RESUMO: O presente trabalho de conclusão de curso tem como objetivo estudar a possibilidade da análise da prescrição do título ou outro documento de dívida pelo tabelião de protesto, tendo em vista os limites da atividade de qualificação notarial e o tratamento legislativo, doutrinário e jurisprudencial dado ao tema, notadamente diante dos argumentos contidos nos julgados do Superior Tribunal de Justiça e do entendimento da doutrina especializada. O trabalho abordará os aspectos fundamentais do instituto do protesto e do serviço de protesto, com especial ênfase à atividade do tabelião na qualificação dos títulos, bem como os fundamentos da prescrição e como eles se aplicam ao contexto dos títulos e outros documentos de dívida protestáveis, e ao final, entender-se-á qual é o comportamento do tabelião ao recepcionar o título ou documento de dívida prescrito.
PALAVRAS-CHAVE: Protesto. Qualificação. Prescrição.
ABSTRACT: This end-of-course work aims to analyze the possibility of analyzing the statute of limitations of the title or other debt documents by the protest notary, considering the limits of the notary qualification activity and the treatment given by the legislation and court decisions, especially because of the decisions by the Superior Court of Justice and the understanding of specialized doctrine. The work will address the fundamental aspects of the protest like an institute and a service, notably considering the activity by qualification of titles, as well as the foundations of statute of limitations and how they apply in the context of titles and other protestable debt documents, and at the end, understand what the notary's behavior is when receiving the title or document debt with statute of limitations expired.
KEY WORDS: Protest. Qualification. Statute of limitations.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. TABELIONATO DE PROTESTO. 2.1. REGIME JURÍDICO DOS SERVIÇOS NOTARIAIS. 2.2. INSTITUTO DO PROTESTO. 2.3. SERVIÇO DE PROTESTO. 2.3.1. A questão da qualificação dos títulos. 3. PRESCRIÇÃO. 3.1. FUNDAMENTOS. 3.2. PRESCRIÇÃO DOS TÍTULOS E OUTROS DOCUMENTOS DE DÍVIDA. 4. ANÁLISE DA PRESCRIÇÃO PELO TABELIÃO DE PROTESTO. 4.1. PANORAMA INICIAL. 4.2. QUESTÕES INCIDENTES. 4.3. DECISÃO DO STJ NO AGRG NO AGRG NO RESP 1.100.768/SE. 4.4. IMPACTOS DO EXERCÍCIO DESSA QUALIFICAÇÃO NA PRÁTICA. 5. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
A atividade do Tabelião e do Oficial de Registro destinam-se a garantir a autenticidade, segurança e eficácia dos atos e negócios jurídicos, quando as partes desejarem a intervenção do agente público ou esta for necessária de acordo com disposição legal.[1]
Trata-se de atividade pública, delegada pelo Estado a pessoas naturais previamente selecionadas mediante concurso público de provas e títulos, nos termos do art. 236 da Magna Carta, que a exercerão sob fiscalização do poder judiciário, sendo remunerados mediante emolumentos pautados por tabelas aprovadas pelo poder público, constituindo as serventias delegadas “um feixe de competências públicas (...) que fazem de tais serventias uma instância de formalização de atos de criação, preservação, modificação, transformação e extinção de direitos e obrigações” (STF, ADI 2.415/SP, 2012, on-line).
Os atributos da publicidade, autenticidade, segurança e eficácia, nas palavras de Marcelo Rodrigues, “apontam o norte, distinguem os fins e põem em relevo os objetivos de toda a legislação concernente aos Registros Públicos” (2016, p. 10).
É por meio da atividade notarial e registral, consoante os seus atributos, que se pode constituir, comprovar ou dar publicidade a direitos. Daí a relevância da atividade no contexto de uma sociedade, tendo em vista a influência que possui com a manipulação de direitos, muitas vezes dos mais caros ao exercício da cidadania.
Desse regime jurídico de elevada importância, observada tanto em relação à proteção dada à atividade, quanto em relação às consequências práticas que possam advir das situações jurídicas examinadas pelos Tabeliães e Oficiais de Registro, extrai-se que, como profissional do direito escolhido pelo Estado em seleção pública realizada especialmente para este fim, cabe-lhe examinar com cuidado e atenção o que lhe for submetido à apreciação.
A esta atividade, instrumento destinado à, em última análise, assegurar os atributos dos registros públicos e atividade notarial, dá se o nome de “qualificação”.
Em apertada síntese, é através da atividade de qualificação que o Tabelião ou o Oficial de Registro analisam, com todo o cuidado necessário e apuro técnico, se determinado título ou requerimento submetido à sua apreciação pelo princípio da rogação, seja ele qual for, tem aptidão para produzir os efeitos que lhe são esperados, cumprindo os requisitos legais e autorizando a prática do ato pleiteado.
Trata-se de um verdadeiro poder-dever do delegatário do serviço, conforme já se pronunciou o STF.[2]
No que tange à atividade do Tabelião de Protesto, questão tormentosa é definir quais os limites da atividade de qualificação de títulos, considerando que a atividade notarial e de registros públicos, embora pública, é extrajudicial, encontrando barreira em questões com ressalva de apreciação jurisdicional, bem como nos limites impostos pela lei à sua atuação.
Trata-se de absoluto vespeiro, que desperta debates na doutrina e vem recebendo tratamento diferenciado pela jurisprudência, conforme se verá.
Se é certo que cabe ao tabelião zelar pela produção adequada, normal e esperada, dos efeitos dos atos e negócios jurídicos que lhes são submetidos, também é assegurado por lei o dever de prestar aconselhamento, cabendo ao delegatário orientar as partes quanto a correta produção de efeitos dos atos e negócios no mundo jurídico.
No caso do tabelionato de protesto, é a irregularidade formal do título verificada na qualificação que impede o registro, nos termos do art. 9º, parágrafo único da Lei do Protesto (Lei n. 9.492/1997).
Há, contudo, controvérsia acerca do limite dessa atividade.
O dissenso reside justamente em definir o que se compreende por “irregularidade formal”. No caso específico da análise da prescrição, a Lei do Protesto expressamente veda a análise pelo tabelião acerca de aspectos relacionados à prescrição (e a caducidade) dos títulos ou outros documentos de dívida submetidos a protesto (art. 9º, caput).
No entanto, há decisão na Corte Superior que determina ao Tabelião apreciar a sua ocorrência, inclusive de ofício.
Trata-se do julgado, pelo Superior Tribunal de Justiça, no Agravo Regimental no Agravo Regimental em Recurso Especial n. 1.100.768, proveniente do Estado do Sergipe, que será objeto do estudo no momento oportuno.
Não obstante, veremos proposições no sentido de ampliar o alcance da expressão “irregularidade formal”, considerando aspectos seculares da atividade e as nuances da atividade e efeitos jurídicos correlatos.
Daí a controvérsia instalada, que será apreciada nas linhas seguintes com minúcias, findas as quais serão lançados os argumentos analíticos acerca do mérito da causa, notadamente considerando o texto legal (e regulamentar, quando for o caso) e da decisão judicial supra referida. Ao final, buscar-se-á resposta à seguinte pergunta: é possível impor ao tabelião a análise da prescrição dos títulos e outros documentos de dívida submetidos ao protesto?
O tema é de relevância impar para a atividade notarial (desenvolvida especialmente no tabelionato de protesto), pois trata dos limites da qualificação notarial, tema que, como introduzido linhas acima, suscita discussões no âmbito doutrinário e jurisprudencial, notadamente na seara administrativa. A resposta à esta questão implica em tratar do cerne da própria atividade notarial e registral.
Para tanto, realizar-se-á um estudo das principais variáveis aqui existentes: a atividade do tabelião de protesto, dando especial ênfase à natureza da atividade e ao específico ponto da qualificação notarial; assim como acerca do instituto da prescrição, seus principais aspectos e implicações quando relacionados a títulos e documentos de dívida que possam ser submetidos ao protesto.
No primeiro capítulo, dissecar-se-á, portanto, a atividade do protesto. Serão abordados os aspectos mais relevantes do ato de protesto, como sua natureza jurídica, sua evolução histórica e outras características, e do serviço do protesto, com especial ênfase à qualificação de títulos e outros documentos de dívida.
Em seguida, no segundo capítulo, será analisada a prescrição, seus fundamentos e, em um específico ponto, a prescrição aplicada aos títulos e outros documentos de dívida.
Por fim, no terceiro e último capítulo será analisada a possibilidade da análise da prescrição, tratando com aprofundamento das decisões judiciais relacionadas ao tema, aspectos doutrinários, bem como do tratamento legal dado pelo legislador e pelas normas das Corregedorias dos Estados, com ênfase aos impactos na atividade, e às consequências práticas da adoção de uma ou outra conclusão.
O método de pesquisa adotado será o hipotético-dedutivo, pois parte-se de uma hipótese sobre o problema dado e busca-se, por meio de análise de dados e referências científicas, determinar a adequação da resposta prevista para o problema abordado.
Quanto aos métodos de procedimento para realizar referida análise, registra-se utilizar, essencialmente, da pesquisa bibliográfica, com a qual se pretende, respectivamente, qualificar as variáveis envolvidas e determinar aspectos históricos ou técnico-jurídicos dos temas abordados.
Em tempos de pandemia e restrição ao acesso de bibliotecas físicas, notadamente de instituições de ensino superior, tribunais e outros órgãos públicos, recorre-se a utilização de livros eletrônicos e físicos que estejam disponíveis.
A despeito de a doutrina acerca de direito notarial e registral não ser tão variada como em outros ramos do direito, busca-se, através da pesquisa em livros de doutrinadores mais consagrados e estudos mais recentes, a informação mais nova e embasada possível para tratar dos assuntos. Não há perda de qualidade, ante a certificação, por meio do uso de diversas fontes, complementares umas às outras, de que a informação é atualizada e consentânea com o escopo do trabalho, que é analisar a controvérsia atual sobre o tema e as suas imbricações.
Registre-se, ainda, que quanto aos temas abordados procurou-se pesquisar qual o entendimento que vem sendo praticado nos Estados e Distrito Federal, todos eles, através da pesquisa nas normas gerais aprovadas pelas respectivas Corregedorias-Gerais de Justiça, a depender do Estado, chamadas de Código de Normas, Provimento-Geral, Consolidação Normativa Notarial e Registral, Normas de Serviço, Diretrizes Gerais Extrajudiciais ou até mesmo Manual de Atividades ou Manual de Normas.
Outrossim, buscou-se analisar também o entendimento contido na jurisprudência notarial e registral, notadamente do Estado de São Paulo, cuja abordagem é sensivelmente avançada em termos de jurisprudência administrativa da atividade, pois se trata de Estado pioneiro na elaboração de normas e mecanismos de resolução de controvérsias direcionados ao extrajudicial.
Para melhor compreensão das regras que envolvem a atividade relativa ao Tabelião (ou tabelionato) de protesto de títulos e outros documentos de dívida, impõe-se analisar, em primeiro lugar, o estatuto jurídico dos titulares dos serviços de notas e registros públicos.
Em sequência, cabe fazer prévia incursão nas origens do tabelionato de protesto, passando à análise da atividade específica do tabelião de protesto, dando ênfase, nesse específico ponto, a atividade de qualificação, coração da atividade tabelioa.
2.1. REGIME JURÍDICO DOS SERVIÇOS NOTARIAIS
O direito notarial pode ser definido, na visão de Luiz Guilherme Loureiro, como o “conjunto de normas e princípios que regulam a função do notário, a organização do notariado e os documentos ou instrumentos redigidos por este profissional do direito que, a título privado, exerce uma função pública por delegação do Estado” (2017, p. 41).
O notário, ou tabelião, é um profissional do direito, dotado de fé pública, a quem é delegada a atribuição de velar pela segurança, validade, eficácia e publicidade dos atos e negócios jurídicos, em razão do disposto nos arts. 1º e 3º da Lei n. 8.935/1994.
A Lei n. 8.935/1994, primeira lei nacional a dispor, de forma específica, da atividade do Tabelião, ou Notário, e Oficial de Registro, ou Registrador, atribui aos primeiros a competência para formalizar juridicamente a vontade das partes, e para intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes queiram ou devam dar forma legal ou autenticidade (art. 6º).
A fé pública desses profissionais decorre da delegação do Estado, implicando na veracidade, autenticidade e legitimidade dos atos praticados. O art. 236 da Constituição Federal expressamente dispõe que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, mas por delegação do Poder Público, o que garante natureza pública aos atos praticados pelos particulares delegatários desse serviço público.
Notários e Registradores, consoante defende Aflaton Castanheira Maluf (2018, p. 14), compreendem carreiras seculares no país, e milenares em muitos países e civilizações estrangeiras, o que ilustra a sua importância para o desenvolvimento da sociedade.
Conforme Paulo Roberto Gaiger Ferreira e Felipe Leonardo Rodrigues (2018, p. 27-29), os notários apresentam-se basicamente de duas formas no mundo. Há o notariado anglo saxão, praticado em países como Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e alguns países da África, e o notariado latino, esse último o sistema adotado no Brasil. O notariado praticado no Brasil tem, portanto, raízes no Direito Romano, apresentando-se, como já indicado acima, como profissional qualificado, com função pública delegada pelo Estado, sendo que sua atividade sofre fiscalização constante por parte do Poder Judiciário, através do controle administrativo, que se dá por meio de correições.
O regime jurídico aplicado ao notário é peculiar, de modo que Luiz Guilherme Loureiro (2017, p. 54) dispõe tratar-se de tertium genus, uma vez que se posicionam entre o jurista estatal (magistrados) e o jurista privado (advogados), não podendo ser enquadrados os delegatários do extrajudicial como funcionários públicos strictu sensu, tampouco como profissionais liberais do direito.
Essa posição é compartilhada por Luís Paulo Aliende Ribeiro, para quem:
Os notários e registradores, embora exercentes de função pública, não são funcionários públicos, nem ocupam cargos públicos efetivos, tampouco se confundem com os servidores e funcionários públicos integrantes da estrutura administrativa estatal, por desempenharem função que somente se justifica a partir da presença do Estado – o que afasta a ideia de atividade exclusivamente privada –, inserem-se na ampla categoria de agentes públicos, nos termos acolhidos de forma pacífica pela doutrina brasileira de direito administrativo (RIBEIRO, 2009, p. 54).
Os administrativistas, como Dirley da Cunha Junior (2015, p. 254-255), Fernanda Marinela (2018, n.p.) e Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2020, n.p.), apenas para citar alguns deles, alçam os notários e registradores a categoria de particulares em colaboração com a Administração Pública.
Essa qualificação, conforme ensina José dos Santos Carvalho Filho, influi certamente no regime de responsabilidade civil. Segundo o autor:
Quanto aos ofícios de notas (tabelionatos) e de registro, existem algumas particularidades e controvérsias sobre a matéria, e a razão consiste no fato de que, apesar de os titulares serem agentes do Estado, desempenham sua atividade por delegação, em caráter privado (art. 236, § 1º, da CF), numa aparente contradictio. No caso, podem vislumbrar-se duas relações jurídicas, uma interna e outra externa. Com relação à interna, os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis pelos prejuízos causados a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos designados ou escreventes autorizados, assegurado o direito de regresso (art. 22 da Lei n. 8.935/1994, com a redação da Lei n. 13.286, de 10.5.2016). Quanto à externa, a conduta de tais agentes provoca a responsabilidade civil do Estado (art. 37, § 6º, da CF), que, inclusive, pode ser acionado diretamente, assegurando-se lhe, porém, o direito de regresso (STF, RE n. 175.739, j. 26.10.1998 e RE 187.753, j. 26.3.1999). No caso, a responsabilidade do Estado é direta, primária e objetiva, incidindo o art. 37, § 6º, em toda a sua plenitude (STF, RE 842.846, j. 27.2.2019). Todavia, já se decidiu no sentido da responsabilidade subsidiária do Estado, com fundamento no regime das concessões – argumento, com a devida vênia, improcedente pela inteira diversidade dos regimes jurídicos (STJ, REsp 1.087.862, j. 2.2.2010) (CARVALHO FILHO, 2020, n.p.).
De acordo com Aflaton Castanheira Maluf (2018, p. 27), os tabeliães e registradores são agentes públicos sui generis.
Destaca o autor que esses profissionais não estão sujeitos à aposentadoria compulsória, não são obrigados a cumprir estágio probatório, não são remunerados pelos cofres públicos e com subsídios fixos, e geram receitas ao invés de despesas, via repasses tributários federais, estaduais e municipais (MALUF, 2018, p. 27).
De fato, o regime jurídico do tabelião, mesmo na condição de particular, impõe-lhe certas obrigações, dentre as quais a de fiscalizar o recolhimento de tributos devidos pelos atos que praticar (art. 30, XI da Lei n. 8.935/1994), bem como atuar cumprindo obrigações perante o fisco de informar acerca de operações que envolvam imóveis, operações suspeitas por lavagem de dinheiro, etc.
Assim, arremata o autor, esses agentes são submetidos ao regime constitucional geral, aplicável a todos os agentes públicos, no exercício de quaisquer atividades empreendidas pela Administração Pública (MALUF, 2018, p. 27). Ilustram as ideias do autor disposições nesse sentido em outras constituições na América Latina, países pertencentes, assim como o Brasil, ao sistema de notariado latino (civil law).
Nos termos da Constituição Colombiana de 1991:
Articulo 131. Compete a la ley la reglamentación del servicio público que prestan los notários y registradores, la definición del régimen laboral para sus empreados y lo relativo a los aportes como tributación especial de las notarías, con destino a la adminnistración de justicia. El nombramiento de los notarios em propriedad se hará mediante concurso. Corresponde al gobierno la criación, supresíon y fusión de los círculos de notariado y registro y la determinación del número de notarios y oficinas de registro (NEGÓCIO; CIPRIANO, 2010, p. 536).
Por sua vez, conforme a Constituição Equatoriana de 2008:
Articulo 199. Los servicios notariales son públicos. Em cada cantón o distrito metropolitano habrá el número de notarias y notários que determine el Consejo de la Judicatura. Las remuneraciones de las notarias y notários, el régimen de personal auxiliar de estos servicios, y las tasas que deban satisfacer los usuários, serán fijadas por el Consejo de la Judicatura. Los valores recuperados por concepto de tasas ingresarán al Presupuesto General del Estado conforme lo que determine la ley (NEGÓCIO; CIPRIANO, 2010, p. 723).
Em verdade, a delegação prevista no art. 236 da Constituição Federal é administrativa, mas possui atributos específicos. Walter Ceneviva (2010, n.p.) destaca que a delegação pelo Estado é permanente desde a outorga, que se dá mediante concurso público de provas e títulos, extensiva a todos os atos integrados à função e ao objeto desta, imposta ao próprio delegante, e descontinuável, por suspensão do titular, nos casos disciplinares e na forma da lei.
Da atividade notarial e registral podem advir, como destaca Martha El Debs (2020, p. 22), efeitos constitutivos, comprobatórios e publicitários.
Segundo a autora, os efeitos constitutivos se manifestam, por exemplo, no efeito de aquisição de uma propriedade imóvel ou na emancipação; efeitos comprobatórios, por sua vez, indicam que o registro prova a existência e a veracidade do ato, tal como ocorre nos registros meramente declaratórios, de nascimento e de óbito da pessoa natural; por fim, os efeitos publicitários implicam que o ato submetido a registro passa a ser acessível a todos, presumindo-se conhecido por qualquer pessoa, que poderá a qualquer tempo requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou funcionário o motivo do interesse do pedido.
São reservados aos tabeliães o dever de resguardar a segurança jurídica. Segundo Luiz Guilherme Loureiro:
A ideia de segurança jurídica implica em valores como estabilidade e certeza das regras que regem as relações intersubjetivas, conhecimento das normas jurídicas e proteção contra abusos da parte mais forte. Para que possa desempenhar suas atividades e estabelecer relações jurídicas, a pessoa precisa ter conhecimento das regras jurídicas vigentes e obter uma certa garantia de que seus atos e negócios são seguros e eficazes e, portanto, serão cumpridos e respeitados como normas de direito (LOUREIRO, 2017, p. 51).
Cumpre destacar, por fim, que os dados levantados no estudo “Cartório em Números”, publicado pela ANOREG/BR no último ano, apontam que o país possuía, à época do levantamento, 13.267 cartórios distribuídos pelos 5.570 municípios brasileiros (ANOREG/BR, 2020).
Tais dados reforçam a capilaridade do sistema de serviços notariais e de registro, distribuídos para os mais longínquos cantões do extenso território brasileiro, implicando em importante instrumento para exercício de direitos por parte do cidadão, ainda considerando que destes, cerca de três mil cartórios desempenham função de tabelionato de protesto.
A primeira regulamentação do protesto no Brasil foi o Código Comercial de 1850, que estipulou, no seu art. 405, ser de competência do escrivão privativo o protesto das letras de câmbio e não havendo, perante qualquer tabelião do lugar, ou escrivão com fé pública.
Esse dispositivo teve vigência até sua revogação pelo Decreto do Poder Legislativo n. 2.044/1908, que dispôs sobre a letra de câmbio e a nota promissória e regulou, entre os artigos 28 e 33, aspectos do protesto, inclusive indicando os dados necessários do registro (art. 29) e a necessidade de intimação do devedor (art. 30).
Atualmente o protesto é regulado pela Lei n. 9.492/1997, e como ato jurídico possui definição legal no art. 1º da Lei de Protesto, que dispõe o seguinte, verbis:
Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida. Parágrafo único. Incluem-se entre os títulos sujeitos a protesto as certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas.
De acordo com a doutrina, o protesto nasceu atrelado à letra de câmbio. Luiz Emygdio Rosa Junior (2006, p. 383) afirma datar de 1384, na cidade de Gênova, na Itália, a origem dos primeiros protestos.
José Saraiva (1947, p. 135), por outro lado, aponta que o primeiro protesto cambiário conhecido é de 1335.
Segundo Luiz Emygdio Rosa Junior, buscando inspiração na doutrina de João Eunápio Borges (1977, p. 114-115), diante da falta de pagamento do sacado, devia o apresentante da letra promover o chamado protestatio, ato especial e solene a ser realizado, em curso prazo, perante o notário e testemunhas. Com base na protestatio, o portador agia regressivamente contra o sacador, podendo fazer uso do recambium (ressaque) (ROSA JUNIOR, 2006, p. 383).
Reinaldo Velloso dos Santos (2012, p. 23), todavia, sustenta que o protesto é anterior à letra de câmbio, havendo precedentes que o ligam ao período justinianeu, relativo ao imperador romano Justiniano do Oriente, no início da Idade Média (Séculos V a XV).
Seja como for, não é controverso que o protesto é um instituto que muito bem serviu à letra de câmbio em seus primórdios.
Em outro relato histórico, Vicente Amadei menciona que, embora na origem o protesto estivesse atrelado à falta de aceite na letra de câmbio, logo passou a ser utilizado na falta de pagamento (AMADEI; DIP, 2004, p. 73).
De fato, o uso do instituto foi dinamizado ao longo dos tempos. Nascido para suprir a falta de aceite na letra de câmbio, passou a servir também para certificar o descumprimento da obrigação cambiária, bem como passou a ser aplicado aos outros títulos de crédito, não se limitando mais à letra de câmbio.
Conforme ensina Martha El Debs:
O protesto chega, nos dias de hoje como um remédio ao inadimplemento, para sanear os conflitos de crédito presentes e prevenir negócios futuros. É um meio simples, célere e eficaz, de satisfação de títulos e documentos de dívida, que não foram honrados em seu vencimento (EL DEBS, 2020, p. 1.434).
Dadas essas considerações, a doutrina critica a falta de correspondência entre o conceito legal (art. 1º da Lei de Protesto) e aquele que efetivamente representa atualmente o instituto do protesto.
Um primeiro ponto de questionamento é o fato de que o conceito, embora avance bastante na previsão de protesto de outros documentos de dívida, deixa de fora o protesto da letra de câmbio por falta de aceite.
Sérgio Luiz José Bueno (2017, p. 29) expressa que não é correto afirmar que o protesto testifica o descumprimento de obrigação materializada em título, tão somente, pois serviu, e ainda pode servir, para o caso da falta de aceite na letra de câmbio. Lança o autor, então, sugestão de definir o protesto como “ato formal e solene pelo qual se prova circunstância cambiária relevante e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida.”.
Em última análise, a definição legal não poderia sequer ser tomada como conceito, cuja característica é a definição universal do instituto, prejudicada com a falta. Isso é, inclusive, o motivo pelo qual muito se critica a previsão de conceitos na legislação, considerando que a tarefa deveria ficar reservada para os estudiosos (doutrina).
Raquel Duarte Garcia, por sua vez, traz conceito que se mostra bastante abrangente para os contornos atuais do protesto. Segundo a tabeliã, o protesto é:
Um ato jurídico público, formal e solene, por meio do qual se prova de modo absoluto a apresentação de um documento de dívida para aceite ou para pagamento; faz-se prova, de modo relativo, do inadimplemento de obrigação decorrente desse documento de dívida (seja pagamento, aceite ou devolução); e por meio do qual se obtém finalidades especiais previstas na lei, tal como a presunção de insolvência decorrente do protesto para fins falimentares ou a formação de um título executivo, como no caso dos contratos de câmbio. O protesto é, ainda, instrumento de informação relativa ao crédito e de prevenção e solução de litígios que envolvam obrigações líquidas, certas, exigíveis e representáveis pecuniariamente (GARCIA, 2013, p. 48).
Veja-se que o conceito acima apresentado menciona até mesmo a função mais atual do protesto.
Não se ignora que a função do protesto é tradicionalmente probatória.
Pontes de Miranda (2000, v. I, p. 499) já enfatizou em sua obra o caráter probatório do instituto. Rubens Requião (2012, v. II, n.p.), citando o jurista italiano Mario Battaglini, explica o protesto como um ato solene, pelo qual se certifica, de um lado, o exercício do direito cambiário de portador ou detentor do título, ou de qualquer outro interessado e, de outro lado, o inadimplemento ou resposta negativa do obrigado cambiário.
Atualmente, contudo, não há como negar que o protesto assume feições nitidamente econômicas, pois serve como instrumento importante para a recuperação de créditos.
Essa mudança decorre indubitavelmente da maior publicidade que o protesto possui atualmente, com o advento de soluções informatizadas e divulgações de informações pela internet.
Para parametrizar essas informações, dados estatísticos divulgados pela CENPROT – Central de Protesto, criada pelo Provimento CGSP n. 38/2013 – dão conta que, desde que criada até outubro de 2018, somente no Estado de São Paulo, já foram realizadas quase cento e noventa milhões de consultas de protestos por CPF/CNPJ (ANOREG/BR, 2020).
Essa nova função do protesto é consentânea com a necessidade de que se reconheça o tabelionato de protesto como forma segura e rápida para prevenção de litígios, em um movimento de desjudicialização e de modo que o protesto (Por que não?) seja inserido dentro do espirito da sistemática de justiça multiportas.
De acordo com esse sistema, conforme Marcio André Lopes Cavalcante, a atividade jurisdicional estatal não é a única e nem a principal opção das partes para colocarem fim ao litígio, existindo outras possibilidades de pacificação social. Assim, para cada tipo de litígio existe uma forma mais adequada de solução. A jurisdição estatal é apenas mais uma dessas opções. Logo, a conciliação, a mediação e a arbitragem integram, em conjunto com a jurisdição, esse sistema “multiportas” (CAVALCANTE, 2019).
Alguns doutrinadores, de posição conservadora, criticam essa mudança de parâmetro. Para Luiz Emygdio Rosa Junior, por exemplo, “o protesto não é meio de cobrança nem meio de coação, como utilizado na prática por alguns credores, principalmente instituições financeiras, para que o devedor sobra os reflexos do descrédito” (2006, p. 386).
Não há, contudo, como ignorar essa realidade. Em posição mais moderna, Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza leciona que:
Exerce o protesto função probatória quanto ao inadimplemento do devedor. Contudo, e evidentemente, ao se utilizarem dos serviços de protesto, não objetivam os credores a lavratura e o registro do protesto, a provar o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida. O escopo dos credores é a solução do conflito de interesses, com o recebimento do que lhes é devido. [...] como se vê, os serviços de protesto, prestados no interesse público, podem e devem ser utilizados como meio para solução extrajudicial dos conflitos de interesses decorrentes das relações jurídicas que envolvem débito e crédito (SOUZA, 2011, p. 184-185).
Luiz Ricardo Silva, ainda no início do século, já reconhecia a função econômica do protesto, em um tempo em que a internet ainda não era tão difundida como agora. De acordo com ele:
Esta é, em nossa opinião, a nova visão que se deve ter do instituto do protesto. Ato probatório? Sem dúvida, principalmente quando se fala de títulos de crédito. Ato coativo? Com certeza, mas a coação aqui não deve ser vista como um acontecimento maléfico, prejudicial a alguém. A coação, neste caso, tem um aspecto funcional, isto é, ao mesmo tempo que busca solucionar uma pendência, permite que o Poder Judiciário se libere para julgar, com mais preparo e de forma mais rápida, outras lides que realmente merecem a sua atenção e que muitas vezes são prejudicadas pela quantidade exacerbada de ações que superlotam este poder (SILVA, 2004, p. 117).
No julgamento do REsp n. 1.126.515/PR, o STJ reconheceu esse escopo do protesto, ao reconhecer ao protesto a função de modalidade alternativa para cobrança de dívida, quando analisou a possibilidade do protesto de certidão de dívida ativa (STJ, REsp n. 1.126.515/PR, 2013, on-line).
Os números corroboram essa conclusão. Dados divulgados pelo IEPTB dentro do estudo “Cartório em Números”, divulgado pela ANOREG/BR em 2020 dão conta que, entre abril de 2016 e março de 2017, quase dois bilhões de reais em créditos decorrentes de títulos públicos foram recuperados através dos cartórios de protesto, o que representou cerca de um terço dos créditos inadimplidos enviados ao protesto naquele mesmo período (ANOREG/BR, 2020).
No que tange aos títulos privados, o mesmo levantamento apontou que mais de dezoito bilhões de reais foram recuperados entre abril de 2017 e março de 2018, o que representou mais de dois terços dos créditos inadimplidos submetidos ao serviço no período, que recebeu durante esse tempo mais de quinze milhões de títulos, totalizando mais de vinte e oito bilhões de reais em créditos protestados (ANOREG/BR, 2020).
Assim, não há como ignorar que o protesto vem tendo suas feições remodeladas ao longo do tempo, a fim de adequar o instituto a uma necessidade social, até porque, se ocorresse o contrário, o protesto perderia relevância.
O protesto abrange os títulos e outros documentos de dívida.
Quanto aos títulos, a lei refere-se aos chamados títulos de crédito, “documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele estampado” (VIVANTE, 2012, v. III, p. 63), conceito compatível com o disposto no art. 887 do Código Civil.
São os títulos cambiais e cambiariformes, tais como letra de câmbio, nota promissória, duplicata, cheque, warrant, cédulas e notas de crédito, entre outros previstos em lei ou eventualmente criados pela legislação.
Quanto aos outros documentos de dívida, a abrangência dada pela Lei de Protesto à definição de documentos protestáveis permite concluir que, de forma muito abrangente, documentos de dívida são quaisquer títulos que contenham expressão de uma dívida líquida, certa e exigível (ABRÃO, 2011, p. 14).
Essa é a posição que tem prevalecido, por exemplo, nas Normas de Serviço do Estado de São Paulo (itens 20 e 22 do Capítulo XV), e do Estado do Mato Grosso (art. 487).
Em outros Estados, é possível encontrar conceitos que variam um pouco. No Distrito Federal, por exemplo, consideram-se títulos e outros documentos de dívida os títulos executivos, judiciais ou extrajudiciais, e os documentos representativos de obrigação em pecúnia (art. 83), conceito este parcialmente repetido nas normas do Espirito Santo (art. 735) e do Paraná (art. 744, § 4º).
Já em Alagoas (art. 1º do Título VII), no Amazonas (art. 194), no Ceará (art. 259), no Piauí (art. 291), no Rio de Janeiro (art. 975) e no Rio Grande do Sul (art. 714), qualquer documento representativo de obrigação econômica pode ser levado a protesto.
Lado outro, no Maranhão, não há menção há necessidade de a obrigação ser “econômica”, sendo admitido a protesto qualquer documento representativo de obrigação (art. 708).
No Pernambuco (arts. 494 e 495), já são admitidos a protesto qualquer dos títulos executivos extrajudiciais previstos no art. 784 do CPC, bem como qualquer documento representativo de dívida, desde que dotado dos atributos de certeza, liquidez e exigibilidade.
Na doutrina, Emanoel Macabu Moraes, por exemplo, defende que consoante uma interpretação sistemática e teleológica da legislação “só será possível protestar documentos de dívida que configurem título executivo judicial ou extrajudicial” (2004, p. 35).
Martha El Debs, por sua vez, define documento de dívida como “qualquer documento representativo de obrigação com conteúdo econômico, ou seja, de cunho pecuniário” (2020, p. 23).
Essa diretriz geral define, em regra, quais os títulos já admitidos pra protesto, embora nem sempre se concorde com suas conclusões.
O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, já se manifestou contrariamente a possibilidade do protesto do contrato de locação de bens imóveis, ao argumento de sua iliquidez (STJ, RMS 17.400/SP, 2011, on-line).
Não obstante, é expressa a possibilidade do protesto desses contratos nas normas da Corregedoria de Justiça do Estado do Mato Grosso, inclusive em relação aos encargos acessórios (como contas de telefone, água e energia elétrica), conforme previsto no art. 488, §§ 1º e 2º do Código de Normas local.
Por outro lado, vem sendo admitido o protesto de encargos condominiais inadimplidos (SANTOS, 2011, p. 187). Seguramente, deve ser resguardada a observância dos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade, tal como exigido nas normas do extrajudicial vigentes dos Estados do Amazonas (art. 195), da Bahia (art. 326, § 8º), do Mato Grosso (art. 488, § 3º), do Paraná (art. 744, § 3º), do Rio de Janeiro (art. 976, § 11) e de São Paulo (item 20.7 do Capítulo XV).
Quanto à autoria do protesto, a orientação da doutrina é, em geral, de imputá-la à parte, cabendo ao tabelião sua formalização, tão somente.
Essa é a posição de Fabio Ulhôa Coelho, para quem “o protesto deve-se definir como ato praticado pelo credor, perante o competente cartório, para fins de incorporar ao título de crédito a prova de fato relevante para as relações cambiais” (COELHO, 2019, v. I, n.p.).
Também de acordo com José Renato Nalini:
Encontrando-se o título formalmente regular, não pode o Escrivão se recusar ao protesto. Mesmo porque, não é ele quem protesta. Apenas viabiliza a instrumentalização do protesto do credor, que afirma haver procurado receber a importância consubstanciada na cártula e o não conseguiu (NALINI, 1986, n.p.).
Há vozes dissonantes na doutrina. Marcelo Fortes Barbosa Filho (1997) e Luiz Emygdio Franco da Rosa Junior (2011, p. 385), apenas para citar alguns deles, consideram o protesto um ato do tabelião. Levam em consideração, entre outros argumentos bastante robustos, que se o protesto fosse ato da parte interessada bastaria a apresentação para já existir o protesto.
Tem prevalecido, entretanto uma posição mais conciliadora entre as duas correntes, no intuito de tratar o protesto como um ato da parte e do Tabelião de Protesto.
Nesse sentido, Sérgio Luiz José Bueno anota que:
Podemos concluir que o protesto é, a um só tempo, ato da parte e do Tabelião de Protesto, sem que a autoria de um exclua a do outro, pois são consideradas as faces distintas da figura em exame, sendo perfeitamente possível conciliar essas posições que apenas aparentemente se antagonizam, mas na verdade se complementam (BUENO, 2017, p. 56).
Nesse mesmo sentido, Carlos Eduardo Elias de Oliveira (2020, n.p.) indica ser o apresentante o “senhor do protesto”, sendo, portanto, de sua responsabilidade o conteúdo deste ato, ressalvando ao tabelião a verificação de questões simplesmente de cunho formal.
O STJ, no REsp 1.398.356/MG, adotou posição compatível com a apresentada pelo doutrinador, ao indicar que o protesto não pode ser tido como ato do particular, mas do delegatário do serviço de protesto.
Com efeito, a doutrina bem anota que o protesto não é ato do particular, mas do delegatório do serviço público, devendo ser respeitado o procedimento legal. O particular apenas solicita, podendo o tabelião, depois de analisar os requisitos formais, negar-se a proceder à lavratura, caso encontre vício que justifique a negativa. (STJ, REsp n. 1.398.356/MG, 2016, on-line).
A análise deste ponto específico tem consequência práticas importantes, essencialmente ligados a imputação da responsabilidade pelo protesto, notadamente em relação ao ponto central desse estudo, relacionado à análise de prescrição.
Há diversas classificações para o protesto.
Quanto ao motivo, o protesto pode se dar por falta de pagamento – quando não foi feito o pagamento da dívida no vencimento –, por falta de aceite – quando o devedor recusa o aceite na letra de câmbio e na duplicata –, por falta de devolução – quando o título ou documento é enviado ao sacado para aceite, mas este não o restitui no prazo legal – e por falta de data de aceite – caso da letra de câmbio que é aceita, mas sem data de vencimento prevista, para determinar essa data.
Quando ao tipo, o protesto pode ser comum, quando objetiva provar o descumprimento de uma obrigação ou outra circunstância cambiária relevante, ou especial, quando lavrado para fins falimentares, nos termos do art. 23, parágrafo único, da Lei n. 9.492/1997.
Nos termos do art. 3º da Lei n. 9.492/1997, compete privativamente ao Tabelião de Protesto protocolar, intimar, acolher a devolução ou o aceite e receber o pagamento, bem como lavrar e registrar o protesto, acatar a desistência do credor, praticar averbações, prestar informações e fornecer certidões relativas a todos os atos praticados.
A sistemática contida na lei permite a delegação dessas atividades para escreventes autorizados, que poderão, dentre outros, registrar o protesto (art. 22, VIII da Lei n. 9.492/1997), cancelar o registro (art. 26, § 5º da Lei n. 9.492/1997) ou abrir livros (art. 33 da Lei n. 9.492/1997).
Ressalve-se, todavia, que os Tabeliães de Protesto de Títulos são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem os substitutos que designarem ou Escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso em desfavor deles (art. 38 da Lei n. 9.492/1997). Assim, a delegação não exclui a responsabilidade do Tabelião, como chefe do serviço, de responder pela sua regularidade.
O serviço de protesto tem, de acordo com a Lei de Protesto, dois livros obrigatórios, o Livro Protocolo e o Livro de Registro de Protesto (arts. 32 e 33 da Lei n. 9.492/1997). Há, ainda, outros livros obrigatórios previstos no Provimento CNJ n. 45/2015, comuns em relação a outras serventias, tais como o Livro Diário Auxiliar, Livro de Visitas e Correições e o Livro de Controle de Depósito Prévio.
Outros livros podem estar previstos nas normas Estaduais como obrigatórios ou até mesmo facultativos.
No que tange especificamente aos livros específicos previstos na Lei de Protesto, o Livro Protocolo é aquele onde consta o assento dos títulos e outros documentos de dívida protocolados no serviço de protesto. Nele são anotados o número do protocolo, a data da protocolização, a natureza do título ou outro documento de dívida, o valor da dívida, o nome do apresentante, o nome do devedor, e o registro de ocorrências – este último onde constará, conforme o caso, o destino do título protocolado, que pode ter sido pago, retirado por desistência, sustado, cancelado por decisão judicial, simplesmente protestado, ou devolvido por vício formal.
Servem basicamente para registrar o ingresso dos títulos e outros documentos de dívida na serventia. Cada uma dessas informações fica separada por colunas, organizadas em cada folha solta do livro, com escrituração diária, e tem ocorrido na prática de forma eletrônica, considerando a existência de softwares eficientes em uso nos tabelionatos de protesto para realização desse tipo de escrituração.
Lado outro, o livro de registro de protesto contém o assento do protesto lavrado em si, com todos os seus requisitos legais.
A Lei de Protesto ainda prevê a manutenção de arquivos, em conformidade com o art. 35 da Lei n. 9.492/1997, sendo eles: de intimações; de editais; de documentos apresentados para a averbação no registro de protestos e ordens de cancelamentos; de mandados e ofícios judiciais; de solicitações de retirada de documentos pelo apresentante; de comprovantes de entrega de pagamentos aos credores; e de comprovantes de devolução de documentos de dívida irregulares.
Ressalva-se que a legislação Estadual pode prever outra sistemática para o armazenamento de arquivos.
O procedimento do protesto é simples. A primeira etapa é a apresentação do título, que ocorre quando o apresentante, que não necessariamente deve ser o credor, se dirige ao Tabelião de Protesto de posse do título ou documento de dívida para requerer o protesto.
Veja-se que o procedimento do protesto é regido pelo princípio da rogação, também denominado instância, que veda ao tabelião agir de ofício no procedimento. Assim, apenas com a apresentação do título ou outro documento de dívida feita pelo interessado é que o tabelião pode dar início ao procedimento, e assim ocorre quando do cancelamento e da emissão de certidões, que também dependem de requerimento.
Anote-se que o princípio da rogação tem dupla aptidão, pois além de só permitir ao tabelião agir mediante provocação do interessado, também lhe veda deixar de agir quando provocado.
Assim, o tabelião não poderá negar-se a praticar os atos próprios da função pública que lhe foi confiada, ressalvado, obviamente, algum impedimento legal, ou quando qualificar negativamente o título, lançando recusa expressa por escrito e motivadamente. Nesse sentido o item 3 do Capítulo XV das Normas de Serviço do Estado de São Paulo.
A própria lei, entretanto, aponta exceções ao princípio da rogação. O art. 25 da Lei n. 9.492/1997, por exemplo, permite ao Tabelião agir de ofício para retificar erro material, por intermédio de averbação de retificação.
Apresentado o título, inicia-se o curso do prazo de três dias úteis para que o devedor efetue o pagamento (art. 12 da Lei n. 9.492/1997). Veja-se que, de acordo com a Lei de Protesto, esse prazo se inicia de imediato, independentemente da conclusão da qualificação do título e da realização da intimação, e exclui o dia do começo e inclui o do vencimento.
A ressalva ocorre apenas quando a intimação for efetivada no último dia do tríduo legal ou além dele, quando, excepcionalmente, o protesto será tirado apenas no primeiro dia útil subsequente (art. 13 da Lei n. 9.492/1997).
Chama-se a atenção, contudo, para disposições em sentido contrário em normas estaduais.
Algumas Corregedorias de Justiça estipularam, em suas normas de orientação do serviço extrajudicial, que o prazo de três dias úteis para pagamento conta-se apenas da intimação do devedor ou da publicação da intimação por edital.
É o caso das normas vigentes em Alagoas (art. 41, I do Título VII), no Amazonas (art. 230, I), no Ceará (art. 296, I), no Distrito Federal (art. 101), no Maranhão (art. 739, I), no Mato Grosso do Sul (art. 1.778), em Minas Gerais (art. 341, I), no Pará (art. 410), na Paraíba (art. 450, I), no Pernambuco (art. 523, I), no Rio Grande do Norte (art. 627), no Rio Grande do Sul (art. 741, I), e em Santa Catarina (art. 885).
Outras normas, entretanto, seguem a lei nacional, tal como ocorre na Bahia (art. 367, I), no Espirito Santo (art. 772), no Goiás (art. 102, § 7º), no Mato Grosso (art. 526), no Piauí (art. 297), no Paraná (art. 779), em Rondônia (art. 272), em Roraima (art. 399), no Sergipe (art. 220) e em São Paulo (item 43 do Capítulo XV).
A tendência é ultrapassar-se o que está previsto literalmente na Lei de Protesto, para considerar a contagem do prazo a partir da intimação, tal como previsto na maior parte das normas estaduais, por ser mais consentâneo com a boa-fé e a necessidade de se notificar o devedor antes de abrir qualquer prazo em seu desfavor.
Martha El Debs, para quem a decisão parece ser acertada, enumera diversas vantagens na consideração do termo inicial do tríduo como sendo a data da intimação do devedor. Segundo ela:
O tabelião teria mais tempo hábil para uma qualificação mais minuciosa; a possibilidade de pagamento é maior, além de assegurar os princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa, que assegura a igualdade, de forma que todos os intimados terão os mesmos três dias para elaborar sua defesa, negociar a dívida ou efetuar o pagamento (EL DEBS, 2020, p. 1563).
Veja-se, por exemplo, que a norma do Estado do Rio de Janeiro, a despeito de inicialmente prever contagem de prazo de forma semelhante à Lei de Protesto, sofreu alteração em 2017, por força do Provimento CGRJ n. 06, para que o tríduo legal passasse a ser contado da intimação do devedor, em consonância com a maior parte das normas estaduais acima relacionadas (art. 987, I).
Em localidades onde exista mais de uma serventia de protesto, os títulos estarão sujeitos a prévia distribuição, cuja atividade será organizada pelos próprios tabelionatos, ou por Ofício de Distribuição caso já existente (art. 7º da Lei n. 9.492/1997).
A apresentação dos títulos e outros documentos de dívida, tratando-se de protesto por falta de pagamento, deve ocorrer, em regra, no lugar do pagamento.
Há de se observar a norma regulamentar estadual, que pode designar lugar diverso, ou dispor sobre casos especiais, ou ainda estipular regra específica para o caso de protesto especial (falimentar). Conforme Sérgio Luiz José Bueno, “deve a apresentação a protesto se dar no lugar designado para tanto no título ou no documento, na lei, ou nas normas regulamentares” (2017, p. 189).
No Estado do Acre, por exemplo, a apresentação deve ocorrer no lugar do pagamento declarado no documento, ou na falta de indicação correspondente, do domicílio civil de qualquer dos devedores principais respectivos (art. 422). Disposição semelhante pode ser encontrada nas normas de serviço do Pará (art. 400) e do Rio de Janeiro (art. 976).
Para os casos em que o título ou documento não expresse o lugar do pagamento, o mesmo autor propõe critérios para definição de qual o tabelionato de protesto competente para a sua realização, quais sejam: o critério legal, por meio do qual a lei específica do título ou do documento de dívida indica o lugar do pagamento; o critério legal subsidiário, quando a própria lei define uma solução caso o título não tenha praça para pagamento; e o critério normativo subsidiário, quando a solução está proposta no Código de Normas local (BUENO, 2017, p. 189).
Com base nessa proposta, seria possível imputar que, para a letra de câmbio, o Tabelião competente é o da praça de pagamento contido na cártula (art. 28 do Decreto do Poder Legislativo n. 2.044/1908). Caso a letra não tenha indicação da praça, prevalece o lugar designado ao lado do nome do sacado – critério legal subsidiário (art. 2º do Decreto n. 57.663/1966).
Feita a apresentação, e não sendo o caso de distribuição do título, ou sendo ele proveniente da distribuição, o Tabelião promove a protocolização do título ou documento de dívida no Livro de Protocolo, no prazo de vinte e quatro horas, e emite imediatamente o recibo ao apresentante, nos termos do art. 5º, parágrafo único da Lei n. 9.492/1997.
Feita a qualificação do título (cujos detalhes serão tratados na sequência), não havendo qualquer óbice ao protesto, o Tabelião expede a intimação do devedor.
A intimação será expedida para o endereço fornecido pelo apresentante, restando cumprida quando comprovada a sua entrega no mesmo endereço (art. 14 da Lei n. 9.492/1997).
Veja-se que a lei não exige a intimação pessoal, bastando que seja entregue no endereço do devedor, a quem quer que ali se encontre e se disponha a recebe-la (BUENO, 2017, p. 215).
Nesse mesmo sentido, Vicente Amadei defende a desnecessidade da entrega pessoal ao devedor, bastando que a intimação seja entregue no seu endereço, podendo ser recebida por qualquer pessoa da residência (AMADEI; DIP, 2004, p. 112).
O endereço a ser indicado na intimação é aquele fornecido pelo próprio apresentante, consoante o art. 14 da Lei n. 9.492/1997. A prudência, contudo, recomenda que, caso o Tabelião de qualquer forma obtenha outro possível endereço do devedor, realize a intimação também nesse endereço antes de promover a intimação por edital.
Isto porque, consoante a disciplina prevista no Código de Processo Civil, o edital só é utilizado quando incerto ou desconhecido o endereço do devedor (arts. 256, inciso II e 258, ambos do CPC). Mutatis mutandis, no procedimento do protesto, o edital é realizado nessas hipóteses (localização incerta ou ignorada do devedor, ou este for pessoa desconhecida), e também quando ninguém no endereço indicado se disponha a receber a intimação, ou ainda quando o devedor seja residente ou domiciliado fora da competência territorial do Tabelião.
Sobre esta última hipótese, contudo, a jurisprudência tem orientado no sentido de que é necessário, antes de se promover a intimação por edital, realizar a remessa de intimação por via postal, por se tratar de medida mais consentânea com a segurança jurídica dos atos praticados, bem como com o dever de informação e publicidade que deve nortear a atividade dessa serventia.
Assim decidiu o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do REsp n. 1.398.356/MG (STJ, 2016, on-line). Esse entendimento vem sendo positivado pelas normas regulamentares dos Estados, tal como ocorre no Acre (art. 469), no Goiás (art. 102, § 7º) e em São Paulo (item 44 do Capítulo XV).
Transcorrido o tríduo legal sem o pagamento, e não tendo sido promovido a sua retirada ou suspensão por qualquer motivo, será promovida a lavratura do registro de protesto.
2.3.1. A questão da qualificação dos títulos
Considerando a importância da qualificação do título para os estudos propostos no presente trabalho, optou-se por, em tópico próprio, tratar com profundidade do instituto da qualificação.
Qualificação (substantivo feminino) significa, dentre outros, a atribuição de qualidade, nome ou título a alguma coisa (MICHAELIS, on-line). Provém do latim qualis e facere, e entre as suas várias acepções registra o sentido de avaliação (apreciação), ou “um juízo valorativo sobre alguém ou alguma coisa” (ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA, 2001, p. 3020).
Pode significar a emissão de uma opinião a respeito de algo, ou seja, de considerar algo ou alguém apto, idôneo, capacitado, e também pode ser sinônimo de classificar (JACOMINO, 2013, n.p.).
Consoante a definição de Sérgio Luiz José Bueno, a qualificação é:
Ato do Tabelião de Protesto consistente em examinar detidamente o título ou documento de dívida em seus requisitos formais. Cabe a ele, ainda, verificar a presença de elementos de ordem procedimental, ou seja, a presença de outros requisitos extrínsecos (em relação ao objeto da apresentação) exigidos por lei ou por norma regulamentar. Como resultado dessa verificação, o tabelião emite juízo positivo ou negativo de protestabilidade (BUENO, 2017, p. 201).
Ricardo Dip, por sua vez, conceitua a qualificação como:
Qualificar-se é, pois, ter uma dada qualidade em ordem a determinado fim. Qualificar é reconhecer num sujeito determinado (que alguns chamam de objeto material) os predicados (ou qualidade) para atingir certos fins. Ex.: um avião se qualifica como meio de transporte modernamente hábil, isto é, possui qualidade para realizar os transportes de nossos tempos; reconhecer no avião essa qualidade, é qualificá-lo para o fim proposto. A qualidade é um acidente dos entes, categoria especial que é a diferença da substância (DIP, 1992, p. 39).
É por meio da qualificação que o Tabelião examina os requisitos extrínsecos (caracteres formais) do título ou outros documentos de dívida, negando seguimento aqueles que apresentarem vícios (art. 9º da Lei n. 9.492/1997).
Para Sérgio Jacomino, hoje a qualificação registral (ou registrária) é a denominação corrente para designar a atividade do oficial encarregado do registro que, ao receber um título, com todo o apuro técnico e cuidado formule um juízo para determinar a sua aptidão para produzir os efeitos esperados e previstos pelo ordenamento jurídico (JACOMINO, 2013, n.p.).
Reinaldo Velloso dos Santos (2012, n.p.), por sua vez, indica que a qualificação notarial está atrelada à ideia da legalidade e independência da função notarial, e consiste em uma série de procedimentos intelectivos, por meio do qual o tabelião aprecia, livremente, de acordo com a sua convicção, a viabilidade da prática do ato solicitado, tanto no aspecto subjetivo, como objetivo; analisa a documentação apresentada; considera as disposições legais e normativas; e ao final, emite um juízo valorativo, admitindo ou recusando a prática do ato, ou condicionando-o ao atendimento de exigências.
A qualificação, consoante a disciplina legal, deve ater-se a características formais do título, mas também deve analisar requisitos procedimentais do protesto.
O Tabelião não pode, nessa etapa, analisar o negócio jurídico subjacente ao título. Assim, o protesto de uma duplicata, por exemplo, não pode ser obstado pelo fato de a mercadoria ter sido entregue ou não, ou se esta foi entregue com defeitos.
Carlos Eduardo Elias de Oliveira aponta que a qualificação de um título "é a análise feita pelo tabelião a fim de verificar a viabilidade jurídica do protesto", e nesse caso, "não cabe ao tabelião, por exemplo, verificar eventual obstáculo material à cobrança do título, como a existência de eventual pagamento da dívida perante o credor" (2020, n.p.).
A amplitude do que se pode considerar como vício formal apto a ensejar a rejeição do título pode encontrar interpretações dissonantes nos Códigos de Normas estaduais.
No Estado do Mato Grosso do Sul (art. 1.771) em Alagoas (art. 14, § 1º do Título VII), no Amazonas (art. 202, § 3º) no Ceará (art. 262), no Maranhão (art. 710), na Paraíba (art. 429), no Rio de Janeiro (art. 977, § 1º) e no Rio Grande do Sul (Art. 716, § 1º), por exemplo, não cabe ao tabelião investigar a falsidade do documento apresentado, ante expressa previsão da vedação.
Ademais, no Ceará não cabe ao tabelião, expressamente, sequer investigar prazos, de qualquer natureza, nos títulos e outros documentos de dívida submetidos a protesto (art. 298).
Por sua vez, no Estado do Acre, é inadmissível o protesto quando constatado o abuso do direito por parte do apresentante (art. 453).
Lado outro, em Minas Gerais, os tabeliães de protesto estão autorizados a negar seguimento aos títulos apresentados quando, segundo sua prudente avaliação, houver fundado receio de utilização do instrumento com intuito emulatório do devedor ou como meio de perpetração de fraude ou de enriquecimento ilícito do apresentante (art. 327, § 1º).
Entretanto, algumas questões são pacificadas na doutrina.
Os títulos de crédito, por exemplo, devem conter todos os requisitos formais legais previstos em lei.
No caso do cheque, por exemplo, são elementos obrigatórios a denominação “cheque” inscrita no contexto do título, a ordem incondicional de pagar quantia determinada, o nome da instituição financeira sacada, a indicação do lugar do pagamento, a indicação da data e do lugar de emissão e a assinatura do emitente ou mandatário com poderes especiais (art. 1º da Lei n. 7.357/1985).
Já no caso da duplicata, são elementos que o título deve conter: a denominação “duplicata”, a data de sua emissão e o número de ordem, o número da fatura, a data certa do vencimento ou a declaração de ser a duplicata à vista, o nome e o domicílio do vendedor e do comprador, o valor a pagar, a praça de pagamento, a cláusula à ordem, a declaração do reconhecimento de sua exatidão e da obrigação de pagá-la, a ser assinada pelo comprador, como aceite, cambial, e a assinatura do emitente (art. 2º, § 1º da Lei n. 5.474/1968).
A letra de câmbio, por sua vez, conterá: a denominação “letra de câmbio” ou equivalente, a soma de dinheiro a pagar e a espécie de moeda, o nome da pessoa que deve pagá-la, o nome da pessoa a quem deve ser paga, e a assinatura do próprio punho do sacador ou do mandatário especial (art. 1º do Decreto n. 2.044/1908).
Lado outro, a nota promissória deve conter: a denominação de “Nota Promissória” ou termo correspondente, a soma de dinheiro a pagar, o nome da pessoa a quem deve ser paga e a assinatura do próprio punho da emitente ou do mandatário especial (art. 54 do Decreto n. 2.044/1908).
A cédula de crédito bancário, por fim, deverá conter os seguintes requisitos essenciais: a denominação “Cédula de Crédito Bancário”, a promessa do emitente de pagar a dívida em dinheiro, certa, líquida e exigível no seu vencimento ou, no caso de dívida oriunda de contrato de abertura de crédito bancário, a promessa do emitente de pagar a dívida em dinheiro, certa, líquida e exigível, correspondente ao crédito utilizado, a data e o lugar do pagamento da dívida e, no caso de pagamento parcelado, as datas e os valores de cada prestação, ou os critérios para essa determinação, o nome da instituição credora, podendo conter cláusula à ordem, a data e o lugar da emissão da cédula e a assinatura do emitente e do terceiro garantidor, ou dos mandatários (art. 29 da Lei n. 10.931/2004).
A ideia de que os títulos devem conter todos esses requisitos é essencial para o princípio da literalidade, segundo o qual os títulos de crédito devem possuir todas as informações necessárias ao exercício do direito nele mencionado.
Em determinada situação, por exemplo, a Corregedoria-Geral de Justiça de São Paulo já obstou o protesto de cheque com valor por extenso incompreensível, pois a indeterminação da quantia importava na não observância dos requisitos do mencionado título expostos no art. 1º da Lei n. 7.357/1985, não sendo possível superar o vício, que fere o princípio da literalidade (CGSP, Processo n. 211.185/2017, 2018, on-line).
Há, por sua vez, uma outra decisão da CGSP que veda o protesto de títulos ditos cambiários quando impossível a identificação do ato realizado (CGSP, Processo n. 161.302/2018, 2019, on-line).
Anote-se que é possível que a própria lei do título dispense algum requisito, sem que fique configurada a ofensa a algum dos princípios cambiários.
Para o caso da duplicata, veja-se, a própria legislação do título de crédito permite que seu protesto ocorra por simples indicação, ou seja, sem a necessidade de apresentação da duplicata (art. 13, § 1º da Lei n. 5.474/1968).
Ademais, a Lei n. 13.775/2018 autoriza a emissão de duplicatas sob a forma escritural, ou seja, por intermédio de “lançamento em sistema eletrônico de escrituração gerido por quaisquer das entidades que exerçam a atividade de escrituração de duplicatas escriturais” (art. 3º da Lei n. 13.775/2018). As duplicatas emitidas dessa forma seguem sendo admitidas como títulos executivos extrajudiciais, por força do art. 7º da mesma lei, e são admitidas a protesto, mediante a apresentação de extrato (art. 8º, § 2º da Lei n. 9.492/1997).
Ressalte-se, entretanto, que apenas os títulos de crédito típicos têm essa estrutura definida em lei. Em relação aos títulos de crédito atípicos, e aos outros documentos de dívida, deve-se observar, como visto anteriormente, se as informações nele contidas pressupõem a presença de uma obrigação líquida, certa e exigível.
Tome-se como exemplo decisão da Vara de Registros Públicos de São Paulo que permitiu o protesto de contrato de honorários advocatícios dispensada a assinatura de duas testemunhas (1VRPSP, Pedido de Providências n. 1027493-62.2019.8.26.0100, 2019, on-line).
Ademais, deve ser observado o princípio da especialidade subjetiva.
Com base nisso, o devedor precisa ser identificado adequadamente, sendo exigida a indicação de documentos pessoais para se evitar a homonímia, problema histórico decorrente dos apontamentos que a legislação vem buscando superar.
Nas normas de serviço do Estado do Acre (art. 425), do Ceará (art. 265), do Distrito Federal (art. 83, parágrafo único), do Espirito Santo (art. 736), do Mato Grosso do Sul (art. 1.767), do Rio de Janeiro (art. 975, parágrafo único) e de Roraima (art. 379), por exemplo, os títulos e documentos de dívida só serão recepcionados se identificado o devedor por meio do número do CPF ou, na sua falta, do número do documento de identidade, ou do número do CNPJ, no caso de pessoa jurídica.
Em relação aos valores cobrados pelo credor do título ou outro documento de dívida, convém destacar que a responsabilidade pelo valor indicado é apenas do apresentante.
Carlos Eduardo Elias de Oliveira (2020, n.p.) indica que, em relação ao valor nominal, cabe ao tabelião verificar apenas se o valor indicado no título condiz com o cobrado; já em relação aos encargos acessórios, a competência, consoante defende, limita-se a identificar se esse acréscimo é admissível pela lei (an debeatur), mas não abrangeria a obrigação de conferir a exatidão do valor calculado (quantum debeatur).
Destaca o jurista:
Tabelião não é contador! Isso, porque o art. 11 da lei 9.492/1997 estabelece que é o apresentante - e não o tabelião! - quem indica o valor do título que foi sujeito a algum tipo de correção, levando em conta a data da apresentação do título. Ademais, o art. 40 da Lei de Protesto prevê o termo inicial dos juros e da correção monetária a partir da data do registro do protesto, salvo se houver marco diverso pactuado, o que deixa implícito que o tabelião de protesto tem dever de viabilizar a cobrança dos encargos acessórios (OLIVEIRA, 2020, n.p.).
Em consonância com esse entendimento, prevê a normativa estadual de Pernambuco que o valor do documento declarado pelo apresentante corresponderá a seu respectivo valor original, podendo acrescer, contudo, sob sua exclusiva responsabilidade: juros de mora; encargos legais ou expressamente convencionados; atualização monetária; atualização cambial, nos contratos pactuados em moeda estrangeira; e honorários advocatícios, cabendo, em qualquer caso, ao apresentante juntar planilha de cálculo especificando os valores acrescidos para fins de responsabilidade (art. 498, §§ 4º e 5º).
Constatado o vício formal, o título ou outro documento de dívida será devolvido ao apresentante, com a elaboração de uma nota devolutiva formal, que especifique de forma clara os motivos da devolução, todos aqueles que tenham obstado o ingresso do título do Tabelionato de Protesto.
Nesse caso, descabe a cobrança de emolumentos, consoante recentemente regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça (art. 3º do Provimento CNJ n. 89/2019).
Diferente do que consta na Lei de Registros Públicos quanto ao registro de imóveis, a Lei n. 9.492/1997 não assegura prazo para regularização da omissão ou emenda na apresentação. Assim, devolvido o título apresentado, compete ao apresentante regularizar as exigências e efetuar nova apresentação.
É possível utilizar-se o procedimento de dúvida registral caso o apresentante não concorde com as exigências do Tabelião constantes na nota devolutiva.
O procedimento de dúvida é um procedimento administrativo, de competência do titular da serventia extrajudicial, a requerimento do apresentante, podendo ser também formulado diretamente por ele no caso de inércia do oficial de registro ou tabelião (o que se chama “dúvida inversa”), para submeter ao juiz competente, de acordo com a legislação Estadual, que geralmente delega essa competência ao juiz da Vara de Registros Públicos, as situações em que houver divergência sobre a exigência feita pelo delegatário e o entendimento do apresentante, submetendo ao juiz a análise da legalidade e correção da exigência que foi feita pelo titular como condição para a prática de um ato.
A possibilidade de o Tabelião de Protesto suscitar a dúvida é tranquila na doutrina e está expressamente prevista em algumas normas estaduais, como as do Espirito Santo (art. 734) e Rio de Janeiro (art. 982 e 983).
Algumas normas, como as do Maranhão, chegam a determinar a observância de providências específicas relacionadas à dúvida registral, como a necessidade de que sejam indicadas por escrito as exigências, de forma clara, objetiva e fundamentada, indicando o dispositivo legal, e de uma só vez, e com assinatura do responsável (art. 715, § 1º).
O procedimento se inicia com a indicação, pelo apresentante, de que deseja suscitar a dúvida.
Demonstrada essa intenção, o Tabelião deve colher requerimento por escrito da dúvida e juntar toda a documentação pertinente, inclusive o próprio título, os documentos que lhe acompanham, e a nota devolutiva
Em seguida, elabora razões escritas acerca dos motivos que obstaram o protesto e intima o interessado para impugnar a dúvida, no prazo de quinze dias, comprovando essa intimação por documento que será encaminhado junto com os demais e instruirão o processo (art. 198 da LRP).
Reunidos os documentos, os autos são encaminhados para o juízo competente, onde se aguardará o prazo para impugnação.
Se impugnada a dúvida, o Ministério Público é ouvido no prazo dez dias (art. 200 da LRP), e em sequência, se não forem requeridas diligências instrutórias, o juiz proferirá decisão, no prazo de quinze dias (art. 201 da LRP).
Essa decisão é chamada pela legislação de “sentença”. Caso o oficial esteja correto, a dúvida é julgada procedente e os documentos são todos devolvidos à parte interessada.
Caso negativo, estando o apresentante correto nas razões deduzidas, a dívida é julgada improcedente, de modo que será realizado o protesto.
Dessa “sentença” cabe recurso, denominado “apelação”, que será julgado pelo órgão competente definido pela lei Estadual (art. 202 da LRP), competência que geralmente reservada à Corregedoria-Geral de Justiça do respectivo Tribunal.
Diferentemente do registro de imóveis, não há prioridade estabelecida para o protocolo do título, mesmo porque essa prioridade é incompatível com o regime jurídico do protesto, que não envolve ingresso de direitos reais no fólio real, tal como ocorre no art. 186 da Lei n. 6.015/1973.
Assim, não há o prazo para regularização das exigências formuladas pelo tabelião, de modo que, atendido o contido na nota devolutiva, o título ou outro documento de dívida deverá ser apresentado novamente para protesto.
Após abordar os pontos mais relevantes para a compreensão acerca da natureza dos serviços notariais e de registro, do protesto e do tabelionato, passa-se a analisar os aspectos principais do instituto da prescrição, notadamente em relação aos seus fundamentos históricos e tratamento legal, com ênfase, na sequência, à prescrição dos títulos e outros documentos de dívida submetidos ao protesto extrajudicial.
Para Pontes de Miranda (1954/1956, v. 6, p. 100), a prescrição é uma exceção que alguém tem contra o que não exerceu, durante um lapso de tempo fixado em norma, sua pretensão ou ação.
Para Clóvis Bevilaqua, prescrição seria “a perda da ação atribuída a um direito, e de toda a sua capacidade defensiva, em consequência do não uso dela, durante determinado espaço de tempo” (1927, v. 1, obs. 1 ao art. 161).
Caio Mario da Silva Pereira (2017, v. 1, n.p.), por sua vez, entende que a prescrição é o modo pelo qual se extingue um direito (não apenas a ação) pela inércia do titular durante certo lapso de tempo.
Câmara Leal, por fim, conceitua prescrição como "extinção de uma ação ajuizável, em virtude da inércia de seu titular durante um certo lapso de tempo, na ausência de causas preclusivas de seu curso" (1982, p. 12).
A prescrição, tal como conhecemos, surgiu no direito romano pós-clássico e justinianeu, “quando a exigência de certeza nas relações jurídicas se torna essencial na vida negocial, e então se faz exprimir na legislação imperial” (CIMMA, 1996. v. XIV, p. 253).
Conforme destaca Humberto Theodoro Junior (2018, n.p.), no tempo das legis actiones, a regra era a perpetuidade das ações e mesmo no período formulário, o fenômeno foi apenas percebido esporadicamente sem, entretanto, passar por uma elaboração sistemática, jurisprudencial ou legislativa.
Apenas nos termos de Teodósio II, foram introduzidos, na via legislativa, os primeiros limites temporais para exercício dos direitos em juízo (AMELOTTI, 1958, p. 4).
Essas limitações, pois, não foram colocadas diretamente contra os direitos, mas diziam respeito a possibilidade de fazê-los atuar em juízo, por meio de uma ação, uma exceção ou um interdito (THEODORO JUNIOR, 2018, n.p.).
Ultrapassado o termo previsto, poderia o réu paralisar a demanda mediante uma exceção, com eficácia exclusivamente processual, não interferindo na possibilidade, por exemplo, de pagamento da dívida, que seguiria válida mesmo após a prescrição e sem a possibilidade de exercício de ação de restituição (GALLO, 1996, v. XV, p. 248).
Como destaca Humberto Theodoro Junior, essa visão de prescrição construída em Roma passou pela Idade Média e chegou à Inglaterra, vigendo ainda desta maneira no Código Napoleão (art. 2.105), e nos Códigos civis elaborados na Alemanha (art. 194) e na Suíça (art. 127), no começo do Século XX (THEODORO JUNIOR, 2018, n.p.).
Essa visão de prescrição foi abandonada pelo direito civil italiano, que no Código Civil declarou, textualmente, no seu art. 2.934, que os próprios direitos, e não somente a ação, se extinguiriam com o decurso do tempo (ITALIA, 1942).
Nessa divergência com o direito italiano, o Código Civil de 2002 preferiu seguir a tradição romana consagrada no B.G.B., para considerar a prescrição causa de extinção da pretensão, e não do direito subjetivo material, consoante a interpretação literal do disposto no art. 189 do CC.
Na mesma linha previram o Código Civil do Peru[3], o Espanhol[4] e o Russo[5].
Tanto o é que o Código Civil de 2002 repetiu, em essência, no seu art. 882 a possibilidade válida de solver dívida prescrita sem direito de repetição.
Nessa ótica, expõe o Código Civil, em seu art. 189 que, violado o direito, nasce para o titular uma pretensão, que se extingue, pela prescrição, nos prazos previstos em lei.
A prescrição, portanto, “faz extinguir o direito de uma pessoa de exigir de outra uma prestação (ação ou omissão), ou seja, provoca a extinção da pretensão, quando não exercida no prazo definido na lei.” (THEODORO JUNIOR, 2018, n.p.)
É clara, pois, a opção do Código Civil pela corrente oriunda do direito alemão, de modo a considerar que a prescrição extingue a ação, e não o direito em si. Da redação do art. 882 do Código Civil extrai-se que o direito, embora prescrito, continua “vivo”.
Se o Código considerasse extinto o direito de crédito, o pagamento da dívida prescrita geraria uma transferência desprovida de causa que, em última análise, autorizaria quem pagou a exigir a restituição do valor.
Daí, portanto, se concluiu que a prescrição atinge a pretensão de direito material, a Anspruch do direito alemão, que consiste na exigibilidade, judicial ou não, daquele direito (SCHREIBER, et. al., 2019, n.p.).
Segundo Anderson Schreiber [et al.]:
A pretensão não se confunde com o direito de ação: é noção de direito material e somente existe no direito subjetivo, que atribui ao seu titular o direito a uma prestação. Celebro com o vendedor um contrato de compra e venda de um livro, a ser entregue em três dias. Passados os três dias, se não tiver sido efetuada a prestação, há violação ao meu direito subjetivo de receber o bem nos termos contratados. Inicia-se, então, o prazo para o exercício da pretensão. A chamada teoria da pretensão foi expressamente acolhida pelo Código Civil de 2002, em seu art. 189. Pode-se afirmar, portanto, que, de acordo com o direito positivo brasileiro, a prescrição conduz à extinção da pretensão. Perde o titular do direito não o direito material em si, nem o direito de ação, hoje considerado abstrato e autônomo, mas tão somente a faculdade de exigir o atendimento daquele direito material. A prescrição deve, então, ser definida como a extinção de uma pretensão pelo decurso de certo lapso de tempo previsto em lei (SCHREIBER, et. al., 2019, n.p.).
Para parte da doutrina, existem duas espécies de prescrição, com efeitos opostos: a) a prescrição extintiva, que o Código Civil chama simplesmente de prescrição; e b) a prescrição aquisitiva, denominada pelo Código como usucapião, em que o lapso de tempo não extingue, mas cria um direito real de propriedade para aquele que tenha a coisa para si por certo lapso de tempo, cumpridos outros requisitos (SCHREIBER et. al., 2019, n.p.).
Carlos Roberto Gonçalves (2020, v. 2, p. 547) registra que, seja como for, em um ou outro caso, ocorrem dois fenômenos, alguém ganha e, em consequência, alguém perde, sendo o elemento “tempo” comum à ambas as espécies, tanto que o art. 1.244 do Código Civil diz que as causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição também se aplicam à usucapião.
A prescrição tem, de acordo com Sílvio Venosa (2017, n.p.), os seguintes requisitos: existência de ação exercitável; inércia do titular da ação; continuidade dessa inércia por certo tempo; ausência de fato impeditivo, suspensivo ou interruptivo do curso da prescrição.
Esses requisitos também são enumerados por Maria Helena Diniz (2012, v. 1, p. 434).
No que tange a diferença entre prescrição e decadência, o critério mais aceito na doutrina é aquele apresentado por Agnelo Amorim Filho.
Para o mencionado estudioso, que faz uso de um critério com “bases científicas”, sujeitam-se a prescrição as ações de natureza condenatória, em que se pretende a imposição ao cumprimento de uma prestação. Só as ações condenatórias podem, portanto, sofrer os efeitos da prescrição, pois são as únicas ações donde irradiam pretensões. Lado outro, direitos potestativos, que são direitos sem pretensão ou prestação, insuscetíveis de violação, dão origem a ações de natureza constitutiva ou desconstitutiva, e estas sujeitam-se a prazos decadenciais, quando houver prazo fixado em lei (AMORIM FILHO, 1960, n.p.).
Assim, é possível afirmar que a prescrição está ligada as ações que versam sobre direitos subjetivos strictu sensu, tal como o direito de crédito perante um devedor, enquanto a decadência está relacionada à direitos potestativos ou formativos, isto é, à constituição ou desconstituição de situações jurídicas, a exemplo de uma ação anulatória de determinado ato ou negócio jurídico.
A prescrição encontra fundamento tranquilo na necessidade de satisfazer um interesse geral de segurança e certeza no meio social. É, conforme Yussef Said Cahali, norma de ordem pública, cujo objetivo é resguardar a segurança do comércio jurídico através da consolidação das situações jurídicas pelo decurso do tempo, assim como pela necessidade de procurar uma prova de liberação de um devedor que pagou, mas não recebeu a quitação ou a perdeu (CAHALI, 2012. p. 22).
Tem respaldo na própria Constituição Federal, que se encarrega do compromisso com a segurança, mesmo que jurídica (art. 5º, caput), o que também elucida o seu caráter de ordem pública, lhe possibilitando o reconhecimento de ofício pelo juiz, dada a revogação do art. 194 do Código Civil.[6]
Outros dispositivos também indicam esse caráter de ordem pública da prescrição, tal como a impossibilidade de os prazos de prescrição serem alterados por acordo entre as partes (art. 192 do CC), e o fato de poder ser alegada em qualquer grau de jurisdição, independentemente de preclusão (art. 193 do CC).
De igual forma Savigny defende que o fundamento principal da prescrição é o de fixar relações incertas, suscetíveis de serem submetidas a apreciação, encerrando-se, após determinado lapso de tempo, a incerteza suscitável pelas partes que não foi submetida a apreciação do juiz (SAVIGNY, 1893. v. V, § 237, p. 309).
Sublinha Humberto Theodoro Junior que a prescrição coloca em confronto dos imperativos casos ao direito, a segurança nas relações jurídicas e o direito à busca pela justiça. De acordo com o autor:
Quando se reconhece a pretensão – força de coagir o violador do direito a realizar a prestação a que faz jus o titular do direito violado – atua-se em nome da justiça. A busca eterna da justiça, porém, longe de realizar a plenitude da paz social, gera intranquilidade e incerteza, no tráfico jurídico que urge coibir. É preciso, por isso, estabelecer um modo harmônico de convivência entre os dois valores em choque. Isto a lei faz da seguinte maneira: estipula um prazo considerado suficiente para que a pretensão seja exercida, de maneira satisfatória, conferindo-lhe todo amparo do poder estatal e, com isso, atende aos desígnios de justiça. Além do termo desse prazo, se o credor não cuidou de fazer valer a pretensão, dando ensejo a supor renúncia ou abandono do direito, negligência em defendê-lo, ou até mesmo presunção de pagamento, a preocupação da lei volta-se, já então, para os imperativos de segurança e as exigências da ordem e da paz sociais, que passam a prevalecer sobre a justiça e os direitos individuais (THEODORO JUNIOR, 2018, n.p.).
Anderson Schreiber [et. al.], delineia que a prescrição tem duplo fundamento, pois além de contribuir para a estabilidade das relações sociais, tem como fundamento também sancionar a inércia do titular do direito que deixa de exercê-lo:
A prescrição tem, segundo a doutrina, duplo fundamento. Primeiro, destina-se a atribuir estabilidade às relações sociais, consolidar situações jurídicas que se preservaram inalteradas no tempo. A prescrição desempenha, assim, um papel apaziguador, vinculado às aspirações de segurança jurídica e, por isso mesmo, considerado hoje um instituto de ordem pública. A doutrina indica, ainda, um segundo fundamento para a prescrição: sancionar a inércia do titular do direito que deixa de exercê-lo. Invoca-se aqui o brocardo latino dormientibus non succurrit jus: o direito não socorre a quem dorme. Resgata-se, no mesmo sentido, a máxima iura scripta vigilantibus: as leis são escritas para os vigilantes (SCHREIBER et. al., 2019, n.p.).
Câmara Leal, fundamentado na doutrina romana, arremata:
O interesse público, a estabilização do direito e o castigo à negligência; representando o primeiro o motivo inspirador da prescrição; o segundo, a sua finalidade objetiva; o terceiro, o meio repressivo de sua realização. Causa, fim e meio, trilogia fundamental de toda instituição, devem constituir o fundamento jurídico da prescrição (CAMARA LEAL, 1982, p. 16).
Reconhece a lei, entretanto, que algumas pretensões não estão sujeitas à prescrição. Sublinha-se as ações ligadas ao direito de propriedade, embora sujeitas à usucapião, forma de prescrição aquisitiva, como a ação reivindicatória (art. 1.228 do CC), ação demarcatória (art. 1.297 do CC) e de divisão de coisa comum (art. 1.320 do CC). Isso decorre da perpetuidade do direito, incompatível com a prescrição.
Pretensões decorrentes do estado e da capacidade das pessoas também não se sujeitam a prazo para exercício da pretensão em juízo, tal como ocorrem nas ações de investigação de paternidade[7] ou da negatória dessa relação (STJ, REsp n. 576.185/SP, 2009, on-line). Igualmente, ações que protegem os direitos da personalidade e as de exercício facultativo (ou potestativo) também não se submetem a prazo prescricional (GONÇALVES, 2020, v. I, p. 550).
O Código Civil admite a renúncia da prescrição, de forma expressa ou tácita (art. 191 do CC).
De acordo com Yussef Said Cahali, a renúncia tácita ocorre quando o renunciante, mesmo sem dizer que renuncia à prescrição, pratica atos que não podem ser interpretados senão como renúncia. Assim, “se firma acordo confessando a dívida na qual estão envolvidos cheques prescritos, ou, como define o art. 2.937 do CC italiano, quando resulta de um fato incompatível com a vontade de se valor da prescrição” (CAHALI, 2012. p. 48).
A renúncia, seja como for, só pode ocorrer após consumada a prescrição, dado o caráter de ordem pública conferido ao instituto.
O termo inicial do prazo prescricional surge com o nascimento da pretensão, ou seja, com a possibilidade de seu exercício em juízo, tal como dispõe o indigitado art. 189 do Código Civil.
É o que se convém chamar de actio nata. A seu respeito, o STJ tem se inclinado a adotar uma teoria subjetivista para sua fixação, indicando que, para o termo inicial do prazo, há de se verificar a existência de um elemento subjetivo – o conhecimento acerca da possibilidade do exercício da pretensão.
No julgamento do REsp n. 1.460.474/PR, registrou-se que:
O STJ possui entendimento sedimentado na teoria da actio nata acerca da contagem do prazo prescricional, segundo a qual a pretensão nasce quando o titular do direito subjetivo violado obtém plena ciência da lesão e de toda a sua extensão, bem como do responsável pelo ilícito, inexistindo, ainda, qualquer condição que o impeça de exercer o correlato direito de ação (STJ, REsp n. 1.460.474/PR, 2018, on-line).
Também segundo o tribunal, em outro aresto:
O instituto da prescrição tem por escopo conferir segurança jurídica e estabilidade às relações sociais, apenando, por via transversa, o titular do direito que, por sua exclusiva incúria, deixa de promover oportuna e tempestivamente sua pretensão em juízo. Não se concebe, nessa medida, que o titular do direito subjetivo violado tenha contra si o início, bem como o transcurso do lapso prescricional, em circunstâncias nas quais não detém qualquer possibilidade de exercitar sua pretensão, justamente por não se evidenciar, nessa hipótese, qualquer comportamento negligente de sua parte (STJ, REsp n. 1.347.715/RJ, 2014, on-line).
Embora não haja unanimidade na doutrina, parcela dela destaca a injustiça que a fria redação do art. 189 do Código Civil poderia gerar no caso concreto.
Ao considerar-se, pura e simplesmente, o momento da violação do direito como termo inicial, estaria por se ignorar as hipóteses em que o titular do direito sequer conhece da violação, ou não sabe quem seja o seu responsável, restando inviabilizado o exercício da própria pretensão.
Ora, se um dos fundamentos da prescrição é o castigo aquele que não exerceu a pretensão no prazo previsto em lei, sancionando a inércia do titular do direito com a perda da possibilidade de pleiteá-lo em juízo, não seria possível punir o titular se esse sequer conhece da violação, para que pudesse tomar as providências para pleitear o crédito devido.
Esse entendimento, como visto, tem ressoado na jurisprudência do STJ, e foi objeto de enunciado na I Jornada de Direito Civil (Enunciado 14)[8], e foi acolhido no Código de Defesa do Consumidor que, atento à questão, dispõe expressamente que a contagem do prazo prescricional se inicia a partir do conhecimento do dano e de sua autoria (art. 27 do CDC).
A contagem do prazo é feita nos termos da lei civil. Ou seja, exclui-se o dia do começo e inclui o do vencimento (art. 132 do CC).
Os prazos de prescrição são geralmente fixados por ano, e nesse caso, há de se considerar que os doze meses do ano se contam de certo dia do mês até a véspera do dia idêntico daquele mês no ano seguinte, ainda que se trate de ano bissexto, isso conforme o art. 1º da Lei n. 810/1949.
Para Youssef Said Cahali, com base em antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, se o dies ad quem cair num daqueles em que não há expediente forense, obstáculo judicial que impede o ajuizamento da ação naquele dia, o prazo, mesmo decadencial, fica prorrogado até o primeiro dia útil subsequente (CAHALI, 2012. p. 42).
Com o advento do CPC/2015, entretanto, deve ser feita uma interpretação mais moderna, consentânea com a possibilidade da prática de atos eletrônicos, notadamente ante a possibilidade de protocolo de petições vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, nos termos do art. 213 do CPC.
O Código Civil prevê algumas causas que impedem ou suspendem o curso do prazo prescricional.
Ambas as causas representam obstáculos ao fluxo do prazo prescricional, o impedimento dizendo respeito a causa anterior ao seu início, e a suspensão a causa que impede o seu curso, já iniciado. São elas: a sociedade conjugal, no caso de prescrição entre os cônjuges (art. 197, I do CC); poder familiar, no caso de prescrição entre ascendentes e descendentes (art. 197, II do CC); e a tutela e curatela, no caso da prescrição entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores (art. 197, III do CC); prescrição contra os absolutamente incapazes (art. 198, I do CC); prescrição contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos Municípios (art. 198, II do CC); prescrição contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra (art. 198, III do CC); pendência de condição suspensiva (art. 199, I do CC); não vencido o prazo (art. 199, II do CC); pendendo ação de evicção (art. 199, III do CC); enquanto pendente a apuração no juízo criminal (art. 200 do CC).
Há, ainda, hipóteses previstas no Código Civil de interrupção da prescrição.
O rol previsto no art. 202 é considerado taxativo e resulta no reinício do prazo integralmente, “da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper” (art. 202, parágrafo único, do CC) abarcando as seguintes hipóteses: despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual (art. 202, I do CC); protesto judicial (art. 202, II do CC); protesto cambial (art. 202, III do CC); apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores (art. 202, IV do CC); qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor (art. 202, V do CC); e qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor (art. 202, VI do CC).
Os prazos prescricionais foram agrupados no Código Civil em dois grupos, o prazo geral, que é de 10 anos e é aplicado pelo critério da subsidiariedade, e os prazos específicos, entre um e cinco anos, a depender da hipótese regulada, tal como preveem os arts. 205 e 206 do CC.
Esses prazos não podem ser alterados pelas partes (art. 192 do CC), considerando o caráter de ordem pública do instituto, bem como o fato de a possibilidade de alargar ou encurtar os prazos implicar, no primeiro caso, uma espécie de renúncia antecipada ao instituto, o que é vedado (art. 191 do CC), e no segundo caso, infringir os fins do instituto, contrariando a segurança jurídica visada pela fixação em lei de prazos para o exercício da pretensão.
A prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita (art. 193 do CC). Convém identificar que, para efeitos processuais, a prescrição poderá ser alegada até o trânsito em julgado da ação.
Após o trânsito em julgado, contudo, é impossível, por exemplo, a propositura de ação rescisória alegando prescrição que não foi objeto de deliberação na ação originária. No julgamento do REsp n. 1.749.812/PR o STJ compreendeu que ao magistrado não se impõe o dever de se manifestar sobre a prescrição, embora seja a ele possível, inclusive de ofício e sob o signo da celeridade processual.
Assim, se a parte que se beneficiaria com a sua declaração não se valeu de sua suscitação no curso do processo, sua inércia configura verdadeira renúncia tácita a esse direito (STJ, REsp n. 1.749.812/PR, 2019, on-line).
3.2. PRESCRIÇÃO DOS TÍTULOS E OUTROS DOCUMENTOS DE DÍVIDA
Quanto aos outros documentos de dívida que não se configurem como títulos ou outro título de dívida com prazo prescricional específico previsto em lei, não há muita controvérsia em definir que se submetem ao prazo prescricional quinquenal, na forma do art. 206, § 5º, inciso I do CC, considerando que se tratam, como visto, de documentos que ostentam cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular.
Por essa razão, os enunciados de Súmula n. 503 e 504 da jurisprudência do STJ definem prazos quinquenais para ajuizamento de ação monitória pelo credor de cheque sem força executiva e de nota promissória, contabilizado o prazo, no primeiro caso, do dia seguinte à data de emissão estampada na cártula, e no segundo, do dia seguinte a data do vencimento do título.
Em específico, a jurisprudência do STJ também tem definido o prazo prescricional quinquenal para cobrança com base nesse dispositivo para o contrato de abertura de crédito (STJ, AgInt no AREsp n. 1.305.152/MT, 2019, on-line), duplicata prescrita (STJ, AgInt nos Embargos de Declaração no AgInt nos Embargos de Declaração no AREsp n. 1.655.610/SP, 2020, on-line), confissão de dívida (STJ, AgInt no AREsp n. 1.111.952/SC, 2020, on-line) e transação homologada judicialmente (STJ, AgRg no AREsp n. 163.318/SP, 2020, on-line).
Em relação aos títulos de crédito, é importante destacar que a sua prescrição não implica no igual reconhecimento da extinção da pretensão do negócio fundamental, se maior for o seu prazo prescricional.
Assim, mesmo prescrito determinado título, nada impede que haja a cobrança da obrigação subjacente, desincorporada desse título, se for o caso, através de uma ação monitória, com base na prova escrita sem eficácia de título executivo, ou de uma ação de cobrança.
Isto porque mesmo que o título de crédito perca a sua eficácia executiva, é plenamente possível a sua cobrança como documento com expressão de dívida líquida, podendo ser classificado dentro do espectro de “outros documentos de dívida”, o que autoriza o manejo de ação monitória, como visto especificamente acima em relação ao cheque, à nota promissória e à duplicata, ou até mesmo ação de cobrança.
Gladston Mamede explica a questão dando o seguinte exemplo:
Imagine-se, por exemplo, que o título tivesse sido emitido a partir de um contrato de hospedagem, prescrevendo em um ano (artigo 206, § 1º, I); se houve emissão de uma nota promissória, o crédito incorpora-se à cártula, que prescreve em três anos. O direito ao crédito, assim, beneficiou-se da incorporação, já que o prazo prescricional cambiário é maior. Extinta a relação cambiária pela prescrição do título, deve reestabelecer-se a relação original (negócio de base), com todos os seus qualificadores, incluindo o prazo prescricional do crédito original (não cambiário). No exemplo dado, portanto, se o credor da cártula não a executou no triênio prescricional da nota promissória, não lhe socorrerá a relação fundamental, cujo prazo prescricional é menor (MAMEDE, 2018, n.p.).
Veja-se um precedente do STJ especificamente nessa direção. No julgamento do Agravo Regimental no Agravo no 1.014.710/SP, constou o seguinte do acórdão:
Não há que se confundir a prescrição da nota promissória, e a consequente perda de sua eficácia executiva, com a prescrição da dívida de que ela faz prova. No caso em apreço, encontrava-se prescrita, quando da propositura da demanda, a ação para executar as notas promissórias. Tal circunstância, contudo, não impede a propositura de demanda monitória com o intuito de cobrar a obrigação representada pelas cártulas prescritas, desde que tal pretensão também não tenha sido alcançada pela prescrição, o que não ocorreu na espécie (STJ, AgRg no Ag n.1.014.710/SP, 2010, on-line).
Dito isto, é possível indicar que a prescrição dos títulos de crédito atinge tão somente a sua força executiva, impedindo-a de serem cobradas através do procedimento específico de cobrança de títulos executivos extrajudiciais previsto no Código de Processo Civil.
Finda a força executiva, pelo decurso do tempo, é possível utilizar-se de outras opções legais e, ao fundo, da execução do próprio objeto negocial.
A letra de câmbio tem prazo prescricional de três anos conforme o art. 70 da Lei Uniforme de Genebra (Decreto-Lei n. 57.663/1966), mesmo prazo aplicável às notas promissórias, por força do art. 77 do citado diploma legal.
A duplicata, por sua vez, tem prazos de prescrição específicos a depender do sujeito obrigado pelo pagamento, nos termos do art. 18 da Lei n. 5.474/1968. Contra o sacado e respectivos avalistas, é de três anos, contados da data do vencimento do título; contra endossante e seus avalistas, de um ano, contado da data do protesto; e por qualquer dos coobrigados contra os demais, de um ano, contado da data em que haja sido efetuado o pagamento do título.
A prescrição do cheque é de seis meses, contados do término do prazo de apresentação (art. 59 da Lei do Cheque), que pode ser de trinta ou sessenta dias a depender da praça de emissão.
Há, autores, como Luis Emygdio F. da Rosa Junior, que defendem que, se o cheque for apresentado antes do fim do prazo legal, o termo inicial da prescrição será antecipado para a data da apresentação (ROSA JR., 2011, p. 655).
Essa, contudo, não é a posição que prevalece, por ir de encontro ao dispositivo legal. Veja-se, a respeito, o Enunciado n. 40 da I Jornada de Direito Comercial do CJF:
O prazo prescricional de 6 (seis) meses para o exercício da pretensão à execução do cheque pelo respectivo portador é contado do encerramento do prazo de apresentação, tenha ou não sido apresentado ao sacado dentro do referido prazo. No caso de cheque pós-datado apresentado antes da data de emissão ao sacado ou da data pactuada com o emitente, o termo inicial é contado da data da primeira apresentação.
Findo o prazo para execução do cheque, é possível fazer-se uso da chamada “ação de enriquecimento” ou “ação de locupletamento”, prevista no art. 61 da mesma lei. Essa ação pode ser exercida no prazo de dois anos contados do fim do prazo prescricional.
Ultrapassado este prazo, ainda é possível o manejo de ação de monitória, submetida ao prazo quinquenal, nos termos do enunciado de Súmula n. 503 da jurisprudência do STJ, e que independe a demonstração da causa debendi, invertendo-se o ônus da prova para o réu quanto à inexistência do débito.[9] No mesmo prazo ainda é possível a cobrança via ação de conhecimento, com base na relação causal que deu origem ao título, conforme expressamente previsto no art. 62 da Lei do Cheque.
4. ANÁLISE DA PRESCRIÇÃO PELO TABELIÃO DE PROTESTO
Até aqui, este trabalho se dedicou ao estudo dos aspectos principais das duas variáveis que precisam ser conhecidas para conhecer da problemática que envolve a análise da prescrição pelo tabelião de protesto.
Tecidas considerações sobre todo o substrato que envolve a questão jurídica que se propôs discutir nesse trabalho acadêmico, passa-se agora a análise do problema em si.
Como visto anteriormente, qualificar o título ou outro documento de dívida é o ato de verificar a qualidade, ou seja, de classificar se determinado título ou documento cumpre ou não os requisitos para que possa ser protestado.
Trata-se de um poder-dever do tabelião, e que faz parte do seu múnus, na condição de profissional de direito, tendo condições, pela sua qualificação técnica aferida após concurso de provas e títulos, de verificar questões jurídicas atinentes a protestabilidade do título ou outro documento de dívida.
Questão, como já anunciado, tormentosa, e que é objeto de análise dessa obra, é estabelecer qual o limite do poder-dever do tabelião de protesto quanto a qualificação, se abrange a possibilidade de se analisar a prescrição dos títulos ou outro documento de dívida submetidos ao tabelionato pelo apresentante.
A lei de protesto, com o objetivo de lançar uma pá de cal na controvérsia, previu, expressamente, no seu art. 9º, que a análise acerca da prescrição e da caducidade não estão inclusas no poder-dever da qualificação formal dos títulos e outros documentos de dívida.
Confira-se a redação da cabeça do mencionado artigo da Lei n. 9.492/1996:
Art. 9º. Todos os títulos e documentos de dívida protocolizados serão examinados em seus caracteres formais e terão curso se não apresentarem vícios, não cabendo ao Tabelião de Protesto investigar a ocorrência de prescrição ou caducidade.
Anota-se, em primeiro lugar, que tal disposição já constava no PL n. 915/1995, projeto de lei de autoria do então Deputado Federal Augusto Viveiros (PFL/RN) e que deu origem à Lei do Protesto.
No seu art. 6º, o projeto continha artigo com o seguinte conteúdo: “Ao Cartório de Protesto cumpre apenas examinar as formalidades e requisitos do título, não lhe cabendo investigar a ocorrência da caducidade ou prescrição” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1995).
De acordo com a justificativa do projeto, o projeto de lei apresentado visava uniformizar o procedimento do protesto em todo o país, com base em trabalho desenvolvido no e. TJSP (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1995).
Após tramitação nos termos regimentais, foi submetido à análise na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
Consoante indicado no relatório feito na CCJ, de autoria do então Deputado Federal Regis de Oliveira (PSC/SP), o PL atendia à necessidade de regulamentação do tema, que já havia precedido de outro projeto (PL n. 2.269/1989), tendo a Câmara dos Deputados, entretanto, optado por aguardar a regulamentação do art. 236 da Constituição Federal pela legislação infraconstitucional, o que veio a lume com a edição da Lei n. 8.935/1994 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1995).
Assim, tendo esse (PL n. 2.269/1989) e um outro projeto caducado no âmbito da Câmara dos Deputados em razão do decurso da legislatura, com a edição da Lei dos Notários e Registradores criou-se terreno fértil para discutir uma legislação para o protesto no parlamento brasileiro.
Logo, o PL foi aprovado na CCJ e desde já deslocou o art. 6º para o atual art. 9º, mantendo o conteúdo e posição redacional tal como conhecemos hoje.
Durante o processo legislativo, não houve registro de qualquer embate em relação ao conteúdo do mencionado dispositivo, de modo que não se identifica a apresentação de emendas cujo objetivo tivesse sido o de modificar ou até mesmo de suprimir o citado dispositivo.
Assim, o texto foi aprovado pelo parlamento através da própria comissão, não sendo submetido ao plenário da Câmara (na forma do art. 24, inciso II do Regimento Interno da Câmara dos Deputados), e após encaminhado ao Senado Federal e aprovado sem modificações (PLC n. 98/1996, no Senado Federal). Na sequência, foi sancionado pela Presidência da República, dando origem à atual Lei n. 9.492/1997 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1995).
Colhe-se do trâmite do processo legislativo na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, portanto, que não houve divergência do parlamento quanto ao conteúdo da disposição, que como dito, de forma expressa retirou do poder-dever de qualificação pelo tabelião de protesto a análise acerca da prescrição ou caducidade.
O conteúdo dessa disposição legal é repetido de maneira expressa em algumas legislações editadas pelas Corregedorias de Justiça estaduais que regulam a atividade notarial e de registro nele praticadas.
Assim ocorre no Acre (art. 433), no Alagoas (Art. 14, § 1º do Título VII) no Amazonas (art. 202, § 3º), na Bahia (art. 321, § 1º), no Ceará (art. 262) no Distrito Federal (art. 90), no Espirito Santo (art. 731), no Maranhão (art. 710), em Minas Gerais (art. 326, § 1º) no Mato Grosso (art. 480, § 4º), no Mato Grosso do Sul (art. 1.771), no Pará (art. 398), na Paraíba (art. 429), no Pernambuco (art. 497), no Piauí (art. 291, § 1º), no Paraná (Art. 750), no Rio de Janeiro (art. 977), em Rondônia (art. 257), em Roraima (art. 392), no Rio Grande do Sul (art. 716, § 1º) e no Sergipe (art. 214).
Outros Estados, entretanto, não tem referências claras nas suas normas estaduais acerca do fato de a qualificação abranger ou não a prescrição, preferindo não repetir a disposição legal contida na Lei n. 9.492/1997. São os casos dos Estados do Goiás, do Rio Grande do Norte, de Santa Catarina, de Tocantins e de São Paulo, este último o Estado que teria influenciado o projeto de lei federal que deu origem à Lei n. 9.492/1997, conforme registrado durante a tramitação do PL respectivo, o que se explicará em sequência.
A disposição contida no art. 9º, caput da Lei de Protesto também foi, outrora, posição pacífica na jurisprudência.
O enunciado de Súmula n. 17, da jurisprudência do e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, atualmente revogado[10], e julgados do c. Superior Tribunal de Justiça espelhavam esse entendimento.
No julgamento do STJ cuja ementa segue transcrita na sequência, por exemplo, o colendo Tribunal considerou inviável suscitar a prescrição para sustar o protesto, considerando que a eventual perda do atributo de executividade pelo título não importaria, ipso jure, no cancelamento do protesto ante a higidez da dívida.
Confira-se, a respeito, a emenda:
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO CAUTELAR DE SUSTAÇÃO DE PROTESTO E AÇÃO DE INEXIGIBILIDADE DE RELAÇÃO JURÍDICA - OMISSÃO - INEXISTÊNCIA - ALEGAÇÃO DE PRESCRIÇÃO CAMBIAL COMO FUNDAMENTO DA DEMANDA - INVIABILIDADE - RESTAURAÇÃO DO PROTESTO APÓS A IMPROCEDÊNCIA DO PLEITO, A DESPEITO DA PRESTAÇÃO DE CONTRACAUTELA CONSISTENTE EM DEPÓSITO DE CAUÇÃO PECUNIÁRIA NO VALOR MENCIONADO NO CHEQUE PROTESTADO - ADMISSIBILIDADE - RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1. Não há omissão no aresto a quo, no qual se analisou todos os temas relevantes suscitados pelas partes, inclusive o relativo à prescrição, embora o resultado não tenha sido favorável à parte recorrente. 2. É inviável suscitar, na via da ação declaratória de inexigibilidade de relação jurídica e de sustação do protesto, a arguição de prescrição cambial, visto que a eventual perda do atributo de executividade pelo cheque não importa, ipso jure, o cancelamento do protesto ante a higidez da dívida. 3. O depósito em dinheiro do valor do cheque protestado como contracautela exigida para o deferimento da liminar de sustação de protesto não obsta a restauração do protesto após o julgamento de improcedência da demanda declaratória de inexigibilidade de relação jurídica e de sustação do protesto. 4. É que, ao longo do feito ajuizado pelo devedor, a fluência do iter processual através do duto profilático do contraditório e da ampla defesa pautou-se na discussão acerca do an debeatur (ou seja, da exigibilidade ou não do cheque protesto), e não sobre o quantum debeatur (isto é, o valor efetivamente devido). 5. Realmente, o montante efetivo da dívida pode ser havido como superior ao mencionado no próprio cheque, do que dá exemplo o artigo 19 da Lei de Protestos (Lei n. 9.492/97), na dicção do qual o pagamento do título ou documento protestado não se limita ao valor declarado pelo apresentante, mas abrange também os "emolumentos e demais despesas [como as decorrentes da realização da intimação]". 6. Recurso especial improvido (STJ, REsp n. 369.470/SP, 2009, on-line).
Não obstante essa aparente falta de controvérsia acerca do tema, notadamente pela sua pacificação legislativa, não é possível desconsiderar que alguns aspectos tem sido levados em conta para (des)considerar essa orientação então vigente.
Como será visto na sequência, o STJ firmou em sede de recursos “repetitivos” que "a legislação de regência estabelece que o documento hábil a protesto extrajudicial é aquele que caracteriza prova escrita de obrigação pecuniária líquida, certa e exigível" (STJ, REsp n. 1.340.236/SP, 2015, on-line).
O c. Tribunal da Cidadania também firmou o entendimento, em outro julgado, de que "sempre será possível, no prazo para a execução cambial, o protesto cambiário de cheque, com indicação do emitente como devedor" (STJ, REsp n. 1.423.464/SC, 2016, on-line).
Não obstante, a jurisprudência contemporânea do c. STJ também tem reiteradamente decidido atualmente por considerar indevido o protesto de cheque prescrito. Veja-se:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CAMBIÁRIO. PROTESTO DE CHEQUE PRESCRITO. NÃO CABIMENTO. DANO MORAL. VALOR. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. 1. É indevido o protesto de título prescrito. Isto porque "a perda das características cambiárias do título de crédito, como autonomia, abstração e executividade, quando ocorre a prescrição, compromete a pronta exigibilidade do crédito nele representado, o que desnatura a função exercida pelo ato cambiário do protesto de um título prescrito". (AgRg no AREsp 593.208/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 19/12/2014). 2. No que concerne ao montante fixado a título de indenização por danos morais, nos termos da jurisprudência deste Tribunal, o valor estabelecido pelas instâncias ordinárias pode ser revisto tão somente nas hipóteses em que a condenação se revelar irrisória ou exorbitante, distanciando-se dos padrões de razoabilidade, o que não se evidencia no presente caso. Incidência do óbice da Súmula 7 do STJ. 3. Agravo interno não provido (STJ, AgInt no REsp n. 1.751.755/RS, 2020, on-line).
Ao que se denota da Sessão administrativa do Órgão Especial do TJSP, de 18/10/2017, divulgada em vídeo através dos canais oficiais do e. Tribunal nas redes sociais, com extrato publicado no DJE de 19/10/2017, p. 62, a jurisprudência do c. STJ foi a motivação adotada na revogação do Enunciado de Súmula n. 17 da jurisprudência do e. TJSP.
De acordo com o relator, o enunciado da súmula se chocava com a jurisprudência do STJ, notadamente da análise do tema 902 do STJ, dos recursos “repetitivos”, cujo paradigma foi o REsp n. 1.340.236/SP, e que assim estipulou:
A legislação de regência estabelece que o documento hábil a protesto extrajudicial é aquele que caracteriza prova escrita de obrigação pecuniária líquida, certa e exigível. Portanto, a sustação de protesto de título, por representar restrição a direito do credor, exige prévio oferecimento de contracautela, a ser fixada conforme o prudente arbítrio do magistrado (STJ, REsp 1.340.236/SP, 2016, on-line).
Assim, concluiu o relator que a Súmula batia de frente com o decidido sob a sistemática dos repetitivos pelo STJ, no sentido de que se a ação executiva não é mais possível, também não seria mais possível tirar o protesto do título, não se justificando mais a vigência da Súmula. Ao final, foi acolhido o pedido de revogação do verbete, sendo o Relator acompanhado pelos seus pares.
Veja-se que, diante da controvérsia instaurada, é possível analisar as situações que atualmente influenciam no tema.
De acordo com Sergio José Luiz Bueno (2017, p. 203), se o fim do procedimento do protesto não é o de possibilitar a execução, mas sim, o de obter a satisfação da obrigação, a prescrição da pretensão de execução não obsta o protesto se subsistirem outras formas de cobrança. Dessa forma, enquanto existir algum meio judicial para se promover a satisfação da obrigação, o protesto em razão do inadimplemento sempre poderá ser lavrado.
Assim, se por força de lei o Tabelião de Protesto esteja impedido de investigar a prescrição, se o apresentante deliberou, por sua conta e risco, em apresentar determinado título ou outro documento de dívida ao protesto, não pode o Tabelião obstar a sua protestabilidade, sendo obrigado a praticar o ato.
Ora, a prescrição não é apenas o simples decurso do tempo. Vimos em capítulos anteriores que a prescrição, além de representar a perda da pretensão por inércia do titular de uma ação pelo seu não exercício, abrange outros requisitos.
Alguns deles, por certo, o Tabelião não tem como investigar.
A ausência de fato impeditivo, suspensivo ou extintivo do curso da prescrição é um deles. Como poderia o tabelião analisar esse tema através da simples apresentação do título ou do documento de dívida?
Essa questão é relevante. O protesto, por mais que envolva a participação do devedor, que é intimado para, nos termos da lei, conhecer do protesto e manifestar-se no prazo de três dias, não é procedimento por excelência sujeito ao contraditório, nem qualquer outra ferramenta que permita o exame e uma decisão segura sobre eventuais causas interruptivas, suspensivas ou impeditivas do prazo prescricional.
O prazo de três dias é exclusivo para pagamento, reservando-se ao devedor o direito de alegar eventuais exceções apenas perante o juízo competente, submetendo suas questões ao crivo judicial, por intermédio de ação própria que, se acolhê-las, poderá sustar ou suspender os efeitos do protesto, a depender do momento em que exarada a ordem judicial, o primeiro (sustação) antes da lavratura, e o segundo (suspensão), após o registro.
Forçoso concluir que a prescrição, tal como visto, é ato realmente sujeito à reserva de jurisdição. A cognição do tabelião é bastante restrita e, diante disso, a própria exegese do texto legal prima por reservar ao juiz a apreciação da ocorrência ou não da prescrição no caso concreto.
Nas palavras de Sergio Bueno:
Faz-se a exegese do texto legal (art. 9º da Lei n. 9.492/97) em conformidade com os princípios adequados de hermenêutica e atendimento à lógica formal e, mesmo que prevaleça o pensamento de que o protesto possa ser obstado em razão da prescrição, seja ela cambial ou civil (especial ou ordinária), por certo não cabe ao Tabelião reconhecer esse impedimento, restando ao devedor buscar o Juiz competente para esse mister. Poderá valer-se da medida cautelar de sustação de protesto ou de suspensão dos efeitos deste, se já lavrado, também como antecipação de tutela, se for o caso. Agiu com acerto o legislador ao proibir o Tabelião de pronunciar-se sobre essa matéria, relegando a alegação ou o reconhecimento, ainda que atualmente de ofício, apenas em juízo, em que há campo para o contraditório e para a ampla defesa, bem como o duplo grau de jurisdição (BUENO, 2017, p. 204-205).
Outro ponto, que não pode ser despercebido, diz respeito ao efeito da prescrição.
Como visto exaustivamente no capítulo anterior, que tratou dos aspectos da prescrição, essa, na disciplina adotada pelo Código Civil brasileiro, é responsável por extinguir a pretensão, ou seja, a ação direcionada ao recebimento do crédito, não extinguindo o direito de crédito em si.
Em razão disso, não se pode repetir o que foi pago para solver dívida prescrita, nos termos do art. 882 do Código Civil.
Ora, se autorizado pelo ordenamento a possibilidade de pagar títulos prescritos, não se enxerga na prescrição um fundamento idôneo para, a priori, impedir-se o protesto, que cada vez mais vem assumindo feições de meio indireto de coerção para pagamento.
Sendo a prescrição uma punição a inércia do titular em exercer, em determinado prazo razoável previsto em lei, o direito de postular em juízo a perseguição do crédito, e apenas isso, não atingindo o crédito em si, nada impede o devedor que efetue o pagamento, mesmo após extinta a pretensão correspondente.
Esse pagamento não será tido como indevido, tal como previsto no art. 876 do Código Civil, e por isso mesmo não obrigará quem o receber a restituir ao pagador.
Da mesma forma, ressalta Sílvio de Salvo Venosa que os títulos de crédito prescritos “não autorizam a ação executiva, sobrevivem à prescrição, pois podem ser cobrados por ação ordinária de enriquecimento sem causa, o que demonstra que o direito, na verdade, não se extingue” (VENOSA, 2019, n.p.).
Outro aspecto a ser considerado diz respeito a possibilidade conferida ao devedor de renunciar à prescrição.
A possibilidade de renúncia a prescrição, como visto anteriormente, decorre de expressa previsão do art. 191 do CC, sendo possível depois de consumada, de forma expressa ou tacitamente.
O próprio pagamento realizado após o prazo da prescrição, por parte do devedor, pode ser entendido como renúncia a prescrição, considerando haver a prática de ato contrário ao interesse do devedor de ver reconhecida a extinção da pretensão e, por via transversa, impedir a satisfação do crédito.
Isso gera problemas até mesmo no âmbito judicial. Com a possibilidade do reconhecimento ex officio do prazo prescricional pelo magistrado, entendimento segundo o qual o devedor poderia ver a prescrição acolhida sem nem mesmo tê-la arguido o devedor, poderia resultar no tolhimento do direito dele de renunciá-la, se quisesse.
Com base nisso, defende-se que o pronunciamento judicial de prescrição deve ser precedido de provocação do réu, de modo que fique clara a sua intenção de não renunciar à prescrição, consoante o disposto no art. 191 do CC.
Para Yussef Said Cahali, esse entendimento seria aplicado apenas às ações que versão sobre as ações que versam sobre direitos patrimoniais (CAHALI, 2012. p. 48).
Não obstante, o Código de Processo Civil adotou parcialmente o entendimento da necessidade de oitiva da outra parte antes do reconhecimento judicial da prescrição ou decadência, consoante o disposto no art. 10 do CPC, que determina que não se pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
A ressalva fica por conta do julgamento pela improcedência liminar do pedido (art. 487, § 1º do CPC). Nessa hipótese, o juiz pode reconhecer a existência de prescrição da pretensão exercida na ação, antes mesmo da oitiva da outra parte, julgando liminarmente improcedente o pedido.
Veja-se que, diante da celeuma acerca da possibilidade de reconhecimento de ofício da prescrição ante a possibilidade de renúncia da outra parte, com muito mais razão não se poderia permitir a rejeição do ingresso do título do registro por essa razão.
Nada impede o pagamento pelo devedor desse título, renunciando de forma tácita, ou seja, pela prática de ato (o pagamento) incompatível com a prescrição.
4.3. DECISÃO DO STJ NO AGRG NO AGRG NO RESP 1.100.768/SE
Obviamente, no que tange ao protesto, o direito tutela a boa-fé objetiva, e por isso mesmo, se uma dívida está prescrita, não pode o credor protestá-la por falta de pagamento, no intuito de coagir o devedor a pagá-la se não pode, sequer, demandar judicialmente acerca dessa dívida.
Como vimos, muito mais do que simples escopo probatório, o atual serviço de protesto tem servido como meio de coerção ao pagamento.
Na própria decisão em que o p. STF considerou constitucional o protesto de certidão de dívida ativa, como já vinha sendo defendido na doutrina, o Pretório Excelso reconheceu essa finalidade do protesto, ultrapassando a sua simples concepção tradicional (STF, ADI 5135/DF, 2018, on-line).
No entanto, o STJ já vinha entendendo como indevido o protesto de título prescrito, consoante reiteradas decisões tomadas acerca da matéria.
Essa orientação jurisprudencial teria sido a razão que prenunciou a revogação da Súmula 17 do TJSP. Esse mesmo tribunal também modificou o Item 16, Capítulo XV do Tomo II, das suas Normas de Serviço, com a redação[11] dada pelo anterior Provimento CGSP n. 27/2013.
A norma que expressamente vedava a análise da prescrição por parte do Tabelião de Protesto, em consonância com o disposto no art. 9º, caput, da Lei n. 9.492/1997, e cujo espirito influenciou a criação da lei federal, foi modificada para suprimir essa proibição, consoante a redação dada pelo Provimento CGSP n. 43/2018.
Veja-se que a norma presente no Estado de São Paulo, em consonância com o disposto no art. 9º, caput, da Lei n. 9.492/1997, e com a maioria dos Estados, inicialmente previa a impossibilidade de análise da prescrição, mas esse dispositivo teve o conteúdo suprimido, em prenúncio da celeuma jurisprudencial que nascia.
Isso porque não obstante a literalidade do texto legal, ou seja, mesmo diante da expressa redação do art. 9º, caput, da Lei n. 9.492/1997, o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento proferido em novembro de 2014, decidiu o seguinte, conforme a ementa que segue transcrita:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - PROTESTO DE DUPLICATA PRESCRITA - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE RECONSIDEROU ANTERIOR PRONUNCIAMENTO A FIM DE DAR PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL DO AUTOR. INSURGÊNCIA DO CREDOR. 1. O protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em título e outros documentos de dívida, sendo hígido quando a obrigação estampada no título se revestir de certeza, liquidez e exigibilidade. O entendimento desta Corte Superior é no sentido de que o protesto de título de crédito prescrito enseja o pagamento de indenização por dano moral, que inclusive se configura in re ipsa. Precedentes. A duplicata prescrita serve apenas como princípio de prova da relação jurídica subjacente que deu ensejo a sua emissão, não possuindo a necessária certeza e exigibilidade que legitimam o portador a exigir seu imediato pagamento e, por conseguinte, a fazer prova do inadimplemento pelo protesto. 2. Em que pese o artigo 9º da Lei nº 9.492/97 estabelecer que não cabe ao tabelião investigar a ocorrência de prescrição ou caducidade, é preciso observar a inovação legislativa causada pelo advento da Lei nº 11.280/2006, que alçou a prescrição ao patamar das matérias de ordem pública, cognoscíveis de ofício pelo juiz, passando, portanto, o exame da prescrição a ser pertinente à observância da regularidade formal do título, condição para o registro de protesto, como exige o parágrafo único do mesmo art. 9º da Lei nº 9.492/97. 3. Agravo regimental desprovido (STJ, AgRg no AgRg no REsp n. 1.100.768/SE, 2014, on-line).
Colhe-se que a decisão, embora siga uma lógica da envergadura jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, foi mais além do que até então vinha sendo decidido pelo colendo Tribunal da Cidadania, cuja competência constitucional é, por excelência, a interpretação da lei federal.
Além de vedar o ingresso no tabelionato de protesto do título em questão, por estar prescrito e, por esta razão, não possuir a necessária certeza e liquidez que legitimam o portador a exigir seu imediato pagamento e a fazer prova do inadimplemento pelo protesto, a decisão expressamente imputou ao tabelião o dever de examinar a prescrição dos títulos ou outros documentos de dívida submetidos ao protesto.
Na decisão, o Relator indicou que, tratando-se a prescrição de matéria de ordem pública, em razão da já tratada revogação do art. 194 do Código Civil pela Lei n. 11.280/2006, o exame da prescrição remete a questão da regularidade formal do título, e nessa condição o tabelião deveria analisar esse aspecto ao qualificar o título ou outro documento de dívida.
Assim, propôs-se uma leitura mais moderna do art. 9º da Lei n. 9.492/1997.
De acordo com o Relator, sendo o protesto uma medida bastante gravosa ao devedor, ante o abalo do crédito que o registro de protesto gera, inclusive com a inscrição do nome do devedor nos cadastros de inadimplentes, o título prescrito não poderia ser protestado, embora possíveis outras medidas de busca do crédito, sendo necessário que o Tabelião, como profissional do direito com função de assegurar a autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, examine o ato e impeça o protesto nessas condições.
Por relevante, necessário transcrição do trecho do voto vencedor em que o Relator esmiuçou seu raciocínio, verbis:
Sem dúvida que o caput do art. 9º da Lei nº 9.492/97 encontra-se defasado, sustentando um entendimento sobre a prescrição superado pela legislação vigente. No entanto, enquanto não for expressamente derrogado, precisa ser devidamente interpretado, em consonância com o ordenamento jurídico hodierno, principalmente pela gravidade do efeito material do registro público de protesto, que importa em publicidade do abalo creditício, provocando a automática inscrição nos cadastros de restrição de crédito, além de autorizar o requerimento de falência, quando o inadimplente for pessoa jurídica. Assim, faz-se necessário um esforço de interpretação dialético, progressivo, sistemático e teleológico, em busca do real significado e finalidade da norma jurídica em comento, para exata subsunção de seu enunciado ao fato concreto, como pressuposto da segurança jurídica. Por fim, vê-se que o oficial de registro público, no desempenho de sua função como garantidor da segurança e eficácia dos atos jurídicos (art. 2º da Lei nº 9.492/97), não pode ignorar a quaestio ex officio do prazo prescricional, que fulmina o título de crédito. Não se está a declarar que o credor não tenha o direito de ver adimplida a obrigação, ao contrário, está a se afirmar que existem os meios cabíveis (ação de enriquecimento ilícito, monitória, de cobrança, composição amigável), dentre os quais não consta o protesto do título prescrito ante a ausência de certeza, liquidez e exigibilidade do documento, cujo procedimento tem como consequência a inserção do nome do inadimplente nos cadastros restritivos de crédito.
Essa interpretação que se propõe mais moderna, é uma tendência.
Tal situação foi antevista pelo e. Tribunal de Justiça de São Paulo ao revogar o verbete que tratava do tema e modificar ponto específico nas suas Normas de Serviço. Diante da divergência, optou o tribunal por extirpar a disposição do seu corpo normativo.
No caso de São Paulo, como vimos, a norma que expressamente vedada a análise da prescrição por parte do Tabelião de Protesto foi modificada para suprimir essa proibição, consoante o Item 16, Seção III, do Capítulo XV do Tomo II, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, modificada pelo Provimento CGSP n. 43/2018.
Aliás, consoante sublinha Carlos Eduardo Elias de Oliveira (2020, n.p.), a ampliação da qualificação é uma tendência, de modo que não é tarefa fácil definir quais os limites da atuação do tabelião nesse ponto.
Em São Paulo, por exemplo, há norma específica que impede o protesto quando há indício de abuso de direito por parte do apresentante, como a existência de tempo considerável entre a data de emissão do título e a sua apresentação para protesto (itens 34 e 35 do Capítulo XV).
Dispositivos nesse sentido estão presentes em outras normativas estaduais, algumas das quais já destacadas anteriormente, no capítulo destinado ao estudo da qualificação de títulos, e que se propunham a essa mesma ampliação, em que pese se encontrar muita divergência acerca da abrangência desse poder-dever do Tabelião, em razão de as normas Estaduais preverem atuações mais ou menos largas para a hipótese.
Não há mesmo como indicar unanimidades nessa questão, pois como visto, na norma estadual de Mato Grosso, por exemplo, o tabelião não poderia analisar a falsidade do título para obstar o protesto.
No entanto, o Carlos Eduardo Elias de Oliveira (2020, n.p.) defende que não se pode falar em jurisprudência consolidada do c. STJ imputando esse dever de analisar a prescrição ao tabelião, pois, na verdade, o assunto relativo à eventual responsabilização do tabelião de protesto não era o centro da discussão nesse julgado.
De fato, ao se analisar a competência do tabelião e as questões de reserva jurisdicional, fica difícil, pela falta de um procedimento que assegure o contraditório, permitir que o tabelião negue seguimento ao protesto de títulos e outros documentos de dívida, em razão da prescrição.
A decisão do STJ considerou essa tendência. Entretanto, a questão não parece ser tão simples.
Há, realmente, certo movimento jurisprudencial que aponta para uma possível adequação legislativa futura, tal como sinalizado pela indigitada decisão do c. STJ. Todavia, há ainda dissenso na doutrina, por todas as questões abordadas, acerca dessa posição.
Carlos Eduardo Elias de Oliveira, por exemplo, expõe que:
Além de não enxergamos nenhuma revogação tácita (há compatibilidade entre o Código Civil e a LP: tabelião não é juiz), a análise da prescrição depende do exame de fatos externos ao título para identificar hipóteses de suspensão e de interrupção do prazo prescricional, o que não é da alçada do tabelião, e sim de um juiz. Temos que o apresentante é o responsável por eventual prescrição do título protestado (OLIVEIRA, 2020, n.p.).
4.4. IMPACTOS DO EXERCÍCIO DESSA QUALIFICAÇÃO NA PRÁTICA
Na prática, o que se tem atualmente, consoante os estudos realizados até aqui, é que o protesto, sendo ato do apresentante, é de responsabilidade deste.
Assim, caso um título prescrito ingresse no registro, o tabelião não pode ser responsabilizado, por exemplo, por danos morais advindos da situação.
Considerando que a prescrição é expressamente excluída pela lei da análise do título ou outro documento de dívida, por ocasião da qualificação, não pode ser considerado um caractere formal, e assim escapa da competência do referido profissional do Direito.
Logo, é possível que determinado credor apresente um título cuja eficácia executiva encontra-se prescrita, se não agir com abuso de direito. Esse título ingressará no protesto e poderá implicar na restrição de crédito do devedor, resultando em meio coercitivo para o seu pagamento.
Partindo-se, todavia, do entendimento de que a prescrição obsta o protesto do título, passando a integrar a esfera de competência do tabelião de analisar as questões formais dentro do juízo de qualificação, passa-se a obstar o ingresso do título, de modo que ao credor sobrará apenas o ingresso de outras medidas coercitivas, a exemplo da ação monitória ou de cobrança, sujeitas a prazos prescricionais maiores, no geral, que a ação executiva de rito especial.
Essa interpretação, contudo, não parece consentânea com tudo o que foi discutido até então.
Conforme ressaltado alhures, entretanto, a decisão do STJ parece isolada e, embora não implique em uma mudança de entendimento, indica uma tendência de ampliar a competência do tabelião em proceder na qualificação de títulos e outros documentos de dívida.
Ao longo dos estudos realizados, identificou-se que o protesto é instituto secular, cuja função modificou-se ao longo das eras, a ponto de ser apontada vocação para finalidade não necessariamente prevista no conceito legal, mas com aceitação doutrinária e jurisprudencial consolidada.
Hoje, o protesto funciona claramente não apenas para sua finalidade tradicionalmente probatória, mas como verdadeiro meio de recuperação de ativos, fato corroborado por estudos realizados por entidades representativas dos órgãos de protesto. O Protesto é realmente importante para o desenvolvimento econômico, pois estando presente em diversas localidades, havendo mais de três mil serventias dedicadas a essa função notarial espalhadas pelo País, a população passa a dispor de instrumento barato e acessível para reaver créditos inadimplidos, sem contar os avanços relacionados à operação do protesto através da internet.
Lado outro, viu-se também que o protesto é ato do tabelião, que instrumentaliza a vontade da parte apresentante, de acordo com a doutrina mais abalizada, e que passa por juízo de qualificação, poder-dever do tabelião de analisar a legitimidade do protesto quanto às normas legais e regulamentares, em relação aos seus caracteres formais (art. 9º, parágrafo único, da Lei n. 9.492/1997).
Em sequência, discorreu-se acerca do instituto da prescrição. Mais adiante, analisou-se como essa questão poderia ser afeta aos títulos e outros documentos de dívida.
Por fim, analisou-se os diversos aspectos específicos que podem influenciar ou não acerca da resposta à pergunta, quanto à possibilidade ou não de se impor ao tabelião à análise da prescrição de títulos ou outros documentos de dívida.
Tecidas todas essas considerações, a partir da análise das variáveis existentes, bem como de todas as consequências dos atos, é possível indicar que a análise do protesto no ato de qualificação do título ou outro documento de dívida não é impossível, mas dentro das possibilidades, a atuação do tabelião é limitada pelas balizas regulamentares e a própria natureza da sua função.
A atividade de qualificação, como ponto de convergência entre as raízes e natureza jurídica do próprio protesto, e a natureza jurídica, limites e funções da função de qualificação, permite inferir que, como profissional do direito, é possível que o tabelião de protesto vá além, de modo a prestar sua atividade da melhor forma possível, atendendo à expectativa das partes.
A questão pode ser solucionada da seguinte forma: se o título ou outro documento de dívida está prescrito, não há, via de regra, um óbice para o protesto.
Se a responsabilidade do protesto é do apresentante, mesmo que considerado se tratar de um ato “misto”, que envolve o interesse do apresentante e a atividade do Tabelião de Protesto, cabe ao apresentante responder pelo protesto de títulos prescritos, excluindo-se qualquer responsabilização do tabelião, até porque este não pode, por vedação legal, analisar a prescrição.
Por mais que haja um julgado do STJ expressamente imputando essa obrigação ao tabelião, essa não era a questão central do julgamento, e a menção, em obter dictum, não tem caráter vinculante.
A interpretação que parece ser a mais adequada e consentânea com a natureza da atividade e dos institutos é a de tratar a análise da prescrição até mesmo como necessária pelo Tabelião, realizada dentro do seu mister, mas que, se existente, não tenha o efeito de obstar o protesto pleiteado pelo apresentante.
A natureza da atividade do Tabelião está muito ligada à defesa e zelo pela segurança jurídica dos atos e negócios jurídicos a ele submetidos.
De acordo com Aflaton Castanheira Maluf, para as funções notariais e/ou registrais, haverá real segurança jurídica “quando o ato praticado estiver de acordo com as normas pertinenes, observando, em corolário, os critérios temporal e espacial. Em outras palavras, o ato notarial/registral materializado deve estar revestido das formalidades legais que lhe são afetas" (2018, p. 40).
Assim, o tabelião, ao receber título ou documento de dívida para exercer sua qualificação, visando a identificar a protestabilidade do título, deve, ao verificar a existência de algum óbice direcionado à prescrição, alertar ao apresentante acerca da sua existência.
Deve-se tão somente orientar o apresentante acerca das consequências práticas dos atos praticados, notadamente das consequências advindas do protesto de um título ou outro documento de dívida que esteja prescrito.
Se o apresentante, ciente da prescrição, parece agir em abuso de direito, e esteja presente a possibilidade de o tabelião agir, segundo a norma estadual, como ocorre com alguns estados, aí sim deve agir para coibir o ingresso do título no protesto, submetendo, em caso de irresignação do apresentante do título, as questões ao juízo competente.
Se, todavia, ciente da prescrição, não estão presentes quaisquer elementos que permitam inferir que haja, ali, exercício abusivo do direito de protestar, estando ciente o apresentante das consequências dos seus atos, não deve ser obstado o protesto.
De posse dessas informações, deve ser escolha do apresentante, por sua conta e risco, optar por efetivar ou não o protesto, ciente das implicações jurídicas dos seus atos, bem como das consequências que possam advir dela.
Essa interpretação é consentânea com o dever do tabelião de assegurar a autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos postos à sua apreciação.
Isto porque o postulado da segurança jurídica exige que o poder público zele pelo respeito de situações jurídicas consolidadas no tempo.
Como bem defende Luiz Guilherme Loureiro, o direito notarial e registral tem por objetivo o desenvolvimento normal e sadio das relações jurídicas, mediante a observância de regras, princípios e instituições que buscam evitar a situação anormal, patológica ou duvidosa, que poderia levar as partes a conflitos e diferenças na defesa das pretensões resultantes de ditas relações (LOUREIRO, 2017, p. 47).
Anote-se que aos tabeliães reserva-se uma função de assessoramento, de orientação das partes. Como bem enfatiza Luiz Guilherme Loureiro, “o notário aconselha e aproxima as partes por ocasião da sua intervenção em atos e negócios jurídicos” (LOUREIRO, 2017, p. 62).
O tabelião é profissional de direito, por excelência, com a função de formalizar juridicamente a vontade das partes, intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo, e de autenticar fatos (art. 6º da Lei n. 8.935/1994).
Os tabeliães de protesto são tabeliães. Mesmo que essas funções sejam mais consentâneas com a atividade desempenhada pelo tabelião de notas, também se aplicam à atividade do tabelião de protesto, que deverá proceder da mesma maneira.
Deste modo, se é um dever do tabelião velar pela autenticidade, segurança e eficácia dos atos e negócios jurídicos de particulares, espera-se uma postura ativa da intervenção, justamente para se evitar violações ou lesões a direitos e interesses tutelados por ela. Entendimento contrário implicaria em perda de confiança do cidadão no sistema, já que resultará na possibilidade de que o ingresso do título ou outro documento de dívida sob o olhar qualificatório do tabelião não implique em garantia da segurança e eficácia do que lhe foi confiado para exame.
Se optar por não desistir do protesto, deve prevalecer a sua decisão. Caso contrário, o ingresso do título dentro das hipóteses legais é de rigor, para assegurar o direito do apresentante de protestar o título que se encontra regular em seus caracteres formais.
Não se pode permitir uma análise peremptória, a induzir que o tabelião tenha o poder de negar o ingresso do título ou outro documento de dívida de forma definitiva no protesto, pelo simples fato de estar prescrito.
Como vimos, o tabelionato do protesto não é instância sujeita ao contraditório, de modo que se assegure legitimidade suficiente para declarar prescrição, ato jurisdicional.
É plenamente possível que o devedor pague a dívida, renunciando à prescrição, dívida que será irrepetível por expressa previsão legal (art. 882 do Código Civil).
Também pode estar presente situação que impeça, de alguma forma, a fluência do curso do prazo prescricional, situação que o Tabelião muitas vezes não tem condição de identificar da simples análise do título, ou mesmo de indagar a qualquer das partes, justamente pela falta de previsão de um procedimento que assegure ampla liberdade às partes de formularem alegações, sujeitas aos princípios da ampla defesa e contraditório, dentro do Tabelionato.
Em última instância, não é possível desconsiderar a redação da Lei de Protesto, que está em plena vigência, não obstante o decidido pelo STJ no âmbito do AgRg no AgRg no REsp n. 1.100.768/SE.
Não se pode perder de vista, por fim, que a prescrição da pretensão executiva, relacionada ao rito especial do CPC destinado aos títulos líquidos, certos e exigíveis não retira do credor o direito de pleitear judicialmente a dívida com base na prova escrita sem eficácia de título executivo, ou até mesmo por intermédio de procedimento comum, sujeito a ampla dilação probatória.
Nem todas as possibilidades podem ser antevistas de plano pelo Tabelião, de modo que deve ser assegurado ao credor, sob sua responsabilidade, optar por correr ou não o risco de protestar títulos ou outros documentos de dívida prescritos.
Se o tabelião não tem condições de aferir, e desde já descartar, todas as possibilidades de pretensão por parte de credor, não deve, ainda que sua qualificação técnica possa lhe permitir, obstar o protesto.
Assim, realmente lhe cabe tão somente zelar pela regularidade do registro de protesto, com base nos instrumentos legais e regulamentares, e estando de acordo, caso identifique circunstância relevante, informar o interessado acerca do ato.
Por mais que se enxergue a possibilidade de uma evolução quanto à possibilidade de análise do protesto na qualificação, de modo que a prescrição possa, algum dia, efetivamente obstar o protesto, esse ainda não é o panorama atual.
Logo, a conclusão é a de que, levando em consideração todas as hipóteses levantadas, bem como as discussões jurídicas e implicações práticas da tomada de decisão pelo tabelião, não é possível impor ao tabelião a análise da prescrição dos títulos e outros documentos de dívida submetidos ao protesto, considerando a vedação legal, atualmente prevista no art. 9º, caput da Lei dos Protestos.
Todavia, o tabelião deve: (i) investigar a ocorrência de prescrição tão somente tendo em vista seu dever de assessoramento e zelo pela segurança jurídica dos atos e negócios jurídicos a eles submetidos, visando informar as partes e prevenir litígios acerca de responsabilidade civil, a que possam estar sujeitos em razão do protesto supostamente indevido, consoante definido pela jurisprudência; (ii) lavrar protestos de títulos ou documentos de dívida prescritos, quando o apresentante, mesmo ciente das implicações práticas do ato que pretende que o Tabelião lavre, insiste no registro; (iii) negar o protesto de títulos ou documentos de dívida prescritos apenas quando houver permissão na legislação estadual, a exemplo das normas que autorizem um juízo negativo de qualificação quando constatado indícios de intuito emulatório ou de abuso de direito por parte do apresentante, considerando que, nos demais casos, a norma proibitiva do art. 9º, caput, da Lei n. 9.492/1997, ainda plenamente vigente, considerando o disposto no art. 2º, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n. 4.657/1942) deve prevalecer.
Sugere-se que, no caso da hipótese destacada no item “ii” acima indicado, se exija do apresentante algum termo de consentimento informado, que especifique o vício encontrado, relativo à prescrição, onde este declare ciência expressa acerca das eventuais consequências práticas que possam advir da situação.
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[1] Nesse sentido, o art. 1º, caput, da Lei n. 6.015/1973, com redação dada pela Lei n. 6.216/1975, dispõe o seguinte: “Os serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei.” Da mesma maneira, o art. 1º da Lei n. 8.935/1994 – “Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos” – e o art. 2º da Lei n. 9.492/1997 – “Os serviços concernentes ao protesto, garantidores da autenticidade, publicidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei”.
[2] Em interessante caso submetido à Suprema Corte, examinou-se a conduta de um Registrador de Imóveis que, dentro da sua atribuição de qualificação do título, rejeitou o ingresso na Matrícula de determinado mandado judicial, para os fins de sua configuração como crime de desobediência, tipificado no art. 330 do Código Penal. Entendeu o Pretório Excelso, nos termos do voto relator, pela impropriedade da imputação: "O paciente limitou-se a cumprir dever imposto por lei, pela Lei dos Registros Públicos. Examinando título emanado da jurisdição cível especializada do trabalho - carta de adjudicação -, percebeu que não se contaria, no instrumento, com informações e peças exigidas por lei. Como lhe cumpria fazer e diante, ao que tudo indica, de resistência da parte interessada, suscitou a dúvida e aí, mediante pronunciamento que veio a se fazer coberto pela preclusão maior, o Juízo da Vara dos Registros Públicos disse do acerto da recusa em proceder de imediato ao registro, consignando, inclusive, que a observância das exigências legais, após a dúvida levantada, não seria de molde a obstaculizar a decisão. (...) Assim, não é indispensável definir sobre a possibilidade de se ter, como agente do crime de desobediência, pessoa que implemente atos a partir de função pública, valendo notar, de qualquer maneira, que se procedeu não na condição de particular, não considerado o círculo simplesmente privado, mas por força de delegação do poder público, tal como previsto no artigo 236 da Constituição Federal. O que salta os olhos é a impropriedade da formalização do procedimento criminal, provocado que foi por visão distorcida do órgão da Justiça do Trabalho, como se o Direito não se submetesse à organicidade." (STF, 1ª Turma, HC 85.911-9/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 25/10/2005, DJe 02/12/2005).
[3] De acordo com o Código Civil Peruano, em seu art. 1.989: “La prescrpición extingue la acción pero no el derecho mismo”.
[4] Segundo o Código Civil Espanhol, art. 1.961: “Las acciones prescriben por el mero lapso del tiempo fijado por la ley”.
[5] Pelo Código Civil Russo, o art. 195 dispõe o seguinte “o prazo de prescrição da ação é o prazo durante o qual pode agir a pessoa cujo direito seja violado, para defendê-lo” (tradução livre).
[6] O art. 194 do Código Civil (“O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz”), foi revogado pela Lei n. 11.280/2006, deixando clara a intenção do legislador de manter a prescrição cognoscível ex officio pelo magistrado, opção ilustrada por dispositivos tanto do CPC vigente à época (art. 219, § 5º, CPC/1973), quanto do atual CPC (art. 332, § 1º do CPC/2015).
[7] Nesse sentido, o Enunciado n. 149, da Súmula da jurisprudência do STF: “É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança.”
[8] Enunciado n. 14 da I Jornada de Direito Civil: “1) O início do prazo prescricional ocorre com o surgimento da pretensão, que decorre da exigibilidade do direito subjetivo; 2) o art. 189 diz respeito a casos em que a pretensão nasce imediatamente após a violação do direito absoluto ou da obrigação de não fazer”.
[9] Nesse sentido, o Enunciado n. 531, da Sumula da jurisprudência do STJ: “Em ação monitória fundada em cheque prescrito ajuizada contra o emitente, é dispensável a menção ao negócio jurídico subjacente à emissão da cártula”.
[10]O Enunciado de súmula n. 17, do Tribunal de Justiça de São Paulo tinha a seguinte redação: “A prescrição ou perda de eficácia executiva do título não impede sua remessa a protesto, enquanto disponível a cobrança por outros meios”.
[11] A redação do mencionado item, com as modificações do Provimento CGSP n. 27/2013, e atualmente revogado, era a seguinte: “16. Na qualificação dos títulos e outros documentos de dívida apresentados a protesto, cumpre ao Tabelião de Protesto de Títulos examiná-los em seus caracteres formais, não lhe cabendo investigar a ocorrência da prescrição ou caducidade”.
Este artigo foi publicado em 03/02/2022 e republicado em 19/03/2024
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário UDF (2014). Possui especialização em Direito Público pela Escola da Magistratura do Distrito Federal (2021) e em Direito Notarial e Registral pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva (2021). Exerceu o cargo público de Técnico Judiciário no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (2016 a 2021). Atualmente é Analista Judiciário - Área Judiciária - no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Geovanny Matsumoto de Almeida. A (im)possibilidade da análise da prescrição do título ou documento de dívida pelo tabelião de protesto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 mar 2024, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58054/a-im-possibilidade-da-anlise-da-prescrio-do-ttulo-ou-documento-de-dvida-pelo-tabelio-de-protesto. Acesso em: 23 dez 2024.
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