RESUMO: A monogamia é atual paradigma do direito de família adotado pelo ordenamento jurídico, que orienta para a aplicação da lei. Este modelo de relacionamento, apesar de ser uma regra para o ordenamento jurídico, não é o único, haja vista que existem também relacionamentos não monogâmicos, como o caso do poliamor, uma modalidade de relacionamento não monogâmico onde é possível aos envolvidos ter relacionamentos afetivos e sexuais com mais de um parceiro, desde que haja comum acordo entre as partes. Apesar de consensual, o poliamor – bem como outros modelos de relações não monogâmicas – é proibido pelo ordenamento jurídico, sendo comumente relacionado pelo senso comum à promiscuidade e a infidelidade, adjetivos pejorativos que advém da falta de conhecimento conceitual do poliamor. Portanto, o presente artigo objetivou investigar a existência de uma suposta falta de isonomia entre os relacionamentos monogâmicos e não monogâmicos dentro do ordenamento jurídico, enfatizando o poliamor. Deste modo, verificou-se que, apesar de uma relativização da monogamia ser possível, por conta do princípio da afetividade – visando a concessão de direitos as pessoas em uniões poliafetivas – dificilmente isto ocorrerá em tempos recentes, devido a jurisprudências e outros artifícios legais que aprovam a monogamia e mantem uniões poliafetivas sem os devidos direitos.
PALAVRAS-CHAVE: Monogamia, poliamor, direito de família.
ABSTRACT: Monogamy is the current paradigm of family law adopted by the legal system, which guides the application of the law. This relationship model, despite being a rule for the legal system, is not the only one, given that there are also non-monogamous relationships, as in the case of polyamory, a non-monogamous relationship modality where it is possible for those involved to have affective and sexual relationships with more than one partner if there is mutual agreement between the parties. Although consensual, polyamory – as well as other models of non-monogamous relationships – is prohibited by the legal system, being commonly related by common sense to promiscuity and infidelity, pejorative adjectives that come from the lack of conceptual knowledge of polyamory. Therefore, this article aimed to investigate the existence of a lack of isonomy between monogamous and non-monogamous relationships within the legal system, emphasizing polyamory. Thus, it was found that, although a relativization of monogamy is possible, due to the principle of affectivity - aimed at granting rights to people in polyaffective unions - this will hardly occur in recent times, due to jurisprudence and other legal devices that they approve of monogamy and maintain polyaffective unions without due rights.
KEYWORDS: Monogamy, polyamory, family law.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO – 2. POLIAFETIVIDADE: CONCEITO, HISTÓRIA E CULTURAS EM QUE É ADMITIDO – 3. O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE E A MENOR INTERVENÇÃO DO ESTADO COMO NORTEADORES DO DIREITO DE FAMÍLIA – 4. MONOGAMIA, O POLIAMOR E O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE DO DIREITO DE FAMÍLIA: A RELATIVIZAÇÃO DA MONOGAMIA SERIA POSSIVEL? – 5. CONCLUSÃO – REFERÊNCIAS
1. INTRODUÇÃO
Atualmente a liberdade sexual e amorosa é muito evidenciada, haja vista que pensamentos mais liberais em relação a maneira que se conduz os relacionamentos são mais bem vistos pela sociedade em geral.
Ainda que não sejam realidade vivenciada por todos, os relacionamentos poliamorosos – aqueles em que há mais de duas pessoas envolvidas no relacionamento – são cada vez mais recorrentes na sociedade, podendo ser vistos vários julgados dentro do Direito de família com problemas jurídicos oriundos destas realidades distintas.
O direito brasileiro passou por inúmeras reformas no decorrer dos anos, principalmente em relação a mudanças nos critérios de reconhecimento de famílias. No entanto, sabe-se que ainda hoje há muita influência de paradigmas constantes em leis antigas, como é o caso do Código Civil de 1916, por exemplo.
A vigência do Código Civil de 1916 marcou todo o pensamento e a maneira de enxergar as pessoas, os diferentes, enquanto estava em vigência. Tal lei condenava relacionamentos familiares que fugissem a regra da monogamia e da família tida como “tradicional”: homem, mulher e filhos, uma vez que aqueles que não se enquadravam nessa moldura não tinham os direitos decorrentes da relação familiar.
Em virtude do princípio constitucional da igualdade, verificou-se uma antinomia: por que as relações monogâmicas são privilegiadas em detrimento das relações poligâmicas? Ainda que seja um tipo de relação adotado pela maioria, não deveria existir um privilégio em relação a outros tipos de formação de relacionamento e de família.
Nesse sentido, o presente trabalho pretende analisar as relações poligâmicas sob o fundamento constitucional do princípio da igualdade, do princípio da afetividade no Direito de Família e a proibição de discriminação – também constitucional – em decorrência de convicções políticas ou filosóficas.
2. POLIAFETIVIDADE: CONCEITO, HISTÓRIA E CULTURAS EM QUE É ADMITIDO
As uniões poliafetivas não são novidade no Brasil e no mundo. Se trata de uma espécie de união que tem raízes na antiguidade e foi sendo reformulada a partir da própria mudança na cultura da humanidade.
Atualmente, Santos e Viegas (2017, p. 375) conceituam o poliamor como “um relacionamento não monogâmico em que as pessoas têm mais de um relacionamento íntimo, simultaneamente, com o conhecimento e o consentimento de todos os envolvidos”.
Porto (2017, p.15) explica que o poliamor pode ter ou não envolvimentos multiconjugais. É que as uniões poliamorosas também podem constituir namoro, sem o intuito familiae:
De um modo geral, o poliamor pode ser explicado como o tipo de relacionamento afetivo em que as pessoas envolvidas abdicam consensualmente da exclusividade imposta pela fidelidade monogâmica, permitindo-se, assim, estabelecer múltiplas e concomitantes relações que não possuem cariz meramente sexual, mas implicam também em outro nível de comprometimento, com envolvimento emocional. Esse nível de compromisso nem sempre acarretará a caracterização de uma multiconjugalidade, uma vez que as relações de poliamor podem se enquadrar no perfil do namoro, sem o intuiu familiae, por exemplo, não produzindo efeitos que interessam ao reconhecimento e à regulamentação pelo Direito de Família (...)
Dessa maneira, os indivíduos adeptos a este tipo de relacionamento teriam, para Santos e Viegas (2017, p. 375) “múltiplas relações afetivas, normalmente, com envolvimento profundo”.
Segundo Porto (2017, p. 39-40), os relacionamentos poliafetivos são muito antigos, uma vez que havia, entre o homem primitivo, a tolerância de relacionamentos entre várias pessoas no mesmo grupo:
A família punaluana também passou a indicar graus de parentesco em relação a sobrinhos e sobrinhas e primos e primas, dada a vedação das uniões sexuais entre irmãos e irmãs, além de conviver no regime de casamentos por grupos, configurando a poligamia. O casamento por grupos caracterizava-se pela união por pares e pela durabilidade mais ou menos longa; de maneira geral, o homem possuía, entre as muitas mulheres, uma mulher principal e também representava para ela o marido principal entre os demais homens. A tolerância recíproca e a ausência de ciúmes seriam condições para esses casamentos, em que grupos inteiros de homens e de mulheres se possuíam mutuamente. (...)
A tolerância a poligamia, no entanto, foi sendo alterada na antiguidade aos poucos devido a consolidação de uniões por pares baseadas em certos costumes:
(...) Na medida em que a gens se desenvolvia, tornando mais numerosas as classes de irmãos e irmãs impossibilitados de casar entre si, as uniões por pares baseadas em certos costumes começaram a se consolidar, até o ponto, contudo, do crescente emaranhado de proibições de casamento inviabilizar essa modalidade de união conjugal. (PORTO, 2017, p. 40)
Mais à frente na história, tem-se a família patriarcal grega, que se pautava pela religiosidade e utilizava-se das uniões como uma espécie de propagador das religiões de cada família. Para Porto (2017, p. 46), as relações gregas não uniam necessariamente pessoas que se amavam, mas eram uniões que presavam pela conveniência do pater familiae:
O casamento e a procriação firmavam, enfim, elos necessários a propagação da religiosidade e à continuidade da própria família, reforçando os liames intrínsecos entre religião e família, pois a religião que regia cada família exigia a perpetuação de gerações, sendo difundida a ideia de que “[...] uma família que se extingue é um culto que morre” (COULANGES, 1961, p.71) Acrescente-se que a finalidade do casamento não era unir duas pessoas que se amavam, mas “[...] unindo dois seres no mesmo culto doméstico, dar origem a um terceiro, apto a perpetuar esse culto” (COULANGES, 1961, p. 73). Além do casamento, foi a religião que também respaldou a autoridade do pater familiae; a origem desse poder-direito que o chefe da família exercia enquanto sacerdote supremo condutor da religião doméstica, como senhor da propriedade onde a família residia e exercitava suas crenças e ainda como magistrado, gozando do direito de dispor das vidas daqueles que se achavam sob sua dependência, não viria, segundo Coulanges (1961), da superioridade de forças do marido sobre a mulher ou do pai sobre os filhos, mas sobretudo da religião
Conclui Porto (2017, p. 47) que a família antiga se difere da família moderna e contemporânea por conta da estrutura familiar, que mais lembrava a composição de uma espécie de Estado soberano, uma vez que todos aqueles que estivessem ligados ao pater familiae, desde esposas, filhos, netos, bisnetos, adotados, noras e até mesmo escravos, se encontravam sob a autoridade soberana do pater familiae:
Nesse ponto, pode-se afirmar que a família antiga, diferentemente da moderna, assentada de forma predominante em vínculos sanguíneos e matrimoniais, e da contemporânea, cuja afetividade é elo mais sobressalente, aproximava-se bastante da estrutura típica de um Estado soberano, compreendendo todas as pessoas – esposas, filhos, netos, bisnetos, adotados, noras e até escravos – que se encontravam sob uma mesma autoridade soberana: a do pater familiae. Varela (1996) salienta que as pessoas não pertenciam simultaneamente à família materna e à paterna, pertencendo apenas à família paterna, que era a que estava sob a autoridade do pater; destaca, ainda, que a organização familiar romana pautava-se nessa relação discricionária do pater familia com seus familiares – verdadeiros súditos – espelhando o caráter eminentemente individualista da sociedade romana, que se refletia na concepção do próprio casamento. Esse paradigma de submissão da família antiga romana ao domínio, ao governo e à gestão do pater familia refletia seu acentuado caráter político, resultando daí a analogia entre sua organização e a do Estado.
Aos poucos, a família foi tendo sua composição alterada: as famílias não seriam mais um aglomerado de pessoas que dariam poder praticamente ilimitado ao pater familiae: seriam, a partir daqui comunidades menores formadas pelo casal e seus filhos.
A partir da Idade Média, com a crescente expansão do Cristianismo e outros acontecimentos marcantes como a queda do feudalismo e as invasões barbaras, houve o início de uma nova formação familiar.
A expansão do cristianismo, em especial do catolicismo, fez com que inúmeros impactos fossem sentidos no âmbito do direito de família.
Porto (2017, p. 53) argumenta que muitos foram os resquícios do Direito Canônico foram deixados no Direito de Família. Entre eles, cita-se a regulamentação do casamento, a condenação do concubinato e outros. Todo o direito de família, para a autora, revela influências cristãs:
A estrutura familiar fundada na autoridade patriarcal perdurou até os tempos modernos, embora as posições mais favoráveis ao papel feminino tenham sido plantadas com o cristianismo. Dentre as heranças do Direito Canônico para a estruturação jurídica da família, destacam-se: a regulamentação do casamento (celebração solene, impedimentos matrimoniais, a nulidade, a reciprocidade de direitos e deveres entre cônjuges etc.); o pátrio poder como officium pietatis, que deveria ser exercido com benignidade e não com atrocidade, em nome de Deus e pelo bem dos filhos; a condenação do concubinato; e o instituto da separação de corpos, apenas para citar alguns.
Na verdade, todo o Direito de Família revela, em suas principais regras, influências cristãs. No intuito de moralização dos costumes, pela via da sacralização familiar (condenando o divórcio, o adultério e as relações concubinárias, por exemplo), a Igreja “com seus ensinamentos papais e conciliares tenta impor esse modelo na sociedade medieval” (PÉREZ, 2011, p. 72, tradução nossa), instituindo seus ditames para estruturar
Mais à frente na história, a família moderna teve como um dos principais marcos o processo da emancipação feminina, ocorrida principalmente a partir da exploração da mulher no trabalho fabril.
Para Porto (2017, p. 75) a família pós-moderna – também conhecida por família atual, por fim, tem uma diferença em relação as famílias anteriores, que é a reivindicação pela família poliamorosa, no sentido de defesa de ideais como a igualdade, o consenso, a independência e a diversidade sexual:
As famílias poliafetivas não são exatamente uma novidade da era contemporânea, existindo desde tempos remotos nas sociedades praticantes da poligamia e mesmo nas monogâmicas que admitem excepcionalmente vínculos afetivos concomitantes, como um casamento e uma união estável, ou duas ou mais uniões estáveis simultâneas, com ou sem a ciência dos integrantes, conforme digressões do capítulo quatro. A diferença notável entre os tempos de outrora e a fase pós-moderna é que a reivindicação pela família poliamorosa exsurge em contexto de mudanças na moral social e de maior igualdade, consenso, independência e diversidade sexuais, de maneira que é impossível enquadrar essa realidade no mesmo perfil de relacionamentos poligâmicos mais “ortodoxos”, pautados pela dominação masculina e a subjulgação feminina, por exemplo.
3. O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE E A MENOR INTERVENÇÃO DO ESTADO COMO NORTEADORES DO DIREITO DE FAMÍLIA
O princípio da menor intervenção do Estado no Direito de Família e o princípio da afetividade são uns dos princípios mais importantes, vez que muito do direito de família atual tem por influência os dois referidos princípios.
Para Tartuce (2012) “tornou-se comum, na doutrina contemporânea, afirmar que o afeto tem valor jurídico ou, mais do que isso, foi alçado à condição de verdadeiro princípio geral”
O princípio da afetividade é definido por Nunes (2014, n.p.) como um princípio que tem por base a ternura, a dedicação tutorial e as paixões naturais. A autora explica que este princípio não possui previsão legal específica na legislação pátria; apesar disto, sua existência se baseia a partir da interpretação de outros princípios, tais como o princípio da proteção integral e o princípio da dignidade da pessoa humana:
O princípio da afetividade aborda, em seu sentido geral, a transformação do direito mostrando-se uma forma aprazível em diversos meios de expressão da família, abordados ou não pelo sistema jurídico codificado, possuindo em seu ponto de vista uma atual cultura jurídica, permitindo o sistema de protecionismo estatal de todas as comunidades familiares, repersonalizando os sistemas sociais, e assim dando enfoque no que diz respeito ao afeto atribuindo uma ênfase maior no que isto representa. Decerto o princípio da afetividade, entendido este como o mandamento axiológico fundado no sentimento protetor da ternura, da dedicação tutorial e das paixões naturais, não possui previsão legal específica na legislação pátria. Sua extração é feita de diversos outros princípios, como o da proteção integral e o da dignidade da pessoa humana, este também fundamento da República Federativa do Brasil.
Pessanha (2011), por sua vez, entende que o afeto não se trata apenas de um laço que envolve os integrantes de uma família, mas sim um laço que envolve pessoas e que tem a finalidade de garantir felicidade a todos os envolvidos. A autora argumenta que o afeto é o princípio norteador das famílias contemporâneas e que atualmente as famílias não se justificam sem o afeto, haja vista que este é elemento formador e estruturador da família:
O afeto não é somente um laço que envolve os integrantes de uma só família, mas um laço que une pessoas com a finalidade de garantir à felicidade de todas as pessoas pertencentes aquele meio, ocasionando, assim, o norte de cada família, já que a afetividade é como princípio norteador das famílias contemporâneas. A família, na atualidade, não se justifica sem a existência do afeto, pois é elementos formador e estruturador das entidades familiares. Desta maneira, a família é uma relação que tem como pressuposto o afeto, devendo todas as espécies de vínculos ancorados no afeto terem a proteção do Estado.
O princípio da menor intervenção do Estado na família, por sua vez, é defendido por Assis (2018, n.p.) como um princípio que também não é expresso positivamente, extraído pela inteligência do art. 1513 do Código Civil de 2002:
Assim nasce o Princípio da Mínima Intervenção Estatal do Direito de Família, que apesar de não estar expressamente positivado, pode ser inferido principalmente pelo artigo 1513 do Código Civil em vigor, que aduz ser defeso a qualquer pessoa de direito público ou privado interferir na comunhão de vida instituída pela família.
Lanfredi (2018), por sua vez, entende que apesar de o Estado ser de importância inegável a sociedade, as transformações sociais fizeram com que a necessidade de influência direta do Estado fosse ressignificado, uma vez que a família é constituída pelo afeto e, desta maneira, suas atitudes deveriam ser respeitadas, uma vez que se trata de legítimo exercício de liberdade individual. Assim, o princípio do Direito Mínimo – ou da intervenção mínima do Estado na família – passou a vigorar:
O Estado sempre desempenhou papel de suma importância perante a sociedade, determinando e moldando a forma com que está e as relações ali firmadas se desenvolveriam. Por um longo período foi reconhecido como um ente hierárquico supremo, onde todas as decisões emanadas sofreriam com a sua chancela e consequente intervenção.
No entanto, com a ocorrência de determinadas transformações sociais, principalmente aqueles referentes a forma de constituição familiar, o papel estatal foi ressignificado. Isto porque, como a família passou a ser permeada pelo afeto, as atitudes ali tomadas deveriam ser respeitadas, em razão de serem a mais pura e verdadeira manifestação de vontade do indivíduo.
Dessa forma, o Estado, até então máximo e soberano, passou a ter o seu poder de atuação restrito e limitado, de modo que o princípio do Direito Mínimo passou a vigorar nas relações interpessoais e enaltecer, por consequência, o preceito da autonomia privada dos sujeitos de direito.
4. MONOGAMIA, O POLIAMOR E O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE DO DIREITO DE FAMÍLIA: A RELATIVIZAÇÃO DA MONOGAMIA SERIA POSSIVEL?
O reconhecimento de outros tipos de família – como a possibilidade do reconhecimento da união estável, por exemplo - dado pela Constituição Federal de 1998, fez com que o direito atuasse cada vez mais de forma plural, tentando acolher e compreender as novas possibilidades de formações de família existentes.
No âmbito do direito civil, houve avanços em relação ao reconhecimento de novos tipos de família foi com o advento do Código Civil vigente, a partir de 2002. O novo Código Civil – que acolheu as disposições relativas a direitos humanos que a Constituição Federal trouxe – teve muitas inovações que foram muito interessantes do ponto de vista familiar.
Hoje, ainda se figura o paradigma da monogamia nas relações, com consequências cíveis e criminais para a parte que tentar se casar estando impedido (já sendo casado). Para isso, existe o crime de bigamia no Código Penal.
Antes de desconstruir o conceito da bigamia, que será realizada no decorrer do artigo científico, precisamos fazer algumas reflexões com relação aos conceitos aqui trabalhados.
Sobre o princípio da afetividade nas relações, Nunes (2014) esclarece que ele não é um princípio expresso na Constituição Federal de 1988, se tratando de uma construção doutrinária a partir da interpretação de vários outros princípios que regem o direito de família:
o princípio da afetividade, entendido este como o mandamento axiológico fundado no sentimento protetor da ternura, da dedicação tutorial e das paixões naturais, não possui previsão legal específica na legislação pátria. Sua extração é feita de diversos outros princípios, como o da proteção integral e o da dignidade da pessoa humana, este também fundamento da República Federativa do Brasil
Com relação as relações poliafetivas e ao poliamor, é necessário que compreendamos os seus significados e seus impactos nas vidas daqueles que escolhem essa modalidade de se relacionar e formar sua família. Para isso, contaremos com o auxílio de alguns autores que consigam elucidar melhor essa questão.
Cardin e Moraes (2018) entendem o poliamor como “a possibilidade de amar, sentir atração sexual e relacionar-se com mais de uma pessoa concomitantemente”. Podemos perceber, portanto, a amplitude deste conceito: não se trata apenas de algo carnal, de momento e transitório ou sem amor: o poliamor pode ser tão somente a possibilidade da atração sexual para com mais de uma pessoa como também a possibilidade de amar ou relacionar-se com mais de uma pessoa simultaneamente.
Costa e Belmino (2015) completam essa ideia ao afirmar que para as pessoas adeptas ao poliamor, o amor não deve ser um instrumento de exclusão do mundo e das pessoas, por isso não são adeptas ao ideal do amor monogâmico:
A filosofia adotada no poliamor considera que amar única e exclusivamente uma só pessoa pelo resto da vida é algo inconcebível, que o amor não deve excluir o mundo ou as pessoas. Assim, os indivíduos podem amar e ser amados por mais de uma pessoa simultaneamente; esta é a lógica que esta ideologia tenta defender (FREIRE, 2013). Contudo, para que essa forma de relacionamento seja possível, seus adeptos tendem a cultivar princípios que são norteadores dessa prática, a saber: honestidade e consenso principalmente. (gn)
Este tipo de relacionamento pode ser aberto ou fechado, a depender da combinação prévia entre os envolvidos na relação. Tal combinação, como decorre a própria palavra, envolve um acordo interno entre os envolvidos no relacionamento.
Ao partir dessa ideia de poliamor, Cardin e Moraes (2018) relacionam esse conceito com o de poliafetividade, que seria essa relação afetiva de mais de duas pessoas e afastando a poliafetividade e o poliamor da ideia de promiscuidade, que acabam sendo muito ligados a esse ideal por pessoas que desconhecem ou não compreendem essas novas formas de relacionamento:
A poliafetividade faz parte dessa variedade múltipla de inter-relações que compõe a sociedade contemporânea, e expressa de forma distinta que o sentimento é livre e pode ser manifestado de diversas maneiras.
O que não se confunde com nenhum tipo de promiscuidade, pois não se trata de procurar incessantemente por diversas experiências sexuais desvirtuadas, mas, sim, de manter total honestidade no seio das relações, sendo que todas as pessoas envolvidas estão a par da situação e se sentem confortáveis com ela.
Ainda que a regra do ordenamento jurídico pátrio seja pela monogamia, a Constituição Federal proíbe qualquer tipo de discriminação. Joaquim (2006), ao analisar a igualdade e a discriminação, defende que a discriminação é conduta que viola direitos. Ocorre não somente por fatores como cor da pele, ou deficiência física, por exemplo, mas também por inúmeros outros fatores:
Discriminação – Diferentemente do preconceito, a discriminação depende de uma conduta ou ato (ação ou omissão), que resulta em viola direitos com base na raça, sexo, idade, estado civil, deficiência física ou mental, opção religiosa e outros. A Carta Constitucional de 1988 alargou as medidas proibitivas de práticas discriminatórias no país. Algumas delas como, por exemplo, discriminação contra a mulher, discriminação contra a criança e o adolescente, discriminação contra o portador de deficiência, discriminação em razão da idade, ou seja, a discriminação contra o idoso, discriminação em razão de credo religioso, discriminação em virtude de convicções filosóficas e políticas, discriminação em função do tipo de trabalho, discriminação contra o estrangeiro e prática da discriminação, preconceito e racismo. A propósito, segundo o jurista constitucionalista José Afonso da Silva:
“A discriminação é proibida expressamente, como consta no art. 3º, IV da Constituição Federal, onde se dispõe que, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, está: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Proibi-se, também, a diferença de salário, de exercício de fundações e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor, estado civil ou posse de deficiência (art. 7º, XXX e XXXI).” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 2003, p. 222).
Seria a imposição da monogamia por parte do Estado uma espécie de discriminação para com as pessoas que decidiram viver suas vidas de maneira diferente da grande maioria da sociedade? Uma vez que a opção por um relacionamento poligâmico não diz respeito a outros além daqueles envolvidos na relação, por qual motivo o Estado adota tal postura discriminatória?
Em recente decisão, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) optou pelo caminho discriminatório. Ao proibir que os cartórios brasileiros registrem as uniões poliafetivas, há o claro objetivo de proibir que essas pessoas tenham direitos garantidos, tais como os casais em relacionamentos monogâmicos (NOTÍCIAS CNJ, 2018)
O Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu, nesta terça-feira (26/6), que os cartórios brasileiros não podem registrar uniões poliafetivas, formadas por três ou mais pessoas, em escrituras públicas. A maioria dos conselheiros considerou que esse tipo de documento atesta um ato de fé pública e, portanto, implica o reconhecimento de direitos garantidos a casais ligados por casamento ou união estável – herança ou previdenciários, por exemplo.
Ao negar a possibilidade de lavrar escrituras públicas de uniões poliafetivas, o próprio CNJ reconhece que estas pessoas não terão direito a benefícios previdenciários. Ainda que tal possibilidade tenha sido vetada pelo Conselho Nacional de Justiça, futuramente tal entendimento pode ser modificado, a partir da análise de outros magistrados:
Na decisão, o CNJ determina que as corregedorias-gerais de Justiça proíbam os cartórios de seus respectivos estados de lavrar escrituras públicas para registar uniões poliafetivas. A decisão atendeu a pedido da Associação de Direito de Família e das Sucessões, que acionou o CNJ contra dois cartórios de comarcas paulistas, em São Vicente e em Tupã, que teriam lavrados escrituras de uniões estáveis poliafetivas.
De acordo com o relator do processo, ministro João Otávio de Noronha, as competências do CNJ se limitam ao controle administrativo, não jurisdicional, conforme estabelecidas na Constituição Federal.
A emissão desse tipo de documento, de acordo com o ministro Noronha, não tem respaldo na legislação nem na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconhece direitos a benefícios previdenciários, como pensões, e a herdeiros apenas em casos de associação por casamento ou união estável.
“(Nesse julgamento) eu não discuto se é possível uma união poliafetiva ou não. O corregedor normatiza os atos dos cartórios. Os atos cartorários devem estar em consonância com o sistema jurídico, está dito na lei. As escrituras públicas servem para representar as manifestações de vontade consideradas lícitas. Um cartório não pode lavrar em escritura um ato ilícito como um assassinato, por exemplo”, afirmou o ministro Noronha. (NOTÍCIAS CNJ, 2018)
Haas (2021) sustenta que a ideia da monogamia inflexível não se justifica, uma vez que tal ideia remete-se a ideais preconceituosos pregados a muitos anos principalmente pela igreja católica, em que a monogamia, assim como a inexistência de divórcio, eram particularidades do casamento. A autora salienta, ainda, que tal proibição vinculava-se unicamente ao objetivo de resguardar o patrimônio:
Muito embora o casamento tenha deixado de ser o único meio de formação da família, a monogamia permanece sendo empregada com firmeza, inclusive pela jurisprudência (CAMELO, 2019, p. 120).
“Tradicionalmente, a monogamia foi definida como sendo a condição daquele indivíduo que se relaciona afetiva e sexualmente com apenas um parceiro durante toda a sua vida.” (PAMPLONA FILHO, 2019, p. 55).
A igreja influenciou na concretização da monogamia, incutindo na sociedade a ideia de que monogamia e indissolubilidade do matrimônio eram decorrentes da própria união, fomentando o preconceito em relação às outras modalidades de relacionamento, tudo isso para proteger o patrimônio familiar (CAMELO, 2019, p. 120).
A monogamia não é um princípio, mas sim regra proibitiva da manutenção de dois casamentos concomitantemente (DIAS, 2020, p. 60).
Uma vez que o reconhecimento de união poliafetiva não feriria a ideia de manutenção de apenas um casamento, não se vislumbra a necessidade de manutenção de tal proibição, principalmente levando em consideração a existência da importância da existência do princípio da afetividade para o direito de família pátrio.
Dias (2015) entende que a negação a existência de famílias poliafetivas implica justamente na exclusão de todos os direitos relativos à área de família e sucessões a esse tipo de união:
Eventual rejeição de ordem moral ou religiosa à dupla conjugalidade não pode gerar proveito indevido ou enriquecimento injustificável de um ou de mais de um frente aos outros partícipes da união. Negar a existência de famílias poliafetivas como entidade familiar é simplesmente impor a exclusão de todos os direitos no âmbito do direito das famílias e sucessório. Pelo jeito, nenhum de seus integrantes poderia receber alimentos, herdar, ter participação sobre os bens adquiridos em comum. Nem seria sequer possível invocar o direito societário com o reconhecimento de uma sociedade de fato, partilhando-se os bens adquiridos na sua constância, mediante a prova da participação efetiva na constituição do acervo patrimonial.
Dias (2015) sustenta que o preconceito oriundo do medo de rejeição é que ocasiona a postura de reprovabilidade deste tipo de formação de família:
Claro que justificativas não faltam a quem quer negar efeitos jurídicos à escritura levada a efeito. A alegação primeira é afronta ao princípio da monogamia, desrespeito ao dever de fidelidade - com certeza, rejeição que decorre muito mais do medo das próprias fantasias. O fato é que descabe realizar um juízo prévio e geral de reprovabilidade frente a formações conjugais plurais e muito menos subtrair qualquer sequela à manifestação de vontade firmada livremente pelos seus integrantes.
Por fim, Dias (2015) demostra-se favorável a união poliafetiva, desde que haja a livre manifestação de vontade de todos os envolvidos em uma relação vivia a três. Ao comentar um caso registrado por um cartório de união poliafetiva, a autora entende que, na sua concepção, o fato de se manifestarem pelo desejo da escritura pública para atestar a união apenas reflete que houve o consentimento de todos os envolvidos e a boa-=fé dos seus participantes:
Há que se reconhecer como transparente e honesta a instrumentalização levada a efeito, que traz a livre manifestação de vontade de todos, quanto aos efeitos da relação mantida a três. Lealdade não lhes faltou ao formalizarem o desejo de ver partilhado, de forma igualitária, direitos e deveres mútuos, aos moldes da união estável, a evidenciar a postura ética dos firmatários. Nada afeta a validade da escritura. Tivessem eles firmado dois ou três instrumentos declaratórios de uniões dúplices, a justiça não poderia eleger um dos relacionamentos como válido e negar a existência das demais manifestações. Não se poderia falar em adultério para reconhecer, por exemplo, a anulabilidade das doações promovidas pelo cônjuge adúltero ao seu cúmplice (CC 5 5 0) ou a revogabilidade das transferências de bens feitas ao concubino (CC, 1 642 V).
Não havendo prejuízo a ninguém, de todo descabido negar o direito de as pessoas viverem com quem desejarem
5. CONCLUSÃO
A monogamia é atual paradigma do direito de família adotado pelo ordenamento jurídico, que orienta para a aplicação da lei. Ocorre que este modelo de relacionamento, apesar de ser uma regra para o ordenamento jurídico, não é o único modelo de relação existe e é adotada por todos, haja vista que existem relacionamentos monogâmicos e não monogâmicos.
No caso do poliamor, temos uma modalidade de relacionamento não monogâmico onde é possível que os envolvidos tenham relacionamentos afetivos e sexuais com mais de um parceiro, desde que com o pleno consentimento de todos os envolvidos.
Apesar de contar com o consentimento dos envolvidos, o poliamor – assim como outros tipos de relacionamentos não monogâmicos – é proibido pelo ordenamento jurídico, muitas vezes sendo relacionado pelo senso comum à promiscuidade e a infidelidade, adjetivos claramente pejorativos que advém da falta de conhecimento a respeito dessa modalidade de relacionamento.
Nesse sentido, o presente trabalho teve por objetivo investigar se existe uma suposta falta de isonomia entre os relacionamentos monogâmicos e não monogâmicos dentro do ordenamento jurídico, em especial o caso do poliamor
O presente trabalho verificou que, apesar de uma relativização da monogamia ser possível, por conta do princípio da afetividade – visando a concessão de direitos as pessoas que se encontram em uniões poliafetivas – dificilmente o referido paradigma será relativizado em tempos recentes, devido a jurisprudências e outros artifícios legais que confirmam a monogamia e ainda mantem as uniões poliafetivas sem direitos que deveriam ter, tal qual as uniões monogâmicas, o que ocorre devido, em grande parte, à igualdade constitucional.
Outros princípios também podem ser citados no que diz respeito a possibilidade de mudança do paradigma da monogamia. Entre eles, estão o princípio da mínima intervenção do Estado na família, por exemplo.
O ordenamento jurídico brasileiro ainda possui muitas restrições no Direito de Família devido, principalmente, a forte influência do Direito Canônico ainda exercida nos paradigmas atuais.
Tal influência do Direito Canônico na legislação de família brasileira pode ser explicada pelo fato de o Brasil ser um país majoritariamente cristão, o que faz com que o pensamento coletivo seja pautado principalmente por este fato.
É preciso pensar, no entanto, que as minorias – tais como as pessoas que assumem relacionamentos poliafetivos - também devem ter seus direitos reconhecidos, principalmente levando em consideração que a liberdade e isonomias constitucionais existem e que tais relacionamentos, configurando a multiconjugalidade, só existiriam a partir da ciência de todos os indivíduos no momento do registro da união, como nos casos de caracterização da multiconjugalidade para fins de registro de união estável, aqueles em que existiria o intuito familiae.
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Graduanda em Direito pela Fametro (Faculdade metropolitana de Manaus).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: QUEIROZ, Elizângela de Oliveira. A monogamia, o poliamor e o princípio da afetividade do direito de família: a falta de isonomia entre relacionamentos monogâmicos e não monogâmicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 fev 2024, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/57784/a-monogamia-o-poliamor-e-o-princpio-da-afetividade-do-direito-de-famlia-a-falta-de-isonomia-entre-relacionamentos-monogmicos-e-no-monogmicos. Acesso em: 26 dez 2024.
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