RESUMO: O presente trabalho tem por objeto a compreensão do entendimento do STJ acerca do concurso formal de crimes, a partir da pesquisa e análise de seus precedentes versando sobre o concurso formal entre crimes de roubo em confronto com os ensinamentos doutrinários sobre a matéria. Objetiva-se identificar os critérios que norteiam a aplicação do instituto penal em questão pela jurisprudência superior no Brasil, notadamente pelo Tribunal encarregado de se pronunciar sobre a legislação federal. A relevância do estudo consiste em verificar possíveis convergências ou divergências entre a aplicação forense do tema e suas bases teóricas, de modo a conscientizar e orientar o aplicador do direito. Foram analisados os institutos penais essenciais à compreensão do tema, formando-se a base teórica para o entendimento do concurso formal de crimes, com especial enfoque na doutrina brasileira. Em seguida, realizou-se pesquisa de julgados do STJ, por meio do buscador de jurisprudência do próprio tribunal na rede mundial de computadores, mediante o uso das palavras-chave “concurso formal roubo”, limitadamente aos julgamentos ocorridos de 01 de janeiro de 2020 a 30 de junho de 2020. Buscou-se, então, identificar as diretrizes utilizadas pela referida Corte na aplicação do instituto, confrontando-as, em seguida, com as bases teóricas estabelecidas.
Palavras-chave: concurso formal de crimes. Concurso formal próprio. Concurso formal impróprio. Roubo. Jurisprudência. Superior Tribunal de Justiça. Dogmática. Interpretação teleológica. Política criminal.
ABSTRACT: The present work deals with STJ’s comprehension of the ideal concurrence of offences, based on research and analysis of its precedents dealing with the ideal concurrence of offenses between theft crimes in comparison to the doctrinal lessons on the subject. This work aims to identify the criteria that guide the application of the penal institute in question by the superior jurisprudence in Brazil, notably by the Court that rules on the federal legislation. The relevance of this study consists in verifying convergences or divergences between the judicial application of the theme and its theoretical bases, in order to raise awareness and guide the jurist. In the work, the penal institutes essential to understanding the theme were analyzed, forming the theoretical basis to comprehend the ideal concurrence of offences, focusing, specially, on the Brazilian doctrine. Then, a research on the precedents of the STJ was made using the search mechanism of the Court itself on the world wide web, with the keywords “ideal concurrence theft”, limited to the judgements that occurred from January 1rst, 2020 to June 30, 2020. The guidelines used by that Court were then extracted from the results of the research and confronted with the previously established theoretical bases.
Keywords: ideal concurrence of offences. Proper ideal concurrence of offences. Improper ideal concurrence of offences. Theft. Jurisprudence. Superior Court of Justice. Dogmatic. Teleological interpretation. Criminal policy.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 CONCURSO DE INFRAÇÕES PENAIS. 1.1 Conceito. 1.2 Sistemas de aplicação de pena. 1.3 Espécies de concursos de crimes no Código Penal brasileiro. 2 CONCURSO FORMAL DE INFRAÇÕES PENAIS. 2.1 Conceito. 2.2 Teorias acerca do concurso formal de infrações penais. 2.2.1 Teoria objetiva. 2.2.2 Teoria subjetiva. 2.2.3 Teoria adotada pelo Código Penal. 2.3 Requisitos. 2.4 Ato e conduta. 2.5 Unidade e pluralidade de desígnios. 2.5.1 Elemento subjetivo. 2.6 Finalidade da lei. 2.7 Conclusão. 3 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME DE ROUBO. 3.1 O crime de roubo. 3.2 O concurso entre crimes de roubo segundo a doutrina. 4 CONCURSO FORMAL ENTRE CRIMES DE ROUBO SEGUNDO O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4.1 Precedentes recentes do Superior Tribunal de Justiça. 4.1.1 Agravo regimental no agravo em recurso especial n. 1.588.159/GO. 4.1.2 Agravo regimental no habeas corpus n. 443.242/MG. 4.1.3 Agravo regimental no recurso especial n. 1.853.865/SP. 4.1.4 Habeas corpus n. 581.345/SP. 4.1.5 Agravo regimental no agravo em recurso especial n. 1.643.848/PR. 4.1.6 Agravo regimental no agravo em recurso especial n. 1.651.955/GO. 4.2 Entendimento do Superior Tribunal de Justiça extraído dos precedentes analisados. 5 APROXIMAÇÃO ENTRE A TEORIA E A PRÁXIS: CONFRONTO ENTRE AS BASES DOUTRINÁRIAS E A JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 5.1 Noções de política criminal e dogmática jurídica. 5.2 Interpretação teleológica. 5.3 Confronto entre as bases doutrinárias e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça relativamente à aplicação do concurso formal entre crimes de roubo. 5.4 Conclusão. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objeto o estudo da aplicação do instituto do concurso formal entre infrações penais no âmbito do direito penal brasileiro, a partir do exemplo da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o concurso formal entre crimes de roubo.
O artigo 70 do Código Penal delineia o concurso formal ou ideal de infrações penais, estabelecendo regimes jurídicos diversos para as espécies de concurso formal próprio, concurso formal impróprio e concurso material benéfico de crimes.
Embora a doutrina estabeleça bases teóricas firmes acerca da distinção entre uma e outra modalidade de concurso formal, nem sempre esse traço diferenciador é adotado ou suficientemente esclarecido em decisões judiciais que aplicam, concretamente, o instituto penal em estudo.
Diante disso, por meio do presente trabalho, objetiva-se estabelecer as bases doutrinárias que delineiam o concurso formal entre infrações penais para, em seguida, confrontá-las com a aplicação do instituto pelo Superior Tribunal de Justiça, a fim de identificar possíveis convergências ou divergências entre elas.
A pertinência do tema consiste em esclarecer os reais critérios empregados pela jurisprudência na aplicação do concurso formal ou ideal de crimes, de modo a conscientizar e orientar o aplicador do direito em sua tarefa.
Ademais, o instituto do concurso formal de infrações penais retira sua pertinência do próprio sistema jurídico-penal brasileiro, enquanto instrumento de interpretação jurídica dos fatos penalmente relevantes destinada à aplicação da pena, o que deve se dar em conformidade com as finalidades impostas pelo próprio ordenamento jurídico. Assim, a correta aplicação do instituto certamente influenciará na melhor entrega da prestação jurisdicional, concretizando os princípios e objetivos legais.
Será empregado na confecção do presente trabalho o método indutivo de pesquisa, isto é, partir-se-á da análise de premissas particulares para alcançar uma conclusão geral sobre o tema. Nesse sentido, as premissas particulares consideradas serão normas jurídicas e posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do concurso formal de crimes, para se atingir uma visão geral acerca da interpretação e aplicação do instituto em estudo na ordem penal brasileira.
Dessa forma, é possível classificar o presente trabalho como monografia de compilação, na medida em que reunirá a exposição do tema na visão de diversos doutrinadores e precedentes judiciais.
No que tange à estrutura do trabalho, inicialmente será realizado estudo teórico acerca de institutos do direito penal afetos ao tema do presente trabalho, com especial enfoque nas obras doutrinárias brasileiras, de modo a formar uma base doutrinária acerca do concurso formal de infrações penais.
Assim, no primeiro capítulo será abordado o concurso de infrações penais enquanto gênero; no segundo capítulo, o concurso formal de infrações penais, especificamente; e no terceiro capítulo, o crime de roubo, já que sua compreensão se faz necessária ao entendimento dos precedentes judiciais que aplicarão a tal crime o concurso formal.
Em seguida, no quarto capítulo, serão analisados os precedentes do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, os quais foram selecionados a partir de pesquisa feita por meio do buscador de jurisprudência do próprio tribunal na rede mundial de computadores, mediante o uso das palavras-chave “concurso formal roubo”, limitadamente aos julgamentos ocorridos no primeiro semestre do ano de 2020 (de 01 de janeiro de 2020 a 30 de junho de 2020). Em seguida, serão identificadas as diretrizes utilizadas pela referida Corte na aplicação do instituto do concurso formal entre crimes de roubo.
No quinto e derradeiro capítulo serão feitas breves considerações acerca dos conceitos de dogmática e política criminal, bem como do método interpretativo teleológico, de modo a embasar a aproximação entre a teoria e a práxis, isto é, entre as bases dogmáticas do concurso formal de infrações penais traçadas pela doutrina e a sua aplicação pelo Superior Tribunal de Justiça.
Na conclusão, buscar-se-á identificar as convergências e divergências existentes entre a compreensão técnica e dogmática do instituto do concurso formal de infrações penais e as diretrizes usadas pelo Superior Tribunal de Justiça em sua aplicação a casos concretos envolvendo o concurso entre crimes de roubo, de modo a averiguar se a repercussão prática do instituto jurídico atende às finalidades da lei, segundo a doutrina, ou se ela é voltada a razões outras de política criminal.
1 CONCURSO DE INFRAÇÕES PENAIS
1.1 Conceito
Inicialmente, cumpre pontuar, para efeitos metodológicos, que o termo “infração penal” constitui gênero, do qual são espécies (i) os crimes ou delitos (expressões, estas, equivalentes) e (ii) as contravenções penais, o que denota, nas palavras de Masson (2017), o sistema dicotômico acolhido pelo Direito Penal brasileiro.
Não obstante essa importante distinção terminológica, é certo que o presente trabalho, quando refere, por diversas vezes, ao termo “concurso de crimes”, como é popularmente conhecido o instituto, está a referir ao próprio conceito de “concurso de infrações penais”, que é mais amplo, por abranger os concursos entre crimes ou delitos, entre contravenções penais e entre crimes ou delitos e contravenções penais.
Feitas essas ponderações, o concurso de infrações penais se verifica quando o agente pratica mais de um crime ou contravenção penal, seja mediante uma única ação ou várias ações.
O seu traço característico, portanto, é a pluralidade de infrações penais, praticadas pelo mesmo autor ou pelos mesmos autores (em concurso de pessoas).
Nas palavras de Hungria (1961, p. 16):
Dá-se concurso de infrações penais (entre crime e crime, entre crime e contravenção, entre contravenção e contravenção) quando duas ou mais infrações, contemporâneas ou não, com ou sem vínculo de conexidade, são praticadas pela mesma pessoa (ou pelas mesmas pessoas em co-participação), que por elas tem de responder. Pluralidade de infrações e unidade (natural ou jurídica) de autoria.
Em complemento a essa definição, Bitencourt (2014) ressalta que, além do concurso entre crimes e contravenções penais, admite-se, também, o concurso entre delitos comissivos e omissivos[1], dolosos e culposos, consumados e tentados, simples e qualificados.
Diferenciam-se o concurso de pessoas (concursus delinquentium) e o concurso de infrações penais (concursus delictorum), dizendo respeito, o primeiro, à pluralidade de pessoas envolvidas no fato criminoso, e o segundo, à pluralidade de infrações penais praticadas.
Nas palavras de Damásio E. de Jesus (2013, p. 643):
Quando duas ou mais pessoas praticam um crime surge o “concurso de agentes” (concursus delinquentium). Quando um sujeito, mediante unidade ou pluralidade de ações ou omissões, pratica dois ou mais delitos, surge o concurso de crimes ou de penas (concursus delictorum).
No que toca ao fenômeno da pluralidade delitiva no direito penal, Costa Junior (2010) destaca a existência de três concepções distintas desenvolvidas pela doutrina para explicar o tema: (i) a concepção naturalística, a qual identifica a unidade ou pluralidade delitivas na própria natureza das coisas (rerum natura); (ii) a concepção normativa, que extrai a unidade ou pluralidade delitiva da própria norma penal; e (iii) a concepção “mista”, a qual identifica a norma como antecedente lógico para a identificação da unidade ou pluralidade delitiva, mas considera, ao lado da norma jurídica, determinados esquemas ontológicos e estruturas valorativas para a identificação do concurso de crimes. Destaca, o autor, ser a concepção normativa a mais aceita.
Relativamente à natureza jurídica das normas penais que cuidam do concurso de delitos, Aisa (2006) classifica-as como sendo “normas de segundo nível”, uma vez que se colocam de forma superposta aos preceitos legais individualmente considerados (“normas de primeiro nível”), quais sejam, as normas penais incriminadoras propriamente ditas. Em outras palavras, as normas de segundo nível regulam casos em que, para a qualificação jurídica da conduta do indivíduo, há a concorrência de diversas normas de primeiro nível. Logo, têm por função, as normas de segundo nível, “fornecer critério para resolver a concorrência de várias normas na qualificação da conduta de um indivíduo e na determinação das sanções aplicáveis” (Aisa, 2006, p. 96).
Melhor desenvolvendo, a regra do concurso de crimes tem dupla função, atuando em dois momentos ou estágios distintos: (i) permitir identificar se o caso concreto trata de hipótese de concurso de leis, caso em que haverá a aplicação de um único preceito legal, que esgota o desvalor do fato, ou se se trata de concurso de crimes, o que demandará a incidência concorrente de todos os preceitos em conflito; (ii) sendo o caso de aplicação cumulativa da pluralidade de normas legais, isto é, tratando-se de concurso de crimes, permitir a verificação da consequência jurídica incidente no caso concreto.
Não obstante essa reconhecida função das normas que tratam do concurso de crimes, isto é, de conferir solução jurídica às hipóteses em que mais de uma norma penal incriminadora incide na espécie, insta consignar que não há qualquer confusão entre elas e o denominado conflito aparente de normas.
Em outras palavras, por consequência da verificação de mais de um crime in concreto, em razão do concurso de infrações penais, haverá, igualmente, a incidência de mais de uma norma penal incriminadora no caso concreto, o que, todavia, não se confunde com o concurso aparente de normas.
Assim, não obstante o tema do conflito aparente de normas (concursus normarum) seja comumente estudado no âmbito da aplicação da lei penal, cumpre, aqui, realizar breve distinção entre ele e o concurso de crimes (concursus delictorum), a fim de desmistificar aparente similitude entre os institutos.
El Hireche (2006) explica que no conflito aparente de normas há uma única ação típica, com uma única lesão a determinado bem jurídico, mas que encontra previsão legal em mais de um dispositivo da lei; em que pese ao aparente conflito entre tais normas abstratamente consideradas, concretamente apenas uma delas irá incidir (ne bis in idem), a partir da solução dada pelos critérios da especialidade, subsidiariedade e consunção ou absorção. Já no concurso de crimes, especificamente na modalidade concurso formal, uma mesma conduta provoca mais de um resultado típico, com mais de uma lesão a bens jurídicos diversos; logo, não há bis in idem, mas a mera aplicação de todas as penas incidentes in concreto, seja por meio do cúmulo material, seja por meio da exasperação, conforme se verá mais adiante. Por fim, citando Bettiol, arremata que no conflito de normas há várias normas com resultado único, ao passo que no concurso formal há uma só conduta com resultado plúrimo.
Garcia (2008), por sua vez, explica o conflito aparente de normas enquanto a existência de dois círculos concêntricos entre as normas jurídicas, na medida em que a aplicação de um preceito engloba inteiramente a do outro, excluindo-o, sob pena de penalizar-se o indivíduo duas vezes em razão de um mesmo fato criminoso, em patente bis in idem. Resolve-se o concurso aparente de normas por meio dos critérios da especialidade (lex specialis derogat legi generali), da consunção (lex consumens derogat legi consumptae) – relevante para as hipóteses de crime progressivo, crime complexo e consunção post-factum – e da subsidiariedade (lex primaria derogat legi subsidiarae).
Por sua vez, o concurso de crimes, notadamente o concurso formal de infrações, nas palavras de Garcia (2008), é representado por meio de dois círculos secantes, e não concêntricos. Isso porque há uma mera zona de influência entre dois preceitos normativos distintos, de modo que a aplicação de um deles não se opõe à do outro, podendo ambos incidir in concreto. Conclui, referido autor, pela necessidade de analisar-se eventual conflito de leis preliminarmente à apuração de um possível concurso delitivo, sendo a verificação deste residual relativamente àquele.
Superadas as distinções feitas acima, Aisa (2006) pontua que, tratando-se, efetivamente, da hipótese de concurso de crimes, os ordenamentos jurídicos podem conferir duas soluções distintas: (i) prever uma única forma de concurso de crimes, incidente em todos os casos, gerando uma consequência jurídica única e universal (solução adotada na Áustria, Suíça, França e Portugal); ou (ii) prever diferentes espécies de concursos de crimes, diferenciadas a partir do requisito básico do número de ações praticadas pelo agente, vale dizer se houve ação única ou plúrima, o que costuma conduzir aos conceitos de concurso ideal e concurso real de crimes (solução adotada na Alemanha, Itália, Bélgica, Brasil e Espanha).
Justamente em virtude dos reflexos do estudo do concurso de crimes tanto na estrutura do delito quanto na aplicação da pena, não há unanimidade na doutrina acerca da natureza do instituto jurídico em estudo, isto é, se atinente à teoria do crime ou se pertencente à teoria da pena.
Fragoso (1995) assevera que a matéria relativa ao concurso de crimes pertence ao estudo da teoria da pena, eis que está inserida no capítulo da aplicação da pena no Código Penal e seu regramento legal se deu para o fim de regular a própria aplicação da sanção penal.
Rogério Greco (2015, p. 661) coloca a problemática da seguinte forma:
O problema do concurso de delitos, como frisou Maggiore, ‘é também um problema de concurso de penas. Assim como no concurso de várias pessoas num mesmo delito se pergunta: Que pena deve aplicar-se a cada um dos coparticipantes? Assim, no concurso de vários delitos cometidos por uma só pessoa se perguntará: Que pena deverá aplicar-se a esta por todos os delitos que por ela foram praticados? É necessário determinar, pois, qual é o regime penal a que deve ser submetido o que incorre em diversos delitos’.
Sem prejuízo de tais considerações, Rogério Greco (2015), sustentando ser esta a posição dominante, defende que o tema do concurso de crimes, não obstante sua topologia no Código Penal (Capítulo III – da aplicação das penas –, Título V – das penas), não está relegado à teoria da pena, mas, sim, à própria teoria geral da lei penal e do crime.
El Hireche (2006), por sua vez, aloca o tratamento da matéria no âmbito de transição da teoria do crime (porque o assunto se relaciona diretamente com o crime e sua estrutura – condutas, elemento subjetivo e nexo causal) para a teoria das consequências jurídicas do delito.
Não obstante tais divergências doutrinárias quanto à natureza do instituto penal em análise, é certo que releva o estudo do concurso de crimes na medida em que sua compreensão esbarra tanto no entendimento do próprio fenômeno do delito em si, na medida em que permite averiguar se determinada conduta representa a prática de uma ou mais infrações penais, como na definição da pena in concreto, eis que, a depender da modalidade de concurso de crimes adotada, ter-se-á uma consequência jurídica distinta, o que repercute diretamente na forma do cálculo da reprimenda do agente e na individualização da pena proclamada pelo inciso XLVI do artigo 5º da Constituição Federal.
1.2 Sistemas de aplicação de pena
Independentemente da natureza jurídica do concurso delitivo, é certo que, como bem pontua Bitencourt (2014), o concurso de infrações penais dá origem ao próprio concurso de penas.
Em outras palavras, uma vez verificado o concurso entre infrações penais, a lei determinará certa consequência jurídica que refletirá diretamente na fixação da reprimenda do agente, em razão da ação de um ou outro sistema de aplicação de pena em decorrência do concurso de crimes.
Costa Junior (2010) pontua três soluções diversas para o tratamento punitivo dispensado à pluralidade delitiva ou concursus delictorum: (i) o cúmulo material de penas, com a aplicação de tantas penas quantos os crimes cometidos, segundo a máxima tot crimina tot poenae; (ii) o cúmulo jurídico de penas, com a aplicação da pena mais grave aumentada proporcionalmente; e (iii) o sistema da absorção, pelo qual aplica-se somente a pena do crime mais grave, ficando absorvidas as penas menores, segundo a máxima poena major absorbet minorem. Segundo o autor, o Código Penal brasileiro adotou por vezes o sistema do cúmulo material, por vezes o sistema da absorção.
El Hireche (2006), adotando a mesma classificação acima, entende ter optado, o Brasil, no vigente Código Penal, pelos critérios do cúmulo material temperado e o da exasperação.
Bitencourt (2014) destaca os seguintes sistemas de aplicação de pena concebidos pela doutrina, conforme o concurso de crimes: (i) sistema do cúmulo material: determina a soma das penas de cada um dos delitos em concurso – crítica é feita a essa corrente por conduzir, muitas vezes, a penas muito longas, desproporcionais (relativamente à gravidade dos delitos), desnecessárias e com efeitos criminógenos prejudiciais, sendo possível, muitas vezes, atingir-se a ressocialização do agente mediante a aplicação de penas menores –; (ii) sistema do cúmulo jurídico: ao invés de somar-se as penas dos delitos, aplica-se uma única pena, porém maior do que a cominada; (iii) sistema da absorção: determina a aplicação unicamente da pena mais grave, que absorve as penas dos delitos menos graves – a crítica feita a esse sistema é no sentido de que os delitos de penas menos graves ficariam imunes à punição, o que poderia servir de estímulo ao delinquente –; e, por fim, (iv) sistema da exasperação: recomenda a aplicação da pena mais grave, aumentada de um quantum em conformidade com os demais crimes praticados. Segundo o autor, o direito penal brasileiro atualmente adota apenas os sistemas do cúmulo material (concurso material e concurso formal impróprio ou imperfeito) e o da exasperação (concurso formal próprio ou perfeito e crime continuado).
Hungria (1961), por fim, identifica as seguintes espécies de concursos de infrações: (i) o concurso material, correspondente ao critério romanístico quot delicta tot poenae, que significa o cúmulo material ou soma de penas; (ii) o crime complexo, consistente na cominação autônoma de pena ao conjunto unitário sob especial nomen juris; (iii) o crime progressivo (ubi major cessat), no qual há uma única pena, cominada ao crime-fim, quase sempre mais grave do que o crime-meio; (iv) o concurso formal e (v) o crime continuado, sendo que para estas duas últimas espécies o critério empregado é o da exasperação ou do cúmulo jurídico de penas, tendo-se uma pena complexiva única.
Fragoso (1995), em um escorço histórico, narra que o sistema do cúmulo material de penas, identificado na regra do concurso material ou real de crimes (quot delicta tot poenae), prevaleceu no direito romano, no direito germânico e no direito canônico. As primeiras codificações adotaram o princípio de cúmulo material de sanções, exceto diante de eventual impossibilidade de cumulação de espécies diversas de penas, hipótese na qual prevalecia a pena mais grave, aumentada (concurso jurídico). O Código de Instrução Criminal napoleônico (1808), em seu artigo 365, determinava a aplicação apenas da sanção mais grave na hipótese de condenação por mais de um crime (absorção). Finalmente, os códigos posteriores previram os sistemas do cúmulo material, do cúmulo jurídico e da absorção. O atual Código Penal brasileiro, segundo o autor, adotou ambas as espécies de concursos material e formal de crimes, diferenciando as hipóteses de suas incidências de acordo com a unidade ou pluralidade de condutas.
1.3 Espécies de concursos de crimes no Código Penal brasileiro
Conforme dito alhures, o concurso de crimes se verifica com a prática de mais de uma infração penal, mediante uma ou mais condutas, cuja prática se deu pelo mesmo agente ou pelo mesmo grupo de agentes.
A doutrina, em linhas gerais, para os ordenamentos jurídicos que estabelecem mais de uma espécie de concurso de crimes, distingue o concurso real do concurso ideal de infrações penais, sendo que o concurso real se verifica com a prática de mais de uma infração penal mediante uma pluralidade de condutas, enquanto o concurso ideal seria uma ficção jurídica pela qual o agente praticaria mais de uma infração penal mediante uma única conduta, a justificar, consequentemente, tratamento distinto pela lei penal.
O atual Código Penal brasileiro, Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, com redação dada pela Lei n.º 7.209, de 11 de julho de 1984, elenca três formas elementares de concursos de crimes: (i) o concurso material, disposto no artigo 69 do Código Penal; (ii) o concurso formal, tratado no artigo 70 do Código Penal; (iii) e o crime continuado, disciplinado no artigo 71 do Código Penal.
O concurso material ou real de infrações penais ocorre quando o agente, mediante a prática de mais de uma conduta (ação ou omissão), pratica dois ou mais crimes ou contravenções penais, idênticos ou não.
Dessa forma, tem-se estruturas delitivas distintas e independentes, cada qual com sua própria conduta autônoma e com seu próprio resultado naturalístico ou normativo, bem como com sua própria pena. A solução jurídica dada pela lei penal é o cúmulo material entre as sanções penais, é dizer, somam-se as penas de cada infração penal.
Assim é a redação do artigo 69 do Código Penal, que cuida do concurso material de crimes:
Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.
O concurso formal ou ideal de crimes, de seu turno, é tratado no artigo 70 do Código Penal, nos seguintes moldes:
Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.
Parágrafo único - Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.
A leitura desse dispositivo legal é comumente dividida, pela doutrina, nesta ordem, em (i) concurso formal próprio ou perfeito: artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal; (ii) concurso formal impróprio ou imperfeito: artigo 70, caput, segunda parte, do Código Penal; (iii) concurso material benéfico: artigo 70, parágrafo único, do Código Penal.
Na dicção do artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal, o concurso formal próprio ou perfeito se verifica “quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não”. A consequência da verificação do concurso formal, por sua vez, é dada pelo mesmo dispositivo legal, nos seguintes termos: “aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade”.
Em outras palavras, não são aplicadas todas as sanções penais incidentes no caso concreto de forma cumulada, tal como se dá no concurso material de crimes. Diversamente, aplica-se somente uma das penas, aumentada de determinado quantum legalmente previsto, segundo o sistema da exasperação ou, como é chamado por alguns, do cúmulo jurídico.
Nesse ponto, para identificar a sanção dos delitos à qual se aplicará o quantum de aumento, releva a distinção entre o que a doutrina denomina concurso formal homogêneo e concurso formal heterogêneo.
O concurso formal homogêneo é aquele verificado entre duas infrações penais idênticas. Sendo idênticas as infrações, suas penas serão também iguais, de modo que qualquer uma delas será aplicada, de forma isolada, acrescida do aumento de um sexto até a metade. Nos termos do artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal, “aplica-se-lhe (...), se iguais (as penas), somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade”.
Já o concurso formal heterogêneo se dá entre duas infrações penais distintas, com penas igualmente diversas. Diante disso, será aplicada, por imposição legal, a mais grave das penas incidentes in concreto, que será, por sua vez, aumentada de um sexto até a metade. Consoante determina o artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal, “aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis (...) aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade”.
Por fim, a fixação do percentual de aumento entre o mínimo de um sexto e o máximo de metade guardará correspondência com o número de infrações praticadas.
Nesse sentido, Mirabete e Fabbrini (2012) asseveram que o percentual de aumento no concurso formal de crimes deve ter por base o número de resultados e vítimas, e não as circunstâncias do fato.
Na mesma senda, Rogério Greco (2015, p. 672) transcreve a tese n.º “5” do Boletim n.º 23, da ferramenta “jurisprudência em teses” do Superior Tribunal de Justiça, pela qual “o aumento decorrente do concurso formal deve se dar de acordo com o número de infrações”.
Por outro lado, o concurso formal impróprio ou imperfeito, de seu turno, é verificado, nos termos do artigo 70, caput, segunda parte, do Código Penal, quando “a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos”. Nesse caso, “as penas aplicam-se (...) cumulativamente”.
Aqui, portanto, não obstante tenham sido praticados mais de um crime mediante uma única conduta, as penas são somadas em um próprio cúmulo material de reprimendas, uma vez que o autor agiu imbuído de desígnios autônomos relativamente aos delitos perpetrados. Regra, portanto, similar àquela insculpida no artigo 69 do Código Penal, que trata do concurso material de crimes.
O concurso material benéfico, por fim, deve-se à regra de que “não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do artigo 69 deste Código” (artigo 70, parágrafo único, do Código Penal). Em outras palavras, o sistema de exasperação da pena, previsto no artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal, feito para beneficiar o réu, não pode conduzir à aplicação de uma pena superior àquela que resultaria do simples cúmulo material das reprimendas (concurso material de crimes, previsto no artigo 69 do Código Penal), razão pela qual, quando isso se verificar in concreto, deve-se aplicar o concurso material de crimes em prol do acusado, ao invés do concurso formal próprio ou perfeito.
Assim, por todo o exposto, tem-se que o sistema de exasperação da pena, segundo o quantum previsto no artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal, somente se aplica, na prática, diante do concurso formal próprio ou perfeito de crimes, sendo que nas demais hipóteses tratadas pelo artigo 70 do Código Penal (caput, segunda parte, e parágrafo único – concurso formal impróprio ou imperfeito e concurso material benéfico) a consequência jurídica ditada pela lei é o mero cúmulo material de penas, semelhantemente ao que dispõe o artigo 69 do Código Penal.
Para arrematar, o crime continuado ou continuidade delitiva é previsto no artigo 71 do Código Penal nos seguintes termos:
Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços
Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.
Trata-se de uma ficção jurídica feita pela lei para considerar os delitos subsequentes continuação de um delito inicial, em razão das “condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes”. É ocasionado diante da prática de “dois ou mais crimes da mesma espécie”, mediante “mais de uma ação ou omissão” (neste ponto, similar ao concurso material de crimes, eis que há pluralidade de condutas).
A consequência jurídica imposta pela lei penal, nesse caso, é aplicar “a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços”.
Segundo Masson (2017), sendo o crime continuado simples ou comum, isto é, verificado entre crimes iguais, as penas dos delitos parcelares são idênticas, de modo que deverá ser aplicada somente uma delas, aumentada de um sexto a dois terços. Sendo, por outro lado, qualificado o crime continuado, em razão de serem distintos os crimes parcelares e suas respectivas penas, aplicar-se-á somente a pena mais grave, aumentada de um sexto a dois terços. Em qualquer caso, o vetor para a determinação do quantum de aumento de pena in concreto é o número de crimes.
Nesse mesmo sentido é o teor da tese n.º “8”, do Boletim n.º 20, da ferramenta “jurisprudência em teses” do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “na continuidade delitiva prevista no caput do artigo 71 do Código Penal, o aumento se faz em razão do número de infrações praticadas e de acordo com a seguinte correlação: 1/6 para duas infrações; 1/5 para três; 1/4 para quatro; 1/3 para cinco; 1/2 para seis; 2/3 para sete ou mais ilícitos”[2].
O denominado crime continuado específico, finalmente, é verificado “nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa” (artigo 71, parágrafo único, do Código Penal). Sua consequência jurídica é assim fixada pela lei: “poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do artigo 70 e do artigo 75 deste Código”.
Feitas essas considerações iniciais, cumpre pontuar que é sobre a hipótese do artigo 70, do Código Penal, isto é, sobre o concurso formal de crimes, que se debruça o presente estudo, tal como será melhor explorado adiante.
2 CONCURSO FORMAL DE INFRAÇÕES PENAIS
2.1 Conceito
O concurso formal de crimes é atualmente disciplinado pelo artigo 70 do Código Penal, com redação dada pela Lei n. º 7.209, de 11 de julho de 1984[3]. De acordo com Costa Junior (2010), tal dispositivo reproduz, quase que integralmente, o mesmo teor do dispositivo prévio, qual seja, o artigo 51, parágrafo 1º, da redação original do Código Penal (Decreto-Lei n. º 2.848, de 07 de dezembro de 1940)[4], contudo conta com maior amplitude, eis que tem aplicação a crimes apenados com diferentes espécies de pena, e não apenas sanções privativas de liberdade, como antes vigia.
Segundo Tucci (2003), verifica-se o concurso formal ou ideal “quando o agente, numa só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, que poderão ser idênticos ou não”.
Hungria (1961, p. 192), após conceituar o concurso material, assenta que “(...) no concurso formal, há também pluralidade de resultados, homogêneos ou não, mas decorrentes de uma só ação ou omissão, justificando-se, por isso, uma unificação jurídica”. Assim, a lei considera existente uma unidade jurídica.
Rogério Greco (2015) pontua que, na definição de Maggiore, “concurso formal (concursus formalis) é, tipicamente, o realizado pela hipótese de um fato único (ação ou omissão) que viola diversas disposições legais”.
Núñez (1976) conceitua o concurso formal ou ideal de delitos como sendo a conduta materialmente única, mas que constitui vários delitos, na medida em que admite mais de uma classificação ou sanção delitiva. Tem por consequência a possibilidade de sanção do autor do delito unicamente com a pena mais grave.
Com efeito, o concurso formal de infrações penais não se confunde com o concurso material ou com o crime continuado, demais espécies concursais previstas no Código Penal.
El Hireche (2006) explica que a distinção existente entre o concurso material e o concurso formal reside, tão somente, no número de ações típicas – no primeiro, há pluralidade de ações típicas, enquanto no segundo há ação típica única, contudo com mais de um resultado.
Tucci (2003, p. 266), por sua vez, detalha a diferença entre o concurso material ou real de infrações e o concurso formal ou ideal citando Magalhães Noronha (Direito penal, cit., vol. 1, p. 338), nos seguintes termos:
O concurso formal tem sua característica na ação única. Como escreve Aldo Moro: entre o concurso ideal e o real existe de comum a pluralidade de eventos juridicamente relevantes, mas a diferença reside nisto: no concurso real concorrem vários delitos; no ideal só relações de um idêntico agir delituoso, com diversos eventos.
Em que pese à diferença existente entre os concursos material e formal de infrações, é certo que a consequência jurídica da adoção do sistema do cúmulo material de sanções se verifica tanto no primeiro caso quanto no segundo, nas espécies concurso formal impróprio e cúmulo material benéfico – aplicando-se o sistema da exasperação apenas para o concurso formal próprio de crimes.
Não há que se confundir, ainda, o concurso formal com o crime continuado, uma vez que neste último há, diversamente do primeiro (no qual há conduta única), uma pluralidade de condutas, além da pluralidade de resultados. Trata-se de um conjunto de unidades delitivas autônomas, que somente são consideradas unidades parcelares de um mesmo plano delitivo em função de uma ficção jurídica.
Logo, o ponto em comum entre o crime continuado e o concurso formal consiste na unidade jurídica criada pela lei, assim como na consequência jurídica do sistema de exasperação da pena, no caso do concurso formal próprio.
Eis o paralelo que Hungria (1961) traça entre o crime continuado e as demais espécies de concursos de infrações penais:
(...) no crime continuado, há multiplicidade de ação ou omissão e multiplicidade de resultados idênticos (violações do mesmo dispositivo penal), como no concurso material homogêneo, mas assumindo um tal ritmo de encadeamento, que os crimes sucessivos se apresentam como uma continuação (continuatio delictorum), a que a lei atende para considerar na hipótese uma unidade jurídica, tal como ocorre no concurso formal.
Conforme já tratado, o concurso formal se divide em (i) próprio ou perfeito e (ii) impróprio ou imperfeito. Há, ainda, regra prevendo o (iii) concurso material benéfico, para os casos em que o concurso formal, originariamente concebido para beneficiar o acusado, conduzir a pena mais gravosa do que resultaria a simples soma das reprimendas (cúmulo material).
Nucci (2010) explica o concurso formal próprio de crimes dizendo que o agente que pratica os delitos tem em mente apenas uma conduta. Essa premissa justificaria a aplicação tão somente da pena mais grave, ao invés do cúmulo material das sanções. Por exemplo, é o que ocorre quando o “agente leva menor para praticar roubo, tendo em mente só o produto desse delito e não a corrupção do menor (concurso formal dos arts. 157 do CP e 1.º da Lei 2.252/54 [hoje, substituída pelo art. 244-B, da Lei 8.069/90] – STJ, 6.ª T., RT 737/578)”. Difere, portanto, do concurso formal imperfeito, no qual “a intenção do legislador, nessa hipótese, é retirar o benefício daquele que, tendo por fim deliberado e direto atingir dois ou mais bens jurídicos, cometer os crimes com uma só ação ou omissão”.
Em que pese essa aproximação inicial, é certo que a compreensão da distinção existente entre as espécies de concurso formal, isto é, entre o concurso formal próprio ou perfeito e o concurso formal impróprio ou imperfeito, é um tanto complexa e não apresenta solução pacífica na doutrina.
Apenas para ilustrar o problema, assim discorre Cunha (2019):
Mas a matéria é complexa. Segundo Zaffaroni e Pierangeli, o legislador brasileiro construiu “uma fórmula de difícil compreensão e explicação, como informa a maioria da doutrina (Basileu Garcia, entre outros). Com efeito, se os desígnios são autônomos, não existe unidade de ação, e, consequentemente, um concurso formal”.
2.2 Teorias acerca do concurso formal de infrações penais
Em geral, a doutrina sustenta a existência de duas teorias no que se refere à aplicação do concurso formal de crimes: a teoria objetiva e a teoria subjetiva.
2.2.1 Teoria objetiva
Segundo a teoria objetiva, para a configuração do concurso formal de crimes basta a unidade de conduta e a pluralidade de resultados. Não importa, assim, a unidade ou pluralidade de desígnios do autor – em qualquer caso haverá o concurso formal.
Em outras palavras, conforme sustentado por Capez (2014), a teoria objetiva admite a pluralidade de desígnios no concurso formal.
2.2.2 Teoria subjetiva
Segundo Masson (2017), a teoria subjetiva, de seu turno, exige, para a configuração do concurso formal de infrações, a unidade de desígnios na conduta do agente.
Dessa forma, para a teoria subjetiva, só haverá concurso formal se a conduta única, que gerou pluralidade de resultados típicos, tiver sido movida também por desígnio único.
2.2.3 Teoria adotada pelo Código Penal
Nesse ponto, a doutrina pátria parece chegar no consenso de que o artigo 70 do Código Penal, para disciplinar o concurso formal de crimes, adotou a teoria objetiva.
Isso porque haverá concurso formal de infrações (enquanto gênero, do qual são espécies os concursos formais próprio e impróprio) independentemente da unidade ou da pluralidade de desígnios do autor, bastando, para a sua configuração, a reunião de requisitos objetivos consistentes na unidade da conduta e na pluralidade dos resultados.
Em verdade, a análise do elemento subjetivo do autor, correspondente a seu “desígnio”, como estatui o Código Penal, importará tão somente para a determinação da consequência jurídica no caso concreto, isto é, se será aplicado o sistema da exasperação da pena (concurso formal próprio) ou do cúmulo material das sanções (concurso formal impróprio).
Em outras palavras, o(s) desígnio(s) do agente somente relevará(ão) para a distinção entre as espécies de concurso formal – próprio ou impróprio –, mas não para a caracterização do concurso formal em si, enquanto gênero, eis que para a sua identificação basta que uma única conduta produza mais de um resultado típico.
Nesse sentido, Barros (2011) reforça a impossibilidade de adoção da teoria subjetiva pelo Código Penal em razão de ela impossibilitar o concurso formal entre crimes culposos, nos quais não há desígnio ou propósito. Pela teoria objetiva, por outro lado, o concurso formal pode se dar entre delitos dolosos, culposos ou dolosos e culposos.
2.3 Requisitos
Segundo Damásio de Jesus (2013), há divergências doutrinárias quanto aos requisitos que caracterizam o concurso formal de crimes, sendo que (i) para a teoria subjetiva, exigir-se-ia a unidade de condutas, a pluralidade de crimes e a unidade de desígnios; (ii) para a teoria objetiva, de outro lado, exigir-se-ia a unidade de condutas e a pluralidade de crimes, independentemente dos desígnios do autor. Segundo o autor, tendo o Código Penal brasileiro adotado a teoria objetiva, a questão subjetiva (unidade ou não de desígnios) importa apenas para a aplicação da pena, uma vez que de acordo com o ânimo do agente ter-se-á consequências jurídicas diversas.
Também para Capez (2014) os requisitos do concurso formal de infrações são: (i) a existência de conduta única, (ii) da qual surjam dois ou mais fatos típicos, ou crimes (quando atinentes a mais de um bem jurídico).
Nesse ponto, Hungria (1961) acentua que o concurso formal pode se dar entre crimes diversos, bem como os resultados típicos não necessitam ser iguais.
No mesmo sentido, Barros (2011) aponta como requisitos para a configuração do concurso formal de crimes: (i) a unidade de conduta e (ii) a pluralidade de crimes. Sustenta, o autor, que o Código Penal adota a teoria objetiva, satisfazendo-se com apenas esses dois requisitos. Dispensa, portanto, a unidade de desígnio, referente à teoria subjetiva.
Assim, é possível assentar que o concurso formal, enquanto gênero, demanda somente a presença de dois requisitos: (i) a unidade de conduta e (ii) a pluralidade de crimes ou de resultados típicos.
Apenas para distinguir as espécies do concurso formal – próprio e impróprio – é que relevará a discussão acerca da existência de desígnios autônomos do agente.
Em outras palavras, a par dos requisitos da unidade da conduta e da pluralidade de resultados típicos, e presença do elemento da unidade de desígnios denota a existência do concurso formal próprio de crimes, ao ponto que a verificação da pluralidade de desígnios do agente conduz à caracterização do concurso formal impróprio de infrações.
Assim, El Hireche (2006) aponta que o traço diferenciador entre os concursos formais próprio e impróprio é, justamente, a existência de unidade ou pluralidade de desígnios ou vontades, respectivamente. Nessa senda, o concurso formal impróprio se aproxima do concurso material de crimes, eis que em ambos os casos se tem o cúmulo material das penas dos delitos, em razão da pluralidade de desígnios do agente em cada caso – desimportando o número de condutas nessa hipótese (no concurso material há pluralidade de condutas, ao passo que no concurso formal impróprio há conduta única, embora movida por desígnios autônomos do agente).
Masson (2017), observando esse fenômeno, conceitua o concurso formal perfeito ou próprio de crimes de maneira residual, enquanto a produção de dois ou mais resultados típicos pelo agente sem que haja desígnios autônomos, o que, se houvesse, caracterizaria o concurso formal imperfeito ou impróprio.
Feitos esses apontamentos, adotada a teoria objetiva pelo Código Penal para a caracterização do concurso formal de crimes enquanto gênero, é possível concluir que o traço diferenciador entre as suas espécies, concursos formais próprio e impróprio, segundo a doutrina majoritária brasileira, é o “desígnio” do agente, segundo a nomenclatura usada pela própria lei (artigo 70 do Código Penal).
Não obstante isso, antes de debruçar sobre o estudo da unidade e da pluralidade de desígnios, cumpre tecer considerações acerca do conceito de conduta (ação ou omissão) no âmbito do concurso formal.
2.4 Ato e conduta
Inicialmente, cumpre tecer que o termo “conduta” é gênero que abrange as espécies “ação” e “omissão”. Nesse sentido, conceitua Damásio de Jesus (2013, p. 267): “conduta é a ação ou omissão humana consciente e dirigida a determinada finalidade” (conceito finalista).
No que concerne ao concurso formal de crimes, a doutrina reiteradamente aponta distinções entre os conceitos de conduta (ou ação ou omissão) e ato, com vistas a delimitar a ideia de “unidade de ação ou omissão”, a determinar a incidência ou não do disposto no artigo 70 do Código Penal.
Barros (2011) distingue os conceitos de ato e conduta, dizendo que o primeiro é apenas um momento da segunda. Logo, no âmbito do concurso formal de crimes, conduta é uma unidade verificada quando diversos atos são realizados em um mesmo contexto temporal e espacial.
Rogério Greco (2015) destaca, de igual modo, que uma determinada ação pode ser composta por diversos atos, os quais são, portanto, componentes da ação e ela integram. Em outras palavras, os atos não são “ação” em si mesmos, mas, diversamente, constituem meras partes de um todo (que é a ação propriamente dita).
Masson (2017), no mesmo sentido, assevera que a unidade de conduta não significa a existência de um ato único, eis que há condutas consideradas fracionáveis. Nesse contexto, considera-se conduta única os atos realizados em um mesmo contexto temporal e espacial.
Costa Junior (2010) ressalta a possibilidade de que vários atos sejam segmentos de uma única conduta delitiva. Para ele, o que determinaria a unidade delitiva, nesse caso, é o elemento subjetivo do agente (finalidade única), aliado à circunstância de ter o delito se verificado em um único contexto fático (espacial e temporal).
Fragoso (1995, p. 349) define ação como “comportamento voluntário dirigido a um fim”, diferenciando-o de ato, o qual explica ser o mero “movimento corpóreo”. Dessa forma, é possível que uma única ação se constitua de muitos atos; o que definirá a unidade da ação é a manifestação de vontade única. Ressalva, no entanto, a impossibilidade de cometimento de crimes unissubsistentes por meio de mais de um ato, uma vez que referida modalidade delitiva não admite fracionamento da execução delitiva e, logo, é cometida mediante ato único.
Tucci (2003), na mesma senda, aduz que o fato de haver ação única não impede a existência de uma pluralidade de atos, os quais constituem segmentos (com movimentos corpóreos independentes) nos quais a conduta se divide. Para ele, não seria a unidade da conduta, em si, que justificaria o tratamento mais brando conferido pela lei penal ao concurso formal de crimes, mas, sim, a unidade do elemento subjetivo que impulsiona a ação do agente.
Bitencourt (2014) explica que no concurso formal de crimes, o agente pratica uma única conduta, a qual, todavia, pode se desdobrar em vários atos, segmentos dela.
Para Capez (2014), a conduta compreende um único ato ou uma sequência de atos desencadeados pela vontade humana, voltadas à de um fato típico. O autor identifica a ação, em cada caso, a partir do verbo nuclear do tipo penal, de modo que a conduta teria a sua base no verbo do tipo incriminador.
Capez (2014, p. 548) refere, ainda, ao conceito de contestualità, desenvolvido pela doutrina italiana, segundo o qual uma única conduta corresponde ao entrosamento imediato entre diversos atos. Cita, ainda, o conceito unitário de ação de Giovane Leone:
Aquela unidade de tempo e lugar, que serve para unificar em uma só ação os vários atos praticados pelo delinquente, é indubitavelmente um critério de grande ajuda nas indagações dogmáticas. Pode-se assim falar de unidade de ação sempre que os múltiplos atos realizados pelo agente encontrem um fundo comum de coesão: e esse fundo comum é constituído pela unidade de tempo e lugar. Deve, porém, advertir-se que com semelhante critério não se pretende acenar com uma coesão espacial e temporal tão íntima dos vários atos que venha a constituir uma série ininterrupta ou uma cadeia fechada de atos: o que se almeja é tão só apelar para um critério de aproximação.
Por fim, Mirabete e Fabbrini (2014, p. 308-309) explicam que:
Para fixar o conceito de unidade de ação, em sentido jurídico, apontam-se dois fatores: o fator final, que é a vontade regendo uma pluralidade de atos físicos isolados (no furto, p. ex., a vontade de subtrair coisa alheia móvel informa os distintos atos de procurar nos bolsos de um casaco); o fator normativo, que é estrutura do tipo penal em cada caso particular (no homicídio praticado com uma bomba em que morrem duas ou mais pessoas, há uma só ação com relevância típica distinta: vários homicídios). Quando com uma única ação se infringe várias vezes a mesma disposição ou várias disposições legais, ocorre o concurso formal. Havendo duas ou mais ações distintas, ainda que em sequência, inexistirá o concurso formal, podendo-se falar, conforme a hipótese, em progressão criminosa (com antefato ou pós-fato não punível), concurso material, crime continuado, etc.
Diante disso, é possível concluir que, segundo a doutrina majoritária brasileira, o conceito de conduta, ação ou omissão humana dirigida a uma finalidade, não necessariamente corresponde a movimento corpóreo único, mas, diversamente, pode abranger uma pluralidade de atos, os quais, tidos em conjunto, representam uma só conduta.
Para tanto, aponta a doutrina que os elementos que permitem concluir pela existência de conduta única são: (i) a sua prática em contexto único, isto é, em iguais condições de espaço e tempo (elemento objetivo), e, para boa parte da doutrina, (ii) a existência de elemento volitivo único, consistente na vontade do agente de praticar uma só conduta (elemento subjetivo).
2.5 Unidade e pluralidade de desígnios
Conforme se depreende da redação do artigo 71 do Código Penal, a caracterização do concurso formal impróprio se dá quando os “crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos”. A contrario sensu, sustenta-se que o concurso formal próprio de crimes demandaria a verificação de unidade de desígnios.
Em outras palavras, no que tange ao concurso formal próprio ou perfeito, Bitencourt (2014, p. 791) explica que sua configuração se dá “quando a unidade de comportamento corresponder à unidade interna da vontade do agente, isto é, deve querer realizar apenas um crime, obter um único resultado danoso. Não devem existir – na expressão do Código – desígnios autônomos”.
Bitencourt (2014, p. 791) explana o concurso formal impróprio ou imperfeito, de seu turno, como sendo a hipótese em que “o agente deseja a realização de mais de um crime, tem consciência e vontade em relação a cada um deles. Ocorre aqui o que o Código Penal chama de desígnios autônomos”, que se caracteriza pela unidade de ação e multiplicidade de determinação de vontade, com diversas individualizações. Os vários eventos, nesse caso, não são apenas um, perante a consciência e a vontade, embora sejam objeto de uma única ação”.
Logo, a linha diferenciadora dos concursos formais perfeito e imperfeito seria, justamente, a vontade do sujeito, ou como diz Bitencourt (2014, p. 791), “a unidade (ou não) do elemento subjetivo que impulsiona a ação”. É dizer, restará caracterizada uma ou outra espécie de concurso formal conforme a vontade do autor esteja direcionada a um único concerto delitivo, embora produtor de mais de um resultado criminoso, ou à prática de mais de um delito autônomo, não obstante, para atingir este objetivo plúrimo, pratique uma única conduta.
Damásio de Jesus diferencia os conceitos de “unidade de desígnios” e “autonomia de desígnios” nos seguintes termos:
Há unidade de desígnios, ensinava Remo Pannain, quando “resulta de um complexo de linhas representativas das várias infrações, que se harmonizam na identidade do fim”, de modo que “cada uma perde a sua autonomia para parecer um fragmento do todo”, como se cada crime constituísse fase de execução de um só comportamento delituoso. Como diz Domenico Pisapia, as várias violações se apresentam como unidade na consciência do agente na fase ideal ou intelectiva, que precede à volitiva, abraçando as diversas condutas numa substancial unidade psicológica e jurídica. Assim, as diversas ações ou omissões se apresentam à consciência do sujeito como um fato único, mesmo se fraccionando na execução. Desígnio, observava Manzini, “é um programa ou plano de ações ou omissões, firme, determinado e concreto, que não resulta apenas da coordenação de uma série de ideias substanciais, mas que pressupõe ainda a escolha dos meios para conseguir um determinado fim e o prévio conhecimento das condições objetivas e subjetivas nas quais deverá desenvolver-se a atividade delituosa”. Para Bettiol, é decisivo o elemento intelectivo no conceito de desígnio criminoso, “devendo ele ser entendido como um plano, um programa que o agente ideou e que pretende realizar sucessivamente em tempos e em lugares diversos, ainda que em prejuízo de pessoas diversas.
No concurso formal perfeito (CP, art. 70, caput, 1ª parte), dizia Aníbal Bruno, “à unidade do comportamento externo deve corresponder a unidade interna da vontade. O agente deve ter em vista um só fim. Para usar a expressão do Código, não deve haver para os vários crimes desígnios autônomos. O que resulta decisivo é realmente o elemento psíquico, o ato de vontade do agente. Se este impulso volitivo é um só, podem ser muitos os seus efeitos antijurídicos, a ação é única, porque só o resultado relacionado com o querer criminoso vem integrar a sua estrutura”. E finalizava: “Essa relação entre a vontade de quem atua e os vários efeitos provocados é o que falta no concurso formal que podemos chamar perfeito, e o que justifica no concurso formal imperfeito, o de múltiplos desígnios, o acúmulo das penas”.
Ao contrário, há desígnios autônomos, na lição de Roberto Lyra, na hipótese de “múltipla ideação e determinação da vontade, com diversas individualizações. Assim, os vários eventos não são um só perante a consciência e a vontade, embora o sejam externamente”. Ocorre a autonomia de desígnios quando o sujeito pretende praticar não só um crime, mas vários, tendo consciência e vontade em relação a cada um deles, considerado isoladamente. Assim, o sujeito pode estuprar com dupla finalidade: satisfazer o instinto sexual e transmitir doença venérea de que está contaminado à vítima. Com uma só conduta, realiza dois fins. Estes “não são um só perante a consciência e vontade” do sujeito, “embora o sejam externamente”. A conduta, externamente considerada, é única. O elemento subjetivo, entretanto, não se pode dizer unitário, em face da diversidade da finalidade.
Fragoso (1995, p. 349) explica que no caso de haver desígnios autônomos dirigidos aos crimes cometidos em concurso formal (impróprio ou imperfeito), ter-se-á “uma única ação correspondente a diversas ações, pelo componente subjetivo que a inspira”; a solução jurídica, nesse caso, será o cúmulo material de reprimendas. Define como desígnio autônomo a “vontade deliberadamente dirigida aos diversos fins”, o que impede a diminuição da pena pela regra da exasperação, já que presente a integral culpabilidade pelos diversos fatos, o que deve conduzir ao cúmulo material das reprimendas.
Para Mirabete e Fabbrini (2012, p. 427), no concurso formal ou ideal de crimes, “para se reconhecer a existência de unidade da ação, deve-se considerar o fator final, que é a vontade regendo uma pluralidade de atos físicos isolados, que compõem a conduta, dolosa ou culposa, e o fator normativo, que é a estrutura do tipo penal em cada caso particular”. Já no concurso formal impróprio ou imperfeito, o agente pratica, mediante conduta única, dois ou mais crimes, imbuído de “desígnios autônomos”, o que nada mais é do que o desejo autônomo de ocorrência dos resultados típicos.
Cumpre pontuar, por fim, a posição defendida por Hungria (1961, p. 193), destoante das anteriores. Referido autor, não faz distinção alguma entre unidade ou pluralidade de desígnios. Sustenta, isso sim, que o Código Penal somente exigiria a perquirição do desígnio do agente no caso do concurso formal imperfeito, que, segundo a lei, deve contar com “desígnios autônomos”. No concurso formal de crimes não haveria qualquer exigência acerca de um de um elemento psicológico especial do agente, bastando o critério objetivo puro para determinar o concurso de infrações:
Como se vê, para a existência do concurso formal, não é exigida, em princípio, a unidade de desígnio ou de intenção (como no Código de 1890, art. 66, par. 3.º), podendo ser reconhecido até mesmo no caso de ação ou omissão culposa com pluralidade de eventos lesivos. É suficiente a unidade de ação ou omissão. Entretanto, se se verifica que os vários resultados corresponderam a desígnios autônomos, a regra a aplicar-se é a do concurso material, isto é, o cúmulo material de penas. A parte final do par. 1.º do art. 51 contempla uma hipótese excepcional de concurso real de crimes com unidade de ação ou omissão. Assim, se um indivíduo faz explodir uma bomba para matar dois adversários seus que passam juntos e alcança o duplo objetivo, responderá por dois homicídios com as penas cumuladas. Já o mesmo não acontece no caso em que, querendo atingir uma só pessoa, o agente atinge também outra, pois em tal caso (aberratio ictus) não há desígnios autônomos, e a unidade de ação obriga ao reconhecimento do concurso formal (art. 53, última parte, do Cód. Penal).
2.5.1 Elemento subjetivo
No âmbito da investigação acerca do conceito de “desígnio”, inafastável é a discussão acerca do elemento subjetivo compatível com essa expressão. É dizer, busca, a doutrina, verificar quais possíveis elementos subjetivos do agente (dolo direto, dolo eventual, culpa consciente e/ou culpa inconsciente) se compatibilizariam com a ideia de pluralidade de desígnios.
A importância dessa discussão reside em sua relevância para identificar a modalidade de concurso de crimes em que incorre o agente, isto é, se no concurso formal próprio ou impróprio. Isso porque havendo desígnios autônomos na espécie, restará configurado o concurso formal impróprio de crimes, que é mais gravoso, haja vista o sistema de cúmulo material das sanções adotado. Por outro lado, não configurados desígnios autônomos, restará a aplicação do concurso formal de crimes, que tem solução jurídica mais benéfica ao acusado, consistente na exasperação da pena.
Primeiramente, há autores que identificam a expressão “desígnios autônomos” genericamente com o elemento subjetivo do dolo, abrangendo as modalidades direta ou eventual.
Segundo Masson (2017), por “desígnio autônomo” ou “pluralidade de desígnios” compreender-se-ia o propósito de produzir mais de um crime com uma mesma conduta. A partir dessa definição, o autor extrai como conclusões que (i) o concurso formal próprio ou perfeito de crimes ocorre, necessariamente, entre crimes culposos ou entre um crime doloso e outro culposo, e (ii) o concurso formal impróprio ou imperfeito de crimes somente envolve crimes dolosos, de qualquer espécie que sejam (dolo direito ou dolo eventual)
Nesse sentido, Masson (2017, p. 848) consigna que “de fato, se há desígnios autônomos, há dolo na conduta que produz a pluralidade de resultados, e o agente deve responder por todos os resultados a que deu causa, sem nenhum tratamento diferenciado”. E continua, exemplificando:
Ora, é clara a inexistência de diferença, exemplificativamente, na conduta daquele que, desejando a morte de todos os membros de uma família, ingressa na residência em que vivem e coloca fogo no corpo de cada uma das pessoas, matando-as, da conduta de atear fogo na residência durante o período de repouso noturno, causando a morte de todos os indivíduos.
Em ambas as situações, o agente queria a morte de várias pessoas, e as efetivou. Na primeira hipótese, estaria desenhado o concurso material (pluralidade de condutas e pluralidade de resultados), enquanto na segunda restaria delineado o concurso formal (unidade de conduta e pluralidade de resultados).
O tratamento jurídico, por questões de lógica, de bom senso, e, notadamente, de Justiça, deve ser idêntico em ambos os casos.
Damásio de Jesus (2013, p. 649), no mesmo sentido, parece equiparar o termo “desígnios autônomos” empregado pelo artigo 70 do Código Penal ao dolo, na medida em que explica: “suponha-se que o agente, com um só projétil de revólver, mate dolosamente duas pessoas. Há unidade de conduta e autonomia de desígnios (dirigidos à morte das duas pessoas)”.
Também para Capez (2014), o concurso formal imperfeito de crimes, com a expressão “desígnios autônomos”, abrange as hipóteses em que o agente atua tanto com dolo direto quanto com dolo eventual.
Costa Junior (2010) sustenta que é a unidade do elemento subjetivo que caracteriza o concurso formal próprio de crimes. Por outro lado, o concurso formal impróprio resulta de desígnios autônomos, sendo certo, ainda, que a pluralidade do elemento subjetivo somente é compatível com o dolo. Nos mesmos termos é o entendimento de Mirabete e Fabbrini (2012).
Rogério Greco (2015) aduz que o concurso formal admite tanto delitos na modalidade culposa, quanto na dolosa. No entanto, as consequências jurídicas serão diversas em cada caso, a depender do elemento subjetivo do agente. Exemplifica três casos de concurso formal de crimes: (i) aquele no qual os diversos crimes são oriundos de uma única conduta culposa, sendo todos os resultados atribuídos ao agente também a esse título, tal como na hipótese de um acidente automobilístico decorrente de manobra imprudente que ocasiona a morte de três pessoas; (ii) o caso de erro na execução, no qual a conduta era dolosa, mas o resultado aberrante também é imputado ao agente a título de culpa, quando o agente atinge, por exemplo, com um tiro, além da pessoa desejada (dolo), uma outra (culposamente); e (iii) a hipótese em que o agente, por meio de uma única conduta dolosa, pratica diversos resultados, todos eles com “desígnios autônomos”, como, por meio de conduta única, atingir, com uma bomba, duas pessoas que se desejava matar.
Explica, Rogério Greco (2015, p. 669), a expressão “desígnios autônomos” com o seguinte exemplo:
Tomamos conhecimento, por intermédio da imprensa, das atrocidades praticadas contra os judeus durante o período nazista. Até que encontrassem um meio rápido, eficaz e barato para exterminar o povo judeu, os nazistas, comandados por Hitler, resolveram, em determinado momento, enfileirar os judeus a fim de que, com um só disparo de fuzil, vários deles fossem mortos, economizando-se, com isso, tempo e munição. Quando o disparo era efetuado, a finalidade era causar a morte de daquelas duas ou três pessoas que ali se encontravam. Os desígnios, portanto, eram autônomos com relação a cada uma delas, uma vez que o agente pretendia, com um único disparo, ou seja, com uma única conduta, causar a morte de A, B e C. Desígnio autônomo quer dizer portanto, que a conduta, embora única, é dirigida finalisticamente, vale frisar, dolosamente, à produção dos resultados.
Interessante é a hipótese do erro na execução ou aberratio ictus, trazido à baila por Rogério Greco.
Em princípio, a aberratio ictus ou erro de execução refere ao caso em que o agente tem em mente a pessoa visada, mas, por erro na execução, acerta outra pessoa em seu lugar. Nesse caso, a teor do disposto no artigo 73, primeira parte, do Código Penal, o agente responde como se tivesse praticado o crime contra a pessoa desejada.
O curioso, no caso da aberratio ictus, é justamente a hipótese em que o agente, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, acerta não apenas a pessoa pretendida, mas também outra, mediante uma única conduta; em outras palavras, o agente produz duplo resultado, embora tenha praticado uma só conduta, imbuído de desígnio único. Nesse caso, como se pode observar a partir da redação do artigo 73, segunda parte, do Código Penal, o agente responde por ambos os resultados, porém na forma do concurso formal próprio (artigo 70 do Código Penal).
Isso ocorre porque o agente, mediante conduta única, praticou mais de um resultado delitivo, sendo que um deles correspondia ao seu desígnio e, o outro, não, tendo derivado de mero erro na execução. Fica nítido, na hipótese, que o agente atuou imbuído de dolo tão somente quanto ao resultado querido, mas não quanto ao resultado aberrante, razão pela qual, não havendo desígnios autônomos quanto aos resultados típicos, aplica-se a regra do concurso formal próprio, harmonizando-se o sistema das consequências jurídicas do crime.
Há, de outra senda, segmento da doutrina que traça distinção entre as espécies de dolo, defendendo que a expressão “desígnios autônomos” somente se compatibiliza com o dolo direto, e não com o dolo eventual, o qual levaria à caracterização do concurso formal próprio de crimes ao invés do impróprio diante da presença deste último.
Fragoso (1995), nesse sentido, sustenta que a expressão “desígnio” exclui o dolo eventual, dando entender que referido termo equivaleria ao dolo direto, tão somente.
Nuria Castello Nicás, nas palavras de Nucci (2010, p. 461), esclarece que “havendo dolo direto, voltado a lesões de diversos bens jurídicos, deve-se concluir, tanto do ponto de vista da antijuridicidade como do prisma da culpabilidade, que estamos diante de vários fatos puníveis em concurso real. Porém, quando a vontade do sujeito envolve a conduta, mas não o resultado, que não é diretamente perseguido (dolo eventual), há verdadeiro concurso formal (El concurso de normas penales, p. 41)”. Aqui, cumpre pontuar que o “concurso real” referido pela autora corresponde, no ordenamento jurídico brasileiro, à solução jurídica do cúmulo material de reprimendas dado pelo concurso formal imperfeito de crimes, enquanto o alegado “concurso formal” equivaleria ao concurso formal perfeito de delitos.
Junqueira e Vanzolini (2014, p. 635-636) definem o concurso formal perfeito de crimes justamente como resultado de um único “desígnio”, expressão essa equivalente a plano, projeto, propósito. Assim conceituam e exemplificam:
Desígnio é a representação que dá ensejo à conduta, é o objetivo principal do agente. Em uma interpretação precisa (nem sempre seguida), nos crimes dolosos é o chamado dolo direto de primeiro grau, ou seja, aquele que reflete o primeiro dos quatro momentos a ação finalista (ver teoria da conduta e teoria do dolo).
Assim, a unidade de desígnio com a seguinte situação: “o motorista de ônibus que tem o desígnio de efetuar a ultrapassagem, mas escolhe meio equivocado, qual seja, o ingresso na pista contrária em local proibido, que resulta em choque com outro veículo e morte de dezenas de pessoas. Ora, como foi uma conduta com diversos resultados, há concurso formal. Como era o único desígnio (efetuar a ultrapassagem), que, aliás, não era enquanto fim ilícito, o concurso formal é perfeito.
Também se o sujeito planta uma bomba no carro de desafeto, imaginando que este sairá sozinho de casa, no entanto um terceiro lhe pede carona e, dentro do carro, também falece em decorrência da explosão: foram dois resultados com uma só conduta, e, assim, há concurso formal. Como havia apenas um desígnio, ou seja, a representação de um resultado motivava a ação, trata-se de concurso formal perfeito.
O concurso formal imperfeito, diversamente, para Junqueira e Vanzolini (2014, p. 636), é verificado quando “os resultados derivam de desígnios autônomos; deve sempre haver dolo”. Para os autores, aqui é necessário que o dolo seja direto, não se admitindo a concepção de “desígnios autônomos” quando presente o dolo eventual. Isso porque “o dolo eventual não reflete o desígnio do sujeito, mas, sim, resultados colaterais previstos e tidos como possíveis ou prováveis e aceitos pelo sujeito”. Assim exemplificam:
Assim, imagine-se a hipótese: sujeito tem como representação de resultado querido a morte da vítima A, escolhe o meio X e prevê que o golpe possa ferir B. Se atingir A e B, deve responder pelo concurso formal perfeito, e não imperfeito, eis que não havia desígnio autônomo em relação a B.
No entanto, se o objetivo da ação é ferir A e B e o meio escolhido é X, alcançando os resultados, o sujeito deverá responder pelos crimes em concurso formal imperfeito, pois os resultados estavam autonomamente reconhecidos como objetivos que motivariam a ação, ainda que o meio escolhido X fosse comum.
Logo, a partir do exemplo dado, ter-se-ia, no primeiro caso, unidade de ação e de desígnio, com a produção de mais um resultado delitivo (concurso formal próprio), e, no segundo caso, unidade de ação e pluralidade de desígnios, também com a produção de pluralidade de resultados delitivos (concurso formal impróprio).
Nucci (2010) identifica essa polêmica na conceituação de “desígnios autônomos” no concurso formal imperfeito, destacando a existência de diversas correntes doutrinárias: (i) para uma corrente, a expressão “desígnios autônomos” equivale ao dolo direto, no tocante aos vários crimes praticados mediante ação única (vontade deliberadamente dirigida a diversos fins), e exclui o dolo eventual; (ii) para outra, “desígnios autônomos” equivale a qualquer forma de dolo, direto ou eventual, de modo que sempre será aplicado o cúmulo material de penas quando o agente atua com dolo nos delitos concorrentes. O autor refere, ainda, a uma terceira posição, defendida por Basileu Garcia, pela qual (iii) o juiz deve decidir segundo a equidade em cada caso concreto, em razão da insuficiência dos critérios legais para definir-se, em abstrato, se o concurso formal imperfeito admite somente dolo direto ou se admite, também, o dolo eventual.
Feitas essas considerações, Nucci (2010, p. 461), adotando a primeira corrente descrita por ele (acerca da admissão, unicamente, de dolo direto na concepção do concurso formal imperfeito), arremata:
Em síntese, no concurso formal, pode-se sustentar: a) havendo dolo quanto ao crime desejado e culpa quanto ao(s) outro(s) resultado(s) da mesma ação, trata-se de concurso formal perfeito; b) havendo dolo quanto ao delito desejado e dolo eventual no tocante ao(s) outro(s) resultado(s) da mesma ação, há concurso formal perfeito; c) havendo dolo quanto ao delito desejado e também em relação aos efeitos colaterais, deve haver concurso formal imperfeito. Lembramos que o dolo direto pode ser de 1.º e de 2.º graus (ver nota 64 ao art. 18), o que é suficiente para configurar o concurso formal na modalidade imprópria ou imperfeita.
2.6 Finalidade da lei
Todo esse estudo doutrinário acerca dos requisitos e limites das espécies de concurso formal de crimes se justifica em razão das diversas consequências jurídicas dadas pela lei penal em cada caso.
Nessa senda, a adoção do concurso formal próprio determina a aplicação do sistema de exasperação da pena, ao ponto que o concurso formal impróprio tem por consequência o cúmulo material das reprimendas, representando solução mais gravosa in concreto, até porque o cúmulo material de sanções é o limite máximo do concurso formal próprio, já que se da exasperação resultar pena mais gravosa, aplica-se o concurso material benéfico do parágrafo único do artigo 70 do Código Penal. Tudo isso a indicar que a finalidade da lei, ao estabelecer o sistema de exasperação para o concurso formal de crimes, foi beneficiar o acusado.
Dessa forma justifica Nucci (2010), dizendo que no concurso material benéfico (parágrafo único do artigo 70 do Código Penal), o concurso entre os delitos continua sendo formal, apenas aplicando-se o sistema do acúmulo material por opção do legislador, já que o concurso formal foi construído enquanto benefício para o réu.
Fragoso (1995), nesse sentido, destaca que a regra do concurso formal existe com a finalidade de beneficiar o agente, excluindo-se o cúmulo material de penas determinado pelo artigo 69 do Código Penal. Assim faz, segundo o autor, para o fim de atender à proporcionalidade da pena em vista da gravidade dos crimes praticados. Tanto é assim que caso a regra do concurso formal represente, concretamente, solução mais gravosa do que o concurso material, deverá este ser aplicado em seu lugar, conforme manda o parágrafo único do artigo 70 do Código Penal.
A proporcionalidade, acima referida, é o princípio que determina a busca pela justa medida de cada instituto jurídico, no que se inclui o concurso formal de crimes. Tem por objetivo determinar, tanto abstrata quanto concretamente, a ponderação entre os meios utilizados e os fins perseguidos, de modo que a interpretação conduza ao menor sacrifício ao sujeito dentre os possíveis significados da norma jurídica (Araujo e Nunes Júnior, 2013).
Assim, para o presente objeto de estudo, a proporcionalidade deve guiar o intérprete de modo a conferir à norma que disciplina o concurso formal de crimes o significado que melhor se amolda à finalidade pena, aliada ao menor sacrifício possível ao agente.
Junqueira e Vanzolini (2014) justificam a menor pena obtida a partir do concurso formal perfeito em razão do menor desvalor contido na conduta, tendo em vista que o desígnio é uno. Além disso, teria pretendido o legislador abrandar o rigor do concurso material. Opostamente, a pluralidade de desígnios no concurso formal imperfeito impõe maior desvalor da conduta, o que resulta em também maior intensidade da pena. Nesse sentido, a unidade de ação para a produção de mais de um resultado querido pelo agente torna-se irrelevante, visto que solução em sentido diverso da hipótese do cúmulo material decorrente da prática de mais de um delito mediante mais de uma ação conduziria a desarrazoada premiação do agente com uma pena menor.
Para Mirabete e Fabbrini (2014, p. 309), “a regra do concurso formal para aplicação da pena somente deve ser invocada quando beneficiar o réu, pois para tal fim é que foi criada”.
Rogério Greco (2015) expõe que o instituto do concurso formal de crimes é fundado em razões de política criminal, especialmente voltado a beneficiar o agente que praticar mais de um resultado por meio de uma única conduta.
Também Capez (2014) anota que o concurso formal consiste na existência de dois ou mais crimes, os quais, todavia, são apenados de maneira menos rigorosa tão somente em virtude de política criminal – o conceito de política criminal será melhor abordado no Capítulo 5 deste trabalho.
Hungria (1961), partidário da teoria objetiva pura, justifica seu posicionamento, no sentido de que não se faz necessário perquirir o desígnio do agente no caso do concurso formal próprio, a partir da finalidade da lei. Consigna, nessa linha de raciocínio, que a exigência do elemento subjetivo da “unidade de resolução” ou “unidade de desígnio” seria ilógica frente à finalidade do instituto de abrandar a pena, evitando a excessiva soma de sanções.
Costa Junior (2010), por seu turno, entende que o abrandamento punitivo por meio da aplicação do concurso formal de crimes se justifica em função do elemento subjetivo do agente.
Masson (2017, p. 848), também fundado no elemento subjetivo do agente, sustenta que:
É nítida a conclusão de que a regra de concurso formal perfeito constitui-se em flagrante benefício ao réu. Com efeito, trata-se de fórmula destinada a lhe favorecer, uma vez que a lógica seria responder normalmente por todos os crimes que praticou. O Código Penal utilizou-se dessa opção, todavia, por se tratar de hipótese em que a pluralidade de resultados não deriva de desígnios autônomos, eis que os crimes são culposos, ou, no máximo, apenas um é doloso e os demais, culposos.
Por todo o exposto, conclui-se que a regra do concurso formal perfeito de crimes foi esculpida com vistas a beneficiar o acusado. Isso se justifica em razão do menor desvalor de sua conduta, ou seja, da menor culpabilidade verificada na hipótese em que o agente pratica mais de um resultado típico por meio de uma única ação, sem que, para isso, tenha concorrido com desígnios autônomos. Desígnio, nesse sentido, denotaria o animus do agente, a determinar qual o regime jurídico aplicável – o mais benéfico (unidade de desígnio) ou o mais gravoso (pluralidade de desígnios).
Essa conclusão importa para a interpretação das circunstâncias do caso concreto, tendo em vista a finalidade da lei. Em outras palavras, a consciência de que o artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal, que cuida do concurso formal próprio de crimes, foi delineado visando beneficiar o acusado, permite interpretá-lo, em cada caso concreto, de modo adequado a essa finalidade.
Tanto é assim que, a partir de uma interpretação teleológica da lei – método interpretativo esse que será melhor explorado no Capítulo 5 deste trabalho –, entendendo que que a regra do concurso formal próprio foi feita para beneficiar o réu, Mirabete e Fabbrini (2012) aduzem que a regra do concurso formal de crimes deve ceder diante da presença de crime continuado, eis que este contém punição menos severa, sendo, dessa forma, ainda mais benéfico ao acusado, atendendo-se, portanto, à finalidade da lei.
El Hireche (2006), no mesmo sentido, assevera que o sistema da exasperação da pena, implementado em benefício do réu, nunca poderá superar o somatório das sanções, cabendo ao julgador, em razão disso, fazer uma projeção, no sentido de que a maior pena aplicável em decorrência da exasperação no concurso formal próprio (e, da mesma forma, na continuidade delitiva) somente pode equivaler àquela que seria correspondente ao somatório.
Por outro lado, a identificação da solução jurídica para o caso concreto não deve se basear exclusivamente nas consequências jurídicas, sem atentar para os pressupostos legais para a aplicação do concurso formal de crimes, sob pena de desvirtuar-se o instituto, utilizando-o como fundamento para justificar soluções diversas de política criminal.
Nesse sentido, Aisa (2006, p. 97) tece críticas à atuação da ciência penal e dos tribunais na aplicação dos concursos de crimes, identificando a tendência de tentar-se identificar os critérios caracterizadores de cada espécie de concurso a partir de suas consequências jurídicas, mais ou menos benignas. Cita Cuerda Riezu para assinalar que, “consciente ou inconscientemente, tanto a doutrina quanto a jurisprudência estabelecem os limites de cada figura concursal em razão da gravidade ou benignidade da sanção correspondente”, o que é questionável, eis que a lógica deveria ser a inversa.
2.7 Conclusão
Tendo-se em conta a finalidade da lei, no sentido de beneficiar o réu que pratica mais de um resultado ilícito a partir de uma única conduta, bem como os ensinamentos doutrinários basilares trazidos acima, parece haver uma única solução jurídica possível para a distinção entre os concursos formais próprio e impróprio.
Assim, somente poderá haver a solução mais gravosa ao autor do fato, decorrente do cúmulo material das reprimendas (concurso formal impróprio de crimes, previsto na segunda parte do caput do artigo 70 do Código Penal), quando, em que pese à unidade de conduta, houver desígnios autônomos relativamente a cada um dos resultados típicos, entendendo-se por desígnios autônomos a presença de dolo direto relativamente a cada um dos resultados – eis que, nesse caso, é maior o desvalor da conduta do sujeito que quis, efetivamente, a pluralidade de crimes.
Por outro lado, o concurso formal próprio, com a consequente aplicação do sistema de exasperação da pena (primeira parte do caput artigo 70 do Código Penal), por ser mais benéfico, deve incidir nas demais hipóteses em que o autor praticar mais de um resultado típico por meio de uma única conduta, é dizer, nos casos em que agir, relativamente aos diversos resultados típicos, com (i) dolo direto relativamente a um resultado e culpa (consciente ou inconsciente) relativamente ao(s) outro(s); (ii) dolo direto relativamente a um resultado e dolo eventual relativamente ao(s) outro(s); (iii) dolo eventual relativamente a um ou alguns dos resultados e culpa (consciente ou inconsciente) com relação ao restante; (iv) culpa (consciente ou inconsciente) relativamente a todos os resultados; ou (v) dolo eventual relativamente a todos os resultados – eis que, em tais casos, a ausência de dolo direto (“desígnios autônomos”) com relação à pluralidade de resultados típicos torna o desvalor da conduta menor.
3 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME DE ROUBO
De modo a viabilizar a investigação do entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça quanto à aplicação in concreto do instituto do concurso formal de crimes, o presente trabalho se valerá do estudo da hipótese de concurso entre crimes de roubo, razão pela qual, a fim de possibilitar melhor entendimento da matéria, far-se-ão, a seguir, breves considerações acerca do referido delito.
3.1 O crime de roubo
Segundo Masson (2017, p. 59), “o Direito Penal moderno é o Direito Penal do bem jurídico”. Isso porque a tutela penal deve se voltar não às condutas internas, intenções, pensamentos, modo de viver ou pensar das pessoas, mas, sim, à proteção de bens jurídicos.
Bechara (2009, p. 27) conceitua bem jurídico como “valores e interesses fundamentais da sociedade” constituintes de “mínimos éticos cuja expectativa social é tutelada pelas normas que compõem o sistema penal”.
Nessa senda, nota-se que a Parte Especial do Código Penal em vigor é segmentada em Títulos segundo o critério do bem jurídico tutelado pelos tipos penais neles inseridos.
O crime de roubo encontra previsão legal no artigo 157 do Código Penal, o qual está inserido no Capítulo II, do Título II da Parte Especial, que trata dos crimes contra o patrimônio. Pode-se dizer, dessa forma, que o crime de roubo tem por escopo principal a tutela do bem jurídico patrimônio, não obstante proteja, concomitantemente, outros bens jurídicos.
O roubo, nesse sentido, é tido como crime pluriofensivo ou complexo, na medida em que a norma penal incriminadora do artigo 157 do Código Penal tutela, simultaneamente, mais de um bem jurídico: o patrimônio e a incolumidade física ou liberdade individual, segundo Gonçalves (2018). É dizer, a fim de efetuar a subtração de coisa alheia móvel (conduta que atinge o patrimônio), o agente emprega violência – seja própria, seja imprópria – ou grave ameaça contra o ofendido (conduta que vulnera a incolumidade física ou liberdade individual do sujeito passivo).
Não obstante o delito em estudo atinja necessariamente mais de um bem jurídico de forma simultânea – pois, do contrário, ter-se-ia tão somente o crime de furto (delito exclusivamente contra o patrimônio) ou o crime de ameaça (delito exclusivamente contra a liberdade individual) ou lesão corporal (delito exclusivamente contra a incolumidade física do indivíduo), que são crimes subsidiários ao roubo[5] –, por estar inserido no Título que cuida, primordialmente, dos crimes contra o patrimônio, este deve ser o ponto central para a compreensão e aplicação do delito de roubo, sendo a violência ou grave ameaça elementos secundários na configuração do injusto. Em outras palavras, embora o agente atinja, concomitantemente, a incolumidade física ou a liberdade individual na prática delitiva, sua conduta é guiada primordialmente à subtração de coisa alheia móvel, sendo esta, segundo Salvador Netto (2014), a finalidade precípua ou dolo do agente.
O bem jurídico patrimônio possui assento constitucional, na medida em que decorre do direito fundamental à propriedade, previsto tanto no caput quanto no inciso XXII do artigo 5º da Constituição Federal.
Em que pese à existência de proteção ao bem jurídico em questão nas mais diversas esferas jurídicas do direito brasileiro (administrativa, cível e penal), o conceito de patrimônio deve, aqui, ser compreendido segundo o seu sentido para a seara penal, eis que, não necessariamente, o conceito encontra equivalência nos demais âmbitos jurídicos.
Salvador Netto (2014) sustenta que o conceito de patrimônio deve ser extraído a partir de uma perspectiva jurídico-econômica (conceito misto de patrimônio), enquanto bem de valor econômico de troca cuja titularidade seja reconhecida pelo direito.
Melhor explicando, segundo o autor em referência, são encontrados, na doutrina, três conceitos distintos de patrimônio: o conceito jurídico, o conceito econômico e o conceito misto ou jurídico econômico.
O conceito jurídico, derivado do período positivista, equipara o patrimônio, para fins penais, ao conjunto de direitos e obrigações patrimoniais da pessoa, identificando a propriedade com os direitos subjetivos, excluindo-se por completo o seu aspecto econômico; nesse sentido, o direito penal funcionaria como um mero reforço sancionatório relativamente ao direito civil. A crítica tecida a essa corrente é no sentido de que há um afastamento do conteúdo material subjacente ao conceito de roubo, eis que a proteção penal se volta à mera tutela de interesses abstratos, sem preocupar-se, de outro lado, com a efetiva existência de lesão em sentido material; haveria, assim, um crime simplesmente formal, de perigo sob a ótica econômica – isto é, sua consumação se daria com a mera violação a um direito subjetivo, independentemente da efetiva diminuição patrimonial in concreto.
O conceito econômico de patrimônio, por sua vez, refere-se ao conjunto dos valores econômicos que sejam relevantes para a vida de um sujeito. Dessa forma, a tutela penal recairia sobre valores exclusivamente econômicos, e não sobre relações jurídicas. Muitas críticas são feitas a essa visão, dentre elas a possibilidade de haver um afastamento ou mesmo uma antinomia com o direito civil, gerando desarmonia dentro do ordenamento jurídico globalmente considerado; a possibilidade de que acabem sendo tutelados bens de origem ilícita, simplesmente pelo fato de eles possuírem valor econômico e bastando, para tanto, a disponibilidade fática da coisa (ainda que tenha sido adquirida ilicitamente pelo detentor); o distanciamento do aspecto individual do patrimônio, valorizando-se a mera universalidade econômica, isto é, a proteção jurídica a um simples potencial econômico, descuidando-se do próprio indivíduo ofendido; a dependência de um critério contábil para a aferição da consumação do delito, desprotegendo-se, de outro lado, bens com valor meramente afetivo; dentre outras críticas.
Por fim, o conceito misto ou jurídico-econômico de patrimônio, tal como adotado por Salvador Netto (2014), volta-se à proteção de um bem com valor econômico de troca (aspecto econômico) mas que, ao mesmo tempo, cuja titularidade seja reconhecida pelo direito (aspecto jurídico). Esses dois requisitos, para a identificação do patrimônio com relevância penal, devem estar concomitantemente presentes, além do que eles se limitam reciprocamente, evitando-se a proteção insuficiente ou demasiadamente ampliada do bem jurídico patrimônio.
Dessa forma, é certo que embora o conceito de patrimônio na seara penal possa guardar correspondências com o seu conceito na esfera cível, nem sempre haverá uma completa equivalência entre eles, notadamente porque o patrimônio, para fins penais, deve ser limitado pelo critério econômico ao mesmo tempo em que presente o vínculo jurídico reconhecido pelo direito civil.
Acrescente-se, no mais, que, ainda segundo Salvador Netto (2014), a tutela penal do patrimônio no direito penal tem por objetivo a garantia da obrigação coletiva de não ingerência na esfera patrimonial alheia, criando um dever geral de abstenção da coletividade. Dessa forma, são protegidas as faculdades do domínio do titular do direito (uso, gozo, disposição e recuperação da coisa de quem injustamente a detenha[6]) – sem descuidar-se da limitação econômica imposta pelo conceito penal misto de patrimônio.
Estabelecidas essas premissas doutrinárias básicas para a compreensão do crime de roubo, cumpre fazer breves considerações acerca do conteúdo do injusto penal ora abordado.
Assim é a atual tipificação do crime de roubo pelo Código Penal, com todas as circunstâncias legais que qualificam ou aumentam as penas do crime:
PARTE ESPECIAL
(...)
TÍTULO II
DOS CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO
(...)
CAPÍTULO II
DO ROUBO E DA EXTORSÃO
Roubo
Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º - Na mesma pena incorre quem, logo depois de subtraída a coisa, emprega violência contra pessoa ou grave ameaça, a fim de assegurar a impunidade do crime ou a detenção da coisa para si ou para terceiro.
§ 2º A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) até metade:
I – (revogado);
II - se há o concurso de duas ou mais pessoas;
III - se a vítima está em serviço de transporte de valores e o agente conhece tal circunstância.
IV - se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior;
V - se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade.
VI – se a subtração for de substâncias explosivas ou de acessórios que, conjunta ou isoladamente, possibilitem sua fabricação, montagem ou emprego.
VII - se a violência ou grave ameaça é exercida com emprego de arma branca;
§ 2º-A A pena aumenta-se de 2/3 (dois terços):
I – se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma de fogo;
II – se há destruição ou rompimento de obstáculo mediante o emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum.
§ 2º-B. Se a violência ou grave ameaça é exercida com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido, aplica-se em dobro a pena prevista no caput deste artigo.
§ 3º Se da violência resulta:
I – lesão corporal grave, a pena é de reclusão de 7 (sete) a 18 (dezoito) anos, e multa;
II – morte, a pena é de reclusão de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, e multa.
Segundo a classificação doutrinária, tal como sistematizado por Estefam (2012), o caput do artigo 157 do Código Penal prevê o denominado “roubo próprio”; o parágrafo 1º, por sua vez, prevê o “roubo impróprio”, com a aplicação das mesmas penas do caput; os parágrafos 2º, 2º-A e 2º-B elencam causas de aumento de pena, que atuam sobre as penas estabelecidas no caput, configurando o denominado roubo agravado ou circunstanciado; finalmente, o parágrafo 3º estabelece penas bases próprias, tipificando o roubo qualificado.
O roubo simples, próprio (caput) ou impróprio (parágrafo 1º), e o roubo qualificado (parágrafo 3º), expressam tipos penais fundamentais, com penas autônomas, tipificados por meio de “elementares”, as quais devem, obrigatoriamente, estar presentes para a configuração do crime, sob pena de, ausente qualquer delas, ser o fato formalmente atípico – seja absolutamente atípico (inexistência de crime) ou relativamente atípico (desclassificação do delito qualificado para o simples, como se dá, por exemplo, entre a norma penal incriminadora do parágrafo 3º do artigo 157 do Código Penal e o caput desse mesmo dispositivo legal).
Por sua vez, os parágrafos 2º, 2º-A e 2º-B preveem “circunstâncias” (do latim circum stare, que significa “estar em redor”[7]), que nada mais são do que dados ou fatos eventuais (que podem ou não estar presentes in concreto) que circundam o delito com a finalidade de aumentar a pena, segundo os parâmetros legalmente estabelecidos (respectivamente, de um terço até a metade; dois terços; e o dobro).
Tais circunstâncias, segundo Damásio de Jesus (2013, p. 599), “colocam-se entre o crime e a pena, permitindo a graduação desta. Não pertencem exclusivamente à teoria do crime nem à teoria da pena. Constituem dados de ligação entre um e outra, permitindo a melhor individualização da sanção penal”.
Tratam-se, as circunstâncias em questão, segundo Masson (2017), de circunstâncias legais, eis que são delineadas pela própria lei penal – em oposição às circunstâncias judiciais, que são aquelas alcançadas pela atividade judicial na primeira fase da dosimetria das penas, nos moldes do artigo 59 do Código Penal.
Sem prejuízo dessas classificações doutrinárias do crime de roubo, expostas apenas para a melhor compreensão do tema, o presente trabalho tem por objeto, como já pontuado anteriormente, o estudo do concurso de infrações penais, a partir do exemplo do concurso entre os crimes de roubo, de modo que a análise a ser feita será restrita a esse aspecto (concurso de crimes), sem adentrar nas minúcias dos casos concretos relativamente à modalidade de roubo praticada (isto é, se simples, qualificado ou majorado).
3.2 O concurso entre crimes de roubo segundo a doutrina
Embora haja certo consenso na doutrina quanto às bases teóricas para a compreensão do concurso de infrações penais, nota-se certa divergência quanto às conclusões doutrinárias quanto à sua configuração (ou não), bem como quanto à modalidade de concurso de infrações penais, frente a exemplos práticos envolvendo crimes de roubo.
Nessa senda, a doutrina diverge quanto à correta tipificação da conduta do agente que, em um mesmo contexto fático, pratica a conduta correspondente ao crime de roubo, tal como tipificado no artigo 157 do Código Penal, atingindo mais de uma vítima, e, logo, ofendendo uma pluralidade de bens jurídicos.
Não é incomum que sejam apenas citados, pela doutrina, precedentes jurisprudenciais para a elucidação das possíveis soluções ao problema concreto do concurso entre crimes de roubo, sem haver, por outro lado, uma análise puramente doutrinária da solução adequada à luz da ordem jurídica brasileira em vigor.
Assim, passa-se a expor alguns entendimentos doutrinários quanto à caracterização de concurso de crimes de roubo, a fim de demonstrar a diversidade de soluções dadas pela doutrina ao problema em estudo.
No que toca à unidade ou pluralidade de condutas, Tucci (2003), fazendo referência à jurisprudência, consigna que uma ação pode compor-se de diversos atos, sendo que a unidade de resolução do agente é que deve ser o elemento preponderante na análise da unidade da ação.
Estefam (2012) identifica o número de roubos com o número de patrimônios atingidos, independentemente do número de vítimas da violência ou grave ameaça empregada para a subtração. Dessa forma, estabelece que no caso de pluralidade de vítimas com um único patrimônio lesado, haverá crime único; por outro lado, no caso de haver uma única vítima de violência ou grave ameaça com pluralidade de patrimônios atingidos, o agente responderá por vários crimes de roubo, desde que tenha conhecimento da diversidade de proprietários – caso, todavia, essa circunstância não fosse conhecida pelo roubador, ele responderá por um só crime, aplicando-se quanto aos demais patrimônios lesados o artigo 20 do CP (erro de tipo). Finalmente, segundo o autor, praticada a conduta em um contexto único, haverá pluralidade de crimes de roubo, em número igual ao de patrimônios distintos lesados, em concurso formal. O autor, no entanto, não identifica qual modalidade de concurso formal (próprio ou impróprio) restaria configurada na hipótese.
No mesmo sentido, Capez (2014) identifica a quantidade de delitos patrimoniais praticados de acordo com o número de patrimônios atingidos, independentemente do número de pessoas vítimas da violência ou grave ameaça.
Mirabete e Fabbrini (2012) entendem que há concurso formal entre crimes de roubo quando cometidos por meio de uma só conduta, embora composta de vários atos, tendo duas ou mais vítimas da subtração. Por outro lado, defendem que há crime único quando o patrimônio das vítimas é, igualmente, único, tal como se dá entre cônjuges, entre membros da mesma família e entre funcionários da mesma empresa (embora apontem que nesta última espécie haja julgados no sentido de haver concurso formal de crimes).
Continuando, Mirabete e Fabbrini (2012) citam julgados no sentido de ser pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que há concurso formal quando o roubo acarreta lesões aos patrimônios de vítimas diversas, desde que cometidos os delitos mediante uma só ação, ainda que desdobrada em atos diversos – afastada, assim, a tese de crime único e de crime continuado, no qual há pluralidade de condutas. Os autores colacionam, ainda, julgados do Superior Tribunal de Justiça, indicando ser uníssono o entendimento no sentido de que o roubo praticado com violação de patrimônios de diferentes vítimas, ainda que em evento único, configura concurso formal de crimes; referem a “desígnio único” nesse caso, concluindo não haver crime único, mas, sim, pluralidade de delitos em concurso formal.
Por outro lado, Mirabete e Fabbrini (2012) apontam julgados isolados no sentido de que o roubo simultaneamente praticado contra vítimas plúrimas configura crime continuado ou concurso material, bem como no sentido de que haveria crime único no caso da prática de ameaça contra uma só pessoa, ainda que mais de um patrimônio fosse atingido – pautando-se, neste caso, no número de vítimas da violência ou grave ameaça, ao invés do número de vítimas que tiveram o seu patrimônio atingido. Arrematam dizendo que, havendo dúvida quanto ao número de patrimônios atingidos, deve-se concluir pela existência de crime único, em benefício do réu.
Embora a conclusão apontada pela doutrina nos casos acima indicados tenha sido, majoritariamente, pela configuração de concurso formal de crimes, não houve preocupação em especificar qual modalidade de concurso formal de infrações penais restaria configurada na hipótese, é dizer, se concurso formal próprio ou impróprio, reduzindo-se a explanação à identificação da presença de concurso formal enquanto gênero. O foco, na maioria das vezes, parece simplesmente ser afastar a tese de crime único, de modo a prevalecer a tese de pluralidade de delitos. Assim, tem-se certa unanimidade quanto à configuração do concurso ideal ou formal de crimes, mas não quanto à consequência jurídica aplicável à hipótese, isto é, se a exasperação da pena (concurso formal próprio) ou o cúmulo material de sanções (concurso formal impróprio).
Para Gonçalves (2018), há pluralidade de crimes de roubo nas seguintes situações: (i) prática de grave ameaça contra duas pessoas e subtração de bens de ambas, caso em que, por se tratar de ação única, tem-se concurso formal de crimes; consigna Gonçalves (2018, p. 390) que “a jurisprudência tem aplicado o concurso formal próprio a esses casos, provavelmente porque a pena ficaria muito alta se houvesse muitas vítimas e as penas fossem somadas”; (ii) subtrações em contextos fáticos diversos, de forma sequencial, contra vítimas distintas (p. ex. arrastões em prédios), a caracterizar crime continuado; (iii) subtração, mediante ação única, em um mesmo contexto, de bens de duas pessoas distintas mas que estavam em poder de uma só delas; nesse caso, desde que o autor soubesse de que subtraía bens da vítima presencial e de terceiro (a denotar seu dolo), responde por dois crimes de roubo em concurso formal; (iv) em princípio, o roubo a uma residência seria crime único, mas se houver clara intenção de subtrair bens individualizados de cada integrante da família, haverá concurso formal.
Aqui, nota-se uma preocupação do autor em identificar a modalidade de concurso formal de crimes que se verificaria na hipótese de haver a subtração de múltiplos patrimônios de vítimas distintas em um mesmo contexto fático. Nessa senda, Gonçalves (2018) identifica que a jurisprudência tem aplicado a modalidade própria do concurso formal de infrações penais, com a consequente incidência do sistema de exasperação da pena, mas indica que essa solução não necessariamente guarda relação com as bases teóricas do concurso de crime, mas, sim, prevalece em virtude da quantidade da pena a ser aplicada no caso concreto.
Barros (2011) estabelece que no caso do roubo a diversas vítimas em um mesmo contexto tem-se uma única conduta com diversos atos, de modo a caracterizar concurso formal de crimes; reforça que não se trata de crime único, uma vez que a pluralidade de vítimas impede tal conclusão; também não há crime continuado, eis que os diversos atos são aglutinados em uma única conduta.
Continuando, Barros (2011, p. 543-546) minucia a razão de incidir o concurso formal perfeito de crimes na espécie:
Na hipótese de o agente cometer roubo contra diversas pessoas em contexto único, a jurisprudência tem enquadrado o fato no concurso formal perfeito, aplicando a pena de um só roubo, aumentada de 1/6 até a metade. Note-se que, em tal situação, é inegável a presença de desígnio autônomo, razão pela qual, à primeira vista, teria se caracterizado o concurso formal de imperfeito, que ordena o somatório das penas. Todavia, torna-se inadmissível essa última exegese, porque atribui ao concurso formal efeito mais grave do que o previsto para o crime continuado. Com efeito, se o agente tivesse realizado o roubo, mediante várias condutas, valendo-se do mesmo modus operandi, ter-se-ia caracterizado o crime continuado, de modo que o juiz aplicaria a pena de um só delito e a aumentaria de 1/6 a 2/3. Não é razoável a incidência do somatório de penas decorrente do concurso formal imperfeito pelo simples fato de o agente ter agido em contexto único. Assim, a nosso ver, quando os delitos praticados em concurso formal imperfeito preenchem todos os requisitos do crime continuado, divergindo apenas no fato da unidade da ação, ao invés da pluralidade, deve incidir o sistema da exasperação, e não o do acúmulo material, sob pena de se conferir injustificadamente um tratamento mais rigoroso do que o previsto para o crime continuado. Este, ainda que o agente aja com desígnios autônomos, não se submete ao sistema da acumulação material. Em suma, pensamos que o concurso formal imperfeito só se pode configurar nas hipóteses em que não estão presentes os requisitos do crime continuado.
Nota-se, portanto, que o autor identifica o concurso formal impróprio de infrações como sendo a modalidade tecnicamente correta de concurso de crimes para a hipótese de o agente praticar roubo contra diversas pessoas em um contexto único, em oposição à referida conclusão jurisprudencial no sentido de que se teria concurso formal próprio de delitos. Isso se deve em virtude da inegável existência de desígnios autônomos por parte do agente.
Por outro lado, sem prejuízo de sua conclusão teórica, Barros (2011) aponta que a incidência do sistema de cúmulo material de penas em decorrência do concurso formal impróprio de crimes conduziria a uma reprimenda final deveras maior do que aquela que teria lugar caso verificada a hipótese de crime continuado, no qual é adotado o sistema da exasperação da pena, sendo que a única diferença, nesse caso, seria a pluralidade de condutas criminosas para atingir o mesmo resultado. Nessa sequência de ideias, a fim de buscar uma solução harmônica entre as hipóteses de concursos de infrações penais existentes, o autor sugere a aplicação do sistema de exasperação ínsito à continuidade delitiva para o exemplo em análise, em benefício do autor do fato e com o intuito de não gerar distorções anti-isonômicas a situações que, perante o direito, gozariam de igual desvalor.
Tratando do mesmo exemplo, Mazzilli (2010, p. 855-867) chega a conclusão diversa quanto à modalidade de concurso de crimes existente na hipótese de serem subtraídos bens de diversas vítimas, em um mesmo contexto fático:
Roubos simultâneos. Roubos a vítimas diferentes, no mesmo local e ao mesmo tempo, ou em imediata seqüência (caso, por exemplo, em que são roubados todos os fregueses de uma loja). Trata-se de roubos em concurso material (art.51, “caput”, do CP (LGL\1940\2)). Inocorre crime único, que exige unidade de ação. Pelo mesmo motivo, não é caso de concurso formal. No roubo, a ação é descrita no art. 157, “caput”, do CP (LGL\1940\2). O núcleo do tipo é “subtrair”. A cada vitima da subtração, temos um roubo, porque temos uma ação de subtrair violentamente. O Código Penal (LGL\1940\2) (arts. 155/183) e a própria Constituição Federal (LGL\1988\3) (art. 153, § 22) defendem o patrimônio individual. Assim, havendo uma subtração para cada vítima, com uma intimidação coletiva (mas que atinge também cada um dos intimidados) – há vários roubos, diante da pluralidade de desapossamentos. A propósito, Nélson Hungria diz que comete roubos em concurso material o ladrão de estradas que assalta num ônibus cada passageiro (“Comentários ao Código Penal (LGL\1940\2)”, vol. VII/57, n. 21). O que norteia a solução é verificar a unidade ou a pluridade de desapossamentos patrimoniais. Se há um só desapossamento, mas há várias vítimas das ameaças ou das violências, nem por isso há mais de um roubo (Magalhães Noronha, “Direito Penal”, vol. II, n. 468). Mas se há mais de um desapossamento, há concurso material (Noronha, ob. cit., Damásio, idem, ibidem). Tudo isso ocorre porque cada ação (de subtrair violentamente) é composta de vários atos (de intimidação, de ameaça, de violência, de desapossamento).
Não se trata de concurso formal nesta hipótese, como afirmou Heleno Cláudio Fragoso (“Lições de Direito Penal”, Parte Especial, 1, n. 312). O concurso formal (por isso que é também chamado de concurso ideal) é uma ficção da lei. “Em rigor de sistemática, seria lícito concluir que com um só desígnio, há uma só ação e um crime só, mesmo sendo diversas as infrações penais ocorridas” (Aníbal Bruno, “Comentários ao Código Penal (LGL\1940\2)”, art. 51, § 1.º). Ora, como se viu, há pluralidade de ações nesta hipótese. Não é uma ficção da lei reconhecer a pluralidade de roubos quando há várias ações, há vários desapossamentos patrimoniais a vítimas diversas. Aqui é uma realidade fática. Por isso é que a hipótese é de concurso real ou material e nunca ideal ou formal. Uma subtração está integrada em conexão à outra, mas uma não está contida na outra: são autônomas, ainda que conexas (art. 76, ns. I e III, do CPP (LGL\1941\8)). Não se pode olvidar que a corrente de jurisprudência do Tribunal de Alçada Criminal do Estado, que vem reconhecendo a continuidade de roubos nessa hipótese, que tal corrente também contém uma cabal contestação à tese do concurso formal. O próprio crime continuado nada mais é que uma série de crimes em concurso material, que a lei une em benefício do réu (cf. Pimentel, ob. cit., conclusão VIII e capítulo II).
Mas seria de se cogitar em crime continuado entre roubos simultâneos a vítimas diversas? Não. A se aceitar aqui o crime continuado, perderíamos o critério para rejeitá-lo na hipótese 1-a. E manter aquela solução (pela qual os roubos contra pessoas diversas não podem ser um crime continuado), aqui também se há de negar aplicação à norma art. 51, § 2.º, do CP (LGL\1940\2). Pimentel, que dispensa a unidade de vítimas para exigir tão-só unidade de tipo penal violado, traz entendimento equânime ao dispositivo, mas merece a mesma refutação já trazida acima, pela qual no fundo o roubo contra uma pessoa não pode ser continuado no roubo contra outra pessoa (v. inciso 1-a).
Logo, para o autor em comento haveria pluralidade de condutas, e não conduta única, a caracterizar concurso material entre os roubos praticados contra vítimas diversas em um mesmo contexto fático. Mazzilli (2010), nesse sentido, interpreta que cada ato de desapossamento patrimonial corresponde a uma diferente conduta de roubo. E por serem atingidas vítimas distintas, o autor afasta, também, a possibilidade de se considerar existente o crime continuado na espécie.
A denotar sua conclusão no sentido de que o número de infrações penais deve corresponder ao número de patrimônios atingidos, Mazzilli (2010, p. 855-867) prossegue com a elucidação dos seguintes exemplos:
4. Roubo a duas pessoas, com violação de um só patrimônio comum (por exemplo, a marido e mulher ou a sócios). É crime único, porque fundado numa única ação. O desapossamento é dirigido à comunhão, à sociedade; não é voltado individualmente aos parceiros. Mas, se há violação aos bens de natureza personalíssima dos conjugues (por exemplo, anel, relógio etc.), há duas violações possessórias autônomas: há dois roubos em concurso material (apelação criminal n. 118.391, do TACrimSP).
5. Roubo com um só desapossamento e com ameaça a várias pessoas. Sendo o roubo um crime patrimonial, a subtração se torna o núcleo do tipo, A pluralidade de pessoas ameaçadas não pluraliza o crime, se houve uma única, violação possessória. É crime único.
6. Roubo a uma só pessoa, desapossada de bens próprios e de terceiro (por exemplo, frentista do posto de gasolina, de quem é subtraído seu relógio e o dinheiro do patrão). Agora há concurso formal de crimes (art. 51, § 1.º, do CP (LGL\1940\2)). Há uma só ação (uma só subtração), com que os agentes provocam dois resultados penalmente relevantes (dois desapossamentos patrimoniais). Não há dúvida que a lei tutela o patrimônio de cada um. Como poderia ser indiferente para o Direito a ação daquele que causou um só desapossamento patrimonial e a ação daquele que causou mais de um desapossamento? Esta hipótese (6.ª) se opõe àquela (5.ª) em que havia diversas vítimas das ameaças com um desapossamento. Ora, se o desapossamento norteia o reconhecimento da unidade ou pluralidade de roubos, nada mais justo que se considere mais de um roubo quando há mais de um desapossamento, ainda, que com uma só vítima da violência ou da grave ameaça. É claro que aqui há um concurso ideal de crimes, não real, onde, mediante uma só ação o agente comete mais de um resultado penalmente relevante.
Se a intenção do agente for a de causar os dois desapossamentos patrimoniais (por exemplo, se ele sabe que o relógio é do frentista e o dinheiro é do posto-empresa), será o caso de se aplicar a norma do concurso formal impróprio (art. 51, § 1.º, última figura, do CP (LGL\1940\2)), diante da pluralidade de desígnios.
Já se a intenção do agente for causar um só desapossamento patrimonial (não sabendo ele, por exemplo, que o relógio pertencia a um e o dinheiro a outro), diante da unidade de desígnio e tendo em conta a diversidade de prejuízos, há concurso formal próprio de crimes (art. 51, § 1.º, 1.ª parte).
Não se pode falar nesses casos em crime único, pois seria olvidar a situação de cada vítima que foi prejudicada no seu patrimônio ainda que por uma única subtração.
Assim, embora o autor divirja do entendimento majoritário no sentido de que os atos de subtração praticados contra vítimas diversas em um mesmo contexto fático consubstanciam conduta única, seu posicionamento se aproxima dos demais doutrinadores analisados no sentido de que o número de resultados típicos alcançados pelo autor deve corresponder ao número de patrimônios subtraídos, independentemente do número de vítimas da violência ou grave ameaça.
Por sua vez, analisando precedentes do Superior Tribunal de Justiça, Cunha (2019) defende que o roubo praticado em um único contexto contra vítimas distintas configura concurso formal, e não crime único, em razão da pluralidade de bens jurídicos (patrimônios) ofendidos. Ainda, entende não se tratar de concurso material de infrações, eis que há, nesse caso, unicidade de conduta ou conduta única, a qual pode, todavia, ser fracionada em diversos atos, o que denomina de “ação única desdobrada”.
Após concluir pela incidência de concurso formal de crimes na espécie, Cunha (2019, online) investiga a modalidade de concurso formal existente, nos seguintes termos:
À primeira vista, pode parecer redundante simplesmente afirmar que é a existência de desígnios autônomos que marca a incidência de uma ou outra regra de aplicação da pena decorrente do concurso. Isto, afinal, está expresso no art. 70 do Código Penal.
Ocorre que a expressão desígnios autônomos normalmente não é interpretada como sinônimo de crimes dolosos, ou seja, na prática, o cometimento de mais de um crime doloso por meio de ação única não é encarado como concurso formal impróprio. O fato de ter cometido vários crimes dolosos não significa que o agente tenha atuado com desígnios autônomos em relação a cada um deles. Exemplos desta conclusão já foram mencionados nos comentários à tese nº 1.
Isto é contraditório, pois, se há diversos crimes dolosos, não é lógico afirmar que a conduta é movida por apenas um desígnio. Como ensina Cleber Masson, desígnio autônomo “é o propósito de produzir, com uma única conduta, mais de um crime. É fácil concluir, portanto, que o concurso formal perfeito ou próprio ocorre entre crimes culposos, ou então entre um crime doloso e um crime culposo” (Direito Penal Esquematizado – Parte Geral. 2ª ed. São Paulo: Método, 2014, p. 760).
(...)
A definição de dolo impede considerar ‘desígnios autônomos’ a pluralidade de resultados, ou obriga à consideração de todos os concursos de tipos dolosos da primeira hipótese do art. 70, o que seria absurdo, porque a regra do concurso formal simples ficaria reduzida às hipóteses de concurso entre tipos doloso e culposo. Historicamente, não pairam dúvidas de que o alvo do legislador foi alcançar os casos de pluralidade de resultados morte no homicídio doloso, ou seja, no chamado ‘concurso formal homogêneo’, que sempre constitui uma hipótese de pluralidade de resultados, mas a disposição legal é uma das mais obscuras do código” (Manual de direito penal brasileiro – Parte Geral. Vol. 1. 8. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 731).
Em suma, o que se pode dizer a respeito da interpretação da expressão desígnios autônomos na prática é que se trata de crimes decorrentes de planos delituosos independentes. É com base nisto que o STJ decide, por exemplo, que há concurso formal próprio entre algumas espécies de crimes patrimoniais e a corrupção de menores tipificada no art. 244-B da Lei 8.069/90: tanto o crime patrimonial quanto o ato de corromper o menor decorrem, no geral, de apenas um plano criminoso:
(...)
Mas ainda assim a contradição não se resolve completamente, pois há casos em que se pode identificar apenas um plano criminoso e, não obstante, as condutas são imputadas em concurso formal impróprio, como normalmente ocorre em latrocínios com pluralidade de vítimas e de patrimônios atingidos.
O autor, dessa forma, baseado no entendimento do Superior Tribunal de Justiça, aponta que, em princípio, deve-se identificar a expressão “desígnios autônomos” com a existência de um único plano delitivo do autor do fato, muito embora ressalve que há precedentes em que essa orientação não necessariamente prevalece, indicando a ausência de solução pacífica para a interpretação das modalidades de concurso formal de infrações penais.
Salvador Netto (2014, p. 232) identifica como critério de aferição da singularidade ou pluralidade ofensiva, no âmbito dos delitos patrimoniais (com exceção do latrocínio), o bem jurídico patrimônio, de modo que “ocorrerão tantos delitos quantas forem as esferas jurídico-econômicas patrimoniais atingidas”. Dessa forma, para que se verifique a pluralidade de delitos, com o consequente concurso de crimes, é necessário que mais de um objeto material representativo do bem jurídico patrimônio, e pertencente a mais de um ofendido, seja vulnerado.
Neste ponto, consigna o autor que integrantes da mesma família não necessária e legalmente possuem um único patrimônio, muito embora, no mais das vezes, as hipóteses de furto ou roubo a uma mesma residência, em contexto único, sejam tratadas como crime único, supondo-se existir uma unidade patrimonial atingida.
Em seguida, Salvador Netto (2014, p. 235) assevera que não basta o critério da pluralidade de bens jurídicos para que se tenha o concurso de infrações, fazendo-se necessário verificar, in concreto, a existência de uma “pluralidade fática (concurso material ou crime continuado)” ou de uma “unidade fática com violações axiológicas diversas (concurso formal)”. Nesse ponto, concorda com a doutrina que distingue a conduta do ato, sendo este o mero movimento corporal e, aquela, compreendida em um sentido contextual. Nessa senda, entende que a subtração de bens de diversos passageiros no mesmo ônibus, em contexto fático único, compreende uma única ação, não havendo que se falar, nessa hipótese, em concurso material de crimes ou em crime continuado; poderá haver, no máximo, concurso formal de delitos.
Aprofundando o tema sobre a espécie de concurso de crimes incidente no exemplo em estudo, Salvador Netto (2014, p. 235-237) assim discorre:
Ocorre que nos crimes patrimoniais, e aqui se verificam nuances próprias dessa disciplina, necessário é que se avalie a ação em sua contextualidade, nos dizeres de REALE JÚNIOR, “enquanto portadora de uma estrutura valorativa, dotada de sentido, de significação doada pelo valor que se põe como fim de agir”. Parece correto perceber que o resultado obtido pelo crime não é simplesmente naturalístico, mas produto desse mesmo sentido dirigido a violar uma única ou múltiplas normas. Nos exemplos mencionados, mais do que subtrair indivíduos separados, o que deseja o assaltante do ônibus ou do restaurante é aproveitar-se de um espaço de interação social que torne os indivíduos fungíveis, totalizados, afrontando-se, de uma só vez, uma unidade patrimonial ideal. Mais uma vez com REALE JÚNIOR, o indivíduo que furta vários objetos de uma mesma residência e o outro que rouba pessoas diferentes em um ônibus, ambos realizam uma única ação típica, “presidida por um único fim que dirige a ação e não interrompido no tempo”.
A própria dinâmica da atuação patrimonial delitiva em espaços coletivos de facilitação do maior número de ofendidos, ou seja, de fungibilidade de vítimas simultâneas, consuma-se de uma única vez. No roubo ao restaurante, antes de importar a individualidade das vítimas, o que é subtraído é o próprio estabelecimento enquanto contexto, dando o delito por consumado no instante em que os roubadores são capazes de exercer, mesmo que momentaneamente, os poderes factuais inerentes ao domínio de todo aquele conjunto de bens ilicitamente obtidos. Em outras palavras, deseja-se agredir o espaço coletivo detentor de uma pluralidade de proprietários, “quaisquer que sejam e sem a exata consciência do montante, somente para potencializar os proveitos da empreitada criminosa. Ainda, a ideia é assaltar um espaço que, por sua própria existência, permitirá, com uma única realização, alcançar uma soma significativa de bens, independentemente da individualidade proprietária”. Essa situação é nitidamente diferente daquela de um sujeito que adentra em várias casas na mesma noite ou, então, que subtrai diversos passageiros em diferentes pontos de parada de transportes públicos.
Duas questões, entretanto, devem ser sopesadas. Em primeiro lugar, há realmente uma zona limítrofe entre o concurso formal e este crime único de contexto que dificilmente será resolvido pela jurisprudência com critérios amparados na produção doutrinária. Acresce-se a isso o fato de a decisão judicial, muitas vezes, estar propositadamente afastada de construções dogmáticas precisas, buscando tão só um resultado que seja politicamente satisfatório, almejando meras justificativas aptas a sustentar a pena mais severa possível. Em segundo lugar, estes crimes únicos com pluralidade de vítimas são mais merecedores de pena do que casos de singelas subtrações individuais. Ainda que esse maior desvalor possa estar já representado na aferição das circunstâncias judiciais a amparar a definição da pena-base, mais prudente seria que se buscasse outra solução no âmbito legislativo.
A inserção legislativa dessa circunstância deverá permitir um juízo de reprovação mais severo para os casos em que o contexto no qual se desenvolveu a prática delitiva é, por sua natureza, facilitador da vulneração de uma pluralidade de patrimônio de vítimas diversas, potencializando, em razão disso, o proveito do ilícito. A pena, portanto, seve ser mais grave se a subtração ocorrer em restaurante repleto de clientes do que se é realizada após o expediente, apoderando-se somente do patrimônio do estabelecimento comercial. Assim, esse maior juízo de reprovação tem de ser mais específico que as circunstâncias judiciais do artigo 59 e menos grave do que aqueles decorrentes de causas de aumento e qualificadoras. Por isso, o instrumento mais adequado para essa finalidade parece ser a dinâmica das circunstâncias agravantes, as quais se encontram legalmente previstas nos artigos 61 e 62 do Código Penal.
A criação de uma circunstância agravante, que tenha específica aplicabilidade em crimes patrimoniais realizados em contexto de interação coletiva, traz algumas vantagens: a jurisprudência comumente atribui acréscimo punitivo menor em razão de sua ocorrência se comparado com aqueles decorrentes das causas de aumento de pena; não há uma previsão específica do quantum de acréscimo; a pena não poderá ultrapassar o limite máximo; sua aplicação está sujeita às circunstâncias preponderantes previstas no artigo 68 do Código Penal; o produto final da pena será menor se cotejado com as hipóteses de concurso, seja ele material, formal ou crime continuado.
Em síntese, cuida-se de estabelecer previsão legislativa que possa contribuir para uma resposta mais coerente e menos punitivista nessas hipóteses. A inserção de circunstância agravante teria, então, o condão de encerrar complexo problema dos crimes patrimoniais, permitindo um tratamento uniforme das subtrações de diversas vítimas num mesmo contexto fático de interação social.
Destarte, o autor em questão reconhece a dificuldade em encontrar-se critérios suficientemente objetivos para pautar a aplicação do concurso de infrações penais na hipótese em que o agente subtrai diversos patrimônios em um mesmo contexto fático. Refere, ainda, que em muitos casos as decisões judiciais pela aplicação de uma ou outra modalidade de concurso de crimes é pautada não nos critérios estritamente técnicos estabelecidos pelo direito, mas, sim, na busca de um resultado politicamente satisfatório.
Diante disso, Salvador Netto (2014) propõe, nos moldes acima expostos, a resolução do problema por outro meio que não o concurso de infrações penais, qual seja, pela previsão, pelo legislador de uma circunstância agravante a ser aplicada exclusivamente nos casos de crimes patrimoniais realizados em contexto de interação coletiva, afastando-se, dessa forma, a necessidade de discutir acerca da modalidade de concurso de crimes aplicável ao caso concreto.
Sem prejuízo de eventuais propostas de modificação legislativa como essa última sugerida por Salvador Netto (2014), é certo que este não é, no atual momento, o cenário existente no ordenamento jurídico brasileiro. Em outras palavras, a legislação não prevê solução específica para a interpretação do direito e para a aplicação da pena nos casos em que um mesmo agente pratica diversas subtrações patrimoniais, de vítimas distintas, em um mesmo contexto fático, valendo-se de violência ou grave ameaça à pessoa (não necessariamente às mesmas pessoas vítimas das subtrações).
Sendo assim, persiste o problema quanto a qual seria a solução jurídica adequada para a aplicação da lei penal ao sujeito que pratica roubos em um mesmo contexto fático, notadamente quanto à discussão acerca da existência de unidade ou pluralidade de delitos, bem como, por conseguinte, quanto à modalidade de concurso de infrações penais aplicável caso se entenda que foram praticados mais de um crime de roubo.
Não só há divergências no plano doutrinário quanto à correta solução para essa hipótese, como também há divergências entre tais posicionamentos e o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o que será melhor exposto adiante.
4 CONCURSO FORMAL ENTRE CRIMES DE ROUBO SEGUNDO O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Aqui não se pretende esgotar o tratamento do tema do concurso de crimes de roubo pelo Superior Tribunal de Justiça. Tem-se em vista, isto sim, uma análise da aplicação do instituto do concurso formal de infrações penais aos crimes de roubo pelo Superior Tribunal de Justiça, a partir do exame de precedentes recentes da referida Corte, de modo a possibilitar o seu confronto com as bases doutrinárias vistas anteriormente.
Nesse sentido, a pesquisa de julgados do Superior Tribunal de Justiça, para o presente trabalho, deu-se por meio da plataforma de busca do próprio tribunal disponível na rede mundial de computadores[8], utilizando-se das palavras-chave “concurso formal roubo”, com a aplicação do operador padrão “mesmo” e limitadamente aos precedentes que foram julgados no primeiro semestre do ano de 2020, selecionando-se os limites de datas de 01 de janeiro de 2020 a 30 de junho de 2020.
Por meio dessa pesquisa foram encontrados dezesseis julgados do Superior Tribunal de Justiça. Foram analisados, no entanto, somente aqueles que guardam estrita relação com o objeto da presente pesquisa, isto é, que versam sobre o concurso formal entre crimes de roubo, notadamente aqueles praticados contra pluralidade de vítimas em um único contexto fático.
Dessa forma, foram desprezados os julgados que nem sequer tangenciam o tema em estudo, notadamente aqueles que tratam de controvérsia jurídica diversa (como, por exemplo, sobre nulidades ou sobre a análise das circunstâncias judiciais na primeira fase da dosimetria da pena), de aplicação de modalidade distinta de concurso de infrações penais (como, por exemplo, a continuidade delitiva) ou mesmo do concurso formal entre o delito de roubo e crime diverso (como, por exemplo, o crime de corrupção de menor ou o crime de organização criminosa).
4.1 Precedentes recentes do Superior Tribunal de Justiça
Feito o corte metodológico acima descrito, foram identificados, no primeiro semestre do ano de 2020, seis julgados do Superior Tribunal de Justiça versando sobre a específica questão do concurso formal entre crimes de roubo praticados em um único contexto fático, porém contra vítimas distintas.
Assim, passa-se a expor, individualmente e conforme a ordem crescente de relevância dos resultados da pesquisa segundo o buscador do Superior Tribunal de Justiça, cada um dos precedentes identificados, apontando-se a conclusão jurídica do Superior Tribunal de Justiça em cada caso.
4.1.1 Agravo regimental no agravo em recurso especial n. 1.588.159/GO
O agravo regimental no agravo em recurso especial n. 1.588.159/GO (STJ, 2020ª, p. 1, online) foi assim ementado:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. PENA-BASE. CIRCUNSTÂNCIAS E CONSEQUÊNCIAS DO DELITO. FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA. RESTRIÇÃO DE LIBERDADE DA VÍTIMA. CONFIGURAÇÃO DA MAJORANTE. CONCURSO FORMAL DE CRIMES. OCORRÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. A análise negativa das circunstâncias do crime foi devidamente fundamentada, porquanto os réus criaram uma situação de confiança com a vítimas, para depois realizarem a conduta criminosa.
2. A valoração desfavorável das consequências do delito foi concretamente justificada, com base no alto valor dos bens roubados e o substancial prejuízo aos ofendidos.
3. A restrição de liberdade das vítimas ficou comprovada, no caso, pois, conforme destacado na sentença, um dos ofendidos ficou "cerca de vinte a trinta minutos amarrado até que os assaltantes fugissem do local levando seu veículo", tempo juridicamente relevante e suficiente para a configuração da majorante.
4. Praticado o crime de roubo em um mesmo contexto fático, mediante uma só ação, contra vítimas diferentes, tem-se configurado o concurso formal de crimes, e não a ocorrência de crime único, visto que violados patrimônios distintos. Precedentes.
5. Agravo regimental não provido.
No caso concreto, discutiu-se se a conduta praticada pelo autor do fato constituiria crime único ou pluralidade de crimes praticados em concurso formal, tendo prevalecido esta última hipótese.
Segundo narrado, foi subtraído um veículo que constituía patrimônio único de um casal (marido e mulher), bem como o telefone celular do sobrinho de dez anos de idade desse casal, que estava a passeio na residência deles.
O Superior Tribunal de Justiça afastou a caracterização de crime único na espécie, negando a pretendida presunção de que as coisas que guarneciam a residência onde se deu o delito pertenceriam ao casal, para fins de constituir patrimônio comum.
Para tanto, colacionou julgado anterior no qual a referida Corte Superior firmou entendimento no sentido de que o conceito de patrimônio na seara penal não necessariamente equivale à definição contida na esfera cível, reforçando que o direito penal tutela bens e interesses jurídicos dotados de autonomia, de forma peculiar relativamente aos demais ramos jurídicos.
Assim, concluiu-se que o número de infrações penais deve equivaler ao número de patrimônios atingidos, os quais, por sua vez, são identificados a partir do número de vítimas. No mais, salientou-se que há concurso formal entre os crimes de roubo praticados mediante uma só ação, contra vítimas diferentes, não havendo que se cogitar de crime único.
Analisando-se o teor do agravo em recurso especial n. 1.588.159/GO, o qual foi objeto do agravo regimental em testilha, verifica-se que em decorrência do concurso formal de crimes reconhecido, foi aplicado, pelo Superior Tribunal de Justiça, o sistema de exasperação da pena, correspondente ao concurso formal próprio de crimes, previsto no artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal – “por fim, aplico o aumento de 1/5, em razão do concurso formal, considerando a prática de três roubos, o que torna a pena definitivamente estabelecida em 10 anos, 9 meses e 18 dias de reclusão, mais 25 dias-multa” (STJ, 2020b, p. 7, online).
4.1.2 Agravo regimental no habeas corpus n. 443.242/MG
O agravo regimental no habeas corpus n. 443.242/MG (STJ, 2020c, p. 3, online) foi assim ementado:
PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO E CORRUPÇÃO DE MENORES. CONCURSO FORMAL. IMPOSSIBILIDADE. PLURALIDADE DE VÍTIMAS. AGRAVO DESPROVIDO.
1. Conforme a iterativa jurisprudência desta Corte, não há que se falar em crime único quando, num mesmo contexto fático, são subtraídos bens pertencentes a vítimas distintas, caracterizando concurso formal, por terem sido atingidos patrimônios diversos, nos moldes do art. 70 do Código Penal. No caso, as instâncias ordinárias constataram haver pluralidade de vítimas, conclusão esta que não é obstada pelo fato de uma das vítimas ser sócia da outra vítima, que é uma pessoa jurídica, ao que se depreende dos fatos.
2. Agravo regimental desprovido.
A discussão no caso concreto se circunscreveu à divergência quanto à existência de crime único de roubo ou de dois crimes de roubo em concurso formal para o caso em que o agente subtraiu, em um único contexto fático, bens que estavam na posse de uma só vítima, mas pertenciam a pessoas diversas, quais sejam a pessoa jurídica em cujo estabelecimento comercial se deu o roubo e a pessoa natural que lá se encontrava, que era vendedora e proprietária da empresa.
Consignou-se, no precedente em análise, que foi límpida a existência de dois crimes de roubo praticados por meio de uma única conduta, a qual caracterizada pela unidade de ação, impondo-se, portanto, o reconhecimento do concurso formal de crimes. Ressaltou-se que o patrimônio e a integridade física não são considerados bens jurídicos “coletivos”, tendo havido, isto sim, o despojamento de bens das vítimas individualmente consideradas, além do atingimento da integridade física da vítima pessoa natural.
No que concerne ao elemento subjetivo do autor do fato, salientou-se que mesmo que considerada a existência de desígnio único, a conduta teria se desdobrado em desfavor de mais de um ofendido, ocasionando a pluralidade de resultados e, logo, a pluralidade de crimes, a determinar a aplicação do concurso formal próprio de crimes.
Em verdadeira conceituação do instituto jurídico-penal, o Superior Tribunal de Justiça (STJ, 2020c, p. 6, online) asseverou que:
O reconhecimento do concurso formal próprio exige que o agente, mediante apenas uma ação ou omissão, pratique dois ou mais crimes, idênticos ou não (CP, art. 70, caput), ou seja, é necessária a presença de unidade de conduta e a pluralidade de resultados criminosos.
Ainda, caso evidenciado que a conduta dolosa do paciente deriva de desígnios autônomos, restará configurado o concurso impróprio (CP, art. 70, parágrafo único), que implica soma das penas, nos moldes do concurso material.
Conforme a iterativa jurisprudência desta Corte, não há que se falar em crime único quando, num mesmo contexto fático, são subtraídos bens pertencentes a vítimas distintas, caracterizando concurso formal, por terem sido atingidos patrimônios diversos, nos moldes do art. 70 do Código Penal. No caso, as instâncias ordinárias constataram haver pluralidade de vítimas, conclusão esta que não é obstada pelo fato de uma das vítimas ser sócia da outra vítima, que é uma pessoa jurídica, ao que se depreende dos fatos.
Em suma, foi reconhecido o concurso formal próprio entre dois crimes de roubo praticados em um único contexto, mediante conduta única e desígnio igualmente único, contra, todavia, duas vítimas distintas – tendo sido atingidos o patrimônio da ofendida pessoa jurídica e o patrimônio e a integridade física da ofendida pessoa natural.
4.1.3 Agravo regimental no recurso especial n. 1.853.865/SP
No agravo regimental no recurso especial n. 1.853.865/SP, o Superior Tribunal de Justiça manteve a decisão recorrida no que concernia à aplicação do concurso formal de crimes na espécie, consignando, apenas, quanto a isso, o seguinte (STJ, 2020d, p. 8, online):
Dessa forma, o Tribunal a quo decidiu no sentido da jurisprudência do STJ de que praticado o crime de roubo em um mesmo contexto fático, mediante uma só ação, contra vítimas diferentes, tem-se configurado o concurso formal de crimes, e não a ocorrência de crime único, visto que violados patrimônios distintos.
O caso concreto tratava da prática de dois crimes de roubo, mediante uma só ação delitiva, praticados em detrimento do patrimônio de duas vítimas distintas, consignando-se ser irrelevante o fato de serem as vítimas marido e mulher, circunstância esta que não implica o reconhecimento de crime único.
A discussão no caso sub judice se circunscreveu à divergência quanto à existência de crime único de roubo ou de dois crimes de roubo em concurso formal para o caso em que o agente subtraiu, em um único contexto fático, bens que estavam na posse de uma só vítima, mas pertenciam a pessoas diversas, quais sejam a pessoa jurídica em cujo estabelecimento comercial se deu o roubo e a pessoa natural que lá se encontrava, que era vendedora e proprietária da empresa.
Em que pese à conclusão atingida, no sentido de haver concurso formal na espécie, não foi possível, a partir dos fundamentos consignados no precedente em questão, identificar se foi aplicada, na espécie, a modalidade própria ou imprópria do concurso formal, eis que nem sequer foi feita referência quanto à incidência do sistema de exasperação ou cúmulo material das reprimendas dos delitos contra o patrimônio.
4.1.4 Habeas corpus n. 581.345/SP
No habeas corpus n. 581.345/SP, o Superior Tribunal de Justiça não conheceu do writ, sob o fundamento de que a análise das teses levantadas pela defesa demandaria o revolvimento do conjunto fático-comprobatório produzido ao longo da persecução penal, o que seria incompatível com o rito do remédio constitucional em questão. Por outro lado, concedeu a ordem de ofício para reduzir a reprimenda fixada em desfavor do paciente – com ajustes na segunda fase da dosimetria das penas.
Nesse contexto, a conclusão da instância inferior quanto à aplicação do concurso formal próprio de crimes à espécie foi mantida, nos seguintes termos (STJ, 2020e, p. 2, online):
(...) 6. Conforme a iterativa jurisprudência desta Corte, não há que se falar em crime único quando, num mesmo contexto fático, são subtraídos bens pertencentes a vítimas distintas, caracterizando concurso formal, por terem sido atingidos patrimônios diversos, nos moldes do art. 70 do Código Penal.
7. Se as instâncias ordinárias entenderam, com base em elementos dos autos, que a conduta delitiva atingiu três patrimônios distintos, para infirmar tal conclusão, seria necessário revolvimento do conjunto fático-comprobatório produzido no curso da persecução penal, o que não se mostra viável em sede de habeas corpus.
8. Writ não conhecido. Ordem concedida, de ofício, a fim de reduzir a reprimenda imposta ao paciente para 8 anos, 5 meses e 18 dias de reclusão, mais o pagamento de 18 dias-multa.
Na espécie, o caso analisado versava sobre a prática de dois roubos mediante uma única ação delitiva, com o atingimento de dois patrimônios distintos. Com isso, foi aplicado o concurso formal entre os crimes de roubo, com a incidência do sistema de exasperação da pena, o que foi mantido pelo Superior Tribunal de Justiça, em razão de não ter sido evidenciada flagrante ilegalidade nesse ponto.
Ao tratar do acerto da conclusão pela aplicação do concurso formal de crimes, o acórdão analisado colacionou precedentes da Corte sobre o tema, reforçando o seguinte (STJ, 2020e, p. 14, online)
(...) A jurisprudência desta Corte Superior é firme em assinalar que, "atingidos os patrimônios individuais de vítimas distintas mediante uma única ação (desdobrada em vários fatos), não há falar em crime único, mas sim em vários crimes em concurso formal próprio." (AgRg no REsp n. 1.189.138/MG, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., DJe 21/6/2013)
Assim, no entendimento do Superior Tribunal de Justiça, há concurso formal próprio de crimes (artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal) quando o agente pratica vários crimes, atingindo patrimônios individuais de vítimas distintas, mediante a prática de uma única ação desdobrada em vários fatos.
4.1.5 Agravo regimental no agravo em recurso especial n. 1.643.848/PR
O agravo regimental no agravo em recurso especial n. 1.643.848/PR foi assim ementado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ, 2020f, p. 1, online):
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. SUBTRAÇÃO DE PATRIMÔNIOS DIVERSOS. MESMO CONTEXTO FÁTICO. CONCURSO FORMAL PRÓPRIO. CARACTERIZAÇÃO. AGRAVO DESPROVIDO.
1. Entende-se caracterizado o concurso formal próprio quando ocorre subtração de bens, mediante uma só ação, num mesmo contexto fático, contra vítimas diversas, alcançando patrimônios diferentes. Precedentes.
2. No caso dos autos, a Corte de origem entendeu acerca da caracterização do concurso formal próprio, considerando a subtração ocorrida no mesmo momento, atingindo vítimas e patrimônios diversos.
3. A alteração das conclusões apresentadas pelo Tribunal estadual ensejaria o vedado revolvimento de fatos e provas, inviável na via especial, nos termos do óbice da Súmula n.7/STJ.
4. Agravo regimental desprovido
No caso sub judice, os agentes executores do crime do artigo 157 do Código Penal ingressaram em um restaurante, onde, mediante grave ameaça, subtraíram bens de diversas pessoas que se encontravam no local.
O Superior Tribunal de Justiça entendeu que a solução dada ao caso concreto pela Corte de origem se mostrou harmônica com a jurisprudência da Corte Superior, mantendo a aplicação do concurso formal próprio de crimes na espécie.
O ponto central da controvérsia residiu, justamente, na análise acerca da unidade ou pluralidade de desígnios dos agentes na subtração de diversos patrimônios pertencentes a vítimas distintas, para o fim de aplicar, respectivamente, o concurso formal próprio ou impróprio de crimes.
Nessa senda, consignou-se que (STJ, 2020f, p. 6-7, online):
No que se refere ao pretenso afastamento do concurso formal perfeito, disposto na primeira parte do art. 70 do CP, ao acolher o pleito defensivo para sua aplicação, a Corte estadual considerou que haveria unidade de desígnios na subtração dos diversos patrimônios, não havendo distinção da vontade para cada uma das subtrações.
No apelo interposto, explicitou o Tribunal recorrido, in verbis:
"Por outro lado, desde já acolho o pedido de reconhecimento de concurso formal próprio, insculpido no artigo 70, primeira parte, do Código Penal, tendo em vista que não restou demonstrado nos autos que os apelantes tivessem desígnios autônomos (caráter volitivo) no momento dos fatos, consistente em subtrair os bens individualmente de cada um dos clientes; havia na verdade unidade de desígnio, consistente na subtração do dinheiro em espécie presente no caixa do estabelecimento comercial; os bens subtraídos dos clientes, lá presentes, decorreram da conveniência e oportunidade do momento.
Nas palavras de Eugênio Pacelli, "desígnios autônomos, portanto, significa autonomia dos resultados desejados, produzidos segundo a vontade prévia e deliberada do agente".
Nesta senda, não restou nos autos demonstrada a vontade prévia e deliberada dos apelantes em subtrair os patrimônios do estabelecimento comercial e dos clientes.
Repito que a subtração dos bens dos clientes descritos na peça acusatória decorreu da conveniência e oportunidade do momento." (e-STJ fls. 1.095/1.116)
Nos aclaratórios opostos pelo Parquet explicitou que "Enquanto no concurso material a pluralidade de delitos é vista de forma autônoma, como se não houvesse entre as condutas nenhuma espécie de vinculo, no concurso formal, pelo contrário, há unidade de ação, pois mediante uma ação houve dois ou mais resultados típicos e o vínculo que os conecta é justamente a ação única."
Pontuou, "No que tange as formas de concurso formal, a caracterização do concurso formal impróprio ou imperfeito exige a inequívoca demonstração da existência de desígnios autônomos, isto é, de que o agente previa e queria desde o princípio os resultados ao final alcançados."
Ressaltou que "os aqui embargados mediante uma única conduta e no mesmo contexto fático, portanto, com o mesmo desígnio, atingiram cinco patrimônios distintos, logo não há que se falar em crimes resultantes de desígnios autônomos."
E concluiu que "restou sobejamente demonstrado que os embargados, no mesmo contexto fático, com unidade de desígnio, acabaram por lesar cinco patrimônios distintos." (e-STJ fls. 1.215/1.218)
Sobre o assunto, a jurisprudência deste Sodalício possui o entendimento de que está configurado o concurso formal quando o crime de roubo é praticado mediante uma só ação, contra vítimas distintas, uma vez que atingidos patrimônios diversos.
Em seguida, o Superior Tribunal de Justiça colacionou diversos precedentes da Corte no mesmo sentido que o entendimento prevalecente na espécie, como o seguinte, no que toca à aplicação do concurso formal próprio de crimes (STJ, 2020f, p. 9, online):
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ROUBO. MAJORANTE. ARMA BRANCA. PENA-BASE. VALIDADE. PATRIMÔNIOS INDIVIDUAIS. VÍTIMAS DIVERSAS. CONCURSO FORMAL. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. Nos termos do entendimento firmado por esta Corte Superior, o uso de arma branca, embora não mais se configure majorante do crime de roubo, poderá ser utilizado para a exasperação da pena-base, sem que tal proceder configure violação do princípio da ne reformatio in pejus, desde que a sanção final não seja maior que a fixada na sentença condenatória.
2. A jurisprudência desta Corte Superior é firme em assinalar que, "atingidos os patrimônios individuais de vítimas distintas mediante uma única ação (desdobrada em vários fatos), não há falar em crime único, mas sim em vários crimes em concurso formal próprio." (AgRg no REsp n. 1.189.138/MG, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., DJe 21/6/2013).
3. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp 1822415/MG, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 22/10/2019, DJe 29/10/2019)
Concluiu-se, por fim, que “ na hipótese, a Corte de origem entendeu em harmonia com o entendimento deste Sodalício e, portanto, não há como modificar o decidido” (STJ, 2020f, p. 9, online).
Prevaleceu, portanto, o entendimento reiterado pelo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que resta configurado o concurso formal próprio entre crimes de roubo praticados em um mesmo contexto delitivo, mediante ação única, quando são atingidos patrimônios diversos, pertencentes a vítimas distintas, entendendo-se que, nesse caso, há desígnio único por parte do roubador.
4.1.6 Agravo regimental no agravo em recurso especial n. 1.651.955/GO
O Agravo regimental no agravo em recurso especial n. 1.651.955/GO foi assim ementado (STJ, 2020g, p. 1, online):
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ROUBO MAJORADO. CONCURSO FORMAL. CARACTERIZAÇÃO. ATINGINDO BEM PESSOAL DE UMA DAS VÍTIMAS, ALÉM DO PATRIMÔNIO COMUM DO CASAL, EM UMA MESMA AÇÃO. CARACTERIZAÇÃO DO CONCURSO FORMAL DE DELITOS. AGRAVO PROVIDO PARA, CONHECENDO DO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL, DAR PROVIMENTO AO RESP.
1. Estando delineada a moldura fática nos autos, afasta-se a incidência da Súmula 7/STJ.
2. Tendo o roubo atingido, além do patrimônio comum de duas vítimas casadas, proprietárias de estabelecimento comercial, também bens pessoais, é imperioso reconhecer-se o concurso formal de delitos. Precedentes.
3. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, não há falar em crime único quando, em um mesmo contexto fático, são subtraídos bens pertencentes a pessoas diferentes, ainda que da mesma família, incidindo, na espécie, a regra prevista no art. 70, primeira parte, do CP.
4. Agravo regimental provido para, conhecendo do agravo em recurso especial, dar provimento ao recurso especial, a fim de restabelecer a sentença condenatória.
Na origem, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás havia entendido pela existência de um único delito de roubo na espécie, uma vez que, independentemente de ter a grave ameaça sido exercida contra todas as pessoas presentes na ocasião, a subtração teria atingido apenas o patrimônio comum pertencente a um casal, proprietário do estabelecimento comercial no qual se deu a ação delitiva.
O Superior Tribunal de Justiça, no entanto, asseverou que “embora se trate de vítimas casadas, o roubo atingiu bens pessoais, consistentes no veículo de uma delas, além dos valores em espécie do caixa da Panificadora, não alcançando apenas o patrimônio comum do casal, portanto” (STJ, 2020g, p. 5, online).
Assim, entendeu, a Corte Superior, pela prevalência do concurso formal próprio de crimes na espécie, reforçando que (STJ, 2020g, p. 5, online):
Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, não há falar em crime único quando, em um mesmo contexto fático, são subtraídos bens pertencentes a pessoas diferentes, ainda que da mesma família, incidindo, na espécie, a regra prevista no art. 70, primeira parte, do CP.
Diante disso, concluindo pela necessidade de aplicação do concurso formal próprio de crimes na espécie, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, deu provimento ao agravo regimental para, conhecendo do agravo em recurso especial, dar provimento ao recurso especial.
4.2 Entendimento do Superior Tribunal de Justiça extraído dos precedentes analisados
A partir da análise dos precedentes acima, é possível concluir que o Superior Tribunal de Justiça, de forma uníssona, tem aplicado o concurso formal próprio de crimes para a hipótese em estudo, isto é, nos casos em que a conduta delitiva subsumível ao artigo 157 do Código Penal (crime de roubo) é praticada em um único contexto fático, mediante uma conduta única – ainda que fracionável em diferentes atos ou movimentos corpóreos –, porém em desfavor de patrimônios distintos, pertencentes a vítimas igualmente diversas.
Assim, por se inserir, o roubo, no Título dos crimes contra o patrimônio do Código Penal, ainda que atingido concomitantemente outro bem jurídico (qual seja, a incolumidade física ou a liberdade individual), o critério no qual se pauta o Superior Tribunal de Justiça para identificar o número de delitos praticados é, efetivamente, o número de patrimônios distintos violados, independentemente do número de vítimas da violência ou grave ameaça.
Logo, havendo pluralidade de patrimônios e, logo, de vítimas, tem-se, igualmente, uma pluralidade de crimes patrimoniais, em número equivalente ao dos patrimônios atingidos.
Neste ponto, insta consignar o reiterado entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o conceito de patrimônio adotado na esfera penal não necessariamente coincide com o conceito de patrimônio na seara cível, de modo que caso as vítimas sejam casadas e constituam uma única família, não se deve considerar a existência de um único patrimônio comum e, logo, de crime único de roubo. Ao contrário, as vítimas devem ser consideradas individualmente, entendendo-se que os bens subtraídos consubstanciam patrimônio próprio de cada uma delas. Tem-se, dessa forma, a pluralidade de delitos também nesse caso.
Por outro lado, sem prejuízo da conclusão pela existência de pluralidade de delitos, o Superior Tribunal de Justiça adota o pressuposto de que há uma conduta única do agente quando os roubos são praticados em um único contexto, ainda que para a subtração dos bens pertencentes a vítimas (e patrimônios) diversos haja realizado múltiplos movimentos corpóreos. Em verdade, esses movimentos individuais consubstanciam atos integrantes de uma única conduta global.
Em razão de existir uma única conduta para a execução de diversos crimes de roubo em um único contexto, o Superior Tribunal de Justiça conclui pela necessária configuração do concurso formal de crimes, na medida em que o agente, mediante conduta única, pratica mais de um crime.
Por fim, dentre as espécies de concurso formal contempladas no Código Penal, o Superior Tribunal de Justiça reiteradamente aplica o concurso formal próprio (artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal) para a hipótese em análise, fazendo incidir, por conseguinte, o sistema de exasperação das reprimendas.
Fazendo isso, o Superior Tribunal de Justiça entende que, não obstante o agente direcione sua conduta a diversas pessoas, subtraindo bens pertencentes a patrimônios distintos, há desígnio único, e não desígnios autônomos, relativamente a cada um dos crimes de roubo praticados.
Em suma, entende, o Superior Tribunal de Justiça, que se aplica o concurso formal próprio de crimes, com o sistema da exasperação da pena, aos múltiplos crimes de roubo praticados contra vítimas (e, logo, patrimônios) distintos em um único contexto fático, mediante uma só conduta.
Consigne-se que, não obstante tenham sido analisados apenas os julgados relevantes sobre o tema do primeiro semestre do ano de 2020, por diversas vezes o Superior Tribunal de Justiça, nos precedentes analisados, ao exarar o seu entendimento, colacionou julgados anteriores da Corte no mesmo sentido, indicando tratar-se de entendimento consolidado. Além disso, a partir dos precedentes analisados, verifica-se a comunhão de entendimento entre as Quinta e Sexta Turmas do Superior Tribunal de Justiça, as quais são encarregadas de deliberar sobre a matéria penal na referida Corte[9].
Esse entendimento, todavia, não necessariamente guarda correspondência com as premissas estabelecidas pela doutrina, como se verá adiante.
5 APROXIMAÇÃO ENTRE A TEORIA E A PRÁXIS: CONFRONTO ENTRE AS BASES DOUTRINÁRIAS E A JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Estabelecidas as bases doutrinárias para a compreensão do instituto do concurso formal de crimes (Capítulos 1 e 2) – bem como do concurso entre crimes de roubo (Capítulo 3) – e analisada a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o concurso formal entre crimes de roubo (Capítulo 4), cumpre, aqui, confrontar essas duas concepções, isto é, a teoria e a prática (ou práxis).
Para tanto, serão feitas considerações sobre o conceito de política criminal e sua relevância, ao lado da dogmática penal, na aplicação do direito, bem como sobre o método interpretativo teleológico, a fim de determinar a observância da finalidade da lei pelo aplicador do direito no momento da subsunção do fato à norma jurídica. Na sequência, a partir dessas premissas, será feito o confronto entre as bases doutrinárias e a jurisprudência sobre o tema em estudo, isto é, o concurso formal entre crimes de roubo.
A relevância dessa operação comparativa reside na criação de consciência, por parte do aplicador do direito, acerca das justificativas teóricas e de política criminal das operações subsuntivas frequentemente realizadas pelo Superior Tribunal de Justiça na aplicação do instituto do concurso formal aos crimes de roubo, de modo a permitir uma visão crítica acerca dessa aplicação do direito aos casos concretos no quotidiano forense.
5.1 Noções de política criminal e dogmática jurídica
A dogmática jurídica, nas palavras de Reale (1991, p. 318-319), corresponde ao momento culminante em que o jurista se eleva ao plano teórico dos princípios e conceitos gerais indispensáveis à interpretação, construção e sistematização dos preceitos e institutos de que se compõe o ordenamento jurídico.
Em outras palavras, Reale (1991, p. 320) assevera que o jurista, quando interpreta um texto e tira conclusões, coordenando-se e sistematizando-se, segundo princípios gerais, visa ao problema da aplicação. É nesse trabalho que consiste principalmente a Dogmática Jurídica.
Discorrendo sobre a importância da dogmática para o direito, Reale (1991, p. 322) assenta que:
Devemos evitar, na Ciência Jurídica, tanto os males da formalização que se aliena da experiência, como os do casuísmo que a pulveriza e estiola. Nada nais pernicioso do que reduzir a jurisprudência a comentários de leis. Os comentários deixam-nos no vestíbulo da Dogmática Jurídica. A Ciência do Direito somente se revela como ciência madura quando as interpretações dos artigos completam-se através de uma visão unitária de todo o sistema. É por essa razão que os grandes comentarias, como Clóvis Beviláqua, antes de entrar na apreciação articular de cada regra de direito, cuidam dos princípios gerais que as condicionam. Realizam, assim, um trabalho de Dogmática, que, de certa maneira, faz lembrar o da Geometria das ciências éticas, visto como construímos e desdobramos conseqüências, partindo de certos textos ou pressupostos, contidos nas regras de direito, assim como os geômetras elaboram a sua ciência partindo de axiomas e postulados.
Basicamente, constituem dogmática penal as bases doutrinárias estudadas nos Capítulos 1, 2 e 3 deste trabalho, na medida em que se explorou os entendimentos teóricos de penalistas acerca do concurso de crimes, concurso formal de crimes e crime de roubo.
Por outro lado, também segundo Reale (1991, p. 327-328), a “Política do Direito” representa, por assim dizer, o ponto de interseção entre a Política e o Direito. E continua dizendo que se a Política ou Ciência Política, em geral, visa à realização dos fins da comunidade através da ação do Estado e de outros centros de poder, a Política do Direito indaga das formas e outros meios jurídicos mais adequados à consecução daqueles fins.
Mais especificamente no âmbito do direito penal, fala-se em “política criminal”. Assim, Shecaira (2004, p. 41-42) conceitua a política criminal nos seguintes termos:
A política criminal é uma disciplina que oferece aos poderes públicos as opções científicas concretas mais adequadas para controle do crime, de tal forma a servir de ponte eficaz entre o direito penal e a criminologia, facilitando a recepção das investigações empíricas e sua eventual transformação em preceitos normativos. Assim, a criminologia fornece o substrato empírico do sistema, seu fundamento cientifico. A política criminal, por seu turno, incumbe-se de transformar a experiência criminológica em opções e estratégias concretas assumíveis pelo legislador e pelos poderes públicos. O direito penal deve se encarregar de converter em proposições jurídicas, gerais e obrigatórias o saber criminológico esgrimido pela política criminal. Assim, a diferença entre a política criminal e criminologia é que aquela implica as estratégias a adotarem-se dentro do Estado no que concerne à criminalidade e a seu controle; já a criminologia converte-se, em face da política criminal, em uma ciência de referência, na base material, no substrato teórico dessa estratégia.
A política criminal, pois, não pode ser considerada urna ciência igual à criminologia e ao direito penal. É uma disciplina que não tem um método próprio e que está disseminada pelos diversos poderes da União, bem como pelas diferentes esferas de atuação do próprio Estado (...). Evidentemente que o Poder Legislativo implementa politicas criminais. Faz isso todos os dias, especialmente por estar pressionado pela própria mídia. Da mesma forma, os operadores do direito e, em especial, aqueles do Poder Judiciário fazem suas políticas criminais em decisões cotidianas. Ainda que busquem fundamentos intradogmáticos, não deixam de atender "às boas razões de política criminal" para absolverem com fundamento nos princípios da insignificância ou da adequação social. Enfim, a constatação científica pela criminologia de que não se deve usar a prisão e o próprio sistema punitivo, posto que instâncias criminógenas é que motivam os operadores do direito à utilização da chamada política criminal em seu cotidiano.
A partir do conceito exposto, é possível delimitar a compreensão da política criminal enquanto a adoção de opções e estratégias concretas para o controle do crime, a partir do substrato empírico do sistema fornecido pela criminologia.
É importante notar que a política criminal é desenvolvida e aplicada não apenas pelo legislador, no momento da feitura das leis – notadamente as normas penais incriminadoras –, mas também pelo Poder Judiciário, quando da subsunção dos casos concretos às disposições normativas gerais e abstratas, de modo que a política criminal adotada pelo julgador influencia, direta ou indiretamente, no resultado do julgamento e, consequentemente, no quantum da pena aplicada ao delinquente.
No que concerne à relevância da consideração das bases dogmáticas para a elaboração e aplicação das políticas criminais, Pascolati Junior (2019, p. 201) defende que:
A dogmática jurídico-penal que possui, dentre suas finalidades, interpretar e sistematizar determinada realidade social ou valores da sociedade, não pode ser vista de modo asséptico e neutro, vale dizer, sem os princípios orientadores da política criminal, sob pena da própria dogmática ser utilizada de maneira formal, estéril e desviada. Por outro lado, a política criminal também não pode ser considerada de forma isolada, sem as garantias estabelecidas pela dogmática – esta na busca de critérios de legitimação do direito positivo –, na medida em que, se assim fosse, qualquer modelo de Estado encontraria suporte e legitimação. Não basta, assim, tão-somente, a análise técnica-jurídica do comportamento humano do ponto de vista dogmático, posto que, em atenção ao modelo de Estado vigente, é mister que as expectativas sociais em torno de determinada conduta sejam valoradas e consideradas. Portanto, é necessário um sincretismo, uma inter-relação entre política criminal e dogmática e, por que não, da criminologia, afim de que os problemas oriundos dos comportamentos humanos sejam analisados e compreendidos aos olhos da ciência penal para, posteriormente, se for o caso, o Estado poder aplicar a reprimenda penal.
No mesmo sentido, versando sobre a importância de alinhar a política criminal ao direito posto, Von Liszt (2006, p. 105) aduz que:
Sem o perfeito conhecimento do direito vigente em todas as suas ramificações, sem completa posse da technica da legislação, sem o rigoroso freio do raciocínio lógico jurídico, a política criminal degenera em um racionalismo estéril a fluctuar desorientado sobre as ondas. Por outro lado, o direito penal perde-se em um formalismo infecudo e estranho à vida, si não for penetrado e guiado pela convicção de que o crime não é somente uma idéia, mas um facto do mundo dos sentidos, um facto gravíssimo na vida assim do indivíduo como da sociedade’que a pena não existe por amor dela mesma, mas tem o seu fundamento e o seu objetivo n proteção de interesses humanos. Sem uma sciencia do direito penal voltada para a vida e ao mesmo tempo adstricta ao rigor das formas, a legislação penal converte-se em um jogo das opiniões do dia não apuradas, e a administração da justiça em um officio exercido com tédio. É somente da sciencia que o direito penal e a administração da justiça recebem a força vivificadora.
Por outro lado, Roxin (2006, p. 64) alerta para três problemas envolvendo a adoção de uma concepção político-criminal no âmbito do pensamento sistemático jurídico-penal: a concepção seria, primeiramente, muito indeterminada, possibilitaria em segundo lugar o arbítrio estatal e, por fim, seria estranha ao direito positivo ou à sua dogmática e sistemática.
Após discorrer sobre os dois primeiros problemas apontados, envolvendo o alto grau de indeterminação da ideia de política criminal, a ensejar certa insegurança jurídica, e o risco que tal concepção propicia de que sejam, em nome da política criminal, perpetrados arbítrios estatais, Roxin (2006, p. 67-68) conclui o seguinte acerca do terceiro problema ou crítica envolvendo a concepção de política criminal:
A terceira crítica, por fim, fundamenta-se na tese de que o direito penal e a política criminal seriam disciplinas diversas, que nada têm a ver uma com a outra ou que se encontram mesmo em uma relação antagônica, o que é expressado na conhecida frase de Liszt: "O direito penal é a barreira intransponível da política criminal".
O que isso tem de correto é que a dogmática jurídico-penal só trata de um setor limitado da política criminal. O foco desta é a legislação — ou seja, encontra-se fora da ciência do direito em sentido estrito — e o direito das sanções. De resto, a tese de Liszt baseia-se na premissa mais própria de uma jurisprudência de conceitos, segundo a qual a tarefa da ciência do direito penal se limita a "compreender, numa abordagem estritamente técnico-jurídica, o crime e a pena como generalizações conceituais". O fato é, porém, que a ciência do direito penal tem de partir das decisões político-criminais do legislador — que, obviamente, só podem ser acolhidas na lei de modo bastante genérico —, concretizá-las e desenvolvê-las até seus detalhes. O dogmático do direito penal é, assim, quem auxilia o legislador a realizar a sua intenção, quem tem de levar adiante as idéias básicas deste e quem tem de chegar a conclusões que correspondem à sua vontade, sem que o legislador as tenha conscientemente visto. Fidelidade à lei e criatividade dogmática e político-criminal não se excluem de modo algum.
Dessa forma, denota-se que a principal relação entre a política criminal e a dogmática jurídico-penal consiste no papel desempenhado por esta última de compreender as decisões político-criminais do legislador, transpostas na lei, a fim de, com base nelas, traçar as bases para a correta compreensão da finalidade da lei, o que permite a melhor aplicação do direito penal pelo intérprete.
No mesmo sentido, Luís Greco (2019, p. 25-27) ressalta a importância da ciência do direito na extração dos fundamentos concretos de legitimação da pena do direito positivo:
Mas e quanto aos termos “decisões valorativas do legislador” e “decisões judiciais”, que nós usamos sem preocupação? Nós não enxergamos no direito, acima de tudo, voluntas, auctoritas, e não ratio, veritas? Talvez o voluntarismo positivista, o qual muitos cientistas do direito declaram subscrever, tenha conseguido, impercebido, penetrar na linguagem da disciplina. No entanto, parece significativo que nós não demos aos atos dos juízes enquanto juízes o mero nome de decisão, senão também de julgamento ou juízo; no passado, falava-se em conhecimento ou veredito. Diante de decisões, o afetado se curva enquanto mais fraco; diante da verdade, ele a reconhece enquanto ser racional.
Com isso, parece evidente haver uma relação, talvez singular em termos teórico-científicos, entre a ciência jurídica e o seu objeto, o direito. Seria, é verdade, exagerado afirmar que a ciência do direito produz seu objeto. No entanto, certamente, essa afirmação tem algo de correto: por faltar qualquer poder à ciência do direito enquanto ciência, já que opera apenas na esfera das razões, ela contribui para a juridicidade do direito. Que o legislador tenha o poder de criar leis, e o juiz de tomar decisões, essa ciência toma como fato. Mas é a ciência do direito que, no seu cotidiano, coloca à prova a pretensão, implicitamente existente, de que esses atos sejam mais do que simples atos de poder. A ciência do direito, portanto, como um “quarto poder” impotente, vigia se as atividades dos outros três poderes potentes se sustentam em razões. Ela não pratica essa vigilância por meio de força corporal, senão racional, a fim de que essas razões também suportem seus resultados. Ela obriga o poderoso a prestar contas de suas decisões e o denuncia quando as razões indicadas por ele, na verdade, são uma racionalização insincera. A ciência do direito é, portanto, a ciência da distinção entre direito e poder.
Essa sua tarefa diferenciadora tem ainda mais importância no direito penal. A pena é o instrumento mais odioso e violento do poder. A ela é inerente uma colisão entre a poderosa ordem jurídica e o impotente indivíduo. Justamente por isso, ela é extremamente carente de justificação e, na melhor das hipóteses, passível disso. Uma pena tem que poder satisfazer a exigência de respeitar o seu destinatário como ser racional. Muitos dos tradicionais princípios do direito penal são possivelmente deduzidos dessa exigência – dentre outros: o princípio de que o direito penal deve atuar para a segurança das condições de uma vida conjunta pacífica, ou seja, que deve servir à proteção de bens jurídicos; o princípio de que a pena pressupõe uma cominação legal prévia, ou seja, o princípio do nullum crimen, nulla poena; e o princípio de que nenhuma pena deve ultrapassar a medida do merecimento, o chamado princípio da culpabilidade. Esses princípios da legitimação da pena – que podem ser resumidos sob o termo política-criminal – não podem permanecer no campo das abstrações não vinculantes, que são assunto das seções introdutórias dos manuais jurídicos, mas devem ser projetados sobre as concretas conclusões que se extraem do direito positivo.
Diante disso, a partir da ideia de construção do sentido do direito a ser aplicado concretamente com base nas premissas fixadas pelo legislador no direito positivo, surge o método da interpretação teleológica ou finalística, o qual será melhor explorado a seguir.
A esse respeito, registre-se, por fim, a consideração feita por Reale (1991, p. 320) no sentido de que enquanto que no plano das ciências físico-matemáticas esgota-se a tarefa científica na pura explicação, nos domínios jurídicos qualquer posição teórica é um momento de ação a ser desenvolvida visando à consecução dos fins objetivados na e pela regra de direito. Deve o intérprete do direito, em outras palavras, objetivar, sempre, a concretização dos fins visados pela ordem jurídica posta.
5.2 Interpretação teleológica
Novelino (2018), tratando do processo interpretativo teleológico-objetivo proposto por Ihering, refere que segundo tal método, as normas jurídicas devem ser interpretadas com base na finalidade contida no texto normativo. Assim, com base no método teleológico, é possível perquirir os fins pretendidos pela norma jurídica e, a partir daí, interpretar a norma à luz do caso concreto da forma que melhor atenda a essa finalidade.
Ráo (1977, p. 494) assim conceitua o método teleológico:
O método teleológico considera o direito como uma ciência finalística e daí o considerar o fim desejado pelas normas jurídicas como o meio mais hábil para a descoberta do sentido e do alcance dos preceitos jurídicos normativos, meio que permite ao jurista as aplicações diversas e sucessivas de que a fórmula é suscetível. Não indica, entretanto, quais os meios para se fixar, com precisão, o fim visado pelas normas jurídicas, nem quais as causas destas normas.
Aprofundando o tema, Reale (1991, p. 286-287) explica que:
A compreensão finalística da lei, ou seja, a interpretação teleológica veio se afirmando, desde as contribuições fundamentais de Rudolph von Jhering, sobretudo em sua obra O Fim no Direito. Atualmente, porém, após os estudos de teoria do valor e da cultura, dispomos de conhecimento bem mais seguro sobre a estruturadas regras de direito, sobre o papel que o valor nela representa: o fim, que Jhering reduzia a uma forma de interesse, é visto antes como o sentido do valor reconhecido racionalmente enquanto motivo determinante da ação.
Fim da lei é sempre um valor, cuja preservação ou atualização o legislador teve em vista garantir, armando-o de sanções, assim como também pode ser fim da lei impedir que ocorra um desvalor. Ora, os valores não se explicam segundo nexos de causalidade, mas só podem ser objeto de um processo compreensivo que se realiza através do confronto das partes com o todo e vice-versa, iluminando-se e esclarecendo-se reciprocamente, como é próprio do estudo de qualquer estrutura social.
Nada mais errôneo do que, tão logo promulgada uma lei, pinçarmos um de seus artigos para aplica-lo isoladamente, sem nos darmos conta de seu papel ou função no contexto do diploma legislativo. Seria tão precipitado e ingênuo como dissertarmos sobre uma lei, sem estudo de seus preceitos, baseando-nos em sua ementa...
Estas considerações iniciais visam pôr em realce os seguintes pontos essenciais:
a) toda interpretação jurídica é de natureza teleológica (finalística) fundada na consistência axiológica (valorativa) do Direito;
b) toda interpretação jurídica dá-se numa estrutura de significações, e não de forma isolada;
c) cada preceito significa algo situado no todo do ordenamento jurídico.
Logo, com base nos conceitos expostos, é possuir concluir que a interpretação teleológica das normas jurídicas é aquela que tem em vista a finalidade buscada pela lei. Desse modo, deve, o intérprete, analisando o ordenamento jurídico globalmente considerado, extrair o fim visado pela lei ao dispor desta ou daquela forma – ao invés de simplesmente considerar um dispositivo legal isoladamente e de forma desconexa relativamente ao contexto normativo no qual se insere – e, com base nessa finalidade objetivada pelo direito, identificar a solução adequada ao caso concreto.
O uso desse método pelo intérprete é indicado em razão da necessidade de observar, especialmente na seara penal, as bases e os limites impostos pela norma jurídica positivada, tendo em vista que ela é editada pelo Poder Legislativo, o qual é composto de representantes democraticamente eleitos pela população e, nessa senda, refletidores dos anseios e valores da sociedade, que é, por sua vez, a própria destinatária das leis.
Assim, ainda que se questione, como acima citado na conceituação de Ráo (1977), quais seriam os meios adequados à perseguição e identificação da finalidade da lei, é certo que o trabalho atualmente feito pela dogmática, mediante a análise da norma jurídica enquanto parte de um todo, que é o ordenamento jurídico, buscando uma solução que harmonize o conjunto das disposições legais, é o método mais consentâneo com a busca pela fidelidade aos objetivos traçados pelo direito posto, tal como delineado, acima, por Reale (1991).
Precisamente sobre o papel desempenhado pelo método interpretativo teleológico na atividade da dogmática jurídico-penal, Robles Planas (2016, p. 23) discorre que:
(...) a dogmática jurídico-penal, em sua tarefa de explicação de conceitos, opera, em primeiro lugar, identificando os fenômenos da realidade (análise) com conteúdo de sentido próprio, para, posteriormente, submetê-lo a um processo de abstração conceitual – marcado pelo valorativo e pelo teleológico – no qual se depuram os elementos relevantes e se obtém uma definição. Finalmente, gera-se uma denominação, isto é, uma fórmula linguística que se utilizará no futuro para referir-se à definição anterior.
Daí resultar a importância da atividade desenvolvida pela dogmática jurídico-penal, enquanto responsável pela conceituação dos institutos trazidos pela lei penal a partir da análise dos fins visados pela lei, tendo em vista o ordenamento jurídico globalmente considerado.
É justamente por essa razão que se mostra relevante o diálogo entre as bases doutrinárias, estabelecidas pela dogmática jurídico-penal nessa aprofundada análise teleológica dos institutos penais, e o aplicador do direito, notadamente o Poder Judiciário, ao interpretar a lei penal a fim de aplica-la ao caso concreto.
5.3 Confronto entre as bases doutrinárias e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça relativamente à aplicação do concurso formal entre crimes de roubo
Conforme estudado no Capítulo 2 deste trabalho, o concurso formal próprio de crimes, tal como delineado no artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal, segundo a dogmática jurídico-penal, foi desenvolvido com a finalidade de beneficiar o autor do fato delitivo.
Isso porque, não obstante haja a prática de mais de um resultado típico pelo sujeito, não se aplicam as reprimendas de cada um dos delitos consumados de forma cumulativa, mas, sim, aplica-se apenas uma das penas – a mais grave delas, se distintas, ou qualquer uma delas, se iguais –, majorada de um sexto até a metade, adotando-se, assim, o sistema de exasperação da pena.
A hipótese autorizadora da incidência dessa consequência jurídica estabelecida pela lei penal não difere, quanto ao resultado típico produzido, daquela hipótese prevista no artigo 69, caput, primeira parte, do Código Penal, o qual trata do concurso material de infrações penais, eis que, em ambos os casos, o agente pratica dois ou mais crimes.
O que difere, em verdade, as referidas modalidades de concursos de crimes entre si é o fato de que no concurso material de infrações penais o sujeito pratica os delitos mediante uma pluralidade de condutas distintas, isto é, mais de uma ação ou omissão, enquanto no concurso formal de crimes os resultados delitivos produzidos são oriundos de uma única conduta.
Diante disso, investigando as razões de política criminal que levaram à disciplina das modalidades de concurso de crimes de tal forma, bem como as finalidades almejadas pela lei penal ao traçar a referida distinção, a doutrina estabelece que a razão que, axiologicamente, justifica o tratamento distinto dispensado a tais modalidades de concursos de crimes é a menor reprovabilidade da conduta daquele que incorre no artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal, do que aquela da conduta do sujeito que incide no artigo 69, caput, primeira parte, do Código Penal.
No entanto, isso não se deve ao fato de que o agente objetivamente pratica apenas uma ou mais condutas para a consecução dos resultados delitivos. Diversamente, o maior ou menor grau de reprovabilidade da conduta reside no elemento subjetivo que animou a sua conduta, o que fica nítido diante da diferente consequência jurídica dada pela lei ao concurso formal impróprio de crimes.
Em outras palavras, caso a conduta seja dotada de maior reprovabilidade em razão do elemento subjetivo do autor do fato, ainda que ele tenha praticado dois ou mais crimes mediante uma única conduta, o agente não será beneficiado pelo sistema de exasperação da pena estabelecido no artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal, que cuida do concurso formal próprio de crimes, mas, sim, receberá a aplicação cumulativa das reprimendas de todos os delitos praticados, tal qual ocorre no concurso material de crimes (artigo 69, caput, primeira parte, do Código Penal), que é o que prevê o artigo 70, caput, segunda parte, do Código Penal, o qual prevê o concurso formal impróprio de crimes.
Nessa sequência de ideias, note-se que o que distingue o concurso formal próprio do concurso formal impróprio de crimes é, segundo a lei penal, o desígnio que anima a conduta do agente. É dizer, havendo desígnios autônomos, incidirá a modalidade imprópria do concurso formal de infrações penais, a qual é mais gravosa; residualmente, incidirá a modalidade própria do concurso formal de infrações penais – menos gravosa – para os demais elementos subjetivos possíveis.
Destarte, de acordo com a doutrina penal majoritária analisada neste trabalho, tendo-se em conta que o sistema de exasperação da pena (primeira parte do caput artigo 70 do Código Penal) determinado pelo concurso formal próprio de crimes foi delineado com a finalidade de beneficiar o acusado, em razão do elemento subjetivo que anima a sua conduta, deve a expressão “desígnios autônomos” contida na segunda parte do caput do artigo 70 do Código Penal (mais gravoso) ser interpretada restritivamente, para abranger, apenas, as hipóteses em que houver dolo direto do agente relativamente a todos os resultados delitivos praticados em decorrência de sua conduta única.
Isso se deve ao fato de que a conduta do agente, embora tenha sido única, ao produzir mais de um resultado doloso (dolo direto), equipara-se à situação em que os mesmos resultados são dolosamente atingidos por meio de mais de uma conduta, tratando-se, outrossim, de mera opção “logística” do agente perpetrar o plano delitivo através de uma ou mais condutas. Ambas as situações são dotadas de igual gravidade e, logo, reprovabilidade jurídico-penal (cúmulo material das reprimendas).
Por outro lado, deve prevalecer a incidência da primeira parte do caput do artigo 70 do Código Penal, consistente no concurso formal próprio de crimes, por ser mais benéfico, nas demais hipóteses em que o autor praticar mais de um resultado típico por meio de uma única conduta, é dizer, nos casos em que agir, relativamente aos diversos resultados típicos, com (i) dolo direto relativamente a um resultado e culpa (consciente ou inconsciente) relativamente ao(s) outro(s); (ii) dolo direto relativamente a um resultado e dolo eventual relativamente ao(s) outro(s); (iii) dolo eventual relativamente a um ou alguns dos resultados e culpa (consciente ou inconsciente) com relação ao restante; (iv) culpa (consciente ou inconsciente) relativamente a todos os resultados; ou (v) dolo eventual relativamente a todos os resultados – eis que, em tais casos, a ausência de dolo direto (“desígnios autônomos”) com relação à pluralidade de resultados típicos torna o desvalor da conduta menor.
Ante o exposto, é possível concluir que o agente que pratica mais de um crime mediante uma única conduta, porém dotado de desígnios autônomos (dolo direto) relativamente a cada um dos resultados delitivos, não pode ser beneficiado com a aplicação do concurso formal próprio de crimes e, por conseguinte, com o sistema de exasperação da pena, sob pena de subverter-se a lógica imprimida à lei penal; isto é, sob pena de desviar-se da finalidade da lei – que é beneficiar somente o sujeito que não age imbuído de desígnios autônomos relativamente aos resultados alcançados por meio de sua conduta delitiva única –, afastando-se, assim, do método interpretativo teleológico e das razões de política criminal inauguradas pelo direito penal positivado.
É justamente nesse ponto que reside a contradição entre tais bases estabelecidas pela dogmática jurídico-penal e o entendimento reiteradamente aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça em seus julgados, notadamente nos precedentes analisados no Capítulo 4 deste trabalho: referida Corte, sem aprofundar o exame acerca do elemento subjetivo que anima a conduta do autor do fato, aplica, de maneira indistinta, o concurso formal próprio aos crimes de roubo, com o consequente sistema de exasperação da pena (primeira parte do caput artigo 70 do Código Penal), que foram praticados mediante uma conduta única pelo agente no mesmo contexto fático, ainda que presente o dolo direito em todos os resultados delitivos alcançados.
Com efeito, conforme analisado anteriormente, nos diversos casos concretos que chegam à apreciação do Superior Tribunal de Justiça, a referida Corte reitera o entendimento no sentido de que (i) o número de crimes patrimoniais praticados pelo agente deve ser identificado a partir do número de patrimônios (principal bem jurídico protegido pelo artigo 157 do Código Penal) subtraídos no mesmo contexto delitivo, considerando-se, nesse ponto, as individualmente quanto ao patrimônio próprio de cada uma delas (afastada a tese de patrimônio único quanto as bens subtraídos de integrantes de uma mesma família); (ii) ainda que praticados diferentes atos ou movimentos corporais de subtração, deve-se entender pela existência de uma única conduta global, tendo em vista a unidade do plano delitivo do autor do fato e o contexto fático único no qual foram praticadas as subtrações; (iii) em razão de existir uma única conduta para a execução de diversos crimes de roubo em um único contexto, configura-se o concurso formal de crimes, na medida em que o agente, objetivamente, mediante conduta única, pratica mais de um crime; (iv) dentre as espécies de concurso formal contempladas no Código Penal, aplica-se o concurso formal próprio (artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal) com a consequência incidência do sistema de exasperação das reprimendas, presumindo-se a existência de um único desígnio – em oposição à expressão “desígnios autônomos” utilizada para caracterizar o concurso formal impróprio de crimes.
Observa-se que os entendimentos adotados pelo Superior Tribunal de Justiça expostos nos itens “(i)”, “(ii)” e “(iii)” do parágrafo acima guardam correspondência com as bases doutrinárias exploradas nos capítulos iniciais deste trabalho. Por outro lado, o entendimento adotado quanto à específica modalidade de concurso formal de infrações penais incidente nos casos concretos, indicado no item “(iv)” do parágrafo supra, diverge das diretrizes dogmáticas estudadas, eis que, conforme dito alhures, a doutrina defende a incidência do concurso formal impróprio para a hipótese em que os crimes de roubo, ainda que praticados mediante conduta única, são praticados pelo agente mediante “desígnios autônomos”.
Ocorre que, entendendo dessa forma, o Superior Tribunal de Justiça inclui, na mesma hipótese e, logo, na mesma consequência jurídica, situações que foram, prima facie, distinguidas pela lei penal. Acaba-se, dessa forma, dispensando-se o mesmo tratamento jurídico a agentes cujas condutas são dotadas de graus distintos de reprovabilidade, gerando uma desigualdade de tratamento onde a lei não pretendeu gerar.
Nessa senda, dentre os precedentes analiados, tome-se, por exemplo, o caso concreto apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça no agravo regimental no agravo em recurso especial n. 1.643.848/PR, analisado no no item 4.1.5 deste trabalho. A partir da análise das circunstâncias do caso concreto, verifica-se que o agente se valeu da facilidade que existia na prática delitiva em um estabelecimento comercial, no qual se encontravam diversas pessoas, além, é claro, da própria pessoa jurídica em cujo estabelecimento comercial se deu a conduta criminosa, para subtrair bens de diversas vítimas distintas. Note-se que o autor não se restringiu a subtrair os bens da pessoa jurídica em questão, mas aproveitou-se do contexto da prática criminosa para, mediante múltiplos movimentos corpóreos, que consubstanciaram uma conduta delitiva única, subtrair bens de diversos clientes, pessoas naturais, que lá estavam, aumentando, assim, a vantagem obtida.
Não se pode, nesse caso, dizer que não houve dolo direto por parte do agente criminoso que subtraiu os bens das diversas vítimas que se encontravam no estabelecimento comercial, eis que nitidamente perceptível a individualidade de cada uma das pessoas ofendidas, bem como das esferas patrimoniais de cada uma delas.
Assim, a conclusão pela incidência do concurso formal próprio de crimes, nesse caso, vai de encontro à finalidade da lei, que procurou beneficiar tão somente o sujeito que não age imbuído de desígnios autônomos na prática de mais de um crime mediante conduta única. Cria-se, dessa forma, um benefício onde a lei não previu, mas, ao contrário, optou por punir mais severamente, tendo em vista os termos expressos da segunda parte do caput do artigo 70 do Código Penal.
Note-se, nesse sentido, a diferença que a hipótese em comento guarda, por exemplo, com o caso concreto objeto do agravo regimental no habeas corpus n. 443.242/MG, analisado no item 4.1.2 deste trabalho. No caso em referência, o agente, mediante conduta única e em um mesmo contexto fático, subtraiu bens pertencentes a pessoas distintas e, logo, atinentes a esferas patrimoniais igualmente distintas (da pessoa jurídica em cujo estabelecimento comercial se deu o roubo e da pessoa natural que lá se encontrava, que era vendedora e proprietária da empresa), mas que estavam, no momento da prática delitiva, na posse de uma única pessoa natural. Não é possível, nesse caso, afirmar que a previsibilidade do agente atingiu, efetivamente, ambos os patrimônios isoladamente considerados, mormente em razão do fato de que os bens subtraídos se encontravam em poder de uma única vítima.
Nessa hipótese, é perfeitamente possível compreender pela existência de dolo direto relativamente a um dos resultados atingidos e de dolo eventual relativamente ao outro resultado, o que autoriza a incidência do concurso formal de crimes na modalidade própria, com a aplicação do sistema de exasperação da pena em benefício do réu (artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal). Aliás, a partir da interpretação teleológica do artigo 70 do Código Penal, considerada a globalidade do diploma normativo no qual ele se insere, é justamente essa hipótese – na qual não há dolo direto ou desígnios autônomos por parte do agente quanto aos múltiplos resultados típicos alcançados pela conduta única – que a lei tem por finalidade imprimir um tratamento mais brando ao acusado, limitado, ainda, ao teto estabelecido pelo parágrafo único do mesmo artigo 70 do Código Penal, tudo isso em favor do acusado.
Assim, é possível perceber, a partir da análise de casos práticos, a diferença do elemento subjetivo do autor do fato, a ensejar, igualmente, a dispensa de tratamentos jurídico-penais diversos, tendo em vista a política criminal adotada pelo Código Penal, com a finalidade de tratar, mais beneficamente, aquele que não age imbuído de desígnios autônomos quanto aos crimes praticados, relativamente àquele sujeito que assim o faz, cuja conduta é merecedora de maior reprovação.
Aqui cumpre anotar que os exemplos tratados se limitam à presença de (i) dolo direto com relação a um resultado típico e dolo direto com relação ao outro e (ii) dolo direito com relação a um resultado delitivo e dolo eventual relativamente ao outro, não havendo que se cogitar, na hipótese em estudo, da combinação de alguma modalidade dolosa com a culpa, eis que o Código Penal, tal como visto no Capítulo 3 deste trabalho, não prevê, em seu artigo 157, qualquer modalidade culposa para o crime de roubo, de modo que, na esteira do que prevê o artigo 18, parágrafo único, do Código Penal, não havendo expressa previsão legal nesse sentido, o crime praticado culposamente não é punível.
5.4 Conclusão
Nos moldes aqui expostos, conclui-se que o entendimento reiteradamente aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça a casos envolvendo a prática de mais de um crime de roubo, mediante conduta única em um mesmo contexto fático, nem sempre coincide com as bases estabelecidas pela doutrina ou dogmática jurídico-penal, no estudo do artigo 70 do Código Penal.
Isso porque o Superior Tribunal de Justiça, nos precedentes analisados, aplica indistintamente a modalidade própria do concurso formal de crimes aos casos nos quais o agente pratica, mediante uma só conduta, múltiplos crimes de roubo em um único contexto fático, independentemente do elemento subjetivo que animou a sua conduta relativamente a cada um dos resultados típicos produzidos.
Dessa forma, a distinção estabelecida pela lei penal entre as modalidades própria e imprópria de concurso formal de crimes, tal como explicada pela doutrina, acaba não sendo observada na aplicação prática desse instituto penal, o que culmina no desatendimento à finalidade objetivada pela lei, de dispensar tratamento mais brando apenas ao sujeito que não age imbuído de desígnios autônomos relativamente a cada um dos resultados típicos produzidos.
Em outras palavras, o Superior Tribunal de Justiça acaba por dispensar igual tratamento jurídico a sujeitos que praticam crimes de roubo animados por elementos subjetivos distintos, criando um privilégio, àquele que age imbuído de desígnios autônomos, onde a lei não previu, o que implica, em última análise, ofensa ao próprio princípio da isonomia, o qual, segundo Masson (2017, p. 67) estabelece a “obrigação de tratar igualmente aos iguais, e desigualmente aos desiguais, na medida de suas desigualdades”.
A práxis, portanto, aqui representada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, distancia-se das bases dogmáticas estabelecidas pela doutrina penalista, afastando-se das razões de política criminal que inspiraram a disciplina do instituto do concurso formal de crimes pelo Código Penal e desviando-se, no mesmo sentido, da interpretação teleológica da lei penal, na medida em que restam inobservadas as finalidades almejadas pelo artigo 70 do Código Penal, interpretado à luz da globalidade do ordenamento jurídico-penal no qual se insere, nos moldes já expostos anteriormente.
A razão para a aplicação do concurso formal próprio de crimes em tais casos, segundo alguns doutrinadores, como Gonçalves (2018, p. 390), seria “provavelmente porque a pena ficaria muito alta se houvesse muitas vítimas e as penas fossem somadas”. Note-se que essa possível explicação se funda também em razões de política criminal, mas não aquela que inspirou o Poder Legislativo na edição do artigo 70 do Código Penal, e sim a política criminal aplicada pelo próprio julgador, no âmbito do Poder Judiciário – até porque, como visto anteriormente, a política criminal faz-se presente em ambos os momentos em questão, isto é, tanto na elaboração da norma jurídica pelo Poder Legislativo, quanto na sua posterior aplicação pelo Poder Judiciário.
É nesse sentido, inclusive, a constatação de Salvador Netto (2014, p. 236) acerca do “fato de a decisão judicial, muitas vezes, estar propositadamente afastada de construções dogmáticas precisas, buscando tão só um resultado que seja politicamente satisfatório, almejando meras justificativas aptas a sustentar a pena mais severa possível” – no caso em análise, a pena mais branda do que aquela que resultaria da aplicação do concurso formal impróprio de crimes de roubo.
Embora possa, de alguma forma, ser legítima a política criminal que inspira a aplicação do concurso formal de crimes pelo Superior Tribunal de Justiça nos moldes aqui expostos, é certo que ela destoa da política criminal que inspira a norma penal positivada, a qual é identificada pela dogmática jurídico-penal a partir da interpretação teleológica do artigo 70 do Código Penal.
Esse fato, consistente na divergência entre a dogmática e a práxis, não contribui para a racionalidade da aplicação do direito penal aos indivíduos, o que se agrava notadamente tendo em vista que são inobservadas as finalidades da lei penal editada pelos representantes políticos eleitos, democrática e legitimamente, pelos mesmos indivíduos destinatários da norma penal.
CONCLUSÃO
O concurso de infrações penais se verifica quando o agente pratica mais de um crime ou contravenção penal, seja mediante uma única ação ou várias ações. O atual Código Penal brasileiro, Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, com redação dada pela Lei n.º 7.209, de 11 de julho de 1984, elenca três formas elementares de concursos de crimes: (i) o concurso material, disposto no artigo 69 do Código Penal; (ii) o concurso formal, tratado no artigo 70 do Código Penal; (iii) e o crime continuado, disciplinado no artigo 71 do Código Penal.
O concurso formal de infrações penais se verifica quando o agente, mediante uma única conduta (ação ou omissão), pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. Segundo a doutrina, adotada a teoria objetiva, o concurso formal de infrações (enquanto gênero, do qual são espécies os concursos formais próprio e impróprio), independentemente da unidade ou da pluralidade de desígnios do autor, é configurado mediante a reunião de requisitos objetivos consistentes na unidade da conduta e na pluralidade dos resultados. Dessa forma, o(s) desígnio(s) do agente somente relevará(ão) para a distinção entre as espécies de concurso formal – próprio ou impróprio –, mas não para a caracterização do concurso formal em si, enquanto gênero, eis que para a sua identificação basta que uma única conduta produza mais de um resultado típico
Nesse ponto, consigne-se que o termo “conduta” não se confunde com “ato”, de modo que uma única conduta, praticada em um mesmo contexto fático (iguais condições de espaço e tempo) – elemento objetivo – e mediante a vontade do autor de praticar uma só conduta ou plano delitivo – elemento subjetivo –, pode ser composta por diversos atos ou movimentos corpóreos.
Por sua vez, a expressão “desígnios autônomos”, que diferencia o concurso formal impróprio do concurso formal próprio de crimes, deve, segundo a doutrina, ser compreendida enquanto a presença de dolo direto do agente relativamente à pluralidade de resultados criminosos atingidos por meio de sua conduta delitiva. A falta de dolo direto com relação a um dos resultados obtidos (dolo eventual ou culpa, consciente ou inconsciente) caracteriza, residualmente, o concurso formal próprio de infrações penais.
Tendo em vista as consequências jurídicas estabelecidas pela lei relativamente a cada uma das modalidades de concurso formal de crimes, a doutrina extrai que a finalidade da lei é beneficiar o autor do fato, por meio da incidência do sistema de exasperação da pena (artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal), nos casos em que não há desígnios autônomos relativamente a todos os resultados atingidos – isto é, para a hipótese de concurso formal próprio de infrações penais –, ao passo que a lei pune mais severamente aquele que age imbuído de desígnios autônomos (dolo direto) relativamente a cada um dos resultados praticados por meio da conduta única, com a incidência do sistema do cúmulo material de reprimendas (artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal), no que caracteriza o denominado concurso formal impróprio de infrações penais.
O crime de roubo está previsto no artigo 157 do Código Penal, e tem por finalidade a tutela do bem jurídico patrimônio, primordialmente, além da incolumidade física ou liberdade individual do ofendido. Por estar inserido no Capítulo II, do Título II da Parte Especial do Código Penal, isto é, no Título que trata dos crimes contra o patrimônio, este bem jurídico deve nortear a interpretação do delito em referência, adotando-se, na seara jurídico-penal, o conceito misto ou jurídico-econômico de patrimônio.
Em função do bem jurídico tutelado pela norma penal, o número de roubos praticados por um determinado indivíduo guarda correspondência com o número de patrimônios distintos atingidos. Em outras palavras, haverá tantos crimes de roubo quantas foram as vítimas de subtração patrimonial – independentemente do número de vítimas atingidas em sua incolumidade física ou liberdade individual.
A partir da análise dos precedentes do Superior Tribunal de Justiça com julgamento no primeiro semestre do ano de 2020, verifica-se que a jurisprudência da referida Corte é pacífica no sentido de que (i) o número de crimes patrimoniais praticados pelo agente deve ser identificado a partir do número de patrimônios (principal bem jurídico protegido pelo artigo 157 do Código Penal) subtraídos no mesmo contexto delitivo, considerando-se, nesse ponto, as individualmente quanto ao patrimônio próprio de cada uma delas (afastada a tese de patrimônio único quanto as bens subtraídos de integrantes de uma mesma família); (ii) ainda que praticados diferentes atos ou movimentos corporais de subtração, deve-se entender pela existência de uma única conduta global, tendo em vista a unidade do plano delitivo do autor do fato e o contexto fático único no qual foram praticadas as subtrações; (iii) em razão de existir uma única conduta para a execução de diversos crimes de roubo em um único contexto, configura-se o concurso formal de crimes, na medida em que o agente, objetivamente, mediante conduta única, pratica mais de um crime; (iv) dentre as espécies de concurso formal contempladas no Código Penal, aplica-se o concurso formal próprio (artigo 70, caput, primeira parte, do Código Penal) com a consequência incidência do sistema de exasperação das reprimendas, presumindo-se a existência de um único desígnio – em oposição à expressão “desígnios autônomos” utilizada para caracterizar o concurso formal impróprio de crimes.
Em que pese à coincidência entre as três primeiras teses do Superior Tribunal de Justiça em referência com as bases estabelecidas pela doutrina, é certo que a última tese aplicada, no que toca à incidência indistinta da modalidade própria do concurso formal aos crimes de roubo praticados mediante conduta única, em um mesmo contexto delitivo, diverge das premissas estabelecidas pela dogmática.
Isso porque, ao deixar de distinguir as modalidades de concurso formal de crimes incidentes nos casos concretos, sem adentrar na discussão acerca do elemento subjetivo do agente, o Superior Tribunal de Justiça acaba por equiparar situações jurídicas que a lei distinguiu, em ofensa à interpretação teleológica do ordenamento jurídico-penal e à isonomia, conferindo tratamento igual a sujeitos que se encontram em situações distintas. Em outras palavras, ao aplicar o concurso formal próprio de crimes, com a aplicação do sistema de exasperação da pena, ao sujeito que age imbuído de desígnios autônomos relativamente aos resultados delitivos atingidos, cria-se um benefício onde a lei penal não previu.
Embora, segundo parte da doutrina, esse tratamento jurídico dispensado pelo Superior Tribunal de Justiça seja baseado em razões de política criminal judiciária (que não corresponde à política criminal incorporada pela lei), com o fim de evitar a aplicação de reprimenda demasiadamente alta ao acusado, é certo que a divergência entre a dogmática e a práxis não contribui para a racionalidade da aplicação do direito penal aos indivíduos, o que se agrava notadamente tendo em vista que são inobservadas as finalidades da lei penal editada pelos representantes políticos eleitos, democrática e legitimamente, pelos mesmos indivíduos destinatários da norma penal.
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[1] Nucci (2010) exemplifica o cabimento do concurso formal entre crimes omissivos da seguinte forma: “No exemplo de Zaffaroni, se um funcionário do presídio deixa uma porta aberta para que um preso fuja e outro se vingue, matando o carceceiro, temos homicídio e favorecimento (Tratadi de derecho penal – Parte general, p. 555)”. Por outro lado, defende Nucci (2010) que entre os delitos de homicídio por omissão e omissão de socorro praticados por uma única conduta, não se configura concurso formal de crimes, mas um concurso aparente ou impróprio, eis que o dolo da omissão seria consumido pelo tipo penal do homicídio.
[2] Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/toc.jsp?edicao=EDI%C7%C3O%20N.%2020:%20CRIME%20CONTINUADO%20-%20II>. Acesso em: 10 fev. 2020.
[3] “Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior. (...) Parágrafo único - Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código”.
[4] “Art. 51. (...) § 1º Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, a que se cominam penas privativas de liberdade, impõe-se-lhe a mais grave, ou, se idênticas, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a acção ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos”.
[5] Os crimes subsidiários são aqueles que somente se verificam se o fato não constitui crime mais grave, funcionando como “soldado de reserva”, segundo a expressão clássica cunhada por Nélson Hungria (MASSON, 2017, p. 231).
[6] Código Civil: “Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
[7] FERREIRA, Antônio Gomes. Dicionário de latim-português. Porto: Porto Editora, 1991. p. 227 et 993.
[8] Disponível em: < https://scon.stj.jus.br/SCON/ >, acesso em 19 set. 2020.
[9] Disponível em: < http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Institucional/Composicao > , acesso em 03 out. 2020.
Assistente judiciária, mediadora e conciliadora de conflitos. Pós-graduanda em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura (EPM – TJSP). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DOMENICE, Priscila. O concurso formal de crimes segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: análise dos precedentes do Superior Tribunal de Justiça versando sobre concurso formal entre crimes de roubo com julgamento no primeiro semestre de 2020 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jul 2022, 04:11. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58953/o-concurso-formal-de-crimes-segundo-a-jurisprudncia-do-superior-tribunal-de-justia-anlise-dos-precedentes-do-superior-tribunal-de-justia-versando-sobre-concurso-formal-entre-crimes-de-roubo-com-julgamento-no-primeiro-semestre-de-2020. Acesso em: 23 dez 2024.
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