GUILHERME SABINO NASCIMENTO SIDRÔNIO DE SANTANA[1]
(coautor)
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a aplicação do Princípio da Legalidade na jurisprudência dos Tribunais Superiores Brasileiros em matéria penal. Trata-se de uma pesquisa descritiva, cujo método empregado é o dedutivo. É dedutivo porque é um processo de análise da informação que utiliza livros, artigos científicos e jurisprudência para obter uma conclusão a respeito do problema. O trabalho foi realizado por meio de pesquisas bibliográficas na área de Direito, mais precisamente na área de Direito Penal.
Palavras-Chave: Princípio da Legalidade. Tribunais Superiores.
Abstract: The purpose of this article is to analyze the application of the Principle of Legality in the jurisprudence of the Brazilian Superior Courts in criminal matters. It is a descriptive research, the deductive method used. It is deductive because it is an information analysis process that uses books, scientific articles and jurisprudence to reach a conclusion about the problem. The work was carried out through bibliographic research in the area of Law, more precisely in the area of Criminal Law.
Keywords: Principle of Legality. Higher Courts
Sumário: 1. Introdução – 2. Princípio da Legalidade – 3. Lei Estrita (Proibição de Analogia – Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege Stricta) – 3.1 Decisão [HC 97.261/RS] – 3.1.1 Emenda da Decisão – 3.1.2 Análise da Decisão – 4. Lei Prévia (Proibição de Retroatividade – Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege Praevia) – 4.1 Decisão [RHC 65.083/MS] – 4.1.1 Ementa da Decisão – 4.1.2 Análise da Decisão – 5. Lei Certa (Exigência de Lei Certa – Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege Certa) – 5.1 Decisão [HC 88.452/RS] – 5.1.1 Ementa da Decisão – 5.1.2 Análise da Decisão – 6. Lei Escrita (Proibição de Costume – Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege Scripta) – 6.1 Decisão [AgRg no REsp 1.167.646/RS] – 6.1.1 Ementa da Decisão – 6.1.2 Análise da Decisão – 7. Conclusão
1. Introdução
A opção do Constituinte Originário por tornar o Estado brasileiro um Estado Democrático e de Direito traz consigo, como consequência obrigatória, a assunção de determinados princípios, entre eles, encontramos princípios aplicáveis ao processo penal. O estabelecimento e a aplicação destes princípios penais significa tornar o direito penal menos violento. Assim, o compromisso assumido pelo nosso Estado Democrático de Direito, na preservação dos direitos e garantias fundamentais daquele que é processado penalmente, está associado, principalmente, ao Princípio da Legalidade (Busato, 2015, p.22).
Decerto que o princípio que constitui a pedra angular do Direito Penal brasileiro é o Princípio da Legalidade, sendo este o princípio do Direito Penal mais importante, na opinião de Greco (2015, p. 144). A organização fundamental do modelo de Estado composto a partir do modelo constitucional se dá através de um postulado básico: a submissão à regra da lei (Busato, 2015, p. 27), possuindo, a legalidade, papel central de garantia do indivíduo contra abusos estatais (Nucci, 2018, p. 293).
Assim, tanto os delitos quanto as penas, bem como os procedimentos de atribuição de responsabilidade e a forma de cumprimento dos castigos, devem estar submetidos à lei. As exigências que derivam do Princípio da Legalidade, mas precisamente de suas garantias: lex previa, lex scripta, lex stricta e lex certa, constituem um conjunto prévio de limites contrapostos à vocação arbitrária do Estado (Busato, 2015, p. 28).
A presente investigação científica tem, portanto, o objetivo de analisar e estudar a aplicação do Princípio da Legalidade (do Direito Penal) pelos Tribunais Superiores brasileiros, especificamente quanto as suas garantias lex previa, lex scripta, lex stricta e lex certa.
2. Princípio da Legalidade
O Estado, ao exercer o poder de estabelecer os delitos e as penas, não o faz de modo absoluto, pois que encontra barreira nos princípios do Estado Democrático e Social de Direito. Nesse sentido, o Princípio da Legalidade cumpre uma função decisiva na garantia de liberdade dos cidadãos, frente ao poder punitivo estatal, eis que somente será válida e legítima a punição se esta estiver de acordo com a lei. Tal pensamento político veio à tona com a Revolução Francesa, que, em princípio, supõe o desejo de substituir o governo caprichoso dos homens pela vontade geral, pela vontade expressa através da lei. O que então se considerava povo (Terceiro Estado), deixou de ser instrumento do poder absoluto do monarca para se tornar partícipe desse poder. (Busato, 2015, p. 28).
A lei penal deve ser claramente compreensível para todos aqueles aos quais se dirige (Beccaria, 1996, p. 35). Daí que se sustenta que o “Governo das Leis” emerge como um ideal frente ao “Governo dos Homens”. Esta ideia é fruto do pensamento iluminista, eternizado na obra “Dos Delitos e das Penas”, de Beccaria; logo, o gérmen do Princípio da Legalidade surge a partir desta obra, que “não é jurídica em sentido técnico, mas filosófica ou filosófico-sociológica” (Bruno, 1984, p. 95), ou seja, é um livro de Filosofia Política e não de Direito Penal.
O Princípio da Legalidade surge com a necessidade de limitar o jus puniendi do Estado – é uma reação ao Estado Absolutista – e é o marco que separa o Período do Terror (emprego de violência desmedida e ilimitada) do Período da Liberalidade (fase científica do Direito Penal que põe a pessoa humana como centro de suas preocupações), sendo esse marco no tempo chamado de Período da Legalidade.
Beccaria tentou sistematizar os princípios do Direito Penal (para que dignidade da pessoa humana fosse respeitada) através de três axiomas basilares:
1) utilidade do castigo – ele acreditava que a lei era a legítima expressão do Contrato Social, tendo a pena o papel de reintegrar o homem a esse contrato (a pena de morte seria inútil, portanto, por não possibilitar essa reintegração);
2) separação de poderes – o criador da lei penal não poderia ser o seu aplicador para que não houvesse abusos de poder; e
3) legalidade dos crimes e das penas – a pena não poderia ser uma vingança e não poderia ser desvinculada do crime, pois a certeza da aplicação da pena seria o que preveniria o delito, além disso, ela precisaria ser geral para que todos, independentemente da posição social, sofressem a mesma punição (Bruno, 1984, p. 95 - 97).
A submissão à lei traduzia, assim, a impossibilidade de existência de crime sem que isso fosse previsto em lei, bem como a impossibilidade de imposição de pena sem que esta estivesse também prevista em lei. É o que hoje conhecemos como Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege (Busato, 2015, p. 30). Convém dizer que este enunciado latino não provém do Direito Romano, mas da obra de Feuerbach, que o apresentou através da sua Teoria da Coação Psicológica (Busato, 2015, p. 30).
Em 1801, Paul Johann Anselm von Feuerbach sistematizou e concretizou o Princípio da Legalidade com a Teoria da Coação Psicológica, segundo a qual a função do Direito Penal é tutelar interesses que estão expressos nos Direitos Subjetivos, esses interesses são tutelados a partir de uma coação psicológica que é conquistada pela publicidade do mal de uma pena – que é uma cominação legal, ou seja, a pena é a consequência de uma lesão jurídica. Ainda segundo Feuerbach, não haverá crime sem lei (Nullum Crimen Sine Lege); não haverá pena sem crime (Nulla Poena Sine Crimen); não haverá crime sem a tutela legal de um interesse (Nullum Crimen Sine Poena Legali), podendo estes preceitos serem resumidos no seguinte brocardo: “Nullum Crimen Nulla Poena sine Lege” (Brandão, 2008, p. 34 - 35).
O Estado de Direito e o Princípio da Legalidade são dois conceitos intimamente relacionados, pois em um verdadeiro Estado de Direito, criado com a intenção de retirar o poder absoluto das mãos do soberano, exige-se a subordinação de todos perante a lei (Greco, 2015, p. 143). Prelecionam Streck e Morais (2000, p. 84) que:
O Estado de direito surge desde logo como o Estado que, nas suas relações com os indivíduos, se submete a um regime de direito, quando, então, a atividade estatal apenas pode desenvolver-se utilizando um instrumental regulado e autorizado pela ordem jurídica, assim como os indivíduos – cidadãos – têm a seu dispor mecanismos jurídicos aptos a salvaguardar-lhes de uma ação abusiva do Estado.
O Princípio da Legalidade pode ser fundamentado politicamente com base na divisão de poderes. Só o Poder Legislativo, em princípio, como órgão que representa a vontade geral, pode estabelecer as leis. Nem o Poder Executivo pode tomar decisão alguma que vá contra a vontade geral, nem o Poder Judiciário aplicar mais direito que o que emana dessa vontade geral (Carbonell Matteu, 1999, p. 109). Nenhuma inciativa de outro poder pode exercer o controle social através do instrumento penal. Portanto, qualquer iniciativa de incriminação penal através de Medida Provisória encontra barreira na dimensão política do Princípio da Legalidade, visto que a edição de Medida Provisória cabe ao Poder Executivo, e não ao Poder Legislativo (Busato, 2015, p. 35). Nesse sentido, Temer (2010, p. 158) diz que:
Ao distribuir as funções do Estado, a soberania popular, expressada na Constituinte, estabeleceu funções distintas para órgãos distintos. Para dizer uma obviedade, o Executivo executa, o Legislativo legisla e o Judiciário julga. Portanto, a função primacial, primeira, típica, identificadora de cada um dos poderes e esta: execução, legislação e jurisdição. No caso do Legislativo, a atividade é entregue ao órgão do poder chamado Poder Legislativo. Pode haver exceção a esse princípio? Digo eu: pode e há. Tanto que, em matéria legislativa, o poder Executivo, por meio do Presidente da República, pode editar medidas provisórias com força de lei, na expressão constitucional. É uma exceção ao princípio segundo o qual ao Legislativo incumbe legislar. Sabemos que quando há exceção a um determinado princípio, a interpretação não pode ser ampliativa. Ao contrário, a interpretação é restritiva. Toda e qualquer exceção retirante de uma parcela do poder de um dos órgãos de governo, de um dos órgãos de poder para outro órgão de governo só pode ser interpretava restritivamente.
Medida Provisória não pode versar sobre matéria penal, é o que estabelece a Constituição Federal em seu art. 62 §1º, I, b. Apenas lei em sentido estrito (ato que emana diretamente do Poder Legislativo) pode versar sobre matéria de direito penal. Sobre o assunto, Masson (2019, p. 20) explica que:
No Brasil, os crimes (e também as contravenções penais) são instituídos por leis ordinárias. Em tese, nada impede o desempenho dessa função pela lei complementar. Mas, como se sabe, a Constituição Federal indica expressamente as hipóteses de cabimento de tal espécie legislativa, entre as quais não se encaixam a criação de crimes e a cominação de penas. É vedada a criação de medidas provisórias sobre matéria relativa a Direito Penal (CF, art. 62, §1º, I, alínea b), seja ela prejudicial ou mesmo favorável ao réu. Nada obstante, o Supremo Tribunal Federal historicamente firmou jurisprudência no sentido de que as medidas provisórias podem ser usadas na esfera penal, desde que benéficas ao agente (RHC 117.566/SP, rel. Min Luiz Fux, 1ª Turma, j. 24.09.2013).
É preciso esclarecer que derivam, do Princípio da Legalidade, requisitos que devem ser tidos em conta, a saber (Busato, 2015, p. 38): a) a existência de uma lei que estabeleça os delitos e as penas (lex scripta); b) as leis devem ser prévias às condutas que constituem delito, que estabelecem suas consequências, que estabelecem o procedimento a seguir e a forma em que devem se cumprir as penas (lex praevia), c) as leis devem ser estabelecidas de forma clara e precisa (lex certa e stricta).
Greco (2015, p. 148) identifica haver legalidade em sentido formal (obediência aos trâmites procedimentais previstos na Constituição) e legalidade em sentido material (obediência ao conteúdo da Constituição, principalmente no que tange aos direitos e garantias fundamentais). Para Cunha (2016, p. 84), o Princípio da Legalidade possui três fundamentos:
a) político: vinculação dos Poderes Executivo e Judiciário às leis elaboradas pelo Legislativo, impedindo o poder punitivo arbitrário;
b) democrático: respeito à tripartição dos poderes; e
c) jurídico: a lei prévia e clara possui efeito intimidativo.
Segundo Nucci (2018, p. 290), a mera legalidade é uma “norma dirigida aos juízes, aos quais prescreve a aplicação das leis tais como são formuladas” e a estrita legalidade designa “a reserva absoluta de lei, que é uma norma dirigida ao legislador, a quem prescreve a taxatividade e a precisão empírica das formulações legais” . Ainda, segundo o doutrinador (Nucci, 2018, p. 290), não se pode, na atualidade, contentar-se com a mera legalidade, pois nem todo tipo penal construído pelo legislador obedece, como deveria, ao Princípio da Taxatividade. O ideal é sustentar a estrita legalidade, ou seja, um crime deve estar descrito em lei, mas bem detalhado (taxativo), de modo a não provocar dúvidas e questionamentos intransponíveis.
O Princípio da Legalidade e suas implicações traçam os limites entre os direitos pessoais – que tornam o homem o centro do Ordenamento Penal, dando a ele uma série de garantias – e o direito de punir do Estado (violência estatal), impedindo que a lei aja analógica e retroativamente para se acomodar a situações desagradáveis aos depositários do poder político. Assim, eles protegem os direitos pessoais e impedem que a potestade punitiva não seja usada de forma arbitrária. Por causa disso, diz Roxin que o Princípio da Legalidade é erigido a garantia fundamental, protegendo o homem pelo Direito Penal e do Direito Penal (Brandão, 2008, p. 50).
A analogia é um processo de interpretação que integra as lacunas existentes no ordenamento jurídico partindo de um argumento de semelhança. O seu uso é expresso no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, onde se diz que quando a lei for omissa “o juiz decidirá de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
Contudo, o seu uso em direito penal é restrito, pois, no silêncio da lei, não é permitido ao juiz integrar a lacuna, ampliando seu sentido, criando um novo tipo penal ou agravando a pena. Nesse sentido, Greco (2015, p. 146) diz que:
O princípio da legalidade veda também o recurso à analogia in malam partem para criar hipóteses que, de alguma forma, venham prejudicar o agente, seja criando crimes seja incluindo novas causas de aumento de pena, de circunstâncias agravantes, etc. Se o fato não foi previsto expressamente pelo legislador, não pode o intérprete socorrer-se da analogia a fim de tentar abranger fatos similares aos legislados em prejuízo do agente.
Desse modo, a proibição de analogia se dá em decorrência do Princípio da Legalidade, pois é um dispositivo de segurança que assegura ao réu a inflição de uma pena que esteja estritamente prevista em lei (Busato, 2015, p. 52). Zaffaroni (1998, p. 175) aduz que:
Se por analogia em Direito Penal se entende completar o texto legal na forma de entendê-lo como proibindo o que a lei não proíbe, considerando antijurídico o que a lei justifica, ou reprovável o que não reprova, ou em geral punível o que não pune, baseando a conclusão em que proíbe, não justifica ou reprova condutas similares, este procedimento de interpretação queda absolutamente vedado no campo da elaboração científico-jurídica do Direito Penal
É importante salientar que a analogia se encontra excluída se é in malam partem, enquanto é admitida caso seja in bonam partem, disso, segue-se, em termos mais gerais, o dever de interpretação restritiva e a proibição de interpretação extensiva das leis penais, pois não é permitido estender as leis penais a delitos não contemplados expressamente. É cruel atormentar o texto das leis para que estas atormentem os cidadãos (Ferrajoli, 2002, p. 308).
A decisão a ser analisada (Habeas Corpus nº 97.261) está assim ementada:
“EMENTA: Habeas Corpus. Direito Penal. Alegação de ilegitimidade recursal do assistente de acusação. Improcedência, Interceptação ou receptação não autorizada de sinal de TV a cabo. Furto de energia (art. 155, § 3º, do Código Penal). Adequação Típica não evidenciada. Conduta típica prevista no art. 35 da Lei 8.977/95. Inexistência de pena privativa de liberdade. Aplicação de analogia in malam partem para complementar a norma. Inadmissibilidade. Obediência ao princípio constitucional da estrita legalidade penal. Precedentes.
O assistente de acusação tem legitimidade para recorrer da decisão absolutória nos casos em que o Ministério Público não interpõe recurso. Decorrência do enunciado da Súmula 210 do Supremo Tribunal Federal.
O sinal de TV a cabo não é energia, e assim, não pode ser objeto material do delito previsto no art. 155, § 3º, do Código Penal. Daí a impossibilidade de se equiparar o desvio de sinal de TV a cabo ao delito descrito no referido dispositivo.
Ademais, na esfera penal não se admite a aplicação da analogia para suprir lacunas, de modo a se criar penalidade não mencionada na lei (analogia in malam partem), sob pena de violação ao princípio constitucional da estrita legalidade. Precedentes.
Ordem concedida.”
(HC 97.261/RS. Min. Relator: Joaquim Barbosa. Segunda Turma, STF. DJE: 02/05/2011. Publicação: 03/05/2011)
Esta decisão trata de um Habeas Corpus, com pedido de liminar, impetrado em favor de Luís Fernando Aliatti. O paciente foi denunciado com base no art. 155, § 3º,[2] na forma do art. 71[3], caput, todos do Código Penal.
Ele foi acusado de subtrair “para si, sinal de TV a cabo, energia com valor econômico equiparável a coisa alheia móvel, pertencente à empresa NET SUL” (trecho do relatório). Por ocasião dos fatos, um técnico contratado pela empresa
“constatou a existência de uma ligação clandestina que levava o sinal da NET de um poste da rua até a residência do acusado. Ocorre que o denunciado não consta da lista de assinantes da Net. Além disso, o aparelho apreendido no interior de sua residência consta como dado em comodato a pessoa de Paulo Eduardo Moreira Fontes. Desta maneira, portanto, o acusado subtraía, para si, o sinal de TV a cabo da NET, furtando energia com valor econômico”.
(Trecho do relatório)
Por várias vezes a ligação clandestina foi desligada pelo técnico, sendo, posteriormente religada, pelo acusado. A ação foi julgada procedente e o réu condenado a um ano e seis meses de reclusão, sendo substituída por prestação de serviços à comunidade – o juiz de primeira instância entendeu que “os sinais de TV a cabo representam espécie de energia dotada de valor econômico, equiparando-se à coisa móvel por incidência da normal contida no aludido dispositivo legal” (trecho do relatório).
Entretanto, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul concluiu que a atitude imputada ao paciente era atípica e o absolveu. O acórdão possui a seguinte ementa:
“FURTO. SINAL DE TELEVISÃO A CABO. ENERGIA NÃO É. CONDUTA PENALMENTE ATÍPICA. ABSOLVIÇÃO.
O sinal de TV a cabo, diferentemente da energia elétrica, a que se refere o Código Penal, não é fonte capaz de gerar força, potência, fornecer energia para determinados equipamentos; diferentemente da energia elétrica, não está o sinal sujeito à apropriação, e, mesurado (medição) pelo seu valor econômico/comercial, causar desfalque patrimonial do fornecedor, nem pode ser mantida em acumuladores e, assim retida e transportada como res furtivae. O sinal de televisão a cabo energia não é. Apenas fornece sinal televisivo e por isso mesmo seu desvio, (gato) não pode ser considerado conduta penalmente típica. Admitir que o sinal seja equiparado à energia elétrica e, assim, contemplar punitivamente o tipo penal do art. 155, § 3º, CP, é elaborar interpretação in malam partem, vedado no sistema penal. Recurso provido.”
(Ementa retirada do acórdão do HC 97.261)
Contra esta decisão, foi interposto Recurso Especial, julgando o Superior Tribunal de Justiça pelo reestabelecimento da condenação. Com esta decisão de restabelecimento da condenação, houve a impetração do Habeas Corpus 97.261/RS, cuja decisão foi ementada na forma transcrita no tópico 3.1.1.
Dessa forma, houve o questionando quanto a tipicidade criminal da ação, qual seja: subtração, interceptação ou recepção não autorizada de sinal de TV a cabo (art. 35 da Lei 8.977/95)[4]. Esse artigo se refere a interceptar ou receptar, que significa “interromper em seu curso, não deixar chegar ao seu destino”, ou ainda “guardar ou esconder coisa furtada por outrem”; não se podendo confundir com subtrair que significa “tirar, retirar ou surrupiar”. Quem intercepta o sinal de TV a cabo não o retira, nem o guarda, nem dele se apossa, e não acarreta prejuízo patrimonial (o que está subentendido no verbo subtrair) – a empresa apenas deixa de receber pela sua recepção ilegal. Ou seja, o paciente não cometeu furto.
Em relação à aplicação do art. 35 da Lei 8.977/95, esta lei é posterior ao acontecido, não podendo retroagir; além disso, ela constitui uma lei em branco, não oferecendo a sanção penal a ser aplicada ao caso. À época da ação, não havia lei que a tipificasse como crime; por isso, esse caso tanto pode ser enquadrado no Princípio da Reserva Legal (ou da estrita legalidade), quanto na exigência de lei prévia.
Toda lei, a priori, rege para o futuro os fatos desde sua entrada em vigor. Precisamente, a exigência de lei prévia constitui uma barreira à retroatividade das leis penais. No nosso ordenamento jurídico, de acordo com o que prevê a Constituição Federal no art. 5º, XL, a lei penal não pode retroagir, a não ser que seja para beneficiar o réu (Busato, 2015, p. 45).
Para Ferrajoli (2002, p. 307), a irretroatividade das leis penais é um corolário do Princípio da Legalidade, cujo brocardo é “Nulla Poena, Nullum Crimen Sine Praevia Lege Poenali”. Se a pena supõe um fato considerado pela lei como sendo uma transgressão, o dano infligido por um fato cometido antes de existir uma lei que o proíba não é um fato punível, mas um ato de hostilidade, pois antes da lei não existe transgressão da lei.
No nosso ordenamento, o Princípio de Irretroatividade vem contemplado juntamente com o Princípio da Legalidade, conforme artigo 1º do Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.
Existe, dentro do Princípio da Legalidade, a proibição da irretroatividade da lei que prejudique o réu. Para Jescheck (1981, p. 184), o fundamento da proibição da retroatividade é a segurança jurídica cuja finalidade é proteger os cidadãos do legislador – que poderia criar punições ou agravar penas – e da comoção (excitação político-social) gerada pela prática de um delito. Já para Bitencourt (2012, p. 205):
a irretroatividade penal é corolário do princípio da anterioridade da lei penal, segundo o qual uma lei penal incriminadora somente pode ser aplicada a determinado fato concreto caso estivesse em vigor antes da sua prática.
A lei, contudo, poderá retroagir para beneficiar o réu, retornando a situações anteriores a sua entrada em vigor. A retroatividade para beneficiar foi, inclusive, introduzida no nosso Código Penal:
“Art. 2º - Ninguém pode ser punido por fato que a lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela todos os efeitos penais da sentença condenatória.
Parágrafo único. A lei posterior, que de qualquer modo favorece o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.
Tratando-se de um Direito Penal dos Fatos, a norma incriminadora constitui a expressão de reconhecimento de uma conduta desvalorada socialmente em um determinado momento histórico e político de um Estado. Assim, não há sentido em permitir a imposição de uma carga penal a uma conduta sem que, previamente, se reconheça o seu valor social (Busato, 2015, p. 46). Para Stratenwerth (1982. p. 28), a fundamentação é óbvia, pois ninguém pode reger-se por uma norma que ainda não existe, ou seja, as leis penais são regras de conduta que visam o futuro, a prevenção de delitos, portanto, não podem gerar seus efeitos em momentos anteriores a sua entrada em vigor (Munõz Conde e García Arán, 2002, p. 137). Por fim, Bustos Ramírez (1997, p. 83) alega que o princípio da legalidade tem por objeto evitar a arbitrariedade do Estado em suas relações com as pessoas. Uma lei mais favorável não é uma lei abusiva, ao contrário, significa o reconhecimento de maiores âmbitos de liberdade. Logo, a retroatividade da lei mais favorável não nega o princípio da legalidade, antes o afirma, por isso a lei mais benéfica poderá retroagir em benefício do réu (Bustos Ramírez, 1997, p. 83).
A decisão a ser analisada (Recurso de Habeas Corpus nº 65.083-0/MS) está assim ementada:
“EMENTA: Ação penal contravencional. Não se caracteriza, no caso, a prática dos delitos impetrados ao recorrente, com base nos denominados Código de Pesca (Decreto-lei nº 221/67) e caça (Lei nº 5.197/67). Provimento do recurso, para trancar a ação, por falta de justa causa, sem prejuízo da aplicação de sanções de outra natureza.”
(Recurso de Habeas Corpus 65.083-0/MS. Min. Relator: Djaci Falcão. Segunda Turma, STF. DJE: 30/10/1987)
Esta decisão provém de um Recurso de Habeas Corpus, que foi impetrado em favor de Aristides Casemiro dos Reis. Ele foi preso por estar “transportando 7.100 kg de pescados, com visíveis sinais nos peixes de utilização de material proibido de pesca, como rede e tarrafas”, constando-se nos laudos periciais a realização de pesca efetivada por malha. Enquadrou-se a conduta do paciente no art. 35, a, do Decreto-lei n. 221/67[5] c/c art. 10, letras j e h da Lei n. 5.197/67[6].
Ao lado da capitulação legal foi narrada a conduta de ‘ter sido encontrado consigo pescados diversos na época da piracema em desobediência às normas vigentes.
Acontece que a ação, ora imputada como típica, na verdade é atípica, pois a Lei n. 5.197/67 (denominada Código de Caça), não se aplica à pesca. A pesca se encontra disciplinada em lei própria, denominada Código de Pesca (Decreto-lei n. 221/67). Pesca e caça são, assim, diferentes: “Caçar é perseguir ou apanhar aves e outros animais silvestres, a tiro, a lago, por armadilha, etc”. Enquanto que o ato de pescar é definido pela sua própria lei: “Art. 1º - Para efeitos desta Lei define-se por pesca todo o ato tendente a capturar ou extrair elementos animais ou vegetais que tenham na água o seu normal ou mais frequente meio de vida”. Fica clara, assim, a diferença entre as duas ações.
Além disso, dizem os artigos 35, letra a, e 56, do Decreto-lei n. 221/67:
“Decreto-lei n. 221/67
Art. 35 – É proibido pescar:
a) – Nos lugares e épocas interditados pelo órgão competente.
Art. 56 – As infrações aos artigos 29, §§ 1º e 2º, 30, 33 §§ 1º e 2º, 34, 35 alíneas a e b, 39 e 52 serão punidas com multa de décimo até um salário mínimo vigente na Capital da República, independentemente da apreensão dos petrechos e do produto da pescaria, dobrando-se a multa na reincidência”.
Ou seja, o primeiro enquadramento legal, referente ao Decreto-lei n. 5.197, não se adequa ao caso por disciplinar questões referentes à caça. Não se pode fazer uso de analogia, caso contrário, fere-se o Princípio da Reserva Legal (artigo 1º do Código Penal). No segundo enquadramento (Decreto-lei n. 221/67 – art. 35, letra a), a infração seria administrativa (multa e apreensão dos equipamentos de pesca), não sendo punível pelo Direito Penal, caso ele estivesse pescando, ação que não estava praticando (ele transportava). É importante lembrar que, à época do crime, inexistia lei em vigor incriminando o transporte de peixes pescados em desacordo com a lei.
No caso da Lei n. 5.197/67 (art. 10, letras h e j), a ação punível seria: “a utilização, a perseguição, a destruição, a caça ou a apanha de animais silvestres”. Não encontraram o paciente praticando nenhuma dessas ações. Ele transportava peixes com sinais de malha, na época de piracema, ação não descrita no art. 10 da Lei n. 5.197/67. Ou seja, não ocorreu a tipicidade, que é a “subsunção do fato ao tipo-legal”. E mesmo que ele estivesse pescando, “inexistiria o crime, pois a hipótese é considerada, tão só, infração administrativa, punível com multa”.
Dessa forma, conclui-se que a prisão de Aristides Casemiro dos Reis foi ilegal, desobedecendo ao princípio de proibição de analogia, à exigência de lei certa e à exigência de lei prévia – de acordo com o art. 1º do Código Penal.
O Direito se apresenta como uma realidade heterodoxa, de múltiplos pensamentos e doutrinas, e cuja complexidade se baseia no “discurso da culturalidade humana”, sendo praticado através da comunicação (Bittar, 2010, p. 13 – 15.). Para Diniz (2012, p. 207), a Ciência Jurídica se baseia na linguagem para se consubstanciar, não existindo Direito sem um sistema fixo de códigos convencionados cujos elementos representem signos (“entes físicos intersubjetivos”), ocultando problemas socioaxiológicos com os quais acadêmicos e operadores do direito se deparam todos os dias – desde obstáculos advindos da porosidade, vagueza e ambiguidade das palavras até questões mais complexas de semiótica e intelecção de informações provindas da comunicação.
O Direito Penal, de forma específica, preza pela eliminação dos obstáculos cognoscitivos e intelectivos provindos da linguagem. Ele (o Direito Penal) busca a definição, conceituação, precisão e individualização da conduta delituosa, do preceito e da sanção através da clareza linguística e da eliminação de ambiguidades no discurso. Assim, no Direito penal, deve-se reduzir ao máximo a falta de clareza das leis para propiciar maior segurança e estabilidade jurídica aos cidadãos. Para Nucci (2018, p. 292), as descrições genéricas de tipos penais podem ser mais perigosas do que a analogia, pois esta pelo menos tem um parâmetro de semelhança com outra conduta certa. Assim, lei certa implica que todas as leis penais devem ser formuladas da maneira mais clara, inequívoca e exaustiva possível, a fim de que se deem a conhecer por inteiro a seus destinatários: o cidadão e o juiz (Silva Sánchez, 1992, p. 254).
A função do Princípio da Legalidade, como já foi dito, é limitar a potestade punitiva estatal; e uma lei imprecisa criaria aberturas para arbitrariedades por parte do Estado. Entretanto, a tendência do legislador moderno é expressar-se de forma pouco clara, a exemplo dos tipos penais indeterminados e das normas penais em branco.
Para assegurar a eficácia do Princípio da Legalidade, é preciso manter o equilíbrio e o meio-termo: nem analogia nem tipos extremamente vagos e genéricos. Em ambos os casos, estar-se-ia preterindo a aplicação do preceito constitucional da reserva legal (Nucci, 2018, p. 293). De acordo com Greco (2015, p. 16), o Princípio da Reserva Legal não impõe somente a existência de lei anterior ao fato cometido pelo agente, definindo as infrações penais, mas também obriga que, no preceito primário do tipo, exista uma definição precisa da conduta proibida ou imposta, sendo vedada a criação de tipos que contenham conceitos vagos ou imprecisos. A lei, portanto, deve ser taxativa.
Segundo Brandão (2008, p. 57), a falta de lei certa, além de permitir arbitrariedades por parte do Estado, fere a separação de poderes, pois impõe o papel de legislador ao julgador. Outrossim, sem a determinação da conduta delituosa, não se pode conhecer o que se quer proibir; e por consequência, não existirá eficácia de prevenção geral.
A decisão a ser analisada (Habeas Corpus nº 88.452-1/RS) está assim ementada:
EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. ATIPICIDADE. MOTORISTA QUE SE RECUSA A ENTREGAR DOCUMENTOS À AUTORIDADE DE TRÂNSITO. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA.
A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que não há crime de desobediência quando a inexecução da ordem emanada de servidor público estiver sujeita à punição administrativa, sem ressalva de sanção penal. Hipótese em que o paciente, abordado por agente de trânsito, se recusou a exibir documentos pessoais e do veículo, conduta prevista no Código de Trânsito Brasileiro como infração gravíssima, punível com multa e apreensão do veículo (CTB, artigo 238).
Ordem concedida.
(Habeas Corpus 88.452-1/RS. Min. Relator: Eros Grau. Segunda Turma, STF. DJE: 19/05/2006)
O paciente Alexandre Quadros Machado se recusou a apresentar os documentos pessoais e do veículo ao ser parado no trânsito por um policial militar. Ele foi
condenado à pena de 3 (três) meses de detenção, convertida em prestação de serviços à comunidade, como incurso no artigo 330 do Código Penal (crime de desobediência). Como não se apresentou para o cumprimento da pena alternativa, o juiz restaurou a reprimenda corporal, expedindo o mandado de prisão.
A impetração do Habeas Corpus possui três fundamentos: 1) “inexistência de defesa, considerada a inércia do defensor dativo”; 2) atipicidade da conduta, pois ela acarreta sanção administrativa (multa e remoção do veículo); e 3) erro na fixação da pena-base, que seria apenas de 15 dias de detenção (ele foi condenado a três meses).
O Ministro Eros Grau, relator desse processo, estabelece assim três possibilidades: 1) cassar a decisão condenatória, aceitando-se a atipicidade da conduta; 2) manter o processo e a condenação, corrigindo a dosimetria da pena; ou 3) “reconhecer a nulidade do processo, com a reabertura da dilação probatória a partir da audiência instrutória”.
Ocorre que a conduta já é normatizada pelo art. 238 da Lei n. 9.503/97[7] (que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro), não havendo tipicidade penal. A jurisprudência, inclusive, reconhece que se a inexecução às ordens do servidor público se revela passível de sanção de caráter administrativa, então não se configura o crime de desobediência (CP, art. 330[8]). O Direito Penal (e a sanção penal) deve ser a ultima ratio, o último recurso utilizado para se fazer valer o Ordenamento Jurídico.
“DESOBEDIÊNCIA – Não configuração – Infração de trânsito – Estacionamento irregular de veículo na via pública – Multa imposta ao acusado pelo fato e também pela não exibição dos documentos à autoridade – Absolvição decretada – Inteligência do art. 330 do CP.
Se, pela desobediência de tal ou qual ordem oficial, alguma lei comina determinada penalidade administrativa, ou civil, não se deverá reconhecer o crime de desobediência. Salvo se dita lei ressalvar expressamente a cumulativa aplicação do art. 330 do CP.” (RT 534/327, Rel. Des. CAMARGO SAMPAIO)
O Princípio da Legalidade busca a clareza linguística, a definição e a correta utilização dos termos usados para compor as normas penais. Ocorre que muitas atitudes podem ser interpretadas como “desobediência às ordens de autoridades públicas”, e a falta de definição dessa palavra dá poder aos agentes públicos para enquadrar ações ao seu bel prazer no art. 330 do CP. Esse artigo não oferece critérios para se caracterizar uma ação como sendo de desobediência, e nem diz que tipo de ordens podem ser emanadas dos agentes públicos, ou quando os agentes públicos podem emaná-las. Pelo conceito de “desobediência” pode-se fazer a subsunção lógica de vários outros conceitos, e.g., “indocilidade, indisciplina, rebeldia, insubordinação e violação” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009, p. 662), o que abre o escopo semântico-pragmático do signo.
O costume é uma das formas mais antigas de expressão do Direito, sua função é preencher as lacunas das leis decorrentes da complexão de relações emergentes da vida social. O costume tanto pode ser considerado como uma Fonte Material do Direito (práticas que podem ser dogmatizadas na lei) quanto pode ser uma Fonte Formal subsidiária do Direito – é subsidiária porque na ausência de leis sobre, prevalece o costume; ou seja, ele funciona como uma norma/fonte supletiva, sendo permitido pelo artigo 4º da LINDB (Lei n. 12.376/2010). Ele possui dois elementos: o material (objetivo) – repetição de uma prática social (consuetudo) – e o psicológico (subjetivo) – convicção de que a prática social reiterada é necessária e obrigatória (opinio iuris et necessitatis). Seu uso deve ser público, geral, constante e uniforme (Diniz, 2012, p. 332 - 338).
Segundo García-Pablos de Molina (2000, p. 339), a primazia da lei e consequente rechace de outras fontes, como os costumes, se aplica por razões de segurança jurídica: a lei não só expressa a vontade popular, mas conta com um processo de gestação que facilita ao cidadão seu conhecimento. E sua forma (escrita) oferece maior segurança jurídica. Assim, a fonte de conhecimento imediata do direito penal é a lei. Sem ela não se pode proibir ou impor condutas sob a ameaça de sanção (Greco, 2015, p. 146).
As fontes indiretas, como o costume e os princípios gerais do direito, podem bem constituir fontes de produção de direito em outros ramos do ordenamento jurídico e, excepcionalmente, também em direito penal, porém jamais na edição de preceitos incriminadores. É uma exigência que o Princípio da Legalidade impõe ao direito penal: que suas espécies incriminadoras somente podem ser apresentadas através de iniciativas legislativas (Busato, 2015, p. 43). De fato, o nosso sistema codificado significa garantia mais efetiva aos destinatários da norma penal, pois composto de leis escritas. Logicamente, devem ser escritas de maneira clara (taxatividade), previamente à prática criminosa e não dependente de interpretação extensiva, mas estrita. Segundo Nucci (2018, p. 294), a lei precisa ser escrita porque:
Em primeiro lugar, isso obriga o juiz a aplicar apenas as normas criminais calcadas na forma escrita. Há nítida proteção contra arbitrariedades. A segunda base da lei escrita é que ela deve estar contida em um estatuto ou código extraído do Parlamento. Logo, não é a vontade do juiz a imperar, mas a do povo, que elege o parlamentar.
Quanto ao costume abolicionista, convém pontuar que somente a lei revoga outra lei. Enquanto determinada lei estiver em vigor terá plena eficácia. É o que está disposto no art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”.
A decisão a ser analisada (Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.167.646/RS) está assim ementada:
“EMENTA: PENAL. CASA DE PROSTITUIÇÃO. TOLERÂNCIA OU DESUSO. TIPICIDADE.
1. Esta Corte firmou compreensão de que a tolerância pela sociedade ou o desuso não geram a atipicidade da conduta relativa à pratica do crime do artigo 229 do Código Penal.
2. Precedentes.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.”
(AgRg no REsp 1.167.646/RS. Min. Relator: Haroldo Rodrigues. STJ. DJE: 27/04/2010)
Esse caso diz respeito à prática de lenocínio e à manutenção de uma casa de prostituição. Ocorre que “A. F. de M.” e “J. da L.” mantinham casa de prostituição e foram acusados pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul com base no art. 229 do Código Penal[9].
O acórdão foi, primeiramente, favorável aos réus. Argumentaram eles que havia e há tolerância e adequação por parte da sociedade [e por parte da polícia], além de desuso do art. 229 do CP.
“Apelação criminal. Manutenção de casa de prostituição. Adequação social do fato. Atipicidade. Apelo provido. Absolvição mantida.”
O Ministro Haroldo Rodrigues, discordando da decisão acima, em seu voto, argumentou que “a tolerância ou o desuso não se apresentam como causas aptas a gerar a atipicidade da conduta relativa à manutenção de casa de prostituição”. A corte, então, ratificou e legitimou a opinião do Ministro Haroldo Rodrigues com base no seguinte precedente:
“A – RECURSO ESPECIAL PENAL. CASA DE PROSTITUIÇÃO. TIPICIDADE. EVENTUAL LENIÊNCIA SOCIAL OU MESMO DAS AUTORIDADES PÚBLICAS E POLICIAIS NÃO DESCRIMINALIZA A CONDUTA DELITUOSA LEGALMENTE PREVISTA. PARECER DO MPF PELO PROVIMENTO DO RECURSO. RECURSO PROVIDO PARA, RECONHECENDO COMO TÍPICA A CONDUTA PRATICADA PELOS RECORRIDOS, DETERMINAR O RETORNO DOS AUTOS AO JUIZ DE PRIMEIRO GRAU PARA QUE ANALISE A ACUSAÇÃO, COMO ENTENDER DE DIREITO.
(...)”
(REsp 820.406/RS, Relator p/ o acórdão o Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe de 20.4.2009)
Neste Recurso Especial, defende-se a tese de que o art. 229 do CP tipifica a conduta, tornando-a penalmente ilícita. Diz ainda que a indiferença social ou das autoridades públicas não exclui a culpabilidade nem a ilicitude da conduta, e não revoga a lei. Esta só perde sua força sancionadora se outra lei a revogar.
“B – PENAL. RECURSO ESPECIAL. CASA DE PROSTITUIÇÃO. TOLERÂNCIA. ATIVIDADE POLICIAL. TIPICIDADE (ART. 229 DO CP).
(...)”
(REsp n. 146.360/PR, Relator o Ministro FELIX FISCHER, DJU de 8/11/1999)
A tolerância/indiferença na repressão criminal, bem como o desuso da norma, não se apresenta como caso de atipia, nem neutraliza ou revoga a norma incriminadora em decorrência de ação policial desvirtuada (REsp n. 149.070/DF, Relator Ministro FERNANDO GONÇALVES, DJU de 29/6/1998). Desse modo, não há, no Código Penal Brasileiro, possibilidade de se excluir a culpabilidade por tolerância ou indiferença social. Ademais, a casa de prostituição não oferece “serviços” dentro da normalidade social; ao contrário do motel, que não tem finalidade exclusiva de favorecer o lenocínio.
Nesse caso (da casa de prostituição), ainda não existe costume/aceitação por parte da sociedade, apenas indiferença e tolerância por parte de algumas pessoas.
Diante de todo o exposto, derivam do Princípio da Legalidade requisitos importantes, como:
A lei penal deve ser estrita (lex stricta), ou seja, proíbe-se analogia em matéria penal (para piorar a situação do réu, admitindo-se analogia em bonam partem), proíbe-se o emprego da analogia para criar crimes, fundamentar e agravar penas. O STF, no HC 97.261/RS (Min. Relator: Joaquim Barbosa, Segunda Turma, STF, DJE: 02/05/2011, Publicação: 03/05/2011) entendeu que “sinal de TV à cabo” não deve ser igualado a “energia com valor econômico equiparável à coisa alheia móvel”, sob pena de se operar analogia para prejudicar o réu. Não é permitido estender as leis penais para condutas não contempladas expressamente.
As leis penais devem ser prévias às condutas que constituem delitos, que estabelecem suas consequências, que estabelecem o procedimento a seguir e a forma em que devem cumprir-se as penas (lex praevia): pelo que resta proibida a retroatividade da norma penal incriminadora. No Recurso de Habeas Corpus 65.083-0/MS (Min. Relator: Djaci Falcão, Segunda Turma, STF, DJE: 30/10/1987), o STF entendeu que a conduta praticada pelo réu à época dos fatos era atípica, pois não constava em nenhuma norma penal incriminadora, sendo punida apenas como infração administrativa. Dessa forma, o STF admite apenas que a lei penal estenda seus efeitos para o futuro, e não para o passado.
As leis devem ser estabelecidas de forma clara e precisa (lex certa): exige-se precisão dos tipos penais incriminadores, vedando-se tipos penais vagos e indeterminados. No Habeas Corpus 88.452-1/RS (Min. Relator: Eros Grau, Segunda Turma, STF, DJE: 19/05/2006), o STF entendeu que não se configura crime de desobediência quando a ordem emanada do servidor público já estiver sujeita a punição administrativa, porque o termo “desobedecer a ordem de servidor público” induz a uma vagueza. Assim, não se pode condenar alguém quando a lei não possua precisão terminológica.
Por fim, a lei penal deve estabelecer os delitos e as penas de forma escrita (lex scripta): disso se deduz que a lei é a única fonte formal e direta de normas penais e deve estabelecer-se mediante um procedimento regular preestabelecido, o que evita o filtro do direito consuetudinário como fonte direta de Direito. Proíbe-se assim a criação de crimes e penas pelos costumes, bem como a revogação de tipos penais pelos costumes. O STJ, no AgRg no REsp 1.167.646/RS (Min. Relator: Haroldo Rodrigues, STJ DJE: 27/04/2010), entendeu que a tolerância e o desuso não revogam o tipo penal que criminaliza a manutenção de casa de prostituição. Assim, é vedado o costume abolicionista e criador de tipos penais, como se lei penal fosse.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 18ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Linguagem Jurídica. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
BRUNO, Aníbal. Direito penal, parte geral, tomo 1º: introdução, norma penal, fato punível. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Organização: Antônio Houaiss, Mauro de Salles Villar e Francisco Manoel de Mello Franco. 1ª Edição. Rio de Janeiro. Editora Objetiva. 2009.
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TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 23ª ed. rev. amp. São Paulo: Malheiros, 2010.
[1]Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio, Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, advogado.
[2] “Art. 155 – Subtrair para si, ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
[...]
§ 3º - Equipara-se à coisa alheia móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico.”
[3] “Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.”
[4] “Constitui ilícito penal a interceptação ou a recepção não autorizada dos sinais de TV a cabo.”
[5]“Art. 35. É proibido pescar:
a) nos lugares e épocas interditados pelo órgão competente.”
[6]“Art. 10. A utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha de espécimes da fauna silvestre são proibidas:
[...]
h) nas áreas destinadas à proteção da fauna, da flora e das belezas naturais;
j) fora do período de permissão de caça, mesmo em propriedades privadas;”
[7] “Art. 238. Recusar-se a entregar à autoridade de trânsito ou a seus agentes, mediante recibo, os documentos de habilitação, de registro, de licenciamento de veículo e outros exigidos por lei, para averiguação de sua autenticidade:
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa e apreensão do veículo;
Medida administrativa - remoção do veículo.”
[8] “Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.”
[9] “Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente:
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.”
MBA Executivo em Gestão Estratégica de Inovação Tecnológica e Propriedade Intelectual; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes; Especialista em Direito Penal pela Damásio Educacional e Ibmec; Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Prominas; Especialista em Ciência Política pela UNIBF. Bacharela em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professora de Direito Constitucional da Autarquia Educacional do Vale do São Francisco – AEVSF (FACAPE - Faculdade de Petrolina), Advogada.
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