RESUMO: O direito ao esquecimento consiste na pretensão de que não seja resgatado um fato pretérito, ainda que verídico, a respeito de um indivíduo, pois tal recordação ocasionaria violação a seus direitos fundamentais. Durante muito tempo, o ordenamento jurídico brasileiro consagrou esse direito através de posicionamentos jurisprudenciais, apesar de não haver previsão normativa específica a respeito. Ocorre que o STF, em sede de repercussão geral, modificou entendimento e passou a considerar o direito ao esquecimento incompatível com a Constituição Federal. Nesse sentido, o presente trabalho tem por objetivo analisar como fica a tutela de determinados direitos, sobretudo no mundo digital, após esse posicionamento do STF.
PALAVRAS-CHAVE: Direito ao esquecimento; Internet.
ABSTRACT: The right to be forgotten is the claim to protect old facts about a person, even if these facts are true, avoiding the remembrance by the social media, because this remembrance would violate fundamental rights. For a long time, Brazilian’s legal system accepted this right through jurisprudential positions, although there is no specific law about the subject. However, STF, in terms of general repercussion, changed its understanding and started to consider the right to be forgotten incompatible with the Federal Constitution. Therefore, the present article aims to analyze how to protect the fundamental rights, especially on the Internet, after this position of STF.
KEYWORDS: Right to be forgotten; Internet.
1.Introdução
O direito ao esquecimento consiste na pretensão da pessoa de não ver resgatado um fato pretérito a seu respeito, ainda que verídico, pois tal recordação ocasionaria violação a seus direitos fundamentais. Também chamado “direito de ser deixado só”, o direito ao esquecimento tem por intuito evitar que haja uma publicização pelos veículos de comunicação social de fatos antigos sobre alguém, pois o transcurso do tempo poderia fazer com que essa recordação violasse interesses fundamentais.
Com a Internet e a tendência de que as informações se perpetuem na rede, o debate sobre o direito ao esquecimento como um mecanismo de proteção dos interesses dos usuários se tornou mais frequente.
Quanto à relação entre memória e internet, Viktor Mayer-Schönberger (2009, p. 2, tradução nossa) leciona:
Desde o início dos tempos, para nós humanos, esquecer tem sido a regra e lembrar a exceção. Devido à tecnologia digital e à rede global, no entanto, esse panorama mudou. Hoje, com a ajuda da tecnologia difundida, esquecer se tornou a exceção e lembrar, a regra.[1]
Apesar de, a priori, o ordenamento jurídico brasileiro admitir, ainda que jurisprudencialmente, a doutrina do direito ao esquecimento, o STF, em sede de Repercussão Geral, passou a entender que esse direito é incompatível com a Constituição Federal.
Nesse sentido, o presente trabalho busca analisar como fica a tutela de direitos fundamentais atrelados ao direito ao esquecimento após essa decisão do STF.
2.Breve panorama sobre o direito ao esquecimento no mundo digital
Com origem histórica no campo penal, o direito ao esquecimento era visto como um importante mecanismo para ressocialização do condenado, evitando-se que este pudesse sofrer represálias por toda a vida em razão de uma pena já cumprida. O desenvolvimento dos meios midiáticos fez o fenômeno transpassar os limites do âmbito criminal, e o direito ao esquecimento começou a ser utilizado como meio impeditivo para que jornais e revistas resgatassem, aleatoriamente, fatos antigos da vida de alguém que não mais guardasse relação com o contexto atual.
Nesse sentido, cumpre pontuar que, de acordo com Anderson Schreiber:
“(...) o direito ao esquecimento é, portanto, um direito (a) exercido necessariamente por uma pessoa humana; (b) em face de agentes públicos ou privados que tenham a aptidão fática de promover representações daquela pessoa sobre a esfera pública (opinião social); incluindo veículos de imprensa, emissoras de TV, fornecedores de serviços de busca na internet etc.; (c) em oposição a uma recordação opressiva dos fatos, assim entendida a recordação que se caracteriza, a um só tempo, por ser desatual e recair sobre aspecto sensível da personalidade, comprometendo a plena realização da identidade daquela pessoa humana, ao apresenta-la sob falsas luzes à sociedade.” (Anderson SCHREIBER. Direito ao esquecimento e proteção de dados pessoais na Lei 13.709/2018. In: TEPEDINO, G; FRAZÃO, A; OLIVA, M.D. Lei geral de proteção de dados pessoais e suas repercussões no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 376).
É possível visualizar, no Brasil, a aplicação da doutrina do Direito ao Esquecimento em dois casos emblemáticos sobre os quais se debruçou a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça:
O primeiro foi o caso Aída Curi, em que a família de uma vítima de crime ocorrido no Rio de Janeiro em 1958 propôs demanda indenizatória em face da TV Globo por conta de programa veiculado pela emissora, no qual os detalhes da tragédia foram relembrados (BRASIL, 2013b). No segundo, referente à Chacina da Candelária, um dos suspeitos do crime que havia sido posteriormente absolvido promoveu ação de reparação de danos, também em face da TV Globo, em razão da lembrança do episódio no mesmo programa televisivo (BRASIL, 2013a). (EHRHADT; NUNES; PORTO, 2017, p. 64)
Esse direito, de acordo com a doutrina pátria, encontra fundamento constitucional e legal, uma vez que decorre do direito à privacidade, à intimidade e à honra. Além disso, encontra lastro também na própria dignidade da pessoa humana. Cumpre pontuar que a problemática que envolve o direito ao esquecimento abarca um aparente conflito entre a liberdade de expressão e de informação e os direitos da personalidade do indivíduo.
Frise-se que, “conquanto o Direito ao Esquecimento possa revelar-se por inúmeras faces diferentes, é efetivamente no ambiente da internet que se concentra a principal problemática acerca do tema, de modo a dar margem a discussões com notável vigor em todo o mundo” (MALDONADO, 2018, p. 14).
Nesse diapasão, o direito ao esquecimento é, segundo Chehab (2015), “a faculdade que o titular de um dado ou fato pessoal tem para vê-lo apagado, suprimido ou bloqueado, pelo decurso do tempo e por afrontar seus direitos fundamentais”.
Atrelado a isso, Sérgio Branco (op. cit, p. 2408) aduz que:
O fato de o direito ao esquecimento não constar da lista de direitos de personalidade previstos no Código Civil não é um obstáculo à sua existência. Afinal, a melhor doutrina entende que os direitos de personalidade são protegidos de maneira mais ampla e completa pela cláusula geral de guarda da dignidade da pessoa humana, de modo que toda a emanação da personalidade deve ser resguardada, independentemente de expressa previsão legal.
Com efeito, o enunciado 531, aprovado na VI Jornada de Direito Civil dispõe que “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.” A aprovação do enunciado teve como justificativa o fato de os danos provocados pelas tecnologias da informação se acumularem nos dias de hoje. Embora o fundamento do enunciado tenha lastro no direito à ressocialização de um ex-detento, hodiernamente, o direito ao esquecimento não se restringe ao âmbito do direito penal, apesar de neste ter fincado as suas bases iniciais.
Sergio Branco (ibidem, p. 2672) leciona que o termo “direito ao esquecimento” não é o mais adequado por dois motivos. O primeiro deles é que há um constante questionamento se se trata de um direito autônomo ou de uma simples faceta do direito à privacidade. O segundo motivo consiste no fato de que não há como, efetivamente, esquecer algo no ambiente virtual e, por isso, o pleito nesses casos consiste tão somente em impedir que determinada informação pessoal fique acessível ao público.
No que concerne ao primeiro motivo, entende-se que, como a proteção de dados pessoais é manifestação do direito à privacidade, o direito ao esquecimento, especialmente no âmbito virtual, também seria apenas uma exteriorização específica do direito à privacidade. Por isso, assevera-se que o direito ao esquecimento não possui autonomia. Sucede que, apesar de o direito ao esquecimento possuir íntima ligação com o direito à privacidade, não se restringe a este.
Isto é, para que haja a possibilidade de garantir um direito ao esquecimento, é preciso que o direito à privacidade encontre lastro no caso concreto, mas isso não significa que os dois direitos se confundem. O direito ao esquecimento, na verdade, é instrumento utilizado para proteção do direito à privacidade, mas não só, uma vez que também protege o direito à imagem, à honra, à integridade psíquica. Portanto, apesar de se tratar de um direito da personalidade que depende dos demais em alguns aspectos, a ausência de total independência não se confunde com a ausência de autonomia.
Ressalte-se, porém, que há doutrinadores, como Daniel Sarmento, que entendem que não há nenhuma norma jurídica consagrando o direito ao esquecimento e este tampouco poderia ser extraído do texto constitucional por meio de interpretação. Os seguidores desse entendimento justificam, por exemplo, que, quando há interesse público, não se pode garantir um esquecimento sobre os fatos, pois isso prejudicaria de forma direta o acesso à informação. Sucede que o próprio Daniel Sarmento salienta que o direito ao esquecimento encontra espaço nos casos referentes a dados pessoais que não guardam interesse público. Para o autor (2015, pp. 44-45):
Uma foto de um adolescente embriagado, postada numa rede social pelo próprio ou por terceiros, por exemplo, pode se tornar a razão para que ele seja descartado numa entrevista de emprego realizada quando já adulto. Neste cenário, é importante construir instrumentos jurídicos que permitam às pessoas o exercício de algum controle sobre os seus dados pessoais que não ostentem interesse público. Embora a designação não pareça a mais apropriada, o “direito ao esquecimento” encontra aqui um campo legítimo para desenvolvimento, do ponto de vista dos valores jurídicos e morais envolvidos. Os maiores desafios a serem enfrentados nesta área são de natureza técnica, haja vista as conhecidas dificuldades de exercício de controle sobre o ambiente virtual, derivadas de fatores como a pulverização dos agentes, a velocidade das mudanças tecnológicas e a natureza transnacional do ciberespaço.
Para Sérgio Branco (op. cit, p. 3685-3686), “o direito ao esquecimento não pode servir para inibir a liberdade de expressão, mas para ser conjugado com esta.”
O segundo ponto controverso trazido por Sérgio Branco no que toca à consagração do direito ora discutido diz respeito à impossibilidade de se impor o esquecimento. Não obstante o direito ao esquecimento não se restringir à desindexação ou ao apagamento de dados pessoais, não há como negar que, no ambiente virtual, é dessa forma que o fenômeno se manifesta de forma mais nítida hodiernamente. Entretanto, embora o Marco Civil da Internet assegure, no art. 7º, X, ao usuário da rede a “exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação de internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes” (BRASIL, 2014), o que se visualiza na realidade é uma extrema dificuldade em concretizar isso.
Isso ocorre porque a tendência é que a informação se eternize no ambiente virtual. Ainda que excluída de um site, em outro ela ainda poderá estar disponível. No entanto, apesar de realmente não ser possível forçar o esquecimento, já que este é um ato natural do ser humano, o que ultrapassa questões meramente jurídicas, insta salientar que, por meio de apagamento de informações não mais relevantes, impede-se que estas venham a ser relembradas fora do contexto necessário. Atrelado a isso, Anderson Schreiber (2018, pp. 69-70) assevera que:
A expressão direito ao esquecimento talvez não seja a mais exata. Embora consagrada pelo uso doutrinário e jurisprudencial, tal expressão acaba por induzir em erro o jurista, sugerindo que haveria um direito de fazer esquecer, um direito de apagar os dados do passado ou suprimir referências a acontecimentos pretéritos. Não é disso, todavia, que se trata. O direito ao esquecimento consiste simplesmente no direito da pessoa humana de se defender contra uma recordação opressiva de fatos pretéritos, que se mostre apta a minar a construção e reconstrução da sua identidade pessoal, apresentando-a à sociedade sob falsas luzes (sotto falsa luce), de modo a fornecer ao público uma projeção do ser humano que não corresponde à sua realidade atual.
Nesse sentido, para que seja possível garantir o dito “direito ao esquecimento”, de acordo com a doutrina de Sérgio Branco, mister se faz analisar a presença ou não de alguns elementos, quais sejam: a manifestação do direito à privacidade, o interesse público, o decurso temporal, a veracidade da informação, o potencial dano e a tutela da liberdade de expressão.
No que se refere à manifestação do direito à privacidade, conforme já relatado, é preciso que a privacidade do indivíduo encontre guarida no caso concreto para que se possa garantir o direito ao esquecimento.
Quanto ao interesse público, entende-se que, caso uma informação detenha relevância para a sociedade, não é possível que, sob a justificativa de um direito ao esquecimento, ela simplesmente seja apagada, já que isso violaria o direito de acesso à informação.
“A simples dificuldade de conceituação do que seja, na prática, ‘interesse público’ não pode ser obstáculo para se aceitar o critério ou, ainda, para se repelir a possibilidade de existência do direito ao esquecimento em razão da vagueza de um de seus requisitos.” (BRANCO, op. cit, p. 3244-3245).
Nesse panorama, Viviane Nóbrega Maldonado (2017) defende que:
não fosse já árdua missão a qualificação de uma determinada informação como de interesse público, ou não, a doutrina do Direito ao Esquecimento traz ainda outro elemento complicador, na medida em que induz caráter disruptivo quanto ao que seja interesse público em razão de mero transcurso temporal
Ainda segundo Sérgio Branco (ibidem, pp. 3270-3271), “a veracidade da informação deve estar presente para se invocar o direito ao esquecimento”, visto que, sendo falso o conteúdo divulgado, aquele que teve seus interesses lesados deverá valer-se de outros meios de defesa, como, por exemplo, o direito de resposta.
Outro critério proposto por Sérgio Branco diz respeito ao fato de que o direito ao esquecimento só poderá ser invocado caso a manutenção da informação na web possa gerar danos a terceiros. Isto é, “o direito ao esquecimento não pode ser requerido por mero capricho, mas sim porque a conservação daquela informação acarreta um risco de dano a seu titular.” (ibidem, pp. 3280-3281).
Nesse sentido, Viviane Nóbrega Maldonado (op. cit, pág. 274) preconiza:
Anote-se, ademais, que há infinitas possibilidades que ensejam a invocação do direito ao esquecimento, entre as quais, em linhas gerais, podem ser elencadas a título exemplificativo, as relativas a arrependimento, cumprimento de sentença civil ou criminal, absolvição, mera desconexão temporal ou até mesmo inexistência de culpa ou consentimento para a existência da informação. A título de exemplo desta última hipótese, menciona-se o caso de James William Sidis, criança-prodígio americana que se notabilizou em tenra idade, e que teve sua vida exposta pela imprensa muitos anos depois, quando já houvera caído no anonimato. Verifique-se que, neste caso, a vítima não deu causa à informação, na medida em que se tornou famosa sem consentimento válido, já que tal ocorreu na fase da infância. Grifo nosso
Por isso, a possibilidade de apagamento dessas informações revela-se como uma importante alternativa ao problema do exagero de exposição da vida online.
3.Novo posicionamento do STF acerca do direito ao esquecimento
Apesar de a doutrina se posicionar, majoritariamente, de forma favorável à existência de um direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, em julgado de 2021, em sede de Repercussão Geral, adotou entendimento contrário:
É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível. STF. Plenário. RE 1010606/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 11/2/2021 (Repercussão Geral – Tema 786) (Info 1005).
Assim, o STF adotou a corrente que considera que a consagração do direito ao esquecimento resultaria num atentado à liberdade de expressão e de imprensa, visto que fazer desaparecer as informações acerca de alguém, sejam elas registros infracionais ou não, implicaria perda da própria história.
Ou seja, por força do interesse público, o direito ao esquecimento representaria um atentado à memória social. O STF considerou que o simples decurso de tempo não faz com que uma informação anteriormente lícita venha a se tornar ilícita e enseje reparação. Ademais, quando diante de fatos de interesse coletivo, ocorreria uma mitigação de direitos da personalidade do indivíduo atinentes à privacidade e intimidade.
Nesse sentido, diante do pronunciamento do STF, fica ainda mais evidente que o principal ponto de conflito quanto à aceitação do direito ao esquecimento reside na tentativa de conciliar esse direito com a liberdade de expressão e de imprensa e com o direito à informação.
Cumpre destacar que, para o STF, o direito ao esquecimento seria a pretensão do indivíduo de impedir a divulgação de fatos ou dados verdadeiros e obtidos licitamente, mas que, por força do decurso do tempo, estariam fora de contexto e sem relevância pública. Nesse ponto, cabe salientar que o Min. Relator Dias Toffoli defendeu que:
“Como se observa, muitos dos precedentes mais longínquos apontados no debate sobre o chamado direito ao esquecimento, na verdade, passaram ao largo do direito autônomo ao arrefecimento de fatos, dados ou notícias pela passagem do tempo, tendo os julgadores se valido essencialmente de institutos jurídicos hoje bastante consolidados em suas razões de decidir, como a ressocialização, a proteção ao nome e à imagem do indivíduo.
Desse modo, não obstante os esforços para se identificarem precedentes remotos do que viria a ser o direito ao esquecimento, o que se pode observar, em âmbito judicial, é a utilização discreta de expressões que remetem a alguma modalidade de direito a reclusão ou recolhimento, aplicada de forma muito pontual, com significativa menção, ademais, nas razões de decidir, a direitos da personalidade/privacidade.
Essa compreensão é relevante porque, não raro, buscam os doutrinadores estabelecer um conceito para o direito ao esquecimento embasando-se em tais precedentes, que, como visto, são significativamente distintos na lida com pretensões voltadas ao ocultamento de dados ou fatos dentro de contextos específicos. Não por outra razão, há significativa multiplicidade de definições propostas para a expressão direito ao esquecimento.”
4.Como compatibilizar o entendimento do STF com a proteção dos direitos dos indivíduos?
Assim, verifica-se que o STF adotou, no julgamento, um conceito mais estrito e específico do direito ao esquecimento, que não é o mesmo adotado pela maioria da doutrina. Nesse ponto, cumpre trazer à baila o entendimento de Rafael Mansur (2021):
A concepção acolhida na tese fixada pelo STF afasta-se substancialmente dos conceitos sugeridos pelos melhores trabalhos sobre o tema. Revela-se mais precisa, nessa linha, a proposta de definição do direito ao esquecimento como o "direito da pessoa humana de se defender contra uma recordação opressiva de fatos pretéritos, que se mostre apta a minar a construção e reconstrução da sua identidade pessoal, apresentando-a à sociedade sob falsas luzes, de modo a fornecer ao público uma projeção do ser humano que não corresponde à sua realidade atual". Essa definição evidencia aspecto nuclear do direito esquecimento, ignorado pelo Supremo Tribunal Federal, que justifica o merecimento de tutela deste "novo" direito em nossa ordem jurídica: o reflexo da recordação do fato pretérito sobre a dignidade da vítima, atingindo direitos fundamentais como a privacidade, a integridade psíquica ou a identidade pessoal.
Ou seja, não seria toda e qualquer recordação pretérita acerca do indivíduo que poderia ensejar reparação com fundamento no direito ao esquecimento, mas tão somente o resgate que resultasse em violação dos seus direitos fundamentais.
Assim, o direito ao esquecimento seria um mecanismo para proteger a pessoa humana diante de tal prática, sendo que, de acordo com Rafael Mansur (2021), essa proteção pode se manifestar por meio de “diversos remédios, como a desindexação de resultados de pesquisa, a redução parcial do conteúdo, sua complementação com dados atuais, a mera reparação pecuniária do dano moral sofrido (pretensão que constituía o objeto do processo em julgamento no Supremo) e mesmo, (apenas) quando necessário, a efetiva interdição da divulgação dos fatos ou informações”.
Verifica-se que o próprio STF, durante o julgamento, após reconhecer a incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição Federal, ressalvou que seria possível numa análise casuística o sopesamento de interesses, de modo a privilegiar, por exemplo, a proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral em detrimento da liberdade de expressão e informação.
Nesse sentido,
Ao assim proceder, o Supremo nada mais fez que endossar aquilo que já era defendido pela doutrina favorável ao direito ao esquecimento, que jamais postulou uma exclusão automática de notícias ou um direito absoluto ao apagamento de informações a partir de meros caprichos individuais, enfatizando, sempre, a necessidade de uma criteriosa ponderação entre os direitos colidentes, examinando-se os elementos do caso concreto a partir de parâmetros que indiquem a prevalência pontual de um dos princípios contrastantes. A tese consagrada pelo Supremo Tribunal Federal, portanto, longe de expurgar o direito ao esquecimento de nosso ordenamento, acaba por referendar (ainda que por linhas tortas) a compreensão prevalente no âmbito da doutrina civilista, favorável ao direito ao esquecimento e à sua aplicação via sopesamento de interesses (MANSUR, 2021).
Assim, apesar de considerar o direito ao esquecimento incompatível com o ordenamento jurídico pátrio, o STF não afastou pura e simplesmente a proteção dos direitos fundamentais que possam estar em conflito. O STF, no entanto, não reconheceu de forma abstrata a possibilidade de invocação desse direito, mas tão somente de forma casuística seria possível realizar uma ponderação de valores.
Nesse ponto, cabe pontuar que:
o reconhecimento do direito ao esquecimento parece, sim, gozar de utilidade e conveniência no processo hermenêutico, densificando a aplicação de princípios de maior abstração à luz de uma específica modalidade de violação, de modo a permitir a formulação de parâmetros de ponderação voltados para este particular contexto de colisão normativa. Contribui, assim, para soluções mais técnicas que aquelas que seriam alcançadas caso a aplicação do método da ponderação se reportasse imediatamente aos princípios mais abstratos, como os direitos à identidade e à privacidade, por exemplo. Trata-se de expediente cuja utilidade é há muito conhecida, valendo destacar o emblemático exemplo do chamado princípio da vedação ao comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium), que, embora nada mais seja do que uma aplicação específica do princípio da boa-fé objetiva, contribui decisivamente para a solução de casos concretos ao suscitar a verificação de requisitos específicos (MANSUR, 2021).
Por isso, apesar de não consagrar mais de forma abstrata a tutela de um direito ao esquecimento, é possível invocar os fundamentos que baliza(va)m a existência desse direito numa demanda em que haja conflito entre direitos fundamentais, sobretudo no tocante ao âmbito digital, em que os indivíduos se encontram numa situação de vulnerabilidade ainda maior, tendo em vista a rápida disseminação das informações.
5.Conclusão
Diante do exposto, pode-se concluir que o direito ao esquecimento deve ser compreendido como uma norma-princípio e não como uma norma-regra. Assim, o STF, em seu julgamento, pareceu adotar a ideia de que o direito em questão seria norma-regra, aplicado à base do “tudo ou nada”. Por isso, de forma abstrata, entendeu o Supremo que não seria possível consagrar o direito ao esquecimento.
Contudo, o direito ao esquecimento não é avaliado de modo abstrato, mas sim concretamente, de forma casuística. Nesse sentido, ainda que o posicionamento do STF tenha sido no sentido de compreender tal direito como incompatível com a Constituição, ainda assim, é possível a tutela de direitos fundamentais caso a caso, através de um juízo de ponderação.
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[1] Since the beginning of time, for us humans, forgetting had been the norm and remembering the exception. Because of digital technology and global networks, however, this balance has shifted. Today with the help of widespread technology, forgettting had become the exception, and remembering the default.
Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Mariana Oliveira. Direito ao esquecimento no mundo digital e a proteção dos direitos fundamentais após o posicionamento do STF no RE 1010606/RJ (Repercussão Geral – Tema 786) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jun 2022, 04:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58758/direito-ao-esquecimento-no-mundo-digital-e-a-proteo-dos-direitos-fundamentais-aps-o-posicionamento-do-stf-no-re-1010606-rj-repercusso-geral-tema-786. Acesso em: 25 dez 2024.
Por: Filipe Luiz Mendanha Silva
Por: RAPHAELA NATALI CARDOSO
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
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