Resumo: O artigo tem por objetivo revisitar questões relacionadas à arbitragem envolvendo contratos administrativos, resgatando alguns aspectos essenciais do tema, desde as condições gerais para se arbitrar conflitos envolvendo a Administração Pública até questões mais específicas.
Palavras-chave: Arbitragem. Contratos administrativos. Arbitrabilidade objetiva. Arbitrabilidade subjetiva. Particularidades
Sumário: 1. Introdução: a arbitragem no contexto da nova contratualidade administrativa. 2. Fundamentos jurídicos para a arbitragem em contratos administrativos. 3. Particularidades da arbitragem em contratos administrativos. 4. Conclusão.
1.Introdução: a arbitragem no contexto da nova contratualidade administrativa
A reforma do Estado brasileiro, iniciada em meados da década de 1990, trouxe significativa mudança na lógica de organização e de operacionalização da Administração Pública no Brasil. Se, tradicionalmente, a figura jurídica do contrato administrativo era a de ser apenas mais uma das formas de expressão da autoridade da Administração Pública sobre o particular, em uma nítida relação de hierarquia, as tendências atuais do Direito Administrativo se deslocam para um regime jurídico cada vez mais próximo das figuras típicas do Direito Privado, principalmente as consensuais.
A “nova contratualidade administrativa”, terminologia encampada pela doutrina mais gabaritada[1] e que tem ecoado no meio acadêmico e profissional do Direito Administrativo, pode ser entendida justamente como esse fenômeno de deslocamento do eixo da autoridade (pautado no poder de império da Administração e no abuso de atos administrativos) para o da consensualidade (pautado na paridade entre a Administração e o particular e na crescente utilização de novas formas contratuais).
Ao lado da consensualidade, outra característica central desse fenômeno é a maior flexibilidade na alocação de riscos em contratos administrativos, principalmente nos decorrentes de parcerias público-privadas e de concessões públicas em geral. Cada vez mais são transferidos ao particular maiores riscos na execução do contrato, desonerando-se o contratante público de arcar com todos os prejuízos que possam advir no curso do contrato. No entanto, essa modificação na lógica de alocação de riscos pressupõe contratos administrativos com conteúdos econômico-financeiros mais arrojados, o que, consequentemente, leva a disputas mais complexas entre a Administração Pública e o particular quando o inadimplemento de uma das partes é verificado.
Paralelamente a todo esse cenário de reforma do Estado brasileiro, de expansão da Administração Pública contratual e de conflitos mais complexos decorrentes dos novos modelos de contratos administrativos adotados, foi promulgada, em 1996, a Lei 9.307/1996 ("Lei de Arbitragem"), destinada a solucionar conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis envolvendo partes capazes de contratar.
Contudo, o diploma legal não previa expressamente a arbitragem como método de resolução de conflitos pela Administração Pública, dando ensejo a amplos debates acerca de seu cabimento. A Lei de Arbitragem foi alterada pela Lei 13.129/2015, passando a prever expressamente a possibilidade de utilização da arbitragem pela Administração[2].
Nesse contexto, o presente artigo tem por objetivo revisitar questões relacionadas à arbitragem envolvendo contratos administrativos. Serão resgatados alguns aspectos essenciais do debate, desde as condições gerais para se arbitrar conflitos envolvendo a Administração Pública até questões mais específicas.
Por se tratar de trabalho que busca revisitar aspectos essenciais do tema, seu objetivo é esboçar pontos que já foram objeto de amplos debates, apresentando o entendimento que se consolidou e referenciando decisões e autores paradigmáticos, sem pretensão de esgotar o tema.
Consolidada essa necessária delimitação inicial, passemos ao desenvolvimento deste trabalho.
2.Fundamentos jurídicos para a arbitragem em contratos administrativos
A disciplina jurídica da arbitragem no Direito brasileiro é algo relativamente recente em termos históricos, tendo como marco referencial a Lei de Arbitragem, declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (“STF”) no fim de 2001[3].
Contudo, muito embora a Lei de Arbitragem, quando da sua promulgação, facultasse “às pessoas capazes de contratar” solucionar por arbitragem conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis, não previu expressamente a utilização da arbitragem nos contratos envolvendo a Administração Pública, ensejando oposição por parte de estudiosos e gestores públicos à adoção desse método de resolução de controvérsias. O próprio Tribunal de Contas da União (“TCU”), vale dizer, já questionou a legalidade da arbitragem no âmbito dos contratos administrativos e de demais tipos de acordos que envolvessem a Administração Pública.
Ainda assim, a arbitragem se tornou opção utilizada pela Administração Pública. Em pouco tempo e devido ao incentivo do setor privado – que necessitava de um meio célere, imparcial e especializado[4] para a resolução de litígios instaurados contra a Administração Pública (federal, estadual e municipal) – a arbitragem começou a ser utilizada no âmbito dos contratos administrativos, amparada, especialmente, por leis setoriais.
Com efeito, muitas das leis setoriais anteriores às alterações introduzidas pela Lei 13.129/2015 – a exemplo da Lei 12.815/2013 (Lei dos Portos, artigo 62, §1º); Lei 10.848/2004 (Lei do setor elétrico, artigo 4º, §§5º e 6º); e Lei 11.442/2007 (Lei que regulamenta o transporte rodoviário de cargas, artigo 19), dentre tantas outras – já continham referências expressas à opção pela via arbitral para solicitar conflitos relativos a contratos entre poder público e setor privado. Essa evolução se acelerou com a previsão de arbitragem na Lei 11.079/2004 (lei que regulamenta as parcerias público-privadas, artigo 11, inciso III) e na Lei 8.987/1995 (Lei de concessões, alterada pela Lei 11.196/2015, que introduziu o artigo 23-A).
Ante a importância do posicionamento judicial, cabe mencionar que o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) também proferiu decisões favoráveis à arbitragem em contratos com a Administração Pública, a despeito da inexistência, à época, de previsão expressa na Lei de Arbitragem[5].
Fato é que a evolução normativa e jurisprudencial culminou na alteração da Lei 9.307/1995, por meio da Lei 13.129/2015, que passou a prever expressamente a possibilidade de os entes estatais utilizarem-se da arbitragem para a resolução de conflitos atinentes a direitos disponíveis, com a inclusão do §1° ao artigo 1° da Lei 9.307/1996.
A previsão expressa da possibilidade de resolução de disputas envolvendo o poder público no campo da arbitragem, embora não seja em si uma inovação, é bastante louvável, sobretudo porque traz maior segurança jurídica para os envolvidos. Ao menos em tese, suplantaram-se discussões a respeito da legalidade dessa opção, subsistindo atualmente debates acerca dos eventuais limites e peculiaridades procedimentais necessários ou convenientes quando a Administração Pública é parte na arbitragem.
Firmada tal premissa, passaremos a abordar, por uma questão de metodologia científica, aspectos legais que embasam tal afirmação.
2.1Arbitrabilidade de conflitos
Todo e qualquer conflito possui dois aspectos que devem ser analisados antes de ser submetido à arbitragem: (i) a natureza e o alcance das partes envolvidas no litígio e (ii) a natureza e o regime jurídico das questões e dos fatos subjacentes em discussão. É o que a doutrina denomina, respectivamente, de arbitrabilidade subjetiva e arbitrabilidade objetiva.
2.2 Arbitrabilidade subjetiva de conflitos envolvendo a Administração Pública
O conceito de arbitrabilidade subjetiva decorre da própria dicção do artigo 1º da Lei de Arbitragem: “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. Nos dizeres de Selma Lemes, a arbitrabilidade subjetiva “refere-se a todas as pessoas capazes na acepção civil, pessoas no gozo de seus direitos e obrigações, sejam físicas ou jurídicas, de Direito Privado e Público”[6].
Em síntese, da leitura desse dispositivo, extrai-se, como critério para a arbitrabilidade subjetiva de conflitos, que as partes sejam capazes de contratar. É essa a única exigência legal para qualquer pessoa (natural ou jurídica) ser parte em uma arbitragem.
No âmbito do Direito público e administrativo, a arbitrabilidade subjetiva se refere à capacidade para poder se submeter à arbitragem seja como pessoa jurídica de Direito público (Administração Pública direta e autarquias), seja como pessoa jurídica de Direito privado (empresas públicas e sociedades de economia mista)[7] e, sobre esse ponto, como visto no item 2, não há dúvidas acerca da arbitrabilidade subjetiva de disputas envolvendo a Administração Pública, direta ou indireta, e os entes privados, haja vista o disposto no §1º do artigo 1º da Lei de Arbitragem.
2.3 Arbitrabilidade objetiva de conflitos envolvendo a Administração Pública
Com relação à arbitrabilidade objetiva de conflitos envolvendo a Administração Pública, o artigo 1º da Lei de Arbitragem determina que somente podem ser submetidos ao juízo arbitral os litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis[8]. Na seara de Direito público, portanto, a pergunta que se faz acerca da arbitrabilidade objetiva diz respeito à natureza das obrigações decorrentes de contratos envolvendo entes públicos ou contratos que envolvam estes e os particulares.
Administradores, agentes públicos e parte da doutrina, historicamente, defendem que, nesses casos, os interesses em disputa envolveriam interesse público e, diante disso, seriam indisponíveis por natureza[9]. Nesse sentido, muitas decisões do TCU consideraram ilegal a inclusão de convenções de arbitragem em contratos administrativos[10] e [11].
No entanto, doutrina e jurisprudência majoritárias firmaram posicionamento em sentido contrário, considerando que as disputas envolvendo a Administração Pública e entidades privadas são objetivamente arbitráveis. Esse entendimento decorre, em especial, da distinção apresentada pela doutrina entre o que se conhece por interesse público primário e interesse público secundário[12].
Essencialmente, a distinção entre interesse público primário e secundário reside no fato de que, enquanto aquele é amplo, baseado em princípios genéricos e coletivos do direito público, este deriva da vontade da própria Administração e, embora deva ser coincidente com o interesse público primário, com ele não se confunde.
Portanto, para determinar se um litígio é objetivamente arbitrável ou não, deve-se considerar apenas a distinção entre o interesse público primário e o secundário. O entendimento que prevalece é que, se a disputa envolve contratos administrativos relacionados com a atividade empresarial (i.e. interesse público secundário), a arbitragem mostra-se adequada e legalmente permitida.
Nesse sentido, o ex-ministro Eros Roberto Grau afirma que "embora a Administração disponha, nesse dinamismo [de acordos com particulares], de poderes que se toma como expressão de puissance publique (alteração unilateral da relação, v.g.), essa relação não deixa de ser contratual"[13].
Assim, uma vez que as obrigações contratuais são genericamente disponíveis e sujeitas também a um regime de direito privado, os interesses secundários da Administração Pública são livremente disponíveis e sujeitos a negociações e a acordos, de modo que disputas envolvendo tais interesses (de natureza patrimonial) são totalmente arbitráveis do ponto de vista da legislação brasileira[14]. A jurisprudência dos tribunais superiores – tanto do STF[15] quanto do STJ[16] – compartilha desse entendimento, reconhecendo que convenções de arbitragem no âmbito dos contratos administrativos que tratem do interesse público secundário são legalmente válidas.
O que se pode concluir até aqui é que, do ponto de vista legislativo, a autorização para a Administração Pública se vincular a convenções de arbitragem é claramente determinada, decorrendo de disposições expressas e implícitas do ordenamento jurídico brasileiro, em todos os seus níveis (federal, estadual e municipal).
Ainda no que diz respeito à arbitrabilidade objetiva das disputas envolvendo o poder público, a nova Lei de Licitações e Contratações (Lei 14.133/2021) também se alinha ao que já é a prática arbitral consolidada. Em seu artigo 151, parágrafo único, tem-se um rol de hipóteses em que litígios relacionados às licitações versarão sobre direitos patrimoniais disponíveis, como questões relacionadas a: (i) restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato; (ii) inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes; e (iii) cálculo de indenizações[17].
No entanto, sendo esse rol meramente exemplificativo, outras disputas decorrentes dos contratos de licitação, desde que versem igualmente sobre direitos patrimoniais disponíveis, também poderão ser resolvidas por arbitragem.
Filiando-nos à doutrina majoritária e admitindo-se como superada a questão do impedimento de arbitragem em contratos administrativos, entendemos como plenamente arbitráveis as controvérsias decorrentes de contratos celebrados entre a Administração Pública e particulares, desde que referentes a aspectos financeiros, com consequências pecuniárias, ou qualquer outro aspecto de natureza disponível, que não afete o interesse público primário.
Por outro lado, deve ser mantido o entendimento de que a arbitragem não é adequada para solucionar questões atinentes a direitos indisponíveis previstos em um contrato administrativo, vedando-se, por exemplo, discussões acerca da validade ou não da prerrogativa da Administração Pública de alterar ou de rescindir unilateralmente um contrato administrativo (“cláusulas exorbitantes”), ou, então, discussões sobre a legalidade ou não de um determinado tributo que, eventualmente, incida sobre o particular no curso do contrato.
3.Particularidades da arbitragem em contratos administrativos
Uma vez demonstrada a possibilidade de conflitos decorrentes de contratos administrativos serem submetidos à arbitragem, e delimitada a matéria objeto do litígio que pode ser submetida à via arbitral, uma análise especial deve ser feita sobre as particularidades desse tipo de arbitragem.
Como principais aspectos a serem destacados neste capítulo, a Lei de Arbitragem permite que as partes escolham: (i) qual será a lei aplicável ao litígio[18]; (ii) se a arbitragem será institucional ou ad hoc[19] e, se institucional, qual a instituição arbitral que irá conduzir a arbitragem[20] e (iii) qual o regramento processual que será dado à arbitragem, incluindo o idioma dos atos a serem praticados, a sede da arbitragem e os parâmetros de confidencialidade do processo[21]. No entanto, como mencionado anteriormente, a arbitragem em contratos administrativos tem certas peculiaridades que não são comuns em disputas estritamente comerciais, devendo ser dada atenção a esse fato a fim de serem celebradas convenções de arbitragem de forma adequada.
3.1 Lei aplicável ao mérito do conflito
Apesar da autonomia geral das partes para escolher a lei aplicável, dada pela Lei de Arbitragem, há uma restrição particular na escolha da lei aplicável em contratos administrativos. Como mencionado anteriormente, a Administração Pública está vinculada ao princípio da legalidade, previsto, expressamente, na Constituição Federal de 1988[22]. Ela não pode, pois, sujeitar-se a uma lei estrangeira que é alheia à soberania e à ordem pública nacionais. Apesar de esses conceitos (principalmente o de “ordem pública”) serem de difícil definição, é pacífico, na doutrina, que essa restrição faça parte do regime jurídico pátrio e deva ser aplicada a todas as arbitragens envolvendo contratos administrativos[23] e a Administração Pública em geral.
3.2 Escolha de arbitragem institucional v. arbitragem ad hoc
Como não há regra explícita determinando se arbitragens envolvendo contratos administrativos devem ser arbitragens institucionais ou ad hoc, a maioria dos doutrinadores[24] considera que a falta de regras dispondo especificamente sobre esse assunto é justamente uma autorização implícita para a Administração Pública escolher a forma que julgar relevante.
Além disso, inexiste exigência para que a Administração Pública inclua essa opção por arbitragem institucional ou ad hoc no edital[25], embora isso seja altamente recomendável. Aliás, o próprio STJ declarou esse entendimento[26]. Assim, a Administração Pública tem autonomia para prever ou não tal escolha no edital.
3.3 Idioma e sede da arbitragem
Muito embora a Lei de Arbitragem nada disponha sobre o idioma da arbitragem envolvendo a Administração Pública, uma interpretação sistemático-constitucional do ordenamento jurídico brasileiro leva ao entendimento de que deve ser utilizado o português[27]. Além disso, no âmbito da legislação federal, há alguns diplomas que dispõem expressamente sobre o uso do português[28].
Quanto à sede da arbitragem, merece destaque previsão da nova Lei de Licitações e Contratações. Ao persistir afirmando que o foro da sede da Administração é o competente para dirimir questão decorrentes da aplicação de previsões contratuais (artigo 92, §1º), salvo exceções taxativamente previstas, a nova lei não excepcionou a arbitragem dessa regra geral (artigo 151). Como a noção de Administração é utilizada pela nova lei para designar o "órgão ou entidade por meio do qual a Administração Pública atua" (artigo 6º, inciso III), parece-nos haver sido limitado o campo de liberdade da Administração Pública para eleição dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputa, de modo que eles devem estar localizados na sede da Administração (pois este é o foro competente para dirimir controvérsias decorrentes da aplicação do contrato). Anteriormente ao advento da lei, admitia-se a fixação de foro de eleição, em vista do silêncio da Lei 8.666/1993, a respeito desse instituto (da arbitragem, portanto)[29]. Já agora, sendo cogente o foro para dirimir qualquer espécie de controvérsia, passou a haver vinculação para Administração Pública e, reflexamente, ao administrado.
3.4 Confidencialidade v. Publicidade
A obrigatoriedade da confidencialidade em arbitragens (inclusive entre particulares) é um mito, embora comumente preestabelecida pelas instituições arbitrais. Não só a Lei de Arbitragem é omissa[30] quanto a dispor se as arbitragens são confidenciais per se ou não, como é também inquestionável a necessidade de o processo arbitral envolvendo contratos administrativos observar o princípio constitucional da publicidade[31], que não pode ser derrogado.
Alguns doutrinadores[32] fazem uma interpretação restritiva da publicidade em tais casos, afirmando que uma publicidade mitigada poderia ser aplicável, na qual apenas a publicação interna (dentro do órgão público, para fins de análise pelos órgãos de controle) das decisões seria necessária, e não uma publicidade geral. Esse ponto, no entanto, é discutível e ainda não está pacificado.
De todo modo, em se tratando de um conflito envolvendo a Administração Pública, parece-nos que a mitigação da publicidade deve se dar apenas em casos excepcionais. As boas práticas de governança pública, traduzidas na expressão inglesa accountability, impõem, cada vez mais, a observância da transparência sempre que a esfera pública estiver envolvida. É o que se percebe, inclusive, na esfera legislativa, que produz, cada vez mais, diplomas que homenageiam o acesso à informação e a ampla publicidade de atos oficiais. Ademais, no caso dos contratos administrativos, é importante frisar que eles decorrem de processos licitatórios nos quais a publicidade e a transparência são condições preliminares, sendo contraditório à lógica dos contratos públicos, portanto, qualquer ato que vise a mitigar a ampla publicidade.
Não obstante, sabendo-se que questões concorrenciais sensíveis (tais como estratégias de negócios e técnicas comerciais) são discutidas nas arbitragens comerciais, não se pode desconsiderar que a ampla divulgação dessas informações poderia causar prejuízos aos particulares, o que, inclusive, poderia inibir (ou ao menos desestimular) a contratação com Administração Pública. Por esse motivo, como bem sugere a melhor doutrina[33], em sendo o caso de ser necessário observar a publicidade do processo arbitral, pode-se seguir o procedimento adotado em processos administrativos no âmbito da legislação de defesa da concorrência, nos quais há tratamento especial para documentos sigilosos dos envolvidos, formando-se autos em apartado quando requerido pelas partes[34].
Podemos afirmar que a (já não tão) nova contratualidade administrativa permite a admissão do juízo arbitral para a solução de conflitos instaurados entre a Administração Pública (direta e indireta) e os particulares, desde que envolvam direitos disponíveis e que não afetem o interesse público primário.
De fato, há diversos dispositivos legais que, expressa ou implicitamente, preveem a arbitragem como método de resolução de conflitos. A doutrina e a jurisprudência, que antes buscavam afastar a aplicação da arbitragem no âmbito dos contratos administrativos, hoje, defendem posição em sentido contrário.
Evoluiu-se, inclusive, para um regramento específico das arbitragens em contratos administrativos. A lei aplicável ao mérito do conflito, por exemplo, deve ser obrigatoriamente a brasileira, por expressa imposição legal. Além disso, existem restrições quanto ao idioma (obrigatoriamente o português) e à sede da arbitragem (obrigatoriamente na sede da Administração). Por fim, o princípio da publicidade impede que as arbitragens envolvendo entes públicos sejam confidenciais, salvo em situações excepcionais.
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[1] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Do contrato administrativo à Administração contratual, in Revista do Advogado, n. 107, dez/2009, p. 74.
[2] Altera a Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, e a Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, para ampliar o âmbito de aplicação da arbitragem e dispor sobre a escolha dos árbitros quando as partes recorrem a órgão arbitral, a interrupção da prescrição pela instituição da arbitragem, a concessão de tutelas cautelares e de urgência nos casos de arbitragem, a carta arbitral e a sentença arbitral, e revoga dispositivos da Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996.
[3] STF, AgRg na SE 5206/EP, julgado em 12.12.2001.
[4] Uma vez que os árbitros indicados pelas partes podem ser técnicos/especialistas na matéria objeto de discussão, diferentemente do que ocorre, geralmente, no âmbito do Poder Judiciário, o que representa ampla vantagem da arbitragem nesse aspecto (LEMES, Selma. Arbitragem na Concessão de Serviço Público – Perspectivas, in Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, vol. 17, jul/2002, p. 342).
[5] AgRg no MS 11.308/DF, Rel. Min. Luiz Fux, publicado em 14.8.2006; REsp 612.439/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, publicado em 14.9.2006; REsp 606.345/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, publicado em 8.6.2007; REsp 904.813/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, publicado em 28.2.2012.
[6] Arbitragem na Administração Pública – Fundamentos Jurídicos e Eficiência Econômica. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 116.
[7] Como ensina Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, 27ª ed., São Paulo: Malheiros, p. 65), “o Estado, tal como os demais particulares, é, também ele, uma pessoa jurídica, que, pois, existe e convive no universo Jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito”.
[8] “Art. 1º. As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”
[9] Sobre o tema, os ensinamentos de Eros Roberto Grau: “[...] a doutrina tem tropeçado em injustificada confusão entre indisponibilidade do interesse público e disponibilidade de direitos patrimoniais. Um e outro não se confundem. [...]. Assim, é evidente que quando se afirma que a arbitragem se presta a 'dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis' isso não significa que não possa, a Administração, socorrer-se dessa via visando ao mesmo fim. Pois não há qualquer correlação entre disponibilidade ou indisponibilidade de direitos patrimoniais e disponibilidade ou indisponibilidade do interesse público. Dispor de direitos patrimoniais é transferi-los a terceiros. Disponíveis são os direitos patrimoniais que podem ser alienados. A Administração, para realização do interesse público, pratica atos, da mais variada ordem, dispondo de determinados direitos patrimoniais, ainda que não possa fazê-lo em relação a outros deles. Por exemplo, não pode dispor dos direitos patrimoniais que detém sobre os bens públicos de uso comum. Mas é certo que inúmeras vezes deve dispor de direitos patrimoniais, sem que com isso esteja a dispor do interesse público, porque a realização deste último é alcançada mediante a disposição daqueles. [...]. Daí porque, sempre que puder contratar, o que importa disponibilidade de direitos patrimoniais, poderá a Administração, sem que isso importe disposição do interesse público, convencionar cláusula de arbitragem”. (Arbitragem e Contrato Administrativo, in Revista Trimestral de Direito Público - RTDP 32/20).
[10] Por exemplo, como determinado no Acórdão 537/2006 – 2ª Câmara, TCU, extraído do procedimento 005.250/2002-2; e Acórdão 1099/2006 – Plenário, TCU, extraído do procedimento 008.402/2005-4.
[11] A despeito da posição tradicional do TCU, a jurisprudência considera que como este órgão não possui jurisdição para apreciar a matéria, suas decisões não são mandatórias e não acarretam a preclusão do direito de ajuizamento de uma ação judicial posterior com o mesmo objeto.
[12] Sobre o tema, o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello: “É que, além de subjetivar interesses, o Estado, tal como os demais particulares, é, também ele, uma pessoa jurídica, que, pois, existe e convive no universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito. Assim, independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhes são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob o prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito. Similares, mas não iguais. Isto porque a generalidade de tais sujeitos pode defender estes interesses individuais, ao passo que o Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos, (situações, pois, inteiramente diversa da dos particulares), só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses púbicos propriamente ditos, coincidam com a realização deles. [...] Esta distinção a que se acaba de aludir, entre os interesses públicos propriamente ditos – isto é, interesses públicos primários do Estado – e interesses secundários (que são os últimos a que se aludiu), é de trânsito corrente e moente na doutrina italiana [...].” (Op. cit., p. 66).
[13] GRAU, Eros Roberto. Arbitragem e Contrato Administrativo, in Revista da Escola Paulista da Magistratura, vol.3, nº 2, jul/2002, p. 53.
[14] Essa opinião é dividida por CARMONA, Carlos Alberto, op. cit.; RIBEIRO, Diogo Albaneze Gomes, op. cit.; SALLES, Carlos Alberto de. Op. cit.; BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. O Direito Administrativo, a Arbitragem e a Mediação, in Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 32, p.33; MONTEIRO, Alexandre Luiz Moraes do R. Administração Pública Consensual e a Arbitragem, in Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 35, p. 107; SALLA, Ricardo Medina. Arbitragem e direito público, in Revista Brasileira de Arbitragem, vol.5, n.22. pp. 78-106.
[15] A decisão do AI 52181/GB é pragmática ao afirmar ser cabível a arbitragem em disputas envolvendo entidades públicas e privadas.
[16] O “leading case” é a decisão proferida no REsp 612.439/RS, Rel. Ministro João Otávio De Noronha, Segunda Turma, julgado em 25.10.2005.
[17] Tais disposições seguem o que já foi discutido na I Jornada de Direito Administrativo, por meio do enunciado nº 19, o qual destaca que “as controvérsias acerca de equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos integram a categoria das relativas a direitos patrimoniais disponíveis” e, assim sendo, se admitirão os “meios extrajudiciais adequados de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem”.
[18] Ib., art. 2º.
[19] Lei de Arbitragem, art. 21.
[20] Ib., art. 5º.
[21] Ib., art. 21.
[22] Constituição Federal de 1988, art. 37, caput.
[23] MARTINS, Amanda Athayde Linhares. Idioma, sede e lei material estrangeiros na arbitragem com a Administração Pública, in Revista Brasileira de Arbitragem, vol.8, n.29, 2011, p. 74-107.
[24] Por exemplo, RIBEIRO, Diogo Albaneze Gomes, op. cit., p. 180.
[25] Idem, ibidem, p. 182-183.
[26] “O fato de não haver previsão da arbitragem no edital de licitação ou no contrato celebrado entre as partes não invalida o compromisso arbitral firmado posteriormente” (REsp 904.813/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20.10.2011).
[27] Apenas como exemplo de outros dispositivos que permitiriam chegar a esse entendimento, o Art. 13 da CF/88 prevê a língua portuguesa como o idioma oficial da República Federativa do Brasil, o que impõe a adoção desse idioma, inclusive em processos arbitrais, como requisito formal para se vincular a Administração Pública. Veja-se que a observância de um idioma oficial é regra prevista também no próprio processo judicial, cujas regras impõem que documentos em língua estrangeira somente são admitidos e terão validade se acompanhados de tradução juramentada.
[28] Lei 8.987/95, art. 23-A (introduzido pela Lei 11.196/2005) e Lei 11.079/2004, art. 11, inciso III.
[29]. STJ, 3ª Turma, Recurso especial 904.813, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20.10.2011.
[30] Alguns poderiam alegar que o dever dos árbitros de discrição (Lei de Arbitragem, art. 13, §6º) seria um possível fundamento para que a confidencialidade fosse obrigatória nos processos arbitrais. Contudo, não nos parece acertada tal visão. A discrição é um atributo (ou qualidade) que deve nortear todo e qualquer julgador, seja ele um árbitro, um juiz togado ou uma autoridade administrativa, como forma de garantir o bom exercício da função julgadora e não deixar margens para que se cogite de eventual suspeição ou impedimento que o órgão julgador possa ter com as partes ou terceiros interessados. A nosso ver, a discrição do julgador (seja árbitro ou juiz togado) é perfeitamente compatível com um processo plenamente público, não sendo esse um bom fundamento para se tentar sustentar que todo processo arbitral deva ser obrigatoriamente confidencial.
[31] Também previsto no já mencionado art. 37 da Constituição Federal de 1988.
[32] MARTINS, Amanda Athayde Linhares, op. cit., p. 74-107.
[33] LEMES, Selma Maria Ferreira. Arbitragem na Concessão de Serviços Públicos – Arbitrabilidade Objetiva. Confidencialidade ou Publicidade Processual?, in Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, vol. 21, p. 387, jul/2003.
[34] Lei 12.529/11, art. 49, parágrafo único.
Pós graduada em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Mestranda em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Acadêmica de São Paulo – PUC/SP. Advogada em São Paulo
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, MARCELA VOLPONI XAVIER DE SÁ. Arbitragem e contratos administrativos: revisitando aspectos essenciais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 fev 2022, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58107/arbitragem-e-contratos-administrativos-revisitando-aspectos-essenciais. Acesso em: 25 dez 2024.
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