RHILLARY CONRADO AGUIAR [1]
(coautora)
JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL [2]
(orientador)
RESUMO: O presente estudo detém relevância em âmbito nacional, posto que esteja relacionada à estrutura da disparidade na aplicação das penas, que permanece gerando efeitos, mesmo com a defesa do Estado Democrático de Direito. Tem-se por problema de pesquisa: o porquê e por quais razões o sistema penal age de forma seletiva? Deste modo, a pesquisa objetivou a fazer uma investigação da “seletividade do sistema penal no Brasil”, resultado de um tratamento diferenciado entre os indivíduos. Objetivou-se fazer um trabalho com o intuito de analisar e compreender que os princípios são normas basilares do ordenamento jurídico, tendo como base a Constituição Federal como lei suprema e norteadora das demais legislações. Quanto aos meios, a pesquisa foi bibliográfica, com base na fundamentação do método de abordagem indutiva ser necessária para este trabalho.
Palavras-chave: Seletividade Penal – Processo Penal – Disparidade de Penas – Sistema Penal.
O presente estudo pode-se entender melhor como o Direito Penal é usado, na atual conjuntura, para a reprodução de poder da classe dominante em detrimento das classes inferiores.
Dessa forma, é possível delimitar o objeto do estudo com a análise das origens do sistema penal na sociedade brasileira e explicar seu funcionamento em conjunto com a utilidade dessa seletividade.
Em assim sendo, tem-se como problema central o presente artigo o porquê e por quais razões o sistema penal age de forma seletiva. Qual a razão para o sistema penal ser seletivo perante as diferentes classes sociais?
O desenvolvimento da pesquisa terá como base a revisão bibliográfica acerca do tema seletividade do sistema penal no Estado Democrático de Direito em confronto ao o princípio da igualdade, visando que, mesmo com o advento da Constituição Federal de 1988 com fulcro na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o discurso constitucional é, a todo instante, quebrado e violado, causando um sentimento de impunidade.
Objetiva-se compreender que os princípios são normas basilares do ordenamento jurídico, tendo como base a Constituição Federal como lei suprema e norteadora das demais legislações. Enquanto os princípios constitucionais regem sobre matérias a serem utilizadas como base, podemos trazer seus entendimentos para o Processo Penal, tanto na sua aplicação como em situações concretas. Se todos os seres humanos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos, seria prudente dizer que, estas também deverão ser a mesma para todos, seja para proteger e para punir.
Justifica-se com base no atual cenário político, econômico e social, onde os casos de desigualdades estão se tornando mais frequente e ganham repercussão na mídia. Nesse sentido, a proposta é fazer uma reflexão sobre os motivos que levam a desigualdade alarmante no Brasil e os mecanismos para combater o problema.
Para alcançar as considerações finais do estudo, primeiramente, propõe-se estudar as raízes da história do sistema penal brasileiro para entender o atual cenário inquisitorial do sistema penal brasileiro, levando em consideração o início do sistema penal no mundo e no Brasil. Logo após, tem se os meios de comunicação e o senso comum como veículos de sustentação desse sistema repressor que fere os direitos fundamentais consagrados na Carta Magna.
O presente estudo será desenvolvido por intermédio de uma pesquisa bibliográfica com abordagem indutiva. A pesquisa bibliográfica é baseada em entendimentos, materiais e soluções previamente elaboradas com livros e artigos científicos. Ademais, pode-se usar como complementação as revistas, jornais e aqueles que abordem acerca do assunto mencionado. Tendo em vista o avanço da tecnologia, poderá ser utilizados não somente as pesquisas físicas como também as digitais.
Com relação ao método de abordagem, este projeto utilizará abordagem indutiva que tem como procedimento ser mais eficaz para as investigações científicas e tem como base dos estudos o Empirismo, corrente, esta, que o conhecimento é adquiro a partir das experiências práticas.
Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt, o autor afirma que o Estado utiliza a sanção como meio de “facilitar e regulamentar a convivência dos homens em sociedade”, e mesmo havendo outras formas de controle social, porém, “o Estado utiliza a pena para proteger de eventuais lesões determinados bens jurídicos, assim considerados, em uma organização socioeconômica específica.” Pode-se afirmar que a punição é um dos instrumentos utilizados pelo Estado para a obtenção da paz. (BITENCOURT, 2012, p. 147).
Tendo em vista que a sanção depende de uma autoridade política para sua regulamentação, e consequentemente, sua imposição, é certo que, a sanção evoluiu ajustando-se à comunidade, que passou a se organizar em grupos, cidades e Estado (CHIAVERINI, 2009).
Na antiguidade, não havia pena de privação de liberdade, as penas eram estabelecidas pelas regras de convivência por determinado povo. Nessa época, há o ingresso da Lei Talião na sociedade, tendo como base a aplicação da sanção por meio da proporcionalidade, sendo “olho por olho, dente por dente”, utilizada como forma de retribuição. Assim, nas palavras de Ney Moura Teles (2006) [3]:
“Nesse passo, aos que desrespeitassem algum interesse de seus membros punia-se com a perda da paz, que consistia na expulsão do infrator da comunidade, que perdia a proteção do grupo, e ao estranho que violasse qualquer valor individual ou coletivo era aplicada a vingança de sangue”. (TELES, 2006, p. 19).
As penas eram executadas sem nenhuma proporção, já que atingia tanto a pessoa considerada culpada quanto aqueles que tinham algum vínculo com ela, o que caracterizava sua desproporcionalidade (CALDEIRA, 2009, p. 260).
Sendo assim, o sistema prisional foi criado com o intuito de punir aqueles que violam o bem estar entre a sociedade e o Estado. Com o surgimento de um sistema a prisional mais equilibrado, a privação de liberdade foi tomando força e passou a ser utilizada como medida repressiva com caráter punitivo. Desde então, deu-se a transformação das prisões.
Atualmente, o Brasil adotou o Sistema Progressivo, por ser o mais aceito mundialmente, compreende a ideai de que os presos poderiam ter a chance de, ao longo de seu período preso, poder transgredir para um sistema mais brando. O sistema consistia em:
[...] distribuir o tempo de duração da condenação em períodos, ampliando-se em cada um os privilégios que o recluso pode desfrutar de acordo com sua boa conduta e o aproveitamento demonstrado do tratamento reformador [...]. A meta do sistema tem dupla vertente: de um lado pretende constituir um estímulo á boa conduta e à adesão do recluso ao regime aplicado, e, de outro pretende que esse regime, em razão da boa disposição anímica do interno, consiga paulatinamente sua reforma moral e a preparação para a futura vida em sociedade (BITENCOURT, 2011, p. 79).
Conforme Batista (2014, p. 6), o que este sistema possui de mais importante é que ele possibilitava que os indivíduos tivessem a expectativa de um dia estariam livres novamente, contudo, o Sistema Progressivo estabelecia regras a serem seguidas dentro do estabelecimento prisional, para que a possibilidade de liberdade se concretizasse.
Conforme dispõe o Código Penal de 1940 [4], em seu artigo 33, § 2º, tem-se que:
§ 2º - “As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso” (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).
Logo, após a leitura do dispositivo mencionado, verifica-se que o Brasil, de forma expressa, adota o Sistema Progressivo, bem como prevê a execução das penas.
Dentre as várias modificações sofridas pelo atual Código Penal, houve a separação dos regimes carcerários em regime fechado, semiaberto e aberto, com advento da Lei nº 6.416/77[5]. Entretanto, a Lei de Execuções Penais – Lei º 7.210/84[6] –, trouxe como inovação o bom comportamento do réu dentro do estabelecimento prisional para que o mesmo possa progredir de regimes, mesmo que não passe por todas as etapas previstas na legislação penal.
Por fim, em 2003, com o ingresso da Lei nº 10.792/03[7] no ordenamento jurídico e alterando o artigo 52 da Lei de Execuções Penais, foi instaurado o Regime Disciplinar Diferenciado[8], conhecido como RDD. Todavia, tal instituto não poderá ser reconhecido como uma progressão de regime, mas sim um local especializado para que o réu permaneça sozinho, com limitações ao direito de visita e ao direito de saída da cela.
2.1 Cesare Beccaria e o Sistema Prisional
Cesare Beccaria[9] (1738-1794), um aristocrata milanês, é considerado o principal representante do iluminismo penal. Sua principal obra, “Dos Delitos e Das Penas”, é considerada a base do direito penal moderno. Aos amantes deste pensador, há certa decepção, pois o mesmo não tenha tantas obras escritas. Com seus 30 ano desistiu do campo criminal, pois há indícios que o mesmo fora perseguido pela igreja católica.
Para Beccaria[10], o Estado deveria respeitar o contrato social, onde a população cede os seus direitos para o Estado em troca de proteção coletiva. Para ele, igreja é igreja; Estado é Estado; crime é crime; e pecado é pecado. Não há o que se misturar religião, Estado e direito penal. Ademais, o principal teor de seus livros era uma forma de protesto, onde o mesmo defendia um modelo político criminal recheado de ideias iluministas com base nos Direito Humanos.
Mesmo com poucas obras, Cesare influenciou todos os sistemas políticos e penais, tratados interacionais, ou seja, seu pensamento, de forma positiva, trouxe consequências em todos os textos legais da época, sendo utilizado como parâmetro até hoje. Por ser mais humanista e agir com base na razão, suas obras tinham como objetivo criticar o sistema penal severo, onde o mesmo defendia que as penas eram utilizadas apenas como caráter severo e não gozavam da razão para delimitar o grau da penal a ser aplicada.
Outro ponto defendido por Beccaria era acerca da igualdade no tratamento dos criminosos responsáveis pelo mesmo crime, isto é, para ele, deveriam ser consideradas as mesmas penas de forma igualitária para aqueles que cometerem o mesmo crime sem distinção de cor, raça, etnia e outros fatores que pudessem ser utilizados para diferencia-los. Segundo ele, era para serem aplicadas às mesmas penas as pessoas da mais alta categoria e o último dos cidadãos, desde que aja cometido o mesmo delito.
Beccaria acreditava que a pena deveria ter caráter de sanção pelo descumprimento da legislação, e não mera punição de caráter severo. Por conseguinte, o infrator era apenas alguém que não se adaptou as normas estabelecidas em sociedade, necessárias para manter a ordem coletiva.
Em paralelo com o Direito Brasileiro, o juiz é o principal interprete das normas, pretendendo a partir de seu entendimento a aplicação da justiça de modo que não venha contraria a lei e tendo a Constituição vigente como lei suprema. Diante dessa afirmativa, é possível perceber a influencia de Beccaria até os dias atuais.
Vale lembrar que, o nascimento do iluminismo[11] influenciou significamente as história das prisões. Ademais, trouxe também uma interpretação mais humanitária, causando mudanças no modo de pensar acerca do Direito Penal, bem como as relações interpessoais e, por essa razão, merecem um tratamento digno por serem seres humanos e não mero objeto da sociedade.
2.2 A origem do Sistema Penal no Brasil
O início do sistema penitenciário no Brasil ocorreu por meio da criação da Carta Régia de 08 de julho de 1796, onde a mesma determinava a criação da Casa de Correção da Corte[12]. Entretanto, apenas a sua inauguração se deu em 06 de julho de 1850 no Rio de Janeiro.
No decreto nº 678 de 06 de julho de 1850, determinava que a execução da pena de prisão se dava com o trabalho do preso. No fim do período imperial, foi adotado o sistema penitenciário auburniano, onde o isolamento celular ocorria durante a noite e o trabalho comum durante o dia sob rigoroso silêncio (BRASIL. Decreto nº 8.386, de 14 de janeiro de 1882, arts. 1º e 2º).
O Brasil, até meados do ano de 1830, se baseava nas Ordenações Filipinas[13], onde seu livro V, deste código, determinava quais crimes e penas deveriam ser aplicadas no Brasil, como por exemplo, o deporto para as galés, penas de morte, penas corporais, dentre outras. Assim, é possível observar que as penas ainda eram relacionadas a castigos físicos sobre os indivíduos.
Apesar da primeira casa apropriada para as prisões individuais ter sido inaugurada no fim do século XIX, o Brasil ainda era uma colônia portuguesa, e não havia um código regulamentando as normas e procedimentos de como deveria ocorrer às prisões. Diante disso, só foi possível delimitar as penas de prisão com a elaboração do Código Penal de 1890[14].
Em virtude da Constituição Federal do Brasil de 1891 ter abolido a pena de morte, as penas perpétuas ou coletivas, a de galés e a de banimento judicial, o Código Penal de 1890 permaneceu com as seguintes sanções: prisão; banimento (desde que importasse em prisão temporária); interdição; suspensão e perda de emprego público e multa; bem como delimitou as prisões em restritivas de liberdade individual com pena máxima de 30 (trinta) anos; prisão celular; prisão com trabalho obrigatório e reclusão.
Atualmente, previsto no artigo 32 do Código Penal de 1940[15], o Brasil tem-se três tipos de penas: privativas de liberdade, restritivas de direito e de multa. A partir dessa divisão, é possível identificar a distribuição e racionalização com base no grau de infração cometido pelo réu, bem como os critérios para distinção de gênero, idade, grau de periculosidade, índole, antecedentes criminais, reincidência, como uma forma de saber mais sobre os indivíduos e o controle sobre o meio sob qual está inserido.
3 SISTEMA PENAL E SUA APLICABILDADE
O atual Código Penal Brasileiro de 1940, por meio do seu artigo 59, adotou a chamada teoria unitária, na qual tem como finalidade primordial a retribuição, prevenção e a ressocialização.
Ademais, como preceitua a Lei de Execuções Penais em seu artigo 1º, faz menção à finalidade do processo de execução, tendo por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.
Não bastando isso, a maioridade penal de 16 (dezesseis) anos poderia acarretar uma superlotação, e incorrendo no risco do menor de se envolver ainda mais no mundo do crime.
A lei é imperativa e pode ser obedecida, pela obediência, pela razão, pela força. Não tendo importância o conflito, seja na paz social, pelos bens de propriedade privado ou publico, a CF/88, dispõe nos termos do art. 5º XXXV: “A lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito.” (BRASIL, Constituição Federal, 1988).
A ressocialização, mecanismo defendido de forma majoritária, deverá respeitar a individualização da pena, estando o preso em um ambiente prisional digno, tendo, de forma parcial, o cumprimento de sua pena, pois não é o fim dela, dependendo de forma individual de cada um para se tornar eficaz.
O maior óbice da ressocialização está atrelado à quantidade de presos condenados, onde ocorre a superlotação no sistema penitenciário, principalmente em relação a pena privativa de liberdade.
Neste sentido, é essencial que a pena seja acompanhada pela efetivação da ressocialização.
3.1 Finalidade e ação da pena no direito brasileiro
Com o crescimento e expansão do capitalismo ocorreu uma crescente onda na criminalidade, resultado da ineficácia do Estado em conseguir conter tal avanço, responsabilidade essa que ficou nas mãos do direito penal resolver. Esse viés surgiu como uma “resposta à sociedade” para uma falsa tranquilidade. Uma estratégia que visou o remanejamento do poder de punir, buscando torná-lo mais eficaz, mais regular e detalhado. Deu-se mais importância aos delitos econômicos ao passo em que se elevou o limiar da passagem para crimes violentos e reduziu-se o custo econômico da própria pena, que se desligou do poder de forma direta (FOUCAULT, 2001).
O direito penal tem como finalidade proteger os bens jurídicos mais valiosos para a sociedade de forma justa e humana. Dessa forma, para o êxito de sua função, ele trabalha com a cominação, aplicação execução da pena. Porém, a pena não é a finalidade para o direito penal, esta serve apenas como elemento de coerção para a proteção desses bens. Nesse sentido, afirma Batista que "A função do direito de estruturar e garantir determinada ordem econômica e social, à qual estamos nos referindo, é habitualmente chamada de “função conservadora” ou de “controle social” (BATISTA, 2011, p.21). Esse controle social consiste em:
Não passa da predisposição de táticas, estratégias e forças para a construção da hegemonia, ou seja, para a busca da legitimação ou para assegurar o consenso; em sua falta, para a submissão forçada daqueles que não se integram à ideologia dominante. É fácil perceber o importante papel que o direito penal desempenha no controle social. (CASTRO, 1987 apud BATISTA, 2011, p.22).
A pena ao ser aplicada ela segue caput do art. 59 do Código penal, sendo assim o seu rito: primeiro o magistrado deve estabelecer a modalidade de pena aplicável dentre as cominadas – pena privativa de liberdade, multa ou restritiva de direito – quando o tipo penal consignar essa possibilidade: (inciso I) – as penas aplicáveis dentre as cominadas; (inciso II) – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; (inciso III) – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; (inciso IV) – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível. Dessa forma:
No Brasil, tivemos a influência do pensador italiano Alessandro Baratta abordou que não havia como compreender a criminalidade se não ocorresse um estudo da ação do sistema penal, como será definido e quais são suas reações, começando essas analises pelas normas abstratas até as instancias oficias nesse sentido aquele status social de delinquente será ocasionado pelos efeitos das atividades exercidas nas instancias oficiais do controlo social da delinquência.
O réu condenado à pena privativa de liberdade sob regime fechado será recolhido a uma penitenciária e será submetido aos ditames da Lei de Execuções Penais (LEP). Neste sentido refere Salo de Carvalho:
Embora os direitos do preso tenham atingido status constitucional, a estrutura processual (inquisitiva) inviabiliza sua plenitude. A natureza mista (híbrida) representada pela tensão entre jurisdição e administração, aliada ao modelo jurisdicionalizado autoritário normatizado na LEP possibilitou diagnosticar o sistema de execução penal brasileiro como inquisitorial. A inquisitoriedade encontra-se fundamentalmente no processo de submissão do direito processual penal, genealogicamente garantista e acusatória, às regras e aos procedimentos administrativizados, ou seja, na colisão entre os direitos do apenado e os pressupostos de disciplina e segurança que justificam a ação administrativa. (CARVALHO,2008, p.175).
É por intermédio desse processo que se define o indivíduo como sendo ou não um delinquente. Percebe-se que o cárcere no Brasil, da forma como ocorre – munido com o mais absoluto descaso do Estado e a normalização de sofrimento pela sociedade –, aponta para a implementação de uma espécie de política criminal intencionalmente aplicada com o objetivo de promover a segregação social com relação àqueles grupos sociais que não agradam aos interesses das estruturas e grupos dominantes que se encontram no poder (FLAUZINA, 2008). Dentre o perfil do preso, encontra-se uma discrepante mudança ao analisar cor, renda, idade e escolaridade. É notório o uso da pena como método de segregação racial.
3.2 Perfil da população carcerária no Brasil e crimes praticados
O sistema carcerário brasileiro, de acordo com o Sistema Integrado de Informações Penitenciário[16] (InfoPen) é disponibilizada 376.669 vagas para 579.423 presos distribuídas em 358 Sistema Penitenciário Federal. O que demonstra um déficit de vagas de 231.062, uma taxa de ocupação de mais de 100%, onde deveria haver 10 encarcerados existem 16. Essa superlotação evidencia as incongruências que se identifica quando se compara o cárcere real e legal.
Segundo os dados apresentados pelo Sistema Integrado de Informações Penitenciário (InfoPen), apresenta cerca de 41% dos presos permanecem em um regime fechado mesmo não tendo uma sentença condenatória, ou seja, a cada dez presos, quatro estão encarcerados sem terem sido julgados e condenados, isso é um resultado da grande lentidão judicial do Estado que contribui para a superlotação, um dos grandes fatores que contribui para um resultado ineficiente do sistema carcerário como método de medida ressocializadora.
Ao analisar o perfil do encarcerado pela idade, a maior parte da população criminal é composta por jovens com idades entre 18 e 29 anos. Traçando esse perfil por cor, a cada dois encarcerados três são negros, ou seja, 67% são negros. A escolaridade também deixa explícita a seletividade do sistema penal aproximadamente em cada dez presos apenas oito estudaram até o ensino fundamental. Enquanto a média nacional de pessoas é de 50% que frequentaram o ensino fundamental ou o têm incompleto, sendo que apenas 8% da população prisional o concluíram.
Também de acordo com o INFOPEN, 75% dos presos têm até o ensino fundamental completo.
O crime que mais prende no Brasil é o tráfico de drogas (28%), seguido de roubo (25%), furto (13%) e homicídio (10%). Os dados consideram a soma dos detidos já condenados e os que aguardam sentença. O estudo também aponta que 40% dos detentos no Brasil são provisórios, ou seja, ainda não receberam condenação.
A prática de crimes contra o patrimônio, os furtos e roubos são praticados, em sua grande maioria, por indivíduos advindos da base da pirâmide social. Enquanto que os demais crimes que lesam o erário público e que refletem negativamente na sociedade, são praticados pelos detentores do poder político e econômico. No campo do discurso da "defesa social" não passa de mero instrumento legitimador dessa lógica do funcionamento do Sistema Penal, onde quem é condenado e preso é aquele individuo etiquetado como criminoso oriundo dos estratos sociais mais baixos, em sua grande maioria e que, mesmo sem saber, se rebela contra a lógica do sistema. Em contrapartida, aqueles que de fato cometem crimes com reflexos socialmente negativos são ignorados pelo sistema penal, por exemplo, os crimes de colarinho branco (BARATTA, 2002, p. 65).
O Poder Judiciário brasileiro recebe todos os impactos dessa politica criminal e de seus fundamentos econômicos. No processo de minimização do Estado, está o Judiciário, imobilizado na camisa de força orçamentária tão cara ao FMI, sujeito a perdas e reduções, seja para soluções arbitrais, seja para jurisdições internacionais ou regionais. Perante o desmerecimento do espaço público, qualquer procedimento que possa envolver a responsabilização de um magistrado terá divulgação similar à de uma catástrofe: hoje, no Brasil, aqueles que têm a responsabilidade funcional de velar pelo princípio da presunção de inocência dos cidadãos não desfrutam dessa garantia.
Definitivamente, pretende-se que o Judiciário abandone sua missão, insubstituível para o estado de direito democrático, de conter todo o poder punitivo exercido inconstitucional, ilegal ou irracionalmente, para politizar-se, para ser um complacente espectador da criminalização secundária; para ser, numa palavra, uma espécie de capitão-do-mato dos foragidos da nova economia. Isto seria a ruína do Judiciário, seguida da ruina do estado de direito, com a implantação de um estado policial submisso à nova ditadura financeiro-virtual planetária.
Esses levantamentos deixam evidente como existe uma segregação criada pelo sistema, além disso, é notório a que a ressocialização não acontece, uma vez que os elementos básicos para uma vida digna e justa muitas vezes não são respeitados, com seu respaldo legal na LEP em seu artigo 88 que o detento deverá ser alojado em cela individual, com o mínimo de seis metros quadrados e em ambiente salubre, o que se encontra na realidade da prisão brasileira é o completo oposto do que requer a norma legal. A realidade é totalmente diferente, celas sujas, superlotação, doença, requisitos mínimos para a sobrevivência omissa.
A situação de falência da função reabilitadora da pena, que deveria prevalecer para legitimar o cárcere, é uma situação tão evidente que esse ambiente já há muito tempo é considerada uma espécie de “escola do crime” (MIRABETE, 2008).
Baseando-se nas estatísticas apresentadas, grande maioria dos presos são jovens, bem como, pobres, marginalizados e sem qualquer amparo social, que buscam no esteio da criminalidade um prazer para tais condições. Partindo de um pressuposto que estes jovens ainda tem a oportunidade de um ressocialização, bastando ao Estado o dever de proporcionar os métodos no período do cumprimento da pena, uma educação moral e profissional, de modo que lhes preparam para o regresso na sociedade e entrar no mercado de trabalho.
Nesse sentido, a pena privativa de liberdade possui funções retributivas e especiais, sendo esta última, justamente, a de recuperar o apenado, argumento essencial para sua constitucionalidade. O ponto é que, sendo a função ressocializadora a única justificativa que permite a aplicação de pena sem que se incorra na instrumentalização do corpo humano, uma vez que esta não seja cumprida, se terá, na prática, a mais absoluta incoerência com o Estado Democrático de Direito: a utilização do aparato público para ferir-se profundamente aos direitos fundamentais dos encarcerados (MIRABETE, 2008).
Com base no campo da razão, além de atribuir ao sistema uma função de proteção de bens jurídicos, é necessário atribuir, também, à pena, funções socialmente úteis, tais como prevenção e ressocialização das pessoas que cometem crime (ANDRADE, 1997, p.179). Assim dispõe:
O sistema penal requer a legitimidade, desta forma, uma congruência da sua dimensão operacional em relação à sua dimensão programadora em nome da qual pretende justificá-lo; ou seja, requer não apenas sua operacionalização no marco da programação normativa (exercício racionalizado de poder), mas também O cumprimento dos fins socialmente úteis atribuídos ao Direito Penal e à pena(programação teleológica) do sistema para garantir sua efetivação. (ANDRADE, 1997, p.181).
Ante todo o exposto, pode-se entender que as práticas não discursivas utilizadas pelo Estado que denunciam seu papel omissivo em relação à modificação da realidade de desumanidade da experiência pelos detentos no interior do cárcere parecem, em realidade, expressar nos objetivos institucionais todo o contrário do que dispõe a teoria legal. Ao invés de buscar a ressocialização, o Estado mais parece buscar o encarceramento seletivo de determinados sujeitos (FLAUZINA, 2008).
Foucault (2001) defende que as práticas disciplinares aplicadas no cárcere demonstram não uma repressão que visa à redução da criminalidade, mas sim, uma organização da delinquência que contribui para sua própria manutenção, levando a crer que esse sistema punitivo possui, por trás de seus objetivos explícitos, verdadeira intenção do poder estatal em manter a existência da criminalidade. A manutenção do fenômeno criminal é interessante ao Estado até mesmo porque é através dele que se constrói a figura social do delinquente como o “inimigo da sociedade”, dando o poder aos agentes estatais de decidirem aqueles que vão ao cárcere, e legitimando, pela persistência da criminalidade, a manutenção de seu poder punitivo.
Todo esse conjunto de estatísticas e estudo comprova o quão seletivo é o sistema punitivo brasileiro e sua total ineficácia diante do plano real, com a normalização do sofrimento e altos índices de reincidência. Parece ser, portanto, por meio da implementação intencional desse projeto de política criminal que se traduz no cárcere real que, no Brasil, se promove hoje um genocídio seletivo silencioso e continuado (FLAUZINA, 2008). Através de um sistema falido e leis que em nada ajudam na queda do índice de criminalidade.
A própria história brasileira e o histórico evolutivo da pena permitem observar, em muitos episódios, que desde o período colonial, há a presença da seletividade racial nas decisões daqueles sujeitos que detêm o poder.
4 SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL
4.1 Teoria do etiquetamento
A Teoria do Etiquetamento Social[17] surgiu na década de 1960, nos Estados Unidos, consagrou a Criminologia Crítica e trouxe uma importante abordagem sociológica, analisando o Sistema Penal de forma otimizada, a fim de compreender certos aspectos indispensáveis à verificação da criminalidade e o status social do transgressor. Esboçada por aqueles que constituem a Escola de Chicago, com ajuda dos autores Edwin Lemert[18], Edwin Schur[19], Howard S. Becker[20] e Fritz Sacka, também conhecida por Labeling Approach[21], teve extrema importância na teoria da criminalidade. A consideração do desvio ou do crime como um comportamento definido por alguém, o controle social e o repúdio ao determinismo e à qualificação do delinquente como um indivíduo “diferente” são aspectos essenciais na teoria do etiquetamento.
A Labeling Approach Theory ou Teoria do Etiquetamento Social é uma teoria criminológica marcada pela ideia de que as noções de crime e criminoso são construídas socialmente a partir da definição legal e das ações de instâncias oficiais de controle social a respeito do comportamento de determinados indivíduos.
Segundo esse entendimento, a criminalidade não é uma propriedade inerente a um sujeito, mas uma “etiqueta” atribuída a certos indivíduos que a sociedade entende como delinquentes. Em outras palavras, o comportamento desviante é aquele rotulado como tal.
Essa teoria surgiu em momento de transição entre a criminologia tradicional e a criminologia crítica, na medida em que passou a preterir o estudo de supostas predisposições à realização de crimes, como defendido por Cesare Lombroso, e aspectos psicológicos do agente em favor de uma análise aprofundada do Sistema Penal como forma de compreender o status social de delinquente. A partir dessa nova concepção, a teoria pauta-se fundamentalmente na análise da ação de forças policiais, penitenciarias, órgãos do Poder Judiciário e outras instituições de controle social, com o objetivo de entender como os rótulos estipulados pela sociedade e aplicados por tais instituições refletem circunstâncias sociais e contribuem para a criação de um estigma de “criminoso” para certos grupos sociais, alterando a própria percepção individual daqueles rotulados.
Os principais postulados do labelling aproach são:
1- Interacionismo simbólico e construtivismo social (o conceito que um indivíduo tem de si mesmo, de sua sociedade e da situação que nela representa, é ponto importante do significado genuíno da conduta criminal);
2- Introspecção simpatizante como técnica de aproximação da realidade criminal para compreendê-la a partir do mundo do desviado e captar o verdadeiro sentido que ele atribui a sua conduta;
3 - Natureza “definitorial” do delito (o caráter delitivo de uma conduta e de seu autor depende de certos processos sociais de definição, que lhe atribuem tal caráter, e de seleção, que etiquetaram o autor como delinquente);
4 - Caráter constitutivo do controle social (a criminalidade é criada pelo controle social);
5 - Seletividade e discriminatoriedade do controle social (o controle social é altamente discriminatório e seletivo);
6 - Efeito criminógeno da pena (potencializa e perpetua a desviação, consolidando o desviado em um status de delinquente, gerando estereótipos e etiologias que se supõe que pretende evitar. O condenado assume uma nova imagem de si mesmo, redefinindo sua personalidade em torno do papel de desviado, desencadeando-se a denominada desviação secundária.
7- Paradigma de controle (processo de definição e seleção que atribui a etiqueta de delinquente a um indivíduo).
A sociedade é estruturalmente antagônica, estratificada e tem o delito como fruto social. Através da necessidade de interromper o ciclo da criminalidade surgiu a Criminologia para solucionar o acidente social que é o delito.
Ocorreram várias hipóteses para desvendar os mistérios da criminalidade para a sociedade, porém sempre havia algo que não estava de acordo com a observação da realidade, então surgiu a Criminologia Crítica questionando se o sistema penal e o fenômeno do controle eram de fato eficazes para a ressocialização do condenado e quais os efeitos produziam para o mesmo.
A Sociologia Criminal, que contempla o delito como fenômeno social, estudou e aplicou em sua análise diversos marcos teóricos (ecológico, estrutural-funcionalista, subcultural, conflitual, interacionista, etc. As principais teorias nasceram na Escola de Chicago e destacam-se as teorias do processo social que formulam diversas respostas ao fenômeno da criminalidade e sua gênese.
A desigualdade do cidadão nos processos sociais ocasionou as teorias do etiquetamento ou da reação social (labeling approach) que ampliou o objeto de investigação criminológica e segundo os teóricos, a desviação e a criminalidade não são entidades ontológicas pré-constituídas, e sim etiquetas que determinados processos de definição e seleção, altamente discriminatórios, colocam em certos sujeitos.
Em razão disso, a criminalização secundária seria a responsável pela estigmatização, pela rotulação e disto surgiriam mais criminalizações, ou seja, a reincidência. Assim, inserido numa subcultura da delinquência, após ser socialmente rotulado e marginalizado, o indivíduo trilharia uma espécie de carreira criminal. Ancorado no conceito de crime e intrínseco a ele está o conceito de criminoso. Como disserta Andrade:
[…] o processo de criação de leis penais que define os bens jurídicos protegidos (criminalização primária), as condutas tipificadas como crime e a qualidade e quantidade de pena (que frequentemente está em relação inversa com a danosidade social dos comportamentos), obedece a uma primeira lógica da desigualdade que, mistificada pelo chamado caráter fragmentário do Direito Penal pré-seleciona, até certo ponto, os indivíduos criminalizáveis. E tal diz respeito, simultaneamente, aos conteúdos e não conteúdos da lei penal. (2003, p. 278).
Por essa ótica, tem-se que o criminoso não é alguém que nasceu para delinquir, como propõe a criminologia positiva, mas simplesmente alguém a quem é atribuída a qualidade – o rótulo – de criminoso pelas instâncias de controle social (ANDRADE, 2003). Dessa forma, os criminosos “[...] não são seres humanos monstruosos, mas pessoas totalmente normais que se encontram em um modo de conduta em razão de processos sociais normais” (ARAÚJO, 2010, p. 108).
Esses fatos demonstram claramente que a pena não ressocializa ninguém e sim estigmatiza, pois não é o fato de ter praticado um crime que torna o sujeito indesejável aos olhos da sociedade, e sim o fato de ter cumprido uma pena. O modelo clássico de justiça encontra-se em crise, então a resposta mais satisfatória ao problema criminal é o Direito Penal Mínimo, pois há um menor custo social.
4.2 Seletividade penal uma afronta ao princípio da igualdade
O processo não apresenta apenas uma característica instrumental. É certo afirmar que, com o advento do Estado Democrático, o processo apresenta uma dupla faceta: instrumental e garantista. O processo é o instrumento, mas por outro lado, é a garantia colocada à disposição das partes para a correta aplicação da lei. Dessa feita, o processo atua como instrumento do poder do Estado, aplicando a lei em face daquele que a viola. De outra feita, protege sempre o interesse público, o direito da personalidade, sobretudo da liberdade e também patrimônio do imputado. O Direito Processual garantístico é o cerne da relação entre o Direito Processual e a Constituição. A Constituição Federal de 1988 dispõe em seu artigo 5º, caput, sobre o princípio constitucional da igualdade, perante a lei, nos seguintes termos:
Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, [...].
O princípio da igualdade ou isonomia, é fundamentado no pensamento de que todos os seres humanos, nascem iguais e desta forma devem possuir as mesmas oportunidades de tratamento. Essa preocupação dos revolucionários Franceses, em declarar a igualdade de todos perante a lei, foi assimilada pelas constituições mais modernas, a exemplo da Brasileira, que adota um Estado Democrático de Direito. Portando, é através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, criada na França que o princípio da igualdade passou a servir de alicerce do Estado moderno, dando assim grande colaboração a todas as constituições modernas. A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas afirma em seu artigo 1°:
"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade’’
Existem dois tipos de isonomia, sendo elas a formal e outra considerada material. A formal, refere-se à expressão utilizada de que “todos são iguais perante a lei”, é a igualdade diante da lei vigente e da lei a ser elaborada, impedindo privilégios a qualquer grupo. E proibindo o tratamento diferenciado aos indivíduos com base em critérios como: raça, sexo, classe social, religião e convicções filosóficas e políticas como consta no artigo 3º inciso IV da Constituição Federal. Enquanto a material, pressupõe que as pessoas inseridas em situações diferentes sejam tratadas de forma desigual, tratando igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades. Servindo de instrumento de concretização da igualdade em sentido formal, para aplica-la ao mundo prático.
O princípio da igualdade prevê a igualdade de aptidões e de possibilidades virtuais dos cidadãos de gozar de tratamento isonômico pela lei. Por meio desse princípio são vedadas as diferenciações arbitrárias e absurdas, não justificáveis pelos valores da Constituição Federal, e tem por finalidade limitar a atuação do legislador, do intérprete ou autoridade pública e do particular. Ela prevê um tratamento isonômico diante das diferenças de cada pessoa, como preceitua Nery:
O princípio da igualdade pressupõe que as pessoas colocadas em situações diferentes sejam tratadas de forma desigual: “Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. (NERY JUNIOR, 1999, p. 42).
No processo penal o princípio da igualdade se exterioriza e se evidencia pelo tratamento paritário entre a acusação e a defesa. O tratamento igualitário nada mais é do que a garantia das mesmas oportunidades e possibilidades processuais. Porém o caso concreto mostra-se completamente destoante em relação ao princípio da igualdade que preceitua nossa Constituição Federal, com uma punibilidade maior para com aqueles que estão em escala social menor. A todo instante, este princípio é quebrado, violado e consequentemente gera na sociedade um sentimento de revolta e impunidade. Assim leciona Alessandro Baratta:
“O Direito Penal, como instrumento do discurso de (re) produção de poder, tende a privilegiar os interesses das classes sociais dominantes, imunizando de sua intervenção condutas características de seus integrantes, e dirigindo o processo de criminalização para comportamentos típicos das camadas sociais subalternas, dos socialmente alijados e marginalizados” (BARATTA, Alessandro, 2002, p. 165).
Porém nos casos concreto esse princípio não é observado, como mostra o mapeamento dos presos no Brasil que demonstra empiricamente a existência de um Direito Penal seletivo e estigmatizante, cujas diferenças de tratamento se fazem presentes ao longo de toda a cadeia de formação e atuação da justiça penal, vale dizer: criação e aplicação desigual das leis.
A decisão legislativa na escolha das condutas a serem taxadas como crimes e no estabelecimento das sanções que serão aplicáveis retrata que os socialmente desfavorecidos são tratados com bem mais rigor pela lei penal. A imensa maioria dos tipos penais previstos na legislação brasileira descreve condutas praticadas pelos estratos sociais mais desfavorecidos e, desta feita, pode-se afirmar que a escolha do legislador condiciona quem exercerá o papel de delinquente.
Impende registrar que não se trata de oposição à criminalização de condutas nocivas à convivência social harmônica e lesiva de bens jurídicos de indiscutível importância. O que se critica é o tratamento desigual, haja vista que condutas também perturbadoras da paz pública, mas cometidas pelas camadas economicamente privilegiadas da sociedade não são taxadas como delituosas e, quando o são, não há a incidência de uma Justiça Penal tão estigmatizante.
O legislador brasileiro selecionou um conjunto de delitos e os tipificou como hediondos. Os crimes assim etiquetados sofrem um tratamento bem mais rígido ao longo de toda a persecução penal. Observa-se que a imensa maioria dos crimes elencados no rol dos hediondos corresponde à criminalidade comum, o que atesta que o sistema penal age de forma seletiva em face da conflituosidade social. Já houve várias tentativas inexitosas de enquadrar o crime de corrupção na lista dos hediondos. A Lei 13.964 (conhecida como Pacote Anticrime) fez alterações na Lei 8072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) e classificou até mesmo o delito de furto qualificado pelo emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum (artigo 155, § 4º-A) como hediondo, porém, mais uma vez, escamotearam-se dessa seleção os crimes usualmente cometidos pelos economicamente mais privilegiados.
Dessa forma, a verdade é que a seletividade atinge aquela camada da população mais frágil, que já possui um estereótipo criado pela própria sociedade, pobres, negros, ou seja, os estratos sociais desprivilegiados. Enquanto que aqueles que não condizem com esse estereótipo, não são tratadas da mesma maneira. Quando o autor da infração pertence às camadas sociais mais baixas, com certeza, a lei será aplicada com todo o rigor. Porém, quando aquele que cometeu o delito pertence às camadas sociais mais elevadas, faz parte de um seleto grupo social, o tratamento que lhe dispensado é completamente diferente, fazendo romper com todo o ideal de justiça. Como exemplos têm os crimes de colarinho branco, que causam um dano maior e irreparável para a sociedade, porém os autores desses crimes eventualmente são processados criminalmente, e mais raramente ainda, são punidos e levados ao cárcere, mais uma vez deixando visível a estratificação social na Lei Penal.
5 CONCLUSÃO
Durante muito tempo, a pena passou a ser um instrumento do Estado como uma forma de obter a paz em meio aos conflitos em sociedade. Assim, em muitos casos, eram executadas de forma desproporcional, levando em consideração apenas privação de liberdade e meios de punição severa, enquanto o direito a um julgamento justo e aplicação da pena de forma proporcional ao crime cometido era dispensado.
Tendo em vista o aperfeiçoamento das ideias com a ajuda de vários pensadores e estudiosos, tendo como principal exemplo neste artigo, Cesare Beccaria, tem-se o avanço de um sistema penal mais justo, conforme as regras do devido processo legal, bem como uma pena já prevista em lei, assim como um regime já pré-estabelecido conforme as circunstâncias elementares do crime.
Com o advento do Código Penal de 1940, foi possível delimitar a finalidade primordial da pena em ressocialização, prevenção e retribuição do criminoso. Ademais, o Estado convoca para si a responsabilidade em ser principal meio para a resolução de conflitos, atuando, portanto, como mediador de violência pelo Estado. Assim, busca-se, a princípio, a manutenção de uma ordem social justa e igualitária em prol da sociedade.
Vale ressaltar que, a Constituição Federal, em seus dispositivos e ensinamentos, coloca os direitos fundamentais como princípio majoritário na defesa de seus indivíduos, bem como a limitação do poder repressivo do Estado. Em seu artigo 5º, acerca do princípio da isonomia, assegura o direito a um tratamento igualitário, pois são todos iguais perante a lei independentemente de qualquer fator.
Contudo, o ordenamento jurídico, cuja há predominância na desigualdade social, é apenas mais um dos meios utilizados para perpetuação desse modelo, onde prevalece essa disparidade de tratamento. Assim, o sistema penal age de forma seletiva contra indivíduos que se encontram em níveis mais baixos na sociedade.
Tendo a realidade sendo noticiada a qualquer momento, é possível observar que a criminalidade está ligada a discrepância diversidade econômica, uma vez que, havendo ou não abismo entre as classes sociais, a economia acaba tendo reflexos importantes na vida em toda a sociedade.
Todavia, a mídia insere na sociedade o sentimento de medo, utilizando os indivíduos renegados pela sociedade, como sendo considerados perigosos, mesmo sem saber que o real motivo por trás disso, pois o sistema penal atua em quase que exclusivamente contra os indivíduos com classe social inferior e conceituados como marginalizados.
Deve-se refletir que boa parte da população carcerária brasileira está reclusa por crimes sem tanta relevância social; enquanto aqueles socialmente privilegiados, cometendo crimes políticos e econômicos, com péssimos reflexos sociais, acabam saindo impunes pelo simples fato do seu status em sociedade.
O desenvolvimento da explanação em tela tem o intuito de reforçar que os grupos de categorias maios baixos, conforme a sociedade entende, sofrem diante da política criminal na ausência de proteção, bem como na dispensa de poder usufruir seus direitos básicos perante a sociedade que se diz ser justa e igualitária.
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[1] discente do Curso de Direito no Centro Universitário Santo Agostinho, Teresina – PI. E-mail: [email protected].
[2] Juliano de Oliveira Leonel, docente Curso de Direito no Centro Universitário Santo Agostinho, Teresina – PI. E-mail: [email protected].
[4] BRASIL, Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.
[5] BRASIL. Lei nº 6.416, de 24 de maio de 1977. Altera dispositivos do Código Penal (Decreto-lei número 2.848, de 7 de dezembro de 1940), do Código de Processo Penal (Decreto-lei número 3.689, de 3 de outubro de 1941), da Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei número 3.688, de 3 de outubro de 1941), e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 24 de maio de 1977.
[6] BRASIL, Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União. Brasília, 11 de julho de 1984.
[7] BRASIL, Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003. Altera a Lei no 7.210, de 11 de junho de 1984 - Lei de Execução Penal e o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 1º de dez. de 2003.
[8] O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) é uma espécie de regime de cumprimento de pena privativa da liberdade cujas regras são mais rígidas que as do regime fechado, podendo ser cumprido em presídios comuns ou em presídios federais.
[9] CESARE BECCARIA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikipédia Foundation, 2022. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Cesare_Beccaria&oldid=63196578>. Acesso em: 14 mar. 2022.
[10] BECCARIA, Cesar. OLIVEIRA, Paulo M,. MORAES, Evaristo de. Dos Delitos e Das Penas. 2º. Ed. Edipo. Disponível em: https://www.livrosgratis.com.br/ler-livro-online-26498/dos-delitos-e-das-penas. Acesso em: 13 de mar. 2022.
[11] O iluminismo foi considerado um movimento intelectual que defendia o uso da razão e pregava maior liberdade econômica e política.
[12] Para mais detalhes: disponível em http://mapa.an.gov.br/index.php/menu-de-categorias-2/268-casa-de-correcao. Acesso em 12 de mar. 2022.
[13] Para mais detalhes: disponível em https://www.justificando.com/2018/10/12/das-ordenacoes-filipinas-ao-codigo-criminal-de-1830/. Acesso em 12 de mar. 2022.
[14] BRASIL, Decreto nº 847, de 11 de out. 1890. Código Penal dos Estados Unidos do Brazil. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 11 de out. 1890.
[15] BRASIL, Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.
[16] O Infopen é um sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro. O sistema, atualizado pelos gestores dos estabelecimentos desde 2004, sintetiza informações sobre os estabelecimentos penais e a população prisional.
[17] Para mais detalhes: disponível em https://draflaviaortega.jusbrasil.com.br/noticias/322548543/teoria-do-etiquetamento-social.
[18] Edwin M. Lemert (1912-1996), professor de sociologia na Universidade da Califónia. Mesmo com todos os outros sociólogos da época, Lemert foi capaz de ver como a maioria dos atos sociais são vistos como atos desviantes .
[19] Schur estudou ciência política, sociologia e direito na Universidade de Yale e na London School of Economics , onde obteve seu Ph.D. recebeu seu doutorado . Depois de trabalhar em várias universidades americanas, Schur tornou-se professor titular de sociologia na Universidade de Nova York em 1971 .
[21] Para Hassemer (2005), o labeling approach significa enfoque do etiquetamento, e tem como tese central a ideia de que a criminalidade é resultado de um processo de imputação, “a criminalidade é uma etiqueta, a qual é aplicada pela polícia, pelo ministério público e pelo tribunal penal, pelas instâncias formais de controle social” (HASSEMER, 2005, p. 101-102, grifo do autor). “[...] o labeling approach remete especialmente a dois resultados da reflexão sobre a realização concreta do Direito: o papel do juiz como criador do Direito e o caráter invisível do ‘lado interior do ato’”. (HASSEMER, 2005, p. 102).
Acadêmica do curso de Direito no Centro Universitário Santo Agostinho em Teresina - PI.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUSA, Fabianne Chaves de. A seletividade do sistema penal no Brasil: uma afronta ao princípio da igualdade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jun 2022, 04:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58680/a-seletividade-do-sistema-penal-no-brasil-uma-afronta-ao-princpio-da-igualdade. Acesso em: 23 dez 2024.
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