente (assim como no crime de receptação), retira-se que na situação de o sujeito desconhecer a origem antijurídica dos valores, não haveria o dolo de lavagem, procedendo na anormalidade da ação do agente, pois não se caracteriza, no direito penal, a modalidade culposa (artigo 20 do CP). Em razão disso, é comum que o terceiro responsável pela lavagem de capitais, intencionalmente, evite tomar ciência a respeito da origem ilegítima dos recursos, pois, caso seja suspeito do referido crime, poderá se “esconder” na justificativa da ausência de animus: “eu não sabia”. Nota-se então a importância desse princípio para o fim de ser utilizada quando o agente tem conhecimento da “alta probabilidade” da origem ilegítima dos bens, direitos ou valores, mas ainda assim, foge quanto ao conhecimento dos fatos. Nesta situação, por força da Teoria da Cegueira Deliberada, ponderando que o sujeito se esquiva da consciência do fato ilegítimo para subsidiar a imputação dolosa do crime, estaria caracterizado o crime como se tivesse conhecimento deste. Ora, não se pode cogitar que o agente que empreende em situação de cegueira intencional lança mão de simples previsibilidade do resultado: a questão de ter ele escolhido desconsiderar a possível relevância de sua conduta, demonstra que consegue antever a realização do ilegítimo naquela hipótese.
Complementa: Badaró e Bottini (2013, p. 101): “nos casos de criação consciente e voluntária de barreiras que evitem o conhecimento de indícios sobre a proveniência ilícita de bens, nos quais o agente represente a possibilidade da evitação recair sobre atos de lavagem de dinheiro”.
Portanto, o estudo do presente trabalho quanto à compatibilidade da teoria da cegueira intencional e dolo eventual é uma grande tendência jurisprudencial e doutrinária e abarca institutos já aplicados, dando maior efetividade à persecução penal do Estado, principalmente para evitar a falta de provas frente ao elemento subjetivo do sujeito, no caso, o ânimus, demonstrando desta forma, que o judiciário cumpre a essência da lei, que é solucionar as necessidades de todos os envolvidos e o tratamento de forma igualitária, inserindo inovações que contribuirão para esse processo.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa buscou analisar a (in)aplicabilidade da Teoria da Cegueira Deliberada no ordenamento jurídico pátrio, teoria está de origem norte-americana.
Como marco histórico, o evidente caso “Regina vs Sleep” de 1861 marcou o nascimento deste princípio, partidário do Commow Law. Após esse precedente, a teoria fora importada para os mais variados sistemas jurídicos, como o Brasil, que adota o sistema Civil Law.
Assim, no Brasil, fora demonstrado a aplicabilidade da teoria da cegueira deliberada, sobretudo nos crimes de “lavagem de dinheiro”. Tendo na aplicação do dolo eventual importante instrumento para a repressão desses delitos, possibilitando a percepção da complexidade dessas operações, nas quais, em sua grande maioria de casos, o denominado “lavador” do dinheiro encontra-se desvinculado do crime antecedente, mas atuante nas operações de ocultação e dissimulação de ativos.
Deste modo, a adoção desta teoria é um dos reflexos do expansionismo do Direito Penal, mesmo com os acirrados debates entre seus defensores no campo jurisprudencial e seus críticos na esfera doutrinária. De certa forma, a teoria já foi recepcionada no cenário judiciário brasileiro.
Não restam dúvidas que se tem uma tendência de aproximação dos sistemas jurídicos nacionais, alcançadas por intermédio de várias iniciativas de harmonização e unificação internacionais do Direito Privado. Além de resultar na importância do Direito Comparado, pois estabelece um fator de enriquecimento cultural e de reforço do espírito crítico necessário para o entendimento da perspectiva funcional dos mais variados institutos jurídicos nacionais.
Na comparação realizada com o direito norte-americano e espanhol, identificou-se o uso da Teoria da cegueira deliberada no combate aos crimes de narcotráfico e de “lavagem de dinheiro”.
Já no âmbito do direito brasileiro observa-se uma incipiente construção jurisprudencial acerca da teoria da cegueira deliberada que tende a incorporar o dolo eventual nos casos em que o autor do fato delituoso, apesar de não estar afeto aos elementos típicos por expressa deliberação, preencher os requisitos mínimos ope juris do dolo eventual, não obstante, a doutrina e a jurisprudência defender a não aplicação da teoria, pela falta de disposição expressa, que inviabilizaria a interpretação extensiva, comportando, apenas, o dolo direto, que se traduz no conhecimento pleno e vontade de fazê-lo.
Desta forma, confirmou-se a hipótese norteadora do trabalho de que há possibilidade da aplicação da teoria da cegueira deliberada no direito pátrio sem que haja desrespeito à essência da lei, sendo aplicável nos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, objetivando minorar o índice de impunidade e garantir a eficácia da lei penal.
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Artigo publicado em 12/11/2021 e republicado em 17/04/2024
Bacharelada do Curso de Direito do Centro Universitário FAMETRO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Alana Gabino. A teoria da cegueira deliberada e sua aplicabilidade no direito brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 abr 2024, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/57425/a-teoria-da-cegueira-deliberada-e-sua-aplicabilidade-no-direito-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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