MARCO ANTONIO ALVES BEZERRA[1]
(orientador)
RESUMO: A violência doméstica e familiar no Brasil é combatida por todo o ordenamento jurídico brasileiro e tem como duas principais normas protetivas a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015). As duas normas tem o propósito de por fim aos atos de violência cometidos contra a mulher e punir o agente delituoso com sanção penal que corresponda à gravidade do delito. A considerar o a existência de tais normas, o estudo tem o objetivo de discutir a importância e os reflexos dessa norma no contexto da violência em ambiente doméstico para ao final apontar a importância dessas leis como medidas de proteção legal à mulher. Desenvolvida com base em pesquisa de revisão bibliográfica, o presente artigo científico irá discorrer sobre o tema, apontar dados oficiais e destacar a necessidade de se conscientizar a população e aplicar efetivamente as disposições contidas nas normas, para enfim assegurar os direitos fundamentais das mulheres.
Palavras-chave: Direitos da Mulher. Violência Doméstica e Familiar. Lei Maria da Penha. Feminicídio. Reflexos.
ABSTRACT: Domestic and family violence in Brazil is fought by the entire Brazilian legal system and its two main protective rules are the Maria da Penha Law (Law 11,340/2006) and the Femicide Law (Law nº 13,104/2015). The two norms are intended to put an end to acts of violence committed against women and to punish the offender with a criminal sanction that corresponds to the seriousness of the crime. Considering the existence of such norms, the study aims to discuss the importance and the reflexes of this norm in the context of violence in the domestic environment, in order to finally point out the importance of these laws as legal protection measures for women. Developed based on bibliographic review research, this scientific article will discuss the subject, point out official data and highlight the need to make the population aware and effectively apply the provisions contained in the norms, to finally ensure the fundamental rights of women.
Keywords: Women's Rights. Domestic and Family Violence. Maria da Penha Law. Femicide. reflexes.
Sumário: 1. Introdução. 2. Materiais e Métodos. 3. O Histórico da violência doméstica e familiar no Brasil. 4. O surgimento da Lei Maria da Penha e a definição legal da violência doméstica e familiar. 5. Direitos da mulher e sua proteção na esfera penal segundo a Lei 11.340/2006. 6. A Lei do Feminicídio e a alteração legislativa no âmbito da violência contra a mulher. 7. A violência doméstica e familiar no Brasil após a entrada em vigor da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio. 8.Considerações finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O Brasil assumiu em 1979, por meio de tratado internacional, o compromisso de combater todo e qualquer ato de discriminação contra a mulher, reconhecidamente detentora dos mesmos direitos em relação aos homens.
Contudo, foi somente no ano de 2006 que a Lei nº 11.340, popularmente denominada Maria da Penha em homenagem à mulher que sofreu violências domésticas e duas tentativas de assassinato por parte de seu marido, entrou em vigor no Brasil para coibir atos de violência doméstica e familiar contra as mulheres.
Em complemento a esta norma protetiva, que traz em seus dispositivos medidas para proteger, coibir e punir atos de violência física, moral, psicológica, sexual e patrimonial, foi sancionada em 2015 a Lei nº 13.104 que inseriu ao crime de homicídio previsto no artigo 121 do Código Penal uma nova modalidade qualificada do delito: o feminicídio.
A considerar a vigência dessas duas normas protetivas no direito brasileiro, a pesquisa tem como propósito destrinchar essas duas leis e analisar seu reflexo no dia a dia da mulher, discutindo sua importância e eficácia no ordenamento jurídico como mecanismos de combate à violência doméstica e familiar que possui índices elevados no Brasil.
Para isso, o estudo irá apontar a proteção dada à mulher pelas leis nacionais e internacionais e, após abordar as disposições das Leis Maria da Penha e do Feminicídio, discorrer sobre seus reflexos no cenário atual, em que o combate à violência contra a mulher é uma preocupação do Estado e da Sociedade como um todo.
2 MATERIAIS E MÉTODOS
Esta pesquisa científica intitulada “Lei Maria da Penha e Lei do Feminicídio: reflexos da violência doméstica no Brasil” foi elaborada no Município de Gurupi, no primeiro semestre do ano de 2022 e teve como propósito analisar os direitos e garantias das mulheres e discutir as disposições legais e a importância dessas duas normas protetivas.
Foi desenvolvida através de pesquisa de revisão de bibliografia, pautada em doutrinas e estudos sobre o tema já publicados no Brasil, disponíveis em acervo físico e digital. Quanto ao seu objetivo, classifica-se como pesquisa exploratória, já que há o estudo aprofundado sobre as Leis Maria da Penha e do Feminicídio e a exposição dos resultados sobre sua aplicação prática de forma escrita.
3 O HISTÓRICO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR NO BRASIL
Percorreu-se um longo período histórico até o surgimento do debate jurídico e social que desencadeou a criminalização da violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil.
Nos séculos anteriores, as mulheres exerciam um papel apenas familiar e estavam restritas às funções domésticas impostas pela sociedade da época, sendo que a tomada de decisões era exclusiva do homem, que detinha poder sobre a mulher (ESSY, 2017).
Antes de entrar em vigor o Código Civil de 2002, atualmente vigente, imperava no Brasil o pátrio poder, em que a figura feminina era tratada de forma inferior dentro da sociedade em que vivia.
O Código Civil de 1916 era uma codificação do século XIX, pois Clóvis Beviláqua foi encarregado de elaborá-lo no ano de 1899. Retratava a sociedade da época, marcadamente conservadora e patriarcal. Assim, só podia consagrar a superioridade do homem. Sua força física foi transformada em poder pessoal, em autoridade. Detinha ele o comando exclusivo da família, sendo considerado o chefe da sociedade conjugal e o cabeça do casal. Por isso é que a mulher, ao casar, perdia sua plena capacidade, tornando-se relativamente capaz, tal como são considerados os indígenas, os pródigos e os menos com idade entre 16 e 18 anos. Para trabalhar, ela precisava da autorização do marido. A família identificava-se pelo nome do varão, sendo a esposa obrigada a adotar o sobrenome dele. O casamento era indissolúvel. O desquite rompia o casamento, mas não dissolvia a sociedade conjugal (DIAS, 2021, p. 148).
Com o passar dos anos, na medida em que foi se tornando constante a luta por igualdade de direitos entre homens e mulheres, o cenário de menosprezo em relação a essas alterou-se, inclusive por meio de produções legislativas. As mulheres conquistaram o direito ao voto, ao divórcio, dentre outros e foram reconhecidamente declaradas iguais por meio da Constituição Federal de 1988, cujo texto “equiparou, no Capítulo VII, homens e mulheres em direitos e obrigações (princípio da isonomia), estabelecendo como paradigma o princípio da dignidade da pessoa humana”. (ANDREUCCI, 2017, p. 783).
Essas mudanças deixaram clara a necessidade de afastar de vez a ideia de que a mulher devia estar subordinada ao marido e a mercê dele, muitas vezes sofrendo violência dentro do lar sem nada reclamar sob a ideia ultrapassada de que “em briga entre marido e mulher não se mete a colher”.
O fato de estar a mulher casada ou residir com seus genitores não afastam por si só a ilicitude da conduta violenta, antes aceita pela sociedade. A necessidade de se impedir atos de violência contra a mulher foi tornando-se tema de debate em todo o mundo e não apenas no Brasil.
Como resultado dessa necessidade de reconhecer a mulher como indivíduo igual em direitos e de impedir atos de violência contra a mulher, em 1979 a Assembleia Geral das Nações Unidas elaborou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), tratado internacional promulgado no Brasil por meio do Decreto nº 4.377/2002, com o intuito de garantir a dignidade humana e impedir qualquer ato de discriminação contra a mulher, isto é impedir “toda distinção, exclusão ou restrição fundada no sexo e que tenha por objetivo ou consequência prejudicar ou destruir o reconhecimento, gozo ou exercício pelas mulheres” (ANDREUCCI, 2017, p.784).
No ano de 1994, foi vez da Organização dos Estados Americanos (OEA) criar seu tratado de proteção a mulher através da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher realizada em Belém do Pará no ano de 1994 e promulgada no Brasil pelo Decreto n. 1.973/96, que afirma ser a violência contra a mulher uma violação aos direitos humanos e uma ofensa à dignidade humana, que não se caracteriza apenas como violência física mas “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (BRASIL, 1996).
São essas as principais normas internacionais que embasaram a proteção à mulher, assim como a Constituição Federal de 1988, que reconhece expressamente a igualdade de direitos entre homens e mulheres e destaca a dignidade humana como direito essencial de todo ser humano a ser resguardado pelo Estado. Contudo essa regulamentação não foi suficiente, fato que embasou a criação de uma legislação especificamente voltada à proteção da mulher no âmbito doméstico e familiar, que é a Lei Maria da Penha.
4 O SURGIMENTO DA LEI MARIA DA PENHA E A DEFINIÇÃO LEGAL DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
Foi por meio dos tratados internacionais citados acima que o Brasil assumiu o compromisso de proteger a mulher e impedir qualquer ato de violência, seja ele de qualquer natureza.
Contudo, foi somente após o caso de Maria da Penha Maia Fernandes tomar proporção internacional que a violência contra a mulher no ambiente doméstico e familiar passou a ser efetivamente enfrentado e combatido pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Maria da Penha foi vítima de violência doméstica e familiar praticada por seu marido Marco Antonio Heredia Viveiros, colombiano com quem se casou no ano de 1976 e teve três filhas. Foi após obter sua cidadania brasileiro e sua estabilidade profissional e financeira que as agressões contra sua mulher tiveram início (INSTITUTO MARIA DA PENHA, 2022).
As atitudes violentas e o comportamento explosivo com a mulher e as filhas foram se tornando constantes até que em 1983 Marco Antonio tentou matar Maria da Penha por duas vezes:
Primeiro, ele deu um tiro em suas costas enquanto ela dormia. Como resultado dessa agressão, Maria da Penha ficou paraplégica devido a lesões irreversíveis na terceira e quarta vértebras torácicas, laceração na dura-máter e destruição de um terço da medula à esquerda – constam-se ainda outras complicações físicas e traumas psicológicos. No entanto, Marco Antonio declarou à polícia que tudo não havia passado de uma tentativa de assalto, versão que foi posteriormente desmentida pela perícia. Quatro meses depois, quando Maria da Penha voltou para casa – após duas cirurgias, internações e tratamentos –, ele a manteve em cárcere privado durante 15 dias e tentou eletrocutá-la durante o banho. (INSTITUTO MARIA DA PENHA, 2022, p.1).
A partir daí Maria da Penha travou uma verdadeira batalha para ver seu agressor punido pelos crimes de violência que praticou no âmbito doméstico e familiar.
Seu primeiro julgamento ocorreu após 8 (oito) anos da prática da tentativa de homicídio (1991) e apesar de condenado a 15 (quinze) anos de prisão, saiu do julgamento em liberdade e a decisão proferida pelo Juri foi anulada posteriormente por alegada falha processual. Em 1996 foi julgado pela segunda vez, dessa vez condenado à 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão, a qual também não foi cumprida por Marco Antonio em razão de recursos de sua defesa (PORTAL GELEDES, 2013) .
Com a ajuda do Centro para a Justiça e o Direito Internacional – CEJIL e do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM, Maria da Penha conseguiu denunciar seu caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos - CIDH/OEA. Ainda assim, o Estado brasileiro permaneceu omisso e não se pronunciou em nenhum momento durante o processo. Só em 2001, após receber quatro ofícios da CIDH/OEA (1998 a 2001), o Estado foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras. Em 2002, formou-se um Consórcio de Organizações Não Governamentais Feministas, que pressionavam as autoridades para a elaboração de uma lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher (IBDFAM, 2020).
Foi somente no ano de 2006 que Lei 11.340 foi sancionada pelo então Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva e popularmente denominada de Lei Maria da Penha em homenagem à mulher que lutou por anos pela efetiva punição de seu agressor.
A Lei 11.340/2006 criou mecanismos para impedir e punir atos de violência no ambiente doméstico e familiar cuja abrangência foi definida no seu artigo 5º nos seguintes moldes:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (BRASIL, 2006).
Cabe à Lei Maria da Penha definir a violência e dispor sobre o procedimento legal a ser adotado com o fim de impedir e punir atos de violência contra a mulher no Brasil.
5 DIREITOS DA MULHER E SUA PROTEÇÃO NA ESFERA PENAL SEGUNDO A LEI 11.340/2006
Conforme dispõe sua Ementa, a Lei Maria da Penha é uma norma criada com o propósito de impedir e reprimir os atos de violência doméstica e familiar que sejam cometidos contra a mulher, aqui interpretada de forma ampla para abranger transexuais do gênero feminino (ANDREUCCI, 2017).
É, portanto, uma norma protetiva “concebida para tutelar a mulher que se encontra em uma situação de vulnerabilidade no âmbito de uma relação doméstica, familiar ou íntima de afeto, é nesse sentido que seus dispositivos deverão ser interpretados” (LIMA, 2016, p. 893).
Já em seus primeiros dispositivos a Lei 11.340/2006 reafirma os direitos das pessoas do gênero feminino, dispondo:
Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Art. 3º Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2006).
Apesar de parecer redundante a previsão expressa dos direitos fundamentais das mulheres, por serem eles essenciais a todo ser humano, a conduta de dispor sobre eles se mostra necessária em razão da histórica exclusão das mulheres na sociedade (LIMA, 2016). Por isso a norma, antes mesmo de definir sua amplitude, destaca os direitos fundamentais os quais justificam a criação da Lei.
Como dito, a Lei Maria da Penha repreende e pune os atos cometidos contra a pessoa do gênero feminino no ambiente doméstico e familiar, violência essa punida não apenas quando atinge a integridade do corpo feminino.
Dispõe o caput do artigo 5º da Lei que “configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (BRASIL, 2006).
Desta forma, sempre que a conduta do agente atingir uma dessas espécies de violência, e for cometida no ambiente afetivo, configurada estará a aplicação das disposições da Lei Maria da Penha.
Somente pode figurar no polo passivo das ações penais da Lei Maria da Penha a vítima que seja do gênero feminino, enquanto que o autor do crime pode ser tanto um homem quanto uma mulher, já que a norma não se aplica apenas a relações heteroafetivas; ela independe da orientação sexual.
Uma vez cometido o delito no contexto da Lei 11.340/2006, estará o agressor sujeito a normas mais rigorosas: não permite aplicação de penas de natureza pecuniária, de penas de cesta básica ou qualquer outra substituição de pena que gere para o agressor o pagamento isolado de multa; e afasta o caráter de menor potencial ofensivo e a aplicação da Lei do Juizado Especial Criminal (Lei 9.099/1995), tornando inaplicáveis os benefícios da transação e da suspensão condicional do processo (BRASIL, 2006).
Além disso, todas as ações de violência doméstica e familiar praticadas contra a mulher tem natureza de ação pública incondicionada, de iniciativa do Ministério Público que independe de representação da vítima (ANDREUCCI, 2017).
Apesar de prever tanto medidas de prevenção quanto de punição de violência contra a mulher, essa norma deixou ainda uma lacuna a ser preenchida no tocante ao punir com mais rigor os casos de homicídio contra a pessoa do sexo feminino, a qual desencadeou a criação de uma outra norma de proteção da mulher: a Lei do Feminicídio.
6 A LEI DO FEMINICÍDIO E A ALTERAÇÃO LEGISLATIVA NO AMBITO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Conforme já destacado, existe no Brasil a lei que pune os atos de violência contra a mulher cometida no ambiente doméstico e familiar desde o ano de 2006, quando entrou em vigor a Lei Maria da Penha.
Ocorre que esta norma, reconhecidamente essencial no ordenamento jurídico brasileiro, não trazia em seu bojo dispositivo relacionado ao homicídio da mulher resultado da violência doméstica e familiar.
Isso porque a violência doméstica e familiar resulta no óbito de mulheres quando a vítima não consegue manter-se afastada do seu agressor. Parecia inconcebível que não houvesse a punição mais rigorosa para o cometimento do assassinato das mulheres dentro do ambiente familiar, com punição condizente à gravidade da conduta.
Foi somente no ano de 2015 que houve a entrada em vigor de um dispositivo específico para punir esse crime, denominado de Feminicídio: a Lei nº 13.104/2015.
Trata-se de uma modalidade de homicídio que foi inserido no Código Penal Brasileiro para “prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio” e inserido na Lei nº 8.072/1990 “para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos” (BRASIL, 2015).
Desde então, o Código Penal prevê o Feminicídio como uma das modalidades qualificadas do crime previsto no artigo 121 que pune o ato de “matar alguém”. É também considerado um crime hediondo.
O feminicídio, modalidade qualificada de homicídio que é punida com pena de privação de liberdade de 12 (doze) a 30 (trinta) anos de reclusão, está prevista no inciso VI do §2º do artigo 121 e é aquele cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino” (BRASIL, 1940).
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I - violência doméstica e familiar;
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher (BRASIL, 1940).
A primeira situação que o caracteriza é justamente a ocorrência do crime no âmbito doméstico e familiar, ou seja, quando for cometido nas circunstâncias descritas na Lei Maria da Penha. Caso a violência contra a mulher em seu ambiente íntimo desencadeie a morte da vítima, o autor(a) do crime será punido pelo crime de feminicídio.
A segunda hipótese de feminicídio é o cometido por desprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima, que segundo Rogério Grecco “pode ser entendido no sentido de desprezo, sentimento de aversão, repulsa, repugnância a uma pessoa do sexo feminino; discriminação tem o sentido de tratar de forma diferente, distinguir pelo fato da condição de mulher” (GRECO, 2017, p. 487).
Além de ser um crime qualificado, o feminicídio pode ainda ser majorado caso seja cometido nas hipóteses previstas no 7º, são elas:
§ 7o A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:
I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;
II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental;
III - na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima;
IV - em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (BRASIL, 1940).
Portanto, foi no ano de 2015 que o feminicídio passou a ser punido pelo Código Penal, que consiste no assassinato de mulheres em razão de seu gênero, diferente do feminicídio, denominação usada pra destacar que a vítima é do sexo feminino.
A lei pune mais gravemente aquele que mata mulher por “razões da condição de sexo feminino” (por razões de gênero). Não basta a vítima ser mulher para que exista o crime de feminicídio, é preciso que a morte aconteça pelo simples fato de a vítima ter a condição de sexo feminino. Antes da Lei n. 13.104/2015, não havia nenhuma punição especial pelo fato de o homicídio ser praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Matar uma mulher pelo fato de ela ser mulher caracterizava homicídio qualificado por motivo fútil ou torpe, a depender do caso concreto. Após a Lei n. 13.104/2015, tal motivação acarreta a adequação típica do fato ao art. 121, § 2º, VI, do CP (CAPEZ, 2018, p.136).
Hoje em dia, quando cometida a violência doméstica ou o feminicídio, estarão os agressores sujeitos ao rigor das duas normas destacadas acima, criadas com o propósito de assegurar os direitos fundamentais da mulher. Passados anos desde sua criação, questiona-se quais as mudanças se podem apontar dentre o surgimento de tais leis protetivas.
7 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR NO BRASIL APÓS A ENTRADA EM VIGOR DA LEI MARIA DA PENHA E DA LEI DO FEMINICÍDIO
A Lei Maria da Penha já vigora no Brasil há 16 (dezesseis) anos, enquanto que a Lei do Feminicídio foi sancionada há 7 (sete) anos. Decorrido esse lapso temporal, surge o questionamento acerca dos reflexos que a criação dessas leis causou no cenário jurídico e, principalmente, na qualidade de vida das mulheres.
O Instituto Data Senado, na pesquisa “Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher — 2021” realizada em parceria com o Observatório da Mulher contra a violência apontou que os casos de violência doméstica e familiar cresceu cerca de 4% em relação à pesquisa anterior (AGENCIA SENADO, 2021).
O Atlas da Violência de 2021 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) também divulgou um número elevado de atos de violência cometidos contra as mulheres no Brasil.
Especificamente sob a ótica dos feminicídios, que foram interpretados pelo IPEA como os assassinatos cometidos dentro de suas residências já que não existe a identificação do feminicídio como causa nos atestados de óbito, os dados são os seguintes:
Em 2019, foram registrados 1.246 homicídios de mulheres nas residências, o que representa 33,3% do total de mortes violentas20 de mulheres registradas. Este percentual é próximo da proporção de feminicídios em relação ao total de homicídios femininos registrados pelas Polícias Civis no mesmo ano. Segundo o “Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020”, 35,5% das mulheres que sofreram homicídios dolosos em 2019 foram vítimas de feminicídios (FBSP, 2020). No entanto, o mesmo Anuário aponta que, entre 2018 e 2019, a taxa de feminicídios por 100 mil mulheres cresceu 7,1%; enquanto este Atlas indica que a taxa de homicídios femininos dentro das residências diminuiu 10,2% no mesmo período. Esta divergência contribui para corroborar a hipótese da subnotificação dos homicídios registrados pelo sistema de saúde em 2019 relacionado ao incremento das MVCI. A análise dos últimos onze anos indica que, enquanto os homicídios de mulheres nas residências cresceram 10,6% entre 2009 e 2019, os assassinatos fora das residências apresentaram redução de 20,6% no mesmo período, indicando um provável crescimento da violência doméstica (IPEA, 2021, p. 41).
O Ministério Público do Estado de São Paulo, após realizar um estudo sobre 364 denúncias de homicídio de mulheres (consumados ou tentados) em razão de sua condição de gênero ocorridas no período de março de 2016 a março de 2017, divulgou um relatório denominado “Raio X do Feminicídio em São Paulo: é possível prevenir a morte” em que aponta o índice de aplicação da qualificadora do feminicídio como causa do homicídio.
Conforme fora apurado na pesquisa, em 87% dos casos em que o feminicídio era cometido por quem a vítima tinha relação afetiva a regra da qualificadora já era inserida na denúncia do Ministério Público. Em contrapartida, quando o feminicídio era praticado por outros familiares ou outras vítimas o percentual era invertido: em 73% dos casos não houve a inclusão da modalidade qualificada de feminicídio e sim o homicídio previsto no caput do artigo 121 do CP (MPSP, 2022). Ou seja, há uma dificuldade em reconhecer o feminicídio quando não cometido no contexto da violência doméstica entre casais.
Contudo, em que pese os dados serem alarmantes, não se pode relacionar os altos índices de violência à efetividade das Leis protetivas, haja vista que, conforme apontado pelo Ministério Público de São Paulo, a esmagadora maioria dos crimes de violência contra a mulher que ensejaram sua morte são aqueles em que a vítima não registra a ocorrência dos crimes ou não solicita a aplicação de medidas protetivas. Veja:
o Núcleo de Gênero efetuou o levantamento dos casos em que as vítimas tinham obtido medida protetiva. Esses dados foram extraídos das próprias Denúncias do Ministério Público e revelaram que, em regra, os feminicídios acontecem quando a vítima não está protegida. Os processos em que houve deferimento de medida protetiva foram 12 (doze) para um universo de 364 casos, o que representa apenas 3% do total de casos. [...] Neste tópico, a pesquisa teve por finalidade verificar se, dentre os feminicídios consumados (com resultado morte) as vítimas haviam registrado Boletim de Ocorrência. No estudo, foram encontrados 124 casos de feminicídio consumado. Deste montante, em 5 casos as vítimas haviam registrado BO contra o agressor (MPSP, 2022, p.19-20).
Portanto, é possível afirmar que a norma, quando aplicada, é efetiva. Nesse contexto, o que se verifica é a necessidade de tornar os casos de violência doméstica e familiar a cada vez mais sob a proteção das referidas normas, o que somente ocorrerá se houver a conscientização da população acerca da necessidade de se denunciar o agressor. É preciso que a população e os órgãos jurídicos atuem de modo a aplicar o que dispõe a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio para que ocorra a redução dos casos de violência contra a mulher no Brasil.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É de conhecimento geral o fato de que as mulheres são comumente vítimas de atos de violência, ocorridos não penas nas ruas, mas também em seu próprio lar, cometidos por pessoas com quem detém laços de afetividade. Por muito tempo, essas violências não eram punidas porque as mulheres temiam denunciar seu agressor, ante a constatação de que dias depois eles retornavam ao convívio diário.
Para por fim ao sentimento de impunidade e efetivamente impedir atos de violência contra a mulher no ambiente doméstico e familiar foi sancionada em 2006 a Lei Maria da Penha. Por meio dela, as violências física, patrimonial, sexual, moral e psicológica quando cometida dentro do contexto da Lei 11.340/2006, enseja uma sanção penal mais severa, que não é passível de substituição por pena restritiva de direito.
Ocorre que, apesar dos esforços da Lei Maria da Penha, não existia uma tipificação penal específica para o assassinato de mulheres em razão de sua condição de gênero ou praticada no ambiente doméstico e familiar. Foi a partir de 2015 que esse crime passou a ser previsto no Brasil como uma modalidade qualificada de homicídio (art. 121, CP), denominada de Feminicídio.
Atualmente, a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio são as normas brasileiras voltadas ao combate da violência doméstica e familiar cometidas contra as pessoas do gênero feminino, as quais são essenciais para o combate dos crimes dessa natureza.
Em que pese ser elevado o número de casos de violência contra a mulher, os dados apontam que esse índice não está necessariamente vinculado à ineficiência da lei, sendo que na grande maioria dos crimes praticados a vítima não registrou ocorrência contra o agressor ou teve medida preventiva decretada.
Portanto, essas leis impactam diretamente o cenário da violência doméstica e familiar e são instrumentos para seu combate, que precisam ser utilizadas não apenas após a ocorrência do crime, mas principalmente como mecanismos de prevenção, daí porque a conscientização da população é um fator fundamental para a redução dos casos de violência contra a mulher no Brasil.
REFERÊNCIAS
AGÊNCIA SENADO. Violência contra a mulher aumentou no último ano, revela pesquisa do DataSenado. Da Agência Senado, 09/12/2021. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/12/09/violencia-contra-a-mulher-aumentou-no-ultimo-ano-revela-pesquisa-do-datasenado>. Acesso em: 04 mai. 2022.
ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação penal especial. – 12. ed. atual. e ampl. – São Paulo : Saraiva, 2017.
BRASIL Decreto n º 4.377, de 13 de setembro de 2022. Promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e revoga o Decreto nº 89.460, de 20 de março de 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4377.htm>. Acesso em: 09 abr. 2022.
BRASIL. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/d1973.htm>. Acesso em: 09 abr. 2022.
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BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm >. Acesso em: 24 abr. 2022.
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Graduanda em Direito - 2022 Universidade Unirg - Gurupi • TO | (63)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUSA, Brenda Andrade de. Lei Maria da Penha e lei do feminicídio: reflexos da violência doméstica no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 maio 2022, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58517/lei-maria-da-penha-e-lei-do-feminicdio-reflexos-da-violncia-domstica-no-brasil. Acesso em: 25 dez 2024.
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