RESUMO: O presente trabalho acadêmico visa analisar a atual forma de composição do Supremo Tribunal Federal e as consequentes implicações na independência das decisões dos ministros, considerando a existência de demasiados interesses políticos, que permeiam as relações organizacionais do Estado brasileiro. Para tanto, será realizado um breve estudo dos modelos de Justiça Constitucional de países como Estados Unidos, Áustria, França, Alemanha e Portugal, a fim de fornecer subsídios para o aprimoramento do atual modelo previsto na Constituição Federal de 1988, para que o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro possa exercer suas funções em maior consonância com as diretrizes democráticas modernas. Ao final, serão apresentadas as nossas considerações finais acerca da natureza política-constitucional da Suprema Corte.
Palavras-chave: Sistema político; Poderes estatais; Supremo Tribunal Federal.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. MODELOS DE JUSTIÇA CONSTITUCIONAL NO DIREITO COMPARADO; 3. BREVE HISTÓRICO DA EVOLUÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL; 4. CIDADANIA E CONTROLE POLÍTICO; 5. PROPOSTAS DOUTRINÁRIAS PARA APRIMORAR A ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL; 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.
1. Introdução
O Supremo Tribunal Federal (STF) situa-se no ápice do Poder Judiciário do Brasil, exercendo a função de controle da jurisdição constitucional, tanto de modo difuso, como concentrado. Como guardião da Constituição Federal, suas decisões assumem um importante papel na consolidação do Estado de Direito.
O STF não é uma corte constitucional apenas, pois exerce mais funções que o controle de constitucionalidade.
Frisa-se, no entanto, que com relação aos seus membros, a nomeação se dá por ingerência do Presidente da República, por critério político, depois de aprovada a escolha por maioria absoluta do Senado Federal, cujo mandato se estenderá até o alcance da idade de 75 anos, o que se efetivará com a aposentadoria compulsória.
Em seu primeiro mandato presidencial, Dilma Rousseff indicou quatro ministros[1] para o Supremo Tribunal Federal, e deveria nomear, em seu segundo mandato, mais cinco outros[2], além do Ministro Luiz Edson Fachin, indicado em 14 de abril de 2015, para preencher a vaga deixada pelo, então ministro, Joaquim Barbosa. Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva indicou oito ministros para a Suprema Corte, dentre os quais três ainda fazem parte da composição atual: Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Dias Toffoli. Dessa forma, Dilma e Lula, juntos, já nomearam treze ministros para o Supremo Tribunal Federal.
Michel Temer, que assumiu a Presidência do Brasil após o impeachmant de Dilma Rousseff, nomeou em 22 de março de 2017 o Ministro Alexandre de Moraes, assumindo a vaga do Ministro Teori Zavascki.
Ao analisar a tabela disponível no site do STF, acerca do número de ministros nomeados por cada Presidente da República, é possível verificar que Dilma e Lula foram os que mais indicaram ministros na história da Nova República do país. Esse dado torna-se preocupante ao se considerar a possibilidade de o Presidente da República optar por nomes que mais se identificam com as ideias governistas. Da mesma forma, o ministro nomeado pode criar uma espécie de gratidão pelo Presidente que o nomeou. (RAMALHO; PASSARINHO, 2014).
Essa etapa, embora importante, acabou por adquirir um caráter homologatório da indicação do presidente. Os debates, nesta fase do processo, são considerados insuficientes para barrar possíveis jogos de interesses. Além disso, há controvérsias sobre como, afinal, é possível determinar o que é o notório saber jurídico e a tal reputação ilibada.
Essa preponderância de ministros indicados pelo atual governo faz reacender a discussão sobre a necessidade de revisão dos critérios para preenchimento deste importante cargo, especialmente pelos aspectos ético e político que cercam tais nomeações. Muitos, inclusive o Ministro Gilmar Mendes, chegaram a dizer que o Brasil corria o risco de ter uma "corte Bolivariana", em alusão ao sistema ditatorial da Venezuela onde o Tribunal Supremo de Justicia (órgão máximo da justiça daquele país), tornou-se uma espécie de poder a serviço do Executivo.
Demais disso, o STF está totalmente alijado do processo de escolha de seus próprios membros, deixando o Poder Judiciário em posição inferior aos outros dois poderes, visto que não há nenhuma interferência de outro Poder na escolha dos representantes dos Poderes Executivo e Legislativo, sendo estes alcançados pelo sistema de “freios e contrapesos” somente no exercício e no controle de suas funções, enquanto que aquele sofre interferências já na sua formação.
Hoje, há ao menos 20 propostas de Emenda à Constituição visam modificar a maneira como o Brasil escolhe os ministros do STF. Apenas uma já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e poderá ser votado no plenário da casa.
Nesse contexto, surgem algumas questões: a forma pela qual os ministros são nomeados interfere na independência das decisões do órgão de cúpula do judiciário? Haveria uma forma mais democrática para compor a Corte?
Diante das peculiaridades existentes em tais Tribunais, resta indagar: qual seria a natureza política-constitucional do STF? Teria ele a natureza genuína de Corte Constitucional nos moldes dos clássicos Tribunais Europeus?
A fim de fornecer parâmetros para uma análise crítica a respeito das questões levantadas, será realizado um breve e sucinto exame sobre as formas de nomeações de ministros em cinco modelos de justiça constitucional.
2. MODELOS DE JUSTIÇA CONSTITUCIONAL NO DIREITO COMPARADO
Os Tribunais Constitucionais são órgãos responsáveis pelo controle judicial de constitucionalidade, o qual, de acordo com Bernardo Gonçalves Fernandes,
[...] visa garantir a supremacia e a defesa das normas constitucionais (explícitas ou implícitas) frente a possíveis usurpações, devendo ser entendido como a verificação de compatibilidade (ou adequação) de leis ou atos normativos em relação a uma Constituição, no que tange ao preenchimento de requisitos formais e materiais que as leis ou atos normativos devem necessariamente observar. (FERNANDES, 2011, p. 895).
É importante ressaltar, no entanto, que existem diferentes formas pelas quais os controles de constitucionalidade são exercidos, sendo possível agrupá-los em três grandes sistemas:
(i) O sistema norte-americano desenvolveu-se a partir do julgamento do caso Marbury x Madison, em 1803, e uma de suas principais características foi a atribuição do controle dos atos normativos em relação à Constituição a todos os órgãos do poder judiciário. (FERNANDES, 2011);
(ii) Já o sistema austríaco, originado desde a Constituição da Áustria de 1920, concentrou a legitimidade para o exercício do controle de constitucionalidade em um órgão específico, qual seja: a Corte Constitucional. (FERNANDES, 2011);
(iii) O sistema francês, por sua vez, teve início a partir da Constituição da V República de 1958, e conferiu a responsabilidade pelo exercício do controle de constitucionalidade a um órgão de cunho político, denominado Conselho Constitucional. (FERNANDES, 2011).
A seguir, serão estudadas características relacionadas à forma de composição de cinco Cortes Constitucionais: norte-americana, austríaca, francesa, alemã e portuguesa.
2.1 Corte Constitucional Norte-americana
A Suprema Corte dos Estados Unidos é composta por nove ministros indicados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado, por maioria simples. O autor Alexandre de Moraes observa, no entanto, que a quantidade de ministros já foi modificada ao longo da história:
[...] Ocorre que, por não ser uma previsão constitucional, já houve alteração nesse número. A Lei Judiciária de 1789 previa seis juízes, sendo posteriormente alterada por leis que previam cinco, seis, sete, nove, dez, sete e novamente nove; sempre, como ressalta Lawrence Baum, “para acomodar os deveres dos juízes nos tribunais federais inferiores e, em parte, para servir a objetivos partidários e de políticas do Presidente do País e do Congresso”. (MORAES, 2003, p. 88).
Apesar de não haver critérios para a escolha dos membros da Corte, Moraes demonstra a preferência da tradição por aqueles formados em Direito:
[...] Salienta-se, porém, que historicamente, somente os membros da profissão de advogado foram escolhidos para o cargo de juiz. Laurence Baum aponta quatro categorias que levam o Presidente da República a escolher um candidato a Suprema Corte: critérios objetivos de competência e ética; preferências políticas; recompensa a associados políticos e pessoais; e busca de futuro apoio político. (MORAES, 2003, p. 89-90).
Deve-se ressaltar, ainda, a impossibilidade de cumulação do cargo de juiz da Corte com qualquer outro cargo no âmbito dos poderes legislativo e executivo, bem como a inexistência de limite de idade mínima ou máxima para a investidura nos cargos, sendo esses de caráter vitalício. O exercício dos membros apenas se encerra com a renúncia, aposentadoria ou impeachment. (MORAES, 2003).
2.2 Corte Constitucional Austríaca
O Tribunal Constitucional da Áustria compõe-se por quatorze membros e seis suplentes. A escolha dos integrantes é realizada tanto pelo poder Executivo quanto pelo poder Legislativo, como bem explicita Alexandre de Moraes:
[...] Assim, o presidente, o vice-presidente, seis membros, e três suplentes serão escolhidos pelo Governo Federal, todos eles entre magistrados, funcionários administrativos e catedráticos das Faculdades Universitárias de Direito e Ciências Políticas. Os outros seis membros e três suplentes serão escolhidos pelo Parlamento, dos quais, três membros e dois suplentes pelo Conselho Nacional, por maioria qualificada, e três membros e um suplente, pelo Conselho Federal, por maioria absoluta. Todos os membros serão nomeados pelo Presidente Federal. (MORAES, 2003, p. 121-122).
Para a investidura nos cargos de membros e de suplentes, são necessários três requisitos: formação em Direito e em Ciências Políticas, além do mínimo de dez anos de atividade em que se exigiu uma das qualificações mencionadas. São previstas, ainda, determinadas incompatibilidades com o exercício do cargo, como o desempenho de outras funções públicas ou privadas, com exceção do magistério. (MORAES, 2003).
Assim como a constituição norte-americana, a constituição austríaca não impõe limite de idade mínima ou máxima para a investidura nos cargos, sendo esses de caráter vitalício. A diferença é que na Áustria existe a previsão de aposentadoria compulsória ao término do ano em que o juiz completar setenta anos de idade. (MORAES, 2003).
2.3 Corte Constitucional Francesa
Do Conselho Constitucional Francês faz parte nove integrantes, além dos ex-presidentes da República. Esses últimos ocupam os cargos como membros natos, ou seja, possuem vitaliciedade. Já os membros não vitalícios são escolhidos por terços pelos Presidentes da República, da Assembleia Nacional e do Senado, para ocuparem os cargos por um período de nove anos, sendo vedada a recondução. (MORAES, 2003).
A constituição francesa garante a alternância dos membros não vitalícios do Conselho, com a renovação de um terço dos cargos, a cada três anos. Prevê, ainda, incompatibilidade entre as funções de membro do Conselho com as de integrantes do parlamento, sendo as demais incompatibilidades determinadas por lei orgânica. Por outro lado, a Constituição não dispõe sobre a existência de requisitos capacitários especiais, assim como não fixa limite de idade mínima ou máxima para a investidura nos cargos. (MORAES, 2003).
2.4 Corte Constitucional Alemã
O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha é composto por dezesseis integrantes, divididos igualmente em dois senados hierarquicamente equivalentes. Esses membros são eleitos pelo Parlamento Federal e pelo Conselho Federal:
[...] Assim, a eleição dos juízes constitucionais deverá ser realizada metade pelo Bundestag (Parlamento Federal) e a outra metade pelo Bundesrat (Conselho Federal), exigindo-se a maioria de dois terços, o que acaba por obrigar os partidos políticos a um consenso, de forma que a escolha reflita a representatividade parlamentar. (MORAES, 2003, p. 156).
Para a investidura nos cargos de membros, são necessários três requisitos: estar em dia com os direitos políticos necessários para o ingresso no Parlamento, estar apto ao exercício da judicatura, além da idade mínima e máxima de quarenta e sessenta anos, respectivamente. Salienta-se ainda a proibição de conciliar a atividade de juiz constitucional com qualquer outra, com exceção do magistério superior em cursos de Direito. (MORAES, 2003).
Não há vitaliciedade para os membros, uma vez que os cargos possuem duração de doze anos, sendo vedado o retorno ao cargo, tanto por meio de reeleição quanto de nova eleição. (MORAES, 2003).
2.5 Corte Constitucional Portuguesa
O Tribunal Constitucional Português compõe-se por treze membros, divididos em duas seções não especializadas, hierarquicamente equivalentes. Fazem parte de cada seção seis integrantes, além do Presidente do Tribunal. A Assembleia da República elege dez juízes, os quais escolherão os três membros faltantes. Alexandre de Moraes faz importante observação sobre o modelo adotado:
[...] Essa opção, porém, não parece atender à finalidade maior de independência política dos juízes constitucionais, pois como relembram Nadais, Vitorino e Canas “ao contrário das várias soluções preconizadas, o Tribunal Constitucional tem uma composição que decorre, directa ou indirectamente, de uma única fonte de designação, a Assembleia da República”. (MORAES, 2003, p. 182).
O acesso ao Tribunal é restrito a juízes dos tribunais judiciais, os quais ocupam seis vagas, e a juristas, que ocupam as sete vagas restantes. Referidos membros estão proibidos de cumular funções, salvo a de professor ou de investigação científica de natureza jurídica, não podendo ser remuneradas. (MORAES, 2003).
Inexiste a previsão de vitaliciedade, uma vez que os cargos possuem duração de nove anos, sendo vedada a recondução. (MORAES, 2003).
3. BREVE HISTÓRICO DA EVOLUÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O órgão de cúpula do Poder Judiciário já fazia parte da realidade brasileira desde o período colonial. Em 1808, Dom João VI criou a Casa de Suplicação do Brasil, com atribuição similar à Casa de Suplicação de Lisboa. No império, por sua vez, foi criado o Supremo Tribunal de Justiça, conforme previsão constitucional, como descreve o autor Leonardo Scofano Damasceno Peixoto:
A Casa de Suplicação do Brasil foi sucedida pelo Supremo Tribunal de Justiça (1829-1891), que perdurou por toda a fase imperial até o alvorecer da República. Nota-se, porém, que a Constituição Imperial de 1824 não contemplava qualquer sistema semelhante ao controle de constitucionalidade moderno, visto que prevalecia, ainda, o dogma da supremacia do Parlamento. De outro lado, ao monarca competia manter o equilíbrio e evitar os abusos entre os poderes (Poder Moderador). (PEIXOTO, 2012, p. 109).
Em 1890, foi criado o Supremo Tribunal Federal, o qual passou por diversas modificações, ao longo das seis Constituições brasileiras:
A Constituição de 1981 previa a nomeação, por parte do Presidente da República, de quinze ministros para a Corte, dentre os cidadãos de notável saber e reputação, elegíveis para o Senado. (PEIXOTO, 2012).
A Constituição de 1934 modificou o nome do Supremo Tribunal Federal para Corte Suprema. Além disso, previa a nomeação, por parte do Presidente da República, de onze ministros, dentre brasileiros natos de notável saber jurídico e reputação ilibada, alistados eleitores, com mínimo de trinta e cinco anos e máximo de sessenta e cinco anos de idade. Ressalta-se que esse último requisito não se aplicava aos magistrados. Foram fixados dois limites de idade para a aposentadoria compulsória: setenta e cinco anos para magistrados e setenta e oito anos para os demais servidores. (PEIXOTO, 2012).
A Constituição de 1937 previa a nomeação, por parte do Presidente da República, de onze ministros para a Corte, após aprovação do Conselho Federal, dentre os brasileiros natos de notável saber jurídico e reputação ilibada, com o mínimo de trinta e cinco anos e o máximo de cinquenta e oito anos de idade. Foi fixado o limite de idade único de sessenta e oito anos para a aposentadoria compulsória. (PEIXOTO, 2012).
A Constituição de 1946 previa a nomeação, por parte do Presidente da República, de dezesseis ministros para a Corte, após aprovação por maioria simples pelo Senado, dentre os brasileiros com idade mínima de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Foi fixado o limite de idade de setenta anos para a aposentadoria compulsória. (PEIXOTO, 2012).
A Constituição de 1967 previa a nomeação, por parte do Presidente da República, de dezesseis ministros para a Corte, após aprovação por maioria simples pelo Senado, dentre os cidadãos com idade mínima de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada. (PEIXOTO, 2012).
A Constituição de 1988 estabelece que o Supremo Tribunal Federal deve ser composto por onze ministros, nomeados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado Federal, por maioria absoluta, sendo um presidente e os demais, divididos em duas turmas de cinco membros, hierarquicamente equivalentes. (MORAES, 2003).
Com efeito, o Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, e a ele compete, precipuamente, a guarda da Constituição, conforme definido no art. 102 da Constituição Federal.
São necessários três requisitos capacitários para a investidura no cargo: ser brasileiro nato (art.12, §3º, IV, da CF/88); estar em pleno exercício dos direitos políticos e possuir notável saber jurídico e reputação ilibada (art.101 da CF/88); e ser nomeado pelo Presidente da República, após aprovação da escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. Dentre as incompatibilidades previstas estão o impedimento para o exercício de outro cargo ou função, exceto a docência; e o envolvimento com a atividade político-partidária. A idade mínima prevista deve ser superior a trinta e cinco anos e a máxima inferior a sessenta e cinco anos de idade. Já a vitaliciedade é adquirida com a posse, no entanto, em razão da previsão de aposentadoria compulsória, os ministros devem deixar o cargo após completarem setenta anos de idade. (MORAES, 2003).
Por se tratar de um órgão de extrema importância no âmbito nacional, e que se encontra em evolução contínua desde seu surgimento, vários autores ponderaram sobre propostas para aprimorar a atuação do STF, algumas das quais serão expostas adiante.
4. CIDADANIA E CONTROLE POLÍTICO
Normalmente, costuma-se limitar o conceito de cidadania ao sufrágio universal, ou seja, como o direito ao exercício do voto como o simples votar e ser votado.
Todavia, no Estado Democrático de Direito, aludido conceito não abarca realmente o que se deve entender por cidadania.
Rosemiro Pereira Leal aduz o seguinte conceito de cidadania:
Cidadania é um deliberado vínculo jurídico-político-constitucional que qualifica o indivíduo como condutor de decisões, construtor e reconstrutor do ordenamento jurídico da sociedade política a que se filiou, porém o exercício desse direito só se torna possível e efetivo pela irrestrita condição legitimada ao devido processo constitucional. (LEAL, 2002, p. 151).
Conforme os ensinamentos do referido autor, constata-se que cidadania não se limita ao direito de votar e ser votado, mas denota um alcance mais amplo, qual seja, o cidadão está apto, além de exercer mencionados direitos, a atuar como construtor e reconstrutor do ordenamento jurídico ao qual se filiou.
Em relação ao tópico ora estudado, Roberta Maia Gresta nos ensina que estado e cidadania não estão em planos hierárquicos distintos, já que na concepção exposta por Leal:
a cidadania não é um beneplácito estatal, mas um vínculo que conecta a pessoa diretamente ao estatuto jurídico-político inscrito na constituição; o ordenamento jurídico não é uma doação do estado, mas objeto de construção e reconstrução permanente por meio de decisões legislativas, administrativas e judiciais; o cidadão não é mero destinatário da tutela estatal, pois participa dessas decisões como condutor. (GRESTA, 2014, p. 09).
Com efeito, o Direito Processual, como ramo do Direito Público, tem suas linhas fundamentais ditadas pelo Direito Constitucional, que fixa a estrutura dos órgãos jurisdicionais, que garante a distribuição da justiça e a declaração do direito objetivo, que estabelece alguns princípios processuais. Alguns dos princípios gerais que informam o processo são, a priori, princípios constitucionais ou seus corolários, tais como, o juiz natural (art. 5º, XXXVII), a publicidade das audiências (art. 5º, LX e 93, IX), a posição do juiz no processo e da subordinação da jurisdição à lei (imparcialidade); e, ainda, os poderes do juiz no processo, o direito de ação e de defesa, a função do Ministério Público, a assistência judiciária, entre outros mais.
A análise da Constituição Federal em vigor contém vários dispositivos que caracterizam a tutela constitucional da ação e do processo. Assim o faz quando estabelece a competência da União para legislar sobre direito processual, unitariamente conceituado (art. 22, I); e quanto aos procedimentos em matéria processual, dá competência concorrente à União, aos Estados e ao Distrito Federal (art. 24, XI).
Por outro lado, convém salientar que o direito de ação, com o correlato acesso à justiça, é ainda sublinhado pela previsão constitucional dos juizados especiais, civis e penais, obrigatórios e todos informados pela conciliação e pelos princípios da oralidade e concentração (art. 98, I).
Com o mesmo espírito, inserem-se a facilitação do acesso à justiça, mediante a legitimação do Ministério Público e de corpos representativos da sociedade civil organizada, na defesa dos chamados interesses difusos e coletivos, de que a Constituição Federal é extremamente rica (art. 5º, XXI e LXX; art. 8º, III; 129, III e §1º; art. 232). O mesmo ocorre com relação à titularidade da ação direta de inconstitucionalidade das leis e dos atos normativos, sensivelmente ampliados (art. 103).
Ressalta-se que os princípios processuais acima referidos expressam os objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, bem como os seus valores supremos como a dignidade da pessoa humana e a ideia de justiça social, a serem necessariamente observados pelo Estado, sob pena da atividade jurisdicional carecer de fundamentação constitucional.
Imprescindível tratar do tema em análise (cidadania) sem mensurar, ainda que por meio de ligeira reflexão, a ideia de controle político. Com apoio na doutrina de Karl Loewenstein, verifica-se a existência de dois tipos de controle político, quais sejam, o controle horizontal e o controle vertical. Os controles horizontais se desenvolvem na seara do próprio aparato estatal, enquanto o controle vertical se realiza entre a sociedade e o Estado.
Especialmente no que se refere ao “controle vertical”, destaca-se que para o referido autor aquele pode ser classificado em três tipos: el federalismo, los derechos individuales y las garantías fundamentales y el pluralismo.
E como verticalização do controle político, tem-se que:
[…] es la circunstancia de que cada una de ellas en su lugar y dentro de su cuadro activa la dinámica del poder entre el nivel alto y el bajo, de tal manera que ejercen la función de un parachoques o de un cojinete dentro del proceso del poder. Entonces, el federalismo sería para él, el enfrentamiento entre dos soberanías diferentes estatales separadas territorialmente y que se equilibran mutuamente. La existencia de fronteras federales limita el poder del Estado central sobre el Estado miembro, y a la inversa. (LOEWENSTEIN, 1976, p 353-359).
Quanto à questão da politização do STF, é importante evidenciar que, de fato, esse fenômeno é intrínseco à natureza da Corte, pois como bem frisou Paulo Adib Casseb,
De forma precisa, essa questão foi exposta em Relatório elaborado pela Comissão de Constituição Justiça e Cidadania do Senado, em 2003, ao opinar pela indicação presidencial ao STF, nos seguintes termos: “não devemos esquecer que esse Tribunal é, por sua própria função de Corte Constitucional, um Tribunal político-jurídico. Isto porque a sua matéria-prima de trabalho, a Constituição da República, é um documento político-jurídico composto por institutos, princípios e regras que admitem, alguns, estrita tradução jurídica, e outros que permitem e até exigem leitura sociológica, política e econômica”. (CASSEB, 2011, p. 585-586).
Referida natureza política não tem o condão de, por si só, influenciar na autonomia das decisões dos ministros, na medida em que “[...] os novatos acabam absorvendo a tradição de independência do STF, ao mesmo tempo em que se veem obrigados a honrar seus currículos, em geral, bastante prestigiados no meio jurídico” (RAMALHO; PASSARINHO, 2014).
O processo de construção da estrutura política e do fomento dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos se encontram acoplados no próprio controle político exercido pelo Poder-Estado.
É nesse sentido, pois, que devemos aprimorar a atuação do Suprema Corte, na condição de guardiã da Constituição Federal de 1988, posto que a cidadania restaura em um Estado Democrático de Direito a verdadeira aptidão do cidadão em construir o ordenamento jurídico no qual se encontra vinculado.
5. PROPOSTAS DOUTRINÁRIAS PARA APRIMORAR A ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Alexandre de Moraes discorre sobre diversas mudanças nas competências e nas formas de composição, investidura e impedimentos da Suprema Corte brasileira, com o objetivo de transformá-la, exclusivamente, em uma Corte de Constitucionalidade. Para o autor,
Essas alterações propiciarão ao STF maior legitimidade para o exercício de seu grave mister de garantidor supremo da Constituição da República Federativa do Brasil e defensor dos direitos fundamentais do ser humano, ao garantir-lhe maior pluralismo, representatividade e complementaridade em sua composição com a participação de juristas, bacharéis em Direito, juízes e membros do Ministério Público. (MORAES, 2003, p.288).
Em relação ao número de ministros, Moraes não vislumbra a necessidade de alteração da composição atual, na medida em que caberá aos integrantes apenas a função interpretativa da Constituição. Quanto à investidura, os membros devem ser escolhidos, de forma proporcional, pelos três poderes estatais, sendo que o Presidente da República e o Congresso Nacional indicarão quatro ministros cada, e os restantes serão escolhidos pelo STF, dentre membros da magistratura e do Ministério Público. O autor ressalta, ainda, a necessidade de haver prévio parecer da Ordem dos Advogados do Brasil sobre as escolhas por parte dos Poderes Executivo e Legislativo. (MORAES, 2003).
No que tange aos requisitos capacitários, Moraes defende a substituição da exigência subjetiva do notável saber jurídico de forma diferenciada para os membros indicados pelos Poderes Executivo e Legislativo e para aqueles escolhidos pela Suprema Corte: dos primeiros, será exigida a atuação como bacharel em direito por, pelo menos, dez anos ou o doutorado em Direito. Já dos últimos será exigida a atuação como magistrado ou como membro do parquet, também pelo período mínimo de dez anos. (MORAES, 2003).
Além disso, é imprescindível restringir o ingresso ao STF de pessoas com qualquer vínculo aos “[...] cargos de confiança do Poder Executivo, mandatos eletivos ou o cargo de Procurador Geral da República, durante o mandato do Presidente da República em exercício no momento da escolha”. (MORAES, 2003, p. 298).
O referido autor destaca também a importância de o ministro ficar impedido de exercer cargos de confiança e mandatos políticos, após o fim do mandato, por um período de quatro anos, bem como dispensa os limites de idade mínima ou máxima para a investidura nos cargos, os quais devem possuir mandatos certos, com duração de dez anos, a fim de não coincidir com os mandatos políticos, sendo vedado o retorno ao cargo, tanto por meio de reeleição quanto de nova eleição. (MORAES, 2003).
Paulo Adib Casseb, por sua vez, assinala que a forma de distribuição das vagas entre magistrados, membros do Ministério Público e advogados já ocorre na Suprema Corte, ainda que apenas na prática, razão pela qual o referido arranjo não refletirá em mudanças efetivas. Sobre a elevação do quórum de aprovação da escolha presidencial, o autor enfatiza a possibilidade de morosidade do processo, em decorrência da falta de consenso entre os parlamentares. Casseb defende, em suma, a realização de pequenos ajustes no modelo vigente, especialmente no que tange à implantação do conhecimento jurídico como requisito para a investidura nos cargos, e a limitação da nomeação de ministros por um mesmo presidente. (CASSEB, 2011).
Já Oscar Vilhena Vieira propõe a redução de competências da Suprema Corte, bem como a qualificação dos processos de deliberação. Para o referido autor, a atuação do STF como Corte Constitucional, Tribunal de última instância e foro especializado dificulta o exercício de sua função precípua, qual seja, a jurisdição constitucional. Vieira vislumbra a necessidade de maior controle da sua agenda, com a utilização de mecanismos como a arguição de repercussão geral, o efeito vinculante e a súmula vinculante, além de maior integridade do sistema judiciário, por meio da utilização do sistema difuso de controle de constitucionalidade:
[...] Ao restringir a sua própria jurisdição, ao se autoconter, o Supremo estaria, ao mesmo tempo, reforçando a sua autoridade remanescente e, indiretamente, fortalecendo as instâncias inferiores, que passariam, com o tempo, a ser últimas instâncias nas suas respectivas jurisdições. É preocupante a posição de subalternidade a que os tribunais de segunda instância foram relegados no /Brasil, a partir de 1988, quando as decisões passaram a ser invariavelmente objeto de reapreciação. (VIEIRA, 2008, p. 458).
Ademais, Vieira ressalta a importância da restrição das competências de natureza monocrática, na medida em que as decisões de um órgão colegiado devem ser fruto de “[...] um maior consenso decorrente de um intenso processo de discussão e deliberação da Corte”. (VIEIRA, 2008, p. 458), e não apenas “[...] uma somatória aritmética de votos díspares”. (VIEIRA, 2008, p. 458).
Para o autor, o processo de deliberação deveria ocorrer em três etapas: a) primeiramente, seria realizada uma seleção dos casos, com a organização da agenda; b) já a fase de produção de provas deveria ser realizada com a presença obrigatória dos ministros; c) as sessões de discussão e julgamento finalizariam o processo. Referida qualificação possibilitaria ao STF delimitar seus padrões interpretativos e, consequentemente, “[...] estabilizar sua própria jurisprudência, bem como a jurisprudência dos tribunais e juízes de primeiro grau”. (VIEIRA, 2008, p. 459).
Por fim, o consultor legislativo Newton Tavares Filho sugere, dentre as diversas ideias mencionadas, uma singular: a submissão dos ministros a referendos populares, por ocasião da nomeação e, periodicamente, a cada dez anos, como ocorre no Japão. Para o consultor, ao mesmo tempo em que seria uma medida democrática, poderia não lograr êxito em razão da natureza técnica do assunto e da extensão continental do país. (FILHO, 2017).
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em vista do acima exposto, e após a análise dos modelos de justiça constitucional no direito comparado e do breve histórico do Supremo Tribunal Federal, conclui-se que diversas sugestões doutrinárias são pertinentes, especialmente aquelas voltadas para uma maior democratização e transparência no processo de nomeação de ministros da Corte.
Montesquieu, jurista e filósofo francês, apoiado na teoria sobre a tripartição dos poderes, já anunciava a necessária e verdadeira independência entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário para um melhor funcionamento do Estado.
De acordo com o modelo institucional adotado pelo Brasil, o controle de constitucionalidade jurisdicional é composto por membros que compõem a estrutura do Poder Judiciário, ou seja, pelos integrantes da carreira da magistratura.
Independentemente de se adentrar ao mérito em relação à transformação da Suprema Corte em um tribunal exclusivamente constitucional, a adoção de medidas, em tese, menos radicais, como, por exemplo, a inserção de requisitos objetivos para a investidura nos cargos de ministros, o estabelecimento de mandatos fixos e de quarentena, a elevação do quórum para aprovação das nomeações no Senado e a inclusão de profissionais de carreiras jurídicas e professores universitários nos processos de escolha, já surtiriam efeitos na forma de atuação da Corte.
Sendo assim, o equilíbrio entre suas funções é que deve ser observado, de forma a garantir que a política da Corte seja uma Corte (também) política.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil: outorgada em 5 de março de 1824. Disponível em: ˂http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em: 13 out. 2017.
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[1] A presidente Dilma Rousseff indicou os ministros Luiz Fux, em 01 de fevereiro de 2011; Rosa Weber, em 07 de novembro de 2011; Teori Zavascki, em 10 de setembro de 2012; e Luís Roberto Barroso, em 23 de maio de 2013.
[2] Deverão deixar os cargos os ministros Marco Aurélio Mello, em julho de 2016; Ricardo Lewandowski, em maio de 2018; Teori Zavascki, em agosto de 2018; e Rosa Weber, em outubro de 2018.
Artigo publicado em 09/03/2022 e republicado nessa nata.
Bacharel em Direito pela Unifenas. Oficial do MP/MG. Agente Fiscal do Procon/MG. Pós-graduado em Direito Civil, Penal, Consumidor.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PACHECO, Eder Jose. A jurisdição política do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 mar 2024, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58132/a-jurisdio-poltica-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 25 dez 2024.
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